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Processo n.º 637/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. reclamou para o Presidente do Tribunal da
Relação de Guimarães contra o despacho do Juiz do Tribunal Judicial de Esposende
que – considerando taxativa a enumeração das decisões recorríveis constante do
artigo 73.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (Regime
Geral das Contra‑Ordenações – doravante designado por RGCO), na redacção dada
pelos Decretos‑Leis n.ºs 244/95, de 14 de Setembro, e 323/2001, de 17 de
Dezembro –, não admitiu recurso interposto para aquela Relação contra decisão
que julgara improcedente, por extemporaneidade, arguição de nulidade processual
(consubstanciada em falta de notificação de anterior despacho). Nessa reclamação
sustentou o reclamante que:
“1. A enumeração constante do artigo 73.º [do RGCO] não é
taxativa; com efeito, como bem refere António Beça Pereira (in Regime Geral das
Contra‑Ordenações e Coimas, Almedina, Coimbra, 3.ª edição, 1997, pág. 126), «no
n.º 2 a expressão para além dos casos enunciados no número anterior refere‑se
apenas às decisões finais previstas nesse número, não resultando daí a
irrecorribilidade dos despachos judiciais não previstos neste artigo».
2. O que significa que o artigo 73.º do Regime Geral das
Contra‑Ordenações e Coimas refere‑se apenas à sentença ou despacho judicial
proferido nos termos do artigo 64.º do mesmo diploma, ou seja, às decisões que
põem termo à causa, pelo que estão excluídas, obviamente, da previsão da
aludida norma todas as decisões posteriores àquelas.
3. Estão de igual modo excluídas da previsão da norma contida
no artigo 73.º do RGCOC todos os despachos interlocutórios proferidos antes da
decisão final (a que se referem os artigos 63.º, 64.º e 73.º do mesmo diploma).
4. Os despachos anteriores e posteriores à decisão que ponham
termo à causa são também recorríveis sempre que esta (ou a própria decisão da
autoridade administrativa!) condene o arguido em coima superior a € 250,00 ou
abranja sanções acessórias.
5. De qualquer forma, sempre se dirá que o despacho de fls. 68
e 69, ao ter indeferido a invocada nulidade processual por falta de notificação
do despacho de fls. 38 e confirmado, por consequência, o teor do despacho de
fls. 42, equivale à decisão de rejeição da impugnação judicial a que se referem
os artigos 63.º, n.º 1, 64.º e 73.º, n.º 1, alínea d), do diploma citado.
6. A ser confirmada a interpretação que dela é feita na decisão
ora reclamada no sentido de que o despacho (de fls. 68) que indeferiu a
nulidade processual por omissão da notificação ao arguido do despacho de fls.
38 não é recorrível, então a norma contida no artigo 73.º é manifestamente
inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 10, da Constituição da
República Portuguesa.”
Esta reclamação foi indeferida por despacho de
17 de Maio de 2006 do Vice‑Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães, com a
seguinte fundamentação:
“I. Do exame da disciplina legal prevista no artigo 73.º do
Regime Geral das Contra‑Ordenações tiramos a conclusão de que a regra geral a
atender para a admissibilidade do recurso para a Relação da decisão proferida
em recurso de impugnação judicial é a que se estatui no n.º 1 daquele preceito
legal.
Neste contexto, o n.º 2 deste mesmo normativo estabelece uma regra especial, a
atender (para além dos casos enunciados no número anterior ...) apenas quando o
objectivo do recurso se destina à abordagem dos casos aí pontualmente descritos:
à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da
jurisprudência (... poderá a Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério
Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente
necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da
jurisprudência).
Se for este o caso, há‑de o recorrente – artigo 74.º, n.ºs 2 e 3, do Regime
Geral das Contra‑Ordenações – formular a respectiva pretensão em requerimento
que deverá anteceder aquele em que consubstancia e motiva o atinente recurso,
constituindo a respectiva decisão uma questão prévia que deverá ser resolvida
por despacho fundamentado do tribunal, equivalendo o seu indeferimento à
retirada do recurso.
II. No seu artigo 73.º, o Regime Geral das Contra‑Ordenações, comparando‑o com
a disciplina legal estatuída no Código de Processo Penal, estabelece um regime
especial relativo à admissibilidade do recurso para a Relação.
Quando estamos perante uma decisão que se enquadra no âmbito do processo de
contra‑ordenação previsto no Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro,
actualizado pelo Decreto‑Lei n.º 244/95, de 14 de Outubro, aquele normativo
(artigo 73.º) enumera, exaustiva e taxativamente, quais as decisões que podem
ser impugnadas mediante recurso para a Relação e consignando que só se incluem
nesta delimitada área a sentença e o despacho proferidos nos termos do
preceituado no artigo 64.º daquele diploma legal, isto é, no caso de se
constatar uma decisão mediante audiência de julgamento ou através de simples
despacho, acrescentando‑se que o recurso ainda pode ter lugar quando seja
rejeitada a impugnação judicial da aplicação de uma coima ou por
intempestividade ou por desrespeito pelas exigências de forma (alínea d)), ou,
ainda, quando o tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente
se ter oposto a tal (alínea e)).
Deste modo, não é susceptível de impugnação mediante recurso qualquer outra
decisão incluída no processo de contra‑ordenação que se não contenha neste
espaço jurídico‑processual de contra‑ordenação, designadamente não é recorrível
a decisão que se integra na disciplina da tramitação do recurso e procede já a
sentença final.
Sendo assim, não cabe recurso da decisão que, por ter considerado intempestiva a
atinente reclamação referente à invocada nulidade processual alegadamente
cometida e consubstanciada na deduzida omissão da falta de notificação do
despacho de fls. 38, desatendeu a pretensão do arguido.
III. Argumenta o reclamante/recorrente no sentido de que o despacho de fls. 68 e
69, ao ter indeferido a invocada nulidade processual por falta de notificação
do despacho de fls. 38 e confirmado, por consequência, o teor do despacho de
fls. 42, equivale à decisão de rejeição da impugnação judicial a que se referem
os artigos 63.º, n.º 1, 64.º e 73.º, n.º 1, alínea d), do diploma citado.
Não tem qualquer apoio legal a afirmação assim produzida.
Na verdade, operando‑se a rejeição do recurso quando os autos, remetidos pela
autoridade administrativa, forem apresentados pelo Ministério Público ao Juiz e
este considerar que o recurso foi interposto fora de prazo ou em desrespeito
pelas exigências de forma (artigos 62.º e 63.º), não se podendo incluir neste
regime jurídico a pretensão do recorrente, dúvidas também não temos de que a
razão não está do lado do reclamante na observação que faz relativamente a este
pormenor jurídico‑processual de contra‑ordenação.
IV. Estão constitucionalmente assegurados ao arguido os direitos de audiência e
defesa nos processos de contra‑ordenação – artigo 32.º, n.º 10, da Constituição
da República Portuguesa.
Convenhamos, porém, que o direito de defesa legalmente atribuído ao cidadão não
se compraz com a atitude de tornar recorrível toda e qualquer decisão proferida
no âmbito do processo.
Compete ao legislador estabelecer e concretizar o justo equilíbrio entre aquele
princípio de defesa e estoutro também relevante que é o da celeridade
processual, também delineado no interesse do indivíduo, ou seja, ao serviço da
segurança da sua liberdade.
Se é verdade que, nos termos do n.º 2 do artigo 20.º da CRP, «a todos é
assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos», o certo é que
a nossa Lei fundamental não estabelece como regra programática que todas as
decisões judiciais são susceptíveis de impugnação por meio de recurso – não está
consagrado na Lei Fundamental … um direito ao recurso absoluto ou ilimitado,
pelo que é legítimo ao legislador infra‑constitucional racionalizar tal
instituto processual, reservando o exercício do direito de recorrer para os
casos com maior dignidade.
Pelo exposto se desatende a presente reclamação.”
É deste despacho que, pelo reclamante, vem
interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), pretendendo‑se ver apreciada a inconstitucionalidade, por violação do
artigo 32.º, n.ºs 1 e 10, da Constituição da República Portuguesa (CRP), da
norma constante do artigo 73.º do RGCO “quando interpretada no sentido plasmado
quer no douto despacho ora recorrido, quer no próprio despacho da 1.ª instância,
de que o despacho (de fls. 68) que indeferiu a nulidade processual por omissão
da notificação ao arguido do douto despacho de fls. 38 não é recorrível”.
Neste Tribunal Constitucional, o recorrente
apresentou alegações, do seguinte teor:
“1. Salvo o devido respeito por opinião contrária, a norma
contida no artigo 73.º do Regime Geral das Contra‑Ordenações e Coimas (criado
pelo Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, e alterado pelos Decretos‑Leis
n.ºs 356/89, de 17 de Outubro, e 244/95, de 14 de Setembro, e pela Lei n.º
109/2001, de 24/12 e, doravante, designado apenas por RGCOC), interpretada no
sentido plasmado no douto despacho ora impugnado (prolatado pelo Ex.mo Juiz
Desembargador Vice‑Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães em 17 de Maio
de 2006) de que a decisão da 1.ª instância de fls. 68 (que indeferiu a invocada
nulidade processual por omissão da notificação ao arguido do despacho de fls.
38) não é recorrível, é manifestamente inconstitucional porque viola as
garantias constitucionais de defesa do arguido consagradas no artigo 32.º, n.ºs
1 e 10, da Constituição da República Portuguesa (doravante designada apenas por
CRP).
2. É que, na verdade, no nosso modesto entendimento, a
enumeração constante do artigo 73.º do RGCOC nem sequer é taxativa e na sua
previsão terão de caber, por isso e sob pena da sua inconstitucionalidade
material, as decisões intercalares e os despachos proferidos depois da sentença
final (ou do despacho a que alude o artigo 64.º do diploma citado), pelo menos,
aqueles que puserem termo ao respectivo processo, mas tão‑só nas situações
previstas no n.º 1 do artigo 73.º do RGCOC.
3. De resto, é esse o entendimento de António Beça Pereira,
que, no seu Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, Coimbra, 3.ª
edição, 1997, pág. 126), escreveu expressamente (sobre o artigo 73.º do RGCOC)
que: «no n.º 2 a expressão para além dos casos enunciados no número anterior
refere‑se apenas às decisões finais previstas nesse número, não resultando daí a
irrecorribilidade dos despachos judiciais não previstos neste artigo».
4. O que significa que o artigo 73.º do Regime Geral das
Contra‑Ordenações e Coimas refere‑se apenas à sentença ou despacho judicial
proferido nos termos do artigo 64.º do mesmo diploma, ou seja, às decisões que
põem termo à causa.
5. Daí não resultando necessariamente a irrecorribilidade das
decisões posteriores àquelas.
6. Como não resulta, de igual modo, a irrecorribilidade dos
despachos interlocutórios proferidos antes da decisão final (e aos quais se
referem os artigos 63.º, 64.º e 73.º do mesmo diploma).
7. Pelo que teremos de concluir que os despachos anteriores e
posteriores à decisão que ponha termo à causa são também recorríveis sempre que
se verifique qualquer das situações expressamente previstas no n.º 1 do artigo
73.º do RGCOC.
8. De qualquer forma, ainda sob pena de inconstitucionalidade
material da norma sub judice, sempre se dirá que o douto despacho de fls. 68 (ao
ter indeferido a invocada nulidade processual por falta de notificação ao ora
recorrente do despacho de fls. 38) terá de ser equiparada à decisão de rejeição
da impugnação judicial a que se referem os artigos 63.º, n.º 1, 64.º e 73.º, n.º
1, alínea d), do diploma citado.
9. Pois que, se assim não for, o tribunal de 1.ª instância,
sempre que assim o entender, poderá furtar‑se habilidosamente ao (eventual)
recurso da decisão que tenha posto termo à causa através da prolação de um
simples despacho de indeferimento de uma nulidade processual invocada pelo
arguido na sequência da omissão de uma notificação ou de um despacho posterior à
decisão final que, por algum motivo (por exemplo: pelo não pagamento de uma
multa ou da taxa de justiça devida pela própria interposição do recurso), venha
a inviabilizar a subida do recurso interposto pelo arguido.
10. O que seria, de todo, intolerável do ponto de vista
constitucional, mesmo no âmbito do ilícito de mera ordenação social!
11. Até porque, mesmo no âmbito desse ilícito, nos direitos de
defesa do arguido a que alude o n.º 10 do artigo 32.º da CRP está incluído o
próprio direito de recurso previsto no seu n.º 1.
12. E não se venha dizer, como sustenta o Senhor
Vice‑Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães no despacho ora recorrido,
que «a nossa lei fundamental não estabelece como regra programática que todas as
decisões judiciais são susceptíveis de impugnação por meio de recurso».
13. Pois que, todos nós sabemos que é, mais ou menos, pacífico
o entendimento de que «não está consagrado na Lei Fundamental ... um direito ao
recurso absoluto ou ilimitado, pelo que é legítimo ao legislador
infraconstitucional racionalizar tal instituto processual, reservando o
exercício do direito de recorrer para os casos de maior dignidade».
14. Contudo, não é essa a questão em apreço no presente
recurso!
15. Na verdade, o que está em causa no presente recurso é saber
se tem cabimento constitucional a distinção operada pela decisão recorrida (com
o único propósito de excluir os segundos da previsão do artigo 73.º do RGCOC)
entre a sentença final (ou o despacho a que alude o artigo 64.º do mesmo
diploma) e quaisquer outros despachos anteriores ou posteriores que ponham, de
igual modo, termo ao processo.
16. Mas atenção que estamos apenas a falar daqueles casos em
que, como o ora em apreço, se enquadrem em algumas das alíneas do n.º 1 do
artigo 73.º do diploma citado!
17. Ora, nós somos de opinião que tal interpretação da aludida
norma (contida no artigo 73.º do RGCOC) no sentido de que o legislador através
dela pretendeu tornar irrecorríveis as decisões anteriores e posteriores à
sentença final proferidas em processo de contra‑ordenação (ou do despacho a que
alude o artigo 64.º do diploma ora em apreciação), mesmo aquelas que – como no
nosso caso – põem termo ao processo, é manifestamente contrária às garantias
constitucionais de defesa do arguido consagradas no artigo 32.º, n.ºs 1 e 10, da
Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o direito de recurso.
18. A norma sub judice, interpretada com o sentido que lhe foi
fixado no douto despacho recorrido, é materialmente inconstitucional, por
violação do disposto no artigo 32.º, n.ºs 1 e 10, da Constituição da República
Portuguesa.”
O representante do Ministério Público neste
Tribunal contra‑alegou, concluindo:
“1 – A norma constante do n.º 1 do artigo 73.º do Decreto‑Lei
n.º 433/82, interpretada em termos de não permitir o recurso para a Relação do
despacho que se pronuncia sobre a tempestividade da arguição de certa nulidade
processual – sendo o recurso possível, pelo contrário, relativamente às decisões
que dirimem o recurso ou rejeitam a impugnação judicial deduzida – não afronta
os princípios das garantias de defesa e da igualdade.
2 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Cumpre, antes de mais, identificar, com
rigor, a questão de constitucionalidade que constitui objecto do presente
recurso, questão essa que há‑de obedecer a três requisitos: (i) ter sido
suscitada pelo recorrente perante o tribunal recorrido; (ii) respeitar a norma
que foi aplicada como ratio decidendi da decisão impugnada; e (iii) revelar‑se
com utilidade para a decisão da causa, atenta a configuração do caso concreto.
Para este efeito, resulta dos elementos
disponíveis nos presentes autos que, no processo de impugnação judicial de
decisão administrativa (da Direcção‑Geral de Viação) sancionadora de
contra‑ordenação, foi proferido, pelo juiz do Tribunal Judicial da Comarca de
Esposende, a fls. 37 e 38 do processo principal, um despacho sobre duas questões
processuais distintas, a segunda das quais culminava com a formulação de convite
para aperfeiçoamento da petição de impugnação. Não tendo sido efectuado este
aperfeiçoamento, foi, a fls. 42 desse processo, proferida decisão de rejeição da
impugnação judicial. Na sequência da notificação desta decisão, o recorrente
veio arguir a nulidade processual consistente em, na notificação que lhe foi
feita do despacho de fls. 37 e 38, só lhe ter sido remetida cópia da fl. 37, e
não também da fl. 38, que era aquela em que era formulado convite ao
aperfeiçoamento da petição. Esta arguição de nulidade processual foi julgada
improcedente por despacho de 27 de Fevereiro de 2006 (reproduzido a fls. 11 e 12
destes autos), por extemporaneidade, dado que a eventual omissão do envio de uma
das folhas do despacho notificado constituiria violação do artigo 259.º do
Código de Processo Civil, ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal (CPP),
subsumível ao artigo 123.º deste Código, por não enquadrável nos artigos 120.º,
n.º 2, e 119.º, isto é, constituindo irregularidade arguível nos três dias
seguintes ao da notificação para qualquer termo do processo; ora, tendo o
recorrente sido notificado em 10 de Fevereiro de 2006 do despacho de rejeição do
recurso da decisão administrativa com o apontado fundamento, o prazo de arguição
da irregularidade esgotou‑se em 13 de Fevereiro de 2006, e o recorrente só a
veio invocar em 20 de Fevereiro de 2006, momento em que a mesma se tinha de
considerar sanada. Foi deste despacho de indeferimento da arguição de nulidade
que o recorrente intentou recorrer para o Tribunal da Relação do Porto,
recurso que não foi admitido “por a decisão em crise não se enquadrar na
enunciação taxativa do artigo 73.º, n.ºs 1 e 2, do RGCOC”. Contra esta não
admissão foi deduzida reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação de
Guimarães, indeferida pelo despacho que constitui objecto do presente recurso,
nos termos inicialmente relatados.
Neste contexto, e atendendo aos termos em que a
questão de constitucionalidade foi suscitada pelo recorrente e decidida pelo
despacho ora impugnado, constitui objecto do presente recurso a questão da
inconstitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 73.º do RGCO,
interpretado no sentido de não permitir recurso para o Tribunal da Relação de
despacho de indeferimento de arguição de nulidade processual, proferido
posteriormente à decisão de rejeição de impugnação judicial de decisão
administrativa sancionadora de contra‑ordenação.
2.2. O recorrente indica como normas
constitucionais violadas pela interpretação impugnada as dos n.ºs 1 e 10 do
artigo 32.º da CRP.
Diga‑se, desde já, que o invocado n.º 10, na
sua directa estatuição, é de todo irrelevante para o presente caso. Com a
introdução dessa norma constitucional (efectuada, pela revisão constitucional de
1989, quanto aos processos de contra‑ordenação, e alargada, pela revisão de
1997, a quaisquer processos sancionatórios) o que se pretendeu foi assegurar,
nesses tipos de processos, os direitos de audiência e de defesa do arguido,
direitos estes que, na versão originária da Constituição, apenas estavam
expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da
função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspondente ao actual artigo 269.º, n.º
3). Tal norma implica tão‑só ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo
de sanção, contra‑ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou
qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição)
e possa defender‑se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa),
apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a
apurar a verdade (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa
Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 363). É esse o limitado alcance da norma do
n.º 10 do artigo 32.º da CRP, tendo sido rejeitada, no âmbito da revisão
constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento
ao arguido, “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios”, de
“todas as garantias do processo criminal” (artigo 32.º‑B do Projecto de Revisão
Constitucional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da
Assembleia da República, II Série‑RC, n.º 20, de 12 de Setembro de 1996, pp.
541‑544, e I Série, n.º 95, de 17 de Julho de 1997, pp. 3412 e 3466).
É óbvio que não se limitam aos direitos de
audição e defesa as garantias dos arguidos em processos sancionatórios, mas é
noutros preceitos constitucionais, que não no n.º 10 do artigo 32.º, que eles
encontram esteio. É o caso, desde logo, do direito de impugnação perante os
tribunais das decisões sancionatórias em causa, direito que se funda, em geral,
no artigo 20.º, n.º 1, e, especificamente para as decisões administrativas, no
artigo 268.º, n.º 4, da CRP. E, entrados esses processos na “fase
jurisdicional”, na sequência da impugnação perante os tribunais dessas decisões,
gozam os mesmos das genéricas garantias constitucionais dos processos judiciais,
quer directamente referidas naquele artigo 20.º (direito a decisão em prazo
razoável e garantia de processo equitativo), quer dimanados do princípio do
Estado de direito democrático (artigo 2.º da CRP), sendo descabida a invocação,
para esta fase, do disposto no n.º 10 do artigo 32.º da CRP (Já no Acórdão n.º
77/2005 se expressaram reservas quanto à atribuição ao n.º 10 do artigo 32.º da
CRP de um alcance tão amplo que abarcasse, no “direito de defesa” nele
contemplado, quer o direito de impugnação judicial das decisões de aplicação de
coimas, quer ainda o direito de recorrer das decisões desta impugnação
judicial, isto é, a imposição da garantia de uma 2.ª instância judicial para
apreciação da impugnação da decisão administrativa, tendo‑se nesse aresto não
julgado inconstitucional o artigo 74.º, n.º 1, do RGCO, “interpretado no sentido
de que, sendo notificado o mandatário do dia designado para leitura da decisão
de impugnação judicial em processo contra‑ordenacional, o prazo para recorrer se
conta a partir da data da leitura da decisão em audiência, esteja ou não
presente o arguido ou o seu mandatário”).
2.3. Dentre os processos sancionatórios é o
processo contra‑ordenacional um dos que mais se aproxima, atenta a natureza do
ilícito em causa, do processo penal, embora a este não possa ser equiparado.
Constitui afirmação recorrente na
jurisprudência do Tribunal Constitucional a da não aplicabilidade directa e
global aos processos contra‑ordenacionais dos princípios constitucionais
próprios do processo criminal, desde logo o princípio da judicialização da
instrução consagrado no n.º 4 do artigo 32.º (neste sentido: Acórdão n.º
158/92). A diferença de “princípios jurídico‑constitucionais, materiais e
orgânicos, a que se submetem entre nós a legislação penal e a legislação das
contra‑ordenações” reflecte‑se “no regime processual próprio de cada um desses
ilícitos”, não exigindo “um automático paralelismo com os institutos e regimes
próprios do processo penal, inscrevendo‑se assim no âmbito da liberdade de
conformação legislativa própria do legislador”, por exemplo, a não atribuição
ao assistente (admitindo que a lei consente em processo contra‑ordenacional
esta figura) de legitimidade para recorrer, legitimidade que o artigo 73.º, n.º
2, do RGCO apenas reconhece ao arguido e ao Ministério Público (Acórdão n.º
344/93). Assentando na liberdade de conformação do legislador ordinário, ao
qual não é constitucionalmente imposta a equiparação de garantias do processo
criminal e do processo contra‑ordenacional, o Acórdão n.º 50/99 não julgou
inconstitucional a norma da parte final do artigo 66.º do RGCO, que afasta a
redução a escrito da prova produzida na audiência em 1.ª instância. Ainda como
exemplos da admissibilidade constitucional da diferenciação de regimes podem
citar‑se: (i) os Acórdãos n.ºs 473/2001 e 395/2002, que não julgaram
inconstitucionais os artigos 59.º, n.º 3, e 60.º, n.ºs 1 e 2, do RGCO, na
interpretação de que o prazo para a interposição do recurso da decisão da
autoridade administrativa neles previsto não se suspende durante as férias
judiciais; (ii) os Acórdãos n.ºs 50/2003, 62/2003, 249/2003, 469/2003 e
492/2003, que consideraram não constitucionalmente imposta a transposição para
a fundamentação da decisão administrativa sancionatórias das mesmas exigências
que o artigo 374.º do CPP estabelece para a sentença penal condenatória, e,
consequentemente, não julgaram inconstitucional a norma do artigo 125.º, n.º 1,
do Código do Procedimento Administrativo, interpretada no sentido de que a
fundamentação por remissão nela consentida é aplicável à decisão sancionatória
de acto ilícito de mera ordenação social; (iii) o Acórdão n.º 581/2004, que,
considerando, além do mais, que “a garantia constitucional dos direitos de
audiência e de defesa em processo contra‑ordenacional (n.º 10 do artigo 32.º da
Constituição) não pode comportar a consagração de um princípio da estrutura
acusatória do processo idêntico ao que a Constituição reserva, no n.º 5 do
artigo 32.º, para o «processo criminal»”, não julgou inconstitucionais os
artigos 39.º, n.º 1, e 40.º do CPP, 2.º do Regime Geral das Contra‑Ordenações
Laborais (Lei n.º 166/99, de 4 de Agosto) e 41.º do RGCO, quando interpretados
no sentido da inaplicabilidade dos dois primeiros a casos em que o autor da
decisão de um processo de contra‑ordenação laboral confirmou, anteriormente, a
auto de notícia levantado ao destinatário dessa decisão; e (iv) o Acórdão n.º
325/2005, que considerou “não passível de censura constitucional que, no
processo contra‑ordenacional, e antes da sua passagem à fase jurisdicional,
atenta a menor ressonância ética do ilícito contra‑ordenacional face ao direito
criminal, o legislador possa, no exercício da sua liberdade conformadora,
subtrair das mais rigorosas exigências previstas para o processo penal
determinados procedimentos concretos, mais rigorosos e porventura
inultrapassáveis, quer no domínio criminal, quer no domínio de uma fase
procedimental jurisdicionalizada, procedimentos esse que se reflictam, no
referido processo, numa menos ampla exigência de observação de específicos
requisitos processuais, como, por exemplo, a análise concreta, na decisão
aplicadora da coima, da «excepções» ou «questões prévias» suscitadas pelo
acoimando na sua defesa”, e, consequentemente, não julgou inconstitucionais as
normas dos artigos 50.º e 58.º do RGCO, interpretados no sentido de não imporem
à autoridade administrativa o dever de pronúncia sobre as nulidades invocadas na
defesa do arguido em processo de contra‑ordenação.
No entanto, este Tribunal também tem sublinhado
que a reconhecida inexigibilidade de estrita equiparação entre processo
contra‑ordenacional e processo criminal é conciliável com “a necessidade de
serem observados determinados princípios comuns que o legislador
contra‑ordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de
conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matéria de processo
penal” (Acórdãos n.º 469/97 e 278/99). No primeiro acórdão referido
acrescentou‑se que “porventura, um desses princípios, comuns a todos os
processos sancionatórios, que mais constrições imporá ao legislador será, desde
logo, por directa imposição constitucional, o da audiência e correlativa defesa
do arguido, inseridos num desenvolvimento processual em que o princípio do
contraditório deverá ser mantido, como forma de complementar a estrutura
acusatória, que não dispositiva, da actuação dos poderes públicos”, sublinhando
que esses princípios são “imediatamente aplicáveis (…) logo na fase
administrativa do processo contra‑ordenacional, por exigência do n.º 8 [hoje
n.º 10] do artigo 32.º da Constituição”, não fazendo sentido “aceitar que os
mesmos não tenham projecção na fase recursória posterior, que corresponde à
jurisdicionalização daquele processo”, tendo concluído pela
inconstitucionalidade da “norma do artigo 416.º do CPP aplicada ao processo de
contra‑ordenação laboral e aí interpretada em termos de não impor a notificação
à arguida do parecer do Ministério Público em que se suscita, pela primeira vez,
a questão prévia do não recebimento do recurso por extemporaneidade”. Uma outra
situação de “extensão” ao processo contra‑ordenacional de garantias do processo
criminal foi contemplada no Acórdão n.º 265/2001, que, na sequência dos
Acórdãos n.ºs 319/99, 509/2000 e 590/2000, declarou a inconstitucionalidade das
disposições conjugadas constantes do n.º 3 do artigo 59.º e do n.º 1 do artigo
63.º, ambos do RGCO, “na dimensão interpretativa segundo a qual a falta de
formulação de conclusões na motivação de recurso, por via do qual se intenta
impugnar a decisão da autoridade administrativa que aplicou uma coima, implica a
rejeição do recurso, sem que o recorrente seja previamente convidado a efectuar
tal formulação”.
2.4. Assente que, dada a diferente natureza dos
ilícitos em causa e a menor ressonância ética do ilícito de mera ordenação
social, com reflexos nos regimes processuais próprios de cada um deles, não é
constitucionalmente imposto ao legislador a equiparação das garantias em ambos
esses regimes, é evidente que não se pode considerar inconstitucional a não
admissibilidade de recurso jurisdicional de decisões proferidas em sede de
impugnação judicial de decisões administrativas aplicadoras de coimas quando nem
sequer relativamente às correspondentes decisões no âmbito do processo criminal
idêntica garantia é exigida.
Como é sabido, constitui entendimento reiterado
deste Tribunal (cf., por último, o Acórdão n.º 2/2006 e demais jurisprudência aí
citada) que a Constituição não estabelece em nenhuma das suas normas a
garantia da existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos
das diferentes espécies. Perspectivando – como cumpre – a problemática do
direito ao recurso em termos substancialmente diversos relativamente ao direito
penal, por um lado, e aos outros ramos do direito, por outro, por a
consideração constitucional das garantias de defesa implicar um tratamento
específico desta matéria no processo penal (a consagração, após a revisão de
1997, no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, do direito ao recurso mostra que o
legislador constitucional reconheceu como merecedor de tutela constitucional
expressa o princípio do duplo grau de jurisdição no domínio do processo penal,
sem dúvida, por se entender que o direito ao recurso integra o núcleo essencial
das garantias de defesa), mesmo aqui e face a este específico fundamento da
garantia do segundo grau de jurisdição no âmbito penal, o Tribunal
Constitucional entendeu que não decorre desse fundamento que os sujeitos
processuais tenham o direito de impugnar todo e qualquer acto do juiz nas
diversas fases processuais: a garantia do duplo grau existe quanto às decisões
penais condenatórias e ainda quanto às decisões respeitantes à situação do
arguido face à privação ou restrição da liberdade ou a quaisquer outros direitos
fundamentais. Fora destas espécies de decisões, consideraram‑se, assim,
conformes à Constituição normas processuais penais que deneguem a
possibilidade de o arguido recorrer de determinados despachos ou decisões
proferidas na pendência do processo.
Por maioria de razão, em processo
contra‑ordenacional não é constitucionalmente imposta a consagração da
possibilidade de recurso de todas as decisões judiciais proferidas no decurso
da impugnação judicial da decisão administrativa sancionatória.
De acordo com a interpretação acolhida na
decisão ora recorrida – cuja correcção, ao nível da interpretação do direito
ordinário, não cumpre a este Tribunal sindicar –, só são recorríveis para o
Tribunal da Relação a sentença ou o despacho que decidam o caso, verificadas as
condições referidas nas alíneas a) a e) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 73.º do
RGCO, não sendo recorrível o despacho, posterior à decisão de rejeição da
impugnação (decisão esta entendida como constituindo a decisão que põe termo ao
processo), que julgou improcedente arguição de nulidade processual.
Esta interpretação, que assegura a
possibilidade de recurso das decisões “centrais” da impugnação judicial
(decisões que “põem termo” ao processo, embora sem prejuízo da suscitação de
incidentes pós‑decisórios), não se pode considerar, pelas razões expostas,
violadora das garantias de defesa do processo criminal, referidas no n.º 1 do
artigo 32.º da CRP, na parte em que sejam extensíveis ao processo
contra‑ordenacional. A possibilidade de defesa do arguido perante a alegada
irregularidade da notificação podia ser exercitada ou pela sua directa arguição
(mecanismo que, por razões que lhe são imputáveis, se entendeu não ter sido
utilizado em tempo), ou pela alegação desse vício no âmbito do recurso
jurisdicional do despacho de rejeição da impugnação da decisão administrativa, a
entender‑se que se trataria das chamadas “nulidades processuais cobertas por
decisão judicial” (cf. Acórdão n.º 183/2004, com texto integral disponível, tal
como todos os acórdãos anteriormente citados, em
www.tribunalconstitucional.pt), via essa que o recorrente também não utilizou.
Neste contexto, não se pode dar por verificada
a inconstitucionalidade sustentada pelo recorrente.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma
constante do n.º 1 do artigo 73.º do Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro,
interpretado no sentido de não permitir recurso para o Tribunal da Relação de
despacho de indeferimento de arguição de nulidade processual, proferido
posteriormente à decisão de rejeição de impugnação judicial de decisão
administrativa sancionadora de contra‑ordenação; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a
decisão recorrida, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de
justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 28 de Novembro de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos