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Processo nº 379/05
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A.,
foi interposto recurso, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea a),
da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 70º, nº 1, alínea a), da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), de
decisão do Tribunal do Trabalho de Lisboa, de 4 de Abril de 2005, mediante
requerimento onde se pode ler o seguinte:
«A douta decisão referida [a de 4 de Abril de 2005] recusou a aplicação do artº
13º nº2 do C.Custas Judiciais atento o disposto no Exórdio do Dec. Lei
nº324/2003 de 27/12, mais precisamente o nº3 e 4 parágrafos, com o fundamento da
sua inconstitucionalidade. Pretende-se que o Tribunal Constitucional aprecie a
constitucionalidade de tal norma..»
2. A decisão recorrida, proferida face a reclamação da conta de custas deduzida
pelo ora recorrido, tem o seguinte teor:
«Veio o A. reclamar da conta que faz fls. 88 e 90 porquanto entende que já pagou
a taxa de justiça que era da sua responsabilidade uma vez que não é devida taxa
de justiça subsequente e a taxa de justiça inicial já paga traduz o valor que
cabe ao A. liquidar.
Na sequência desta reclamação veio o Exmº Sr. Escrivão deste 1° juízo, 2ª secção
emitir o douto parecer que faz fls. 103 no qual tece, em síntese, que:
- à presente acção é aplicável o novo Código das Custas
Judiciais (CCJ) aprovado pelo DL n° 324/2003 de 27-12 o qual introduz um novo
conceito de taxa de justiça conforme se alcança do n.ºs 13° n° 2;
- passando a existir uma única taxa de justiça do processo
resultante do somatório das taxas de justiça pagas por ambas as partes;
- uma vez que a taxa de justiça do processo não se encontra
garantida o que se encontra em dívida tem de ser suportado por ambas as partes
sendo a taxa de justiça que a parte já pagou recuperável extra judicialmente
através das custas de parte conforme ora regulado no artº 33° do CCJ.
A Digna Magistrada do Mº Pº subscreveu o douto parecer do Exmº Sr. Escrivão da
secção por, também, no seu douto entendimento, considerar que a conta fora
elaborada de acordo com as novas regras introduzidas pelo novo CCJ, embora não
deixasse de entender como justa a reclamação do A..
Analisando e decidindo.
Diz o artº 13 ° n° 2 do CCJ vigente que “a taxa de justiça do processo
corresponde ao somatório das taxas de justiça inicial e subsequente de cada
parte.”
Ora para se compreender este preceito legal e o espírito subjacente ao novo CCJ
é preciso recorrer ao Exórdio do DL n° 324/2003 de 27-12 o qual diz, entre
outras, o seguinte:
N° 3, 2° parágrafo:
“é adoptada uma tabela mais perceptível e abrangente, caracterizada pela redução
do número de escalões relevantes para efeitos de determinação da taxa de justiça
do processo. Paralelamente, com a adopção de uma tabela única – por contra
posição às duas tabelas (a da taxa de justiça final e a dos pagamentos prévios)
actualmente existentes - , restabelece-se a coincidência entre os montantes da
taxa de justiça inicial e subsequente pagas durante o processo e a taxa de
justiça global devida a final.”
N° 3, 4° parágrafo:
“De igual forma, põe-se termo à multiplicidade de reduções de taxa de justiça
existente, consagrando-se, como regra geral, um único grau de redução da taxa de
justiça (redução a metade) a operar mediante dispensa do pagamento da taxa de
justiça subsequente (…)”
N° 4, 1 º, 2° e 3° parágrafos:
“Por força das modificações operadas, e tendo presente os objectivos visados, a
tabela da taxa de justiça do processo sofre uma profunda revisão. Introduz-se um
novo conceito - o de taxa de justiça de parte - a partir do qual se obtém o
valor da taxa de justiça do processo, correspondendo este último ao somatório
das taxas de justiça inicial e subsequente de cada uma das partes. (...)
No entanto, e porque o conceito de parte é distinto do de sujeito processual,
consagra-se a regra de que, em caso de pluralidade activa ou passiva, o
respectivo conjunto de sujeitos processuais é considerado, para efeitos de
cálculo da taxa de justiça, como um única parte. Por essa mesma razão, e de
forma a evitar pagamentos em excesso e as consequentes devoluções, consagra-se a
regra da dispensa do pagamento de taxa de justiça subsequente, designadamente
nos casos em que a taxa de justiça inicial paga pelos sujeitos processuais se
revele suficiente para assegurar o pagamento da totalidade da respectiva taxa de
justiça de parte.
No entanto, sempre que, quer neste, quer noutros casos, exista dispensa do
pagamento prévio de taxa de justiça, caberá à parte vencida suportar, a final e
na medida do seu decaimento, a totalidade da taxa de justiça do processo, ou
seja, a sua taxa de justiça de parte e a taxa de justiça da parte contra quem
litigou.” (…).
É com base neste último parágrafo acabado de citar que o respectivo programa
informática fora, ao que nos é dado compreender, elaborado.
O sistema informático “pega” no valor depositado nos autos, e ignorando se o
mesmo fora depositado por uma ou ambas as partes, assume esse valor e divide-o,
no caso de uma transacção, ao meio, imputando metade a cada parte.
O que significa que tendo o A. pago a totalidade da taxa de justiça da sua
responsabilidade, o sistema assume que tenha pago apenas metade, imputando-lhe o
pagamento da outra metade, que foi o que claramente ocorreu nos presentes autos.
Neste sentido, e em termos técnicos, a conta não foi incorrectamente elaborada
pelo Exmº Sr. Escrivão da secção que se limitou a cumprir escrupulosamente a
elaboração da conta, tendo introduzido correctamente todos os dados os quais
foram processados pelo respectivo programa informático.
É o sistema informático que assume o pagamento da taxa de justiça pelo A. como
sendo a taxa de justiça do processo e o divide, imputando automaticamente metade
na esfera da Ré que, em boa verdade, nada pagou.
Mas, em última análise, o sistema informático não pode ser directamente
responsabilizado uma vez que ele fora criado para seguir a lei.
Assim, em nosso modesto entendimento, o problema reside com a lei.
Afigure-se-nos óbvio e de elementar bom senso que a norma em apreço, e em
especial, o parágrafo 3° do n° 4 do exórdio do DL n° 324/2003, é manifestamente
injusto e mesmo, em nosso modesto entendimento e salvo o devido respeito,
imoral.
Com a preocupação de simplificar ao máximo o processamento das custas de modo a,
como se diz no próprio exórdio, tornar mais acessível “a matéria de custas
judiciais (que) está actualmente regulada de forma complexa, sendo reconhecida a
sua difícil acessibilidade à generalidade dos cidadãos, bem como grande maioria
dos operadores judiciais, com evidentes prejuízos para todos os interessados”
(…), o legislador acabou por criar, ao arrepio dos mais elementares princípios
de justiça, boa fé e bom senso, um sistema profundamente injusto, apto a criar
desigualdades no tratamento das partes processuais.
É certo que o artº 8° do Código Civil diz que “O dever de obediência à lei não
pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito
legislativo” (…).
No entanto, apesar de, em nosso modesto entendimento, a supra citada norma ser
de questionável conformidade com a Constituição da República Portuguesa (CRP), a
qual ainda é a lei máxima do País e, portanto, prevalece sobre as restantes
(artºs 204° e 277° do CRP) ela não traduz a plenitude da ciência jurídica ou
seja, do Direito.
E, assim, conforme refere Menezes Cordeiro (…) “o controlo, com referência a
critérios superiores, das normas legisladas, imperfeitas porque humanas, é tão
velho como o Direito. (…) A lei não se confunde com o Direito. Uma dogmática
jurídica, radicada na cultura que a suporte e na segurança das convicções
científicas dos juristas que a sirvam, coloca, entre a fonte e a solução do caso
concreto, um percurso que nenhuma lei pode dispensar e que o legislador não pode
corromper. Reside aqui, o «Direito natural» dos finais do nosso século: suprindo
a inactividade legislativa, harmonizando as soluções desavindas ou disfuncionais
dentro do espaço jurídico, complementando as mensagens apenas esboçadas pelo
legislador e limando, no concreto, as saídas injustas, inconvenientes ou
paradoxais, a Ciência do Direito afirma-se (...) o motor fundamental de qualquer
evolução jurídica.”
Ora, aplicando a ciência de direito em toda a sua plenitude, e considerando os
princípios consagrados na mais alta lei na Nação, constata-se, em nosso modesto
entendimento, que os princípios orientadores do novo CCJ, nos quais assentam o
sistema informático, que produziu as contas de fls. 88 e 90, são, para além de
injustos e imorais, manifestamente inconstitucionais, porquanto violam um dos
mais básicos e essenciais princípios do nosso direito: o princípio da igualdade,
plasmado no artº 13° da CRP.
Se o A. já pagou “à cabeça” a taxa de justiça que é de sua responsabilidade
porque motivo é responsabilizado por uma dívida da outra parte que nada pagou,
acabando, desta forma por ser tratado de forma igual perante uma situação
desigual.
Ou se preferirem, o A. é tratado de forma desigual em relação à Ré quando não há
motivos objectivos ou sequer legais que permitam essa distinção.
Porque motivo deve a Ré pagar menos do que o A. se as custas são suportadas em
partes iguais?
Aonde está a igualdade das custas conforme acordado e homologado por sentença?
Repare-se que o sistema de cálculo da taxa de justiça da responsabilidade das
partes processuais do novo CCJ, ao fim e ao cabo, permite a violação da sentença
homologatória pois não respeita o que ficou decidido: custas em partes iguais.
Pelo que se nos afigure que o sistema em si mesmo é duplamente ilegal, porquanto
acaba por violar outras normas jurídicas, para além das constitucionais.
E ao transferir o ónus de recuperar as custas de parte – entenda-se a taxa de
justiça que era da responsabilidade do outro e que o A. pagou – precisamente
para a parte processual que as pagou, com o intuito de “simplificar” a conta não
é, em nosso modesto entendimento, uma solução adequada aos princípios
constitucionais pelos mesmos: motivos: onera uma das partes de forma desigual.
Aliás, conforme manda o artº 9° do Código Civil a interpretação de qualquer
norma tem de fazer-se com respeito pela letra da mesma, mas principalmente
através de elementos históricos, teleológicos e sistemáticos.
Em termos históricos não se encontra qualquer fundamento para o tratamento
desigual das partes nas custas.
Havendo acordo quanto à responsabilidade das mesmas, a conta era pura e
simplesmente dividida ao meio imputando-se a cada parte a sua respectiva
responsabilidade, abatendo-se o que já pudesse ter sido depositado nos autos.
Aliás, no referido exórdio, é assumido pelo legislador que o conceito subjacente
ao CCJ, e principalmente à taxa de justiça, é completamente novo, resultando o
novo CCJ de “uma profunda, mas ponderada (?), revisão” (…).
Pelo que, historicamente, não temos qualquer base para a solução ora propugnada
pelo legislador.
Em termos teleológicos, também, se regista uma total ausência de elementos aptos
a justificar a orientação do actual CCJ.
Os elementos teleológicos traduzem a ratio da norma ou do sistema legal onde uma
série de normas se inserem.
Ora, em nosso modesto entendimento, e salvo o devido respeito, não há uma
qualquer razão lógica, um fundamento científico, social, económico, cultural ou
outro que possa explicar a dupla imputação de taxa de justiça, num fundo uma
dupla tributação, em desfavor de uma das partes enquanto se beneficia a outra.
Qual o motivo que possa levar a que se impute ao A., que tenha pago a sua taxa
de justiça por completo, o pagamento da taxa de justiça da outra parte, que nada
pagou, fundamentando essa acção com uma aparente, e artificial, falta de
pagamento da taxa de justiça do processo, da total responsabilidade da Ré?
Se o sistema pode assumir um valor a favor da Ré porque não o assume a favor do
A.?
Não há um único argumento lógico e são que nos leve a concluir que, só através
do pagamento por uma das partes da taxa de justiça, que é da sua
responsabilidade, e da taxa de justiça da parte contrária, é que se consegue
assegurar um sistema eficaz e célere das custas.
Antes, pelo contrário: se uma das partes já liquidou a totalidade das custas da
sua responsabilidade apenas há que exigir o pagamento à outra parte, a qual, se
não pagar voluntariamente, implicará uma única execução; o que, em termos de
esforços processuais, tempo e dinheiro é mais vantajoso do que duas execuções
por custas.
Por fim, também através de uma interpretação sistemática não se vislumbra a
justeza e correição da norma em referência.
Vejamos.
Estamos no âmbito do direito laboral onde a esmagadora maioria de acções
declarativas de condenação são propostas pelo trabalhador.
No direito laboral substantivo existe o princípio basilar e orientador do
tratamento mais favorável do trabalhador, o qual, inclusive, pode socorrer-se do
patrocínio gratuito e qualificado do Ministério Público.
Como, então, se justifica onerar precisamente a parte mais fraca, esse
trabalhador, no momento das custas, deixando entrar pela janela o que o
legislador laboral não quis que entrasse pela porta?
Pois, sendo a esmagadora maioria das acções propostas por trabalhadores, e sendo
que a taxa de justiça é por estes logo paga, havendo um acordo na audiência de
partes ou antes da junção aos autos da respectiva contestação, como tanta vezes
acontece, o processo vai à conta com apenas uma única taxa de justiça depositada
nos autos: precisamente a taxa de justiça do trabalhador.
Pegar nessa taxa de justiça e ficcionar um pagamento de metade pela Ré é não só
defraudar o trabalhador, e todo e qualquer cidadão no mesmo lugar, como é violar
um dos princípios mais basilares do direito laboral substancial.
Sendo, inclusive, altamente nocivo para a promoção de acordos pois, uma vez que
os trabalhadores começarem a compreender como o novo sistema de custas funciona,
não vão, de certeza, fazer um acordo, ou, pelo menos, não o farão enquanto o
processo não estiver mais adiantado e já com uma taxa de justiça paga pela Ré.
Tudo isto levando a um maior esforço por parte do Tribunal que vê, assim, menos
processos a terminarem com acordos e, menos processos a terminarem com acordos
logo 1 no início do processamento (…).
O que até gera uma situação paradoxal pois, por um lado, premeia-se o acordo com
a redução da taxa de justiça mas, por outro lado, onera-se injustamente uma das
partes que acaba por pagar a taxa de justiça na totalidade.
Em flagrante violação do princípio da igualdade.
Assim, constatando-se a existência de norma inconstitucional, e no caso em
apreço, materialmente inconstitucional, deve o juiz recusar a aplicação da
respectiva norma (artºs 277° e 280° CRP).
No entanto, embora de momento, e enquanto o programa informático não for
alterado, não é possível reformar a conta nem recompilá-la.
Todavia, recusa-se a aplicação dos princípios constantes do DL nº 324/2004 por
manifestamente inconstitucionais e, assim, dando razão ao A. e deferindo à douta
reclamação, determina-se a inexigibilidade da parte das custas que não são da
responsabilidade do mesmo.
Assim tendo o A. pago já a totalidade da taxa de justiça da sua responsabilidade
apenas deve a ar a sua quota parte da Procuradoria, ou seja, € 31,15, nada mais
lhe devendo ser exigido».
3. Notificado para alegar, o Ministério Público junto deste Tribunal concluiu
que:
«1° - Constitui interpretação normativa desproporcionada – e, consequentemente,
violadora do princípio do processo equitativo – do conceito de taxa de justiça
do processo, prevista no artigo 13°, n° 2, do CCJ, a que se traduz em colocar a
cargo da parte – que já liquidou inteiramente a taxa de justiça por ela devida -
a garantia do pagamento de uma parcela da taxa de justiça que, em termos
definitivos, é devida pela parte contrária, com o consequente ónus de reclamar a
respectiva restituição a título de custas de parte, suportando o risco da
possível insolvabilidade do devedor das custas.
2° - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade
formulado pela decisão recorrida».
4. Notificado o recorrido, formulou as seguintes conclusões, quando alegou:
«1.º
A norma legal cuja inconstitucionalidade foi suscitada no despacho recorrido – o
artigo 13.º, n.º 2, do CCJ – a admitir uma interpretação conducente a um
resultado como o supra descrito, é organicamente inconstitucional, por permitir
a criação de um encargo para um particular que não tem a natureza bilateral
característica da taxa, tendo antes a natureza unilateral característica do
imposto. Sendo a criação de impostos matéria reservada à lei da Assembleia da
República, o artigo 13.º, n.º 2, do CCJ, por ter sido decretado pelo Governo,
sem autorização legislativa, é organicamente inconstitucional, por violação do
artigo 165.º, alínea i), da CRP.
2.º
A norma em apreço viola, assim, o princípio da legalidade tributária, que se
traduz no direito fundamental dos cidadãos plasmado no n.º 3 do artigo 103.º da
CRP, segundo o qual “Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam
sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja
liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei.”.
3.º
O artigo 13.º, n.º 2, do CCJ, ao permitir uma diferenciação entre o autor e a ré
da acção no que toca aos deveres perante o Estado (sobrecarregando e onerando o
autor, por um lado, e favorecendo a ré, por outro), quando nenhuma razão havia
para um tratamento diferente, não obstante a lei, a vontade das partes e a
sentença judicial determinarem o tratamento igual das partes em matéria de
custas, viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP, na
vertente da proibição de discriminação, uma vez que esta não é materialmente
fundada em qualquer motivo constitucionalmente legítimo.
4.º
A mesma norma viola, ainda, a garantia do processo equitativo, consagrada no
artigo 20.º, n.º 4, da CRP, que se traduz no princípio da igualdade de armas,
uma vez que permite uma diferenciação intolerável entre os intervenientes
processuais, obrigando injustificadamente uma das partes a proceder a um
pagamento que é da responsabilidade da outra parte e a suportar sozinha o risco
do insucesso da cobrança à parte que era efectivamente devedora.
5.º
O artigo 13.º, n.º 2, do CCJ, ao permitir que o Estado, no exercício do seu
poder de cobrador de custas judicias, abuse desse poder e obrigue uma das partes
ao pagamento de uma quantia que não é da sua responsabilidade, transferindo
assim para um particular (a parte pagadora) o ónus da cobrança e o risco do não
pagamento pela parte devedora, desonerando-se na medida em que vê satisfeita
parte do seu crédito, viola o disposto no artigo 266.º, n.º 2, da CRP . De
facto, obrigar “o justo a pagar pelo pecador”, tratando as partes de forma
manifestamente desigual, impondo sobre uma delas um sacrifício desnecessário e
desproporcionado, consubstancia uma verdadeira violação da sujeição da
Administração Pública ao respeito pelos princípios da igualdade,
proporcionalidade, justiça, imparcialidade e boa-fé».
5. Por despacho da relatora de 22 de Fevereiro de 2006, os autos foram remetidos
ao Tribunal de Trabalho de Lisboa, a título devolutivo, a fim de ser apreciada a
dispensa do pagamento das custas em dívida, prevista no artigo 66º da Lei nº
60-A/2005, de 30 de Dezembro.
6. Em 13 de Março de 2006, foi proferido despacho no sentido de os autos serem
remetidos ao Tribunal Constitucional “a fim de tomar conhecimento do recurso em
apreço ou determinar o que houver por conveniente”, podendo ler-se na nota de
rodapé 1, com relevo para a presente decisão, que o artigo 66º “nem sequer tem
aplicação ao caso dos autos pois o acordo judicial foi realizado em momento em
que esse incentivo não existia”.
7. Em cumprimento do disposto no artigo 704º, nº 1, do Código de Processo Civil,
aplicável por força do artigo 69º da LTC, o recorrente e o recorrido foram
notificados sobre a possibilidade de ser proferida decisão de não conhecimento
do objecto do recurso.
8. O recorrente respondeu sustentando o seguinte:
«1 – Como se deu conta na alegação apresentada, é discutível que a solução
acolhida na decisão recorrida pode considerar-se consagrada, numa interpretação
correcta e adequada, na norma desaplicada e que constitui objecto do recurso.
2 – O que é facto, porém, é que a decisão recorrida precipitou efectivamente na
dita norma, constante do n° 2 do artigo 13º do CCJ, os reflexos e consequências
que extraiu dos “princípios orientadores” do novo CCJ, constantes do “exôrdio do
Decreto-Lei n° 324/03” (cfr., o afirmado a fls. 68).
3 – Ora, tendo em conta que, conforme jurisprudência uniforme e reiterada, não
compete a este Tribunal Constitucional sindicar a interpretação que os tribunais
judiciais fazem do direito infraconstitucional (salvo na medida em que isso se
revele absolutamente indispensável à dirimição da questão de
inconstitucionalidade normativa suscitada) não parece possível – salvo melhor
opinião – concluir que (bem ou mal) a “ratio decidendi” do despacho recorrido
assentou numa dada interpretação do n°2 do artigo 13º do CCJ.
4 – Pelo que se afigura estarem preenchidos os pressupostos de admissibilidade
do recurso interposto pelo Ministério Público».
9. O recorrido respondeu, declarando
«nada ter a opor a que esse Tribunal decida pelo não conhecimento do objecto do
recurso, pois que o despacho recorrido (de deferimento da reclamação da conta de
custas) lhe é favorável e o interesse do Recorrido é o de que esse mesmo
despacho recorrido transite em julgado».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Nos presentes autos levanta-se a questão prévia de saber se podem dar-se como
verificados os pressupostos do recurso previsto na alínea a) do nº 1 do artigo
70º da LTC. Sobre esta questão, nos precisos termos em que ela é posta nestes
autos, escreveu-se no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 530/2006 (não
publicado) o seguinte:
«(…) o despacho agora sob impugnação operou a «recusa» de “aplicação dos
princípios constantes do DL nº 324/2004 por manifestamente inconstitucionais”.
E, por muito que se leia e releia tal despacho, o único ponto em que, no mesmo,
se refere um preceito legal é justamente aquele em que se escreveu: “Diz o artº
13º nº 2 do CCJ vigente que ‘a taxa de justiça do processo corresponde ao
somatório das taxas de justiça inicial e subsequente de cada parte’.
Por outro lado, no dito despacho não se surpreende uma qualquer outra asserção
da qual decorra, directa e especificamente, a recusa de aplicação daquele
preceito.
É que, mesmo quando nele se diz que “em nosso modesto entendimento, o problema
reside com a lei” e que “Afigur[a]-se-nos óbvio e de elementar bom senso que a
norma em apreço, e em especial, o parágrafo 3º do nº 4 do exórdio do DL nº
324/2003, é manifestamente injusto e mesmo, em nosso modesto entender e salvo o
devido respeito, imoral”, daí não resulta que se esteja a fazer uma referência
específica ao artº 13º, nº 2, do Código das Custas Judiciais, já que, segundo a
decisão em crise, seria com fundamento no parágrafo do preâmbulo do diploma que
aprovou aquele corpo de leis (e em que é referido que “No entanto, sempre que,
quer neste, quer noutros casos, exista dispensa do pagamento prévio de taxa de
justiça, caberá à parte vencida suportar, a final e na medida do seu decaimento,
a totalidade da taxa de justiça do processo, ou seja, a sua taxa de justiça de
parte e a taxa de justiça da parte contra quem litigou”) que foi criado o
programa informático com base no qual a conta dos autos fora elaborada, programa
esse que «assume que» quem tenha pago a totalidade da taxa de justiça da sua
responsabilidade e verificando-se, a final, ter sido paga metade da taxa do
processo, é imputada a quem já efectuou o pagamento da taxa de justiça inicial a
responsabilidade pelo pagamento da metade em falta.
Aliás, e como se disse acima, a recusa, com base num juízo de
inconstitucionalidade por si formulado, da Juíza a quo, incidiu somente sobre os
princípios constantes do Decreto-Lei nº 324/2004.
É por demais sabido que o objecto dos recursos visando a fiscalização concreta
da constitucionalidade normativa é constituído por normas precipitadas no
ordenamento jurídico infra-constitucional.
Não obstante o que é dito nos relatórios preambulares dos diplomas legislativos,
e ainda que, no entendimento de uma dada decisão judicial, o desiderato que aí
se colhe se poste como contrário à Lei Fundamental, para que se possa abrir o
recurso de constitucionalidade, haverá nela de ser realizado um juízo que
repouse ou tenha directo reflexo num determinado preceito desse diploma,
preceito esse que, em abstracto, seria convocável para reger o decidido.
Ora, não foi isso que sucedeu na situação em espécie.
Aduz a entidade impugnante que a decisão em causa “precipitou na dita norma,
constante do nº 2 do artigo 13º do CCJ, os reflexos e consequências que extraiu
dos ‘princípios orientadores’ do novo CCJ, constantes do ‘exórdio do Decreto-Lei
nº 324/03’ – o que, na óptica de tal entidade, se retiraria do que é escrito
naquele despacho a fls. 133 [107] (crê-se que, por lapso se refere “fls.68”) –,
motivo pelo qual a razão do decidido repousou numa dada interpretação daquele
preceito.
Supondo-se que o Ex.mo Representante do Ministério Público se quer reportar à
asserção ínsita nesse despacho que refere “Ora para se compreender este preceito
legal e o espírito subjacente ao novo CCJ é preciso recorrer ao Exórdio do DL nº
324/2003 de 27-12 o qual diz, entre outras, o seguinte:”, e sendo certo que este
Tribunal tem seguido uma jurisprudência uniforme e reiterada segundo a qual não
compete a ele sindicar a interpretação que os tribunais das várias ordens fazem
do direito ordinário, o que é facto é que, como se referiu já, não se lobriga
naquele despacho o mínimo «rasto» de intento desaplicativo do preceito em
questão, não defluindo, por outra banda, que seria dele mesmo que se extrairia
um sentido interpretativo conducente a uma solução normativa de onde resultasse
que, tendo ocorrido uma transacção devidamente homologada, em que ficou acordado
que as custas seriam suportadas a meias, e, não tendo uma «parte» procedido ao
pagamento da taxa de justiça inicial (ou das taxas de justiça inicial e
subsequentes), recai sobre outra «parte», que já procedeu ao pagamento daquela
taxa (ou daquelas taxas) o encargo de pagar o restante quantitativo de taxa de
justiça do processo que ainda se encontre por saldar. Neste contexto, e por não
se verificar o pressuposto do recurso ancorado a alínea a) do nº 1 do artº 70º
da Lei nº 28/82, não se toma conhecimento do objecto do vertente recurso».
É esta jurisprudência – para cuja fundamentação se remete – que agora se
reitera.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do presente recurso.
Sem custas.
Lisboa, 28 de Novembro de 2006
Maria João Antunes
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira – vencido, pois conheceria do recurso.
Rui Manuel Moura Ramos. Vencido. Conheceria do recurso nos termos e pelas razões
expostas na declaração de voto da Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza,
aposta ao acórdão n.º 530/2006.
Artur Maurício