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Processo n.º 686/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A
da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro:
“1. A. deduziu embargos a uma execução fundada num cheque, que lhe moveu B.,
alegando, além do mais, não ter existido entre si e o portador do cheque
qualquer relação subjacente. Assinou o cheque para pagar uma máquina de lavar e
entregou-o ao seu marido para o efeito. Este, à sua revelia, preencheu-o pelo
valor de 6.000 contos e entregou-o ao exequente, que lhe apôs a data.
Os embargos foram julgados procedentes em 1ª instância. Em recurso interposto
pelo embargado, o Tribunal da Relação de Lisboa concedeu provimento ao recurso e
julgou improcedentes os embargos. Novo recurso, agora da embargante, a que o
Supremo Tribunal de Justiça negou provimento, por acórdão de 25 de Outubro de
2005.
2. A recorrente arguiu a nulidade deste acórdão mediante requerimento em que
incluiu a seguinte pretensão:
“II – Da Inconstitucionalidade
Está provado nos autos que não foi fruto de um acto voluntário da Recorrente que
o cheque dado à execução entrou em circulação.
Está provado nos autos que a Recorrente entregou o cheque ao seu marido, apenas
assinado e com o demais em braço, para comprar um electrodoméstico.
Está, pois, provado nos autos que o marido da Recorrente era um mero detentor do
cheque em nome alheio e não um portador regular, titular dos direitos do mesmo
emergentes.
Está provado nos autos que, apesar disso, o marido da Recorrente preencheu todo
o cheque com excepção da data e entregou-o ao Recorrido em 1997, o qual, em
1999, lhe apos a data e o apresentou a pagamento, tudo à revelia da Recorrente.
O cheque, em consequência, entrou em circulação por via inválida e irregular,
numa situação em tudo equivalente à de furto ou roubo de cheques, pois,
repete-se, o marido da Recorrente não era um portador regular, mas apenas mero
detentor do cheque em nome alheio.
Apesar do exposto, entendeu o acórdão ora em análise tal não ser oponível ao
Recorrido, por este estar de boa fé e aqueles factos não serem pessoais das
relações entre Recorrente e Recorrido, invocando, para o efeito, o artigo 22.º,
da LUC.
O acórdão interpretou, pois, o artigo 22.º, da LUC, no sentido de este ser de
aplicação incondicional, independentemente das condições em que os cheques
entrem em circulação.
Esta interpretação do artigo 22.º, da LUC, é manifestamente inconstitucional, na
medida em que viola os princípios da segurança e certeza do comércio jurídico e
do direito dos consumidores à protecção dos seus interesses económicos, ínsitos
no artigo 60.º, n.º 1, da C.R.P.
O artigo 22.º, da LUC, deve ser interpretado no sentido de apenas ter aplicação
nos casos em que o cheques entram em circulação, são emitidos, em situação
válida e regular e são, depois, uma ou mais vezes, endossados, válida e
legitimamente, a portadores subsequentes ao portador original.
No caso dos autos, o cheque entrou em circulação em situação inválida ou
irregular, pelo que é irrelevante se os respectivos factos sã ou não das
relações pessoais entre Recorrente e Recorrido.
Pelo que a Recorrente pode opô-los ao Recorrido, para se eximir ao pagamento do
cheque.
Inconstitucionalidade que, desde já, se invoca, para todos os efeitos legais.”
Por acórdão de 23 de Maio de 2006, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a
arguição de nulidade, tendo ponderado, além do mais, o seguinte:
“Quanto à inconstitucionalidade, cujo momento de arguição não e idóneo, mesmo
assim, se afirma desde já que não padece a interpretação do Artigo 22 da LUC de
qualquer tipo de inconstitucionalidade. Nem tal informação seria necessário
fazer, uma vez que a questão será de considerar se é suscitada durante o
processo, quando o haja sido de modo processualmente válido perante o tribunal
que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela
conhecer, por ainda não ter esgotado o seu poder jurisdicional. Ribeiro Mendes –
Recursos em Processo Civil, pág. 331 – afirma que: “São em princípio momentos
inidóneos para suscitar a questão da inconstitucionalidade o pedido de aclaração
da decisão do tribunal «a quo», a arguição de nulidade da mesma decisão, o
requerimento de interposição do recurso de inconstitucionalidade ou as alegações
deste recurso. A arguição tem de ser feita de modo processualmente idóneo.
Considera-se, porém, que esta doutrina não vale para os casos em que o
recorrente não haja tido oportunidade processual de suscitar a questão antes, da
decisão de que se pretende recorrer. Em tais casos, considera-se que tem de
haver uma dispensa de arguição da inconstitucionalidade antes de e haver
esgotado o poder jurisdicional do juiz “a quo”.”
3. A recorrente interpôs, então, recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
do seguinte teor:
“(…) com vista à apreciação da constitucionalidade do artigo 22.º, da Lei
Uniforme do Cheque, na interpretação que lhes é dada pelo douto Acórdão
proferido por este Tribunal.
A norma constitucional viola é o artigo 60.º, n.º 1, da Constituição da
República Portuguesa, onde se mostram ínsitos os princípios da segurança e
certeza do comércio jurídico e do direito dos consumidores à protecção dos seus
interesse económicos.
O Recorrente suscitou esta questão de inconstitucionalidade no seu requerimento
de arguição de nulidade do douto Acórdão proferido por este Tribunal, porquanto,
foi colhido de surpresa pela interpretação dada ao referido artigo 22.º
(rectius, aplicação incondicional deste normativo, independentemente das
condições em que o cheque entre em circulação, in casu, sendo o marido mero
detentor precário do cheque, em nome alheio, situação análoga aos casos de furto
de cheques), o que, com o devido respeito, que é muito, lhe parecia tese
impossível de ser sustentada por este Supremo Tribunal de Justiça.
Como alguma jurisprudência vem defendendo, nos casos de decisão surpresa, é
admissível, ainda assim, o recurso para o Tribunal Constitucional.
Acresce que, ainda que não fundamentadamente, o douto Acórdão ora notificado,
aprecia a inconstitucionalidade invocada, afirmando que “(…) não padece a
interpretação do Artigo 22 da LUC de qualquer tipo de inconstitucionalidade
(…)”, o que também legitima a requerida e desejada apreciação superior.”
O recurso foi admitido, embora com manifestação de dúvidas, pelo Ex.mo
Conselheiro Relator no Supremo Tribunal de Justiça, por despacho que não vincula
o Tribunal Constitucional (n.º 3 do artigo 76.º da LTC).
4. Sabido que é pressuposto do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada perante o
tribunal que proferiu a decisão recorrida, de modo processualmente adequado e em
termos de este estar obrigado a dela conhecer (n.º 2 do artigo 72.º da LTC) e
que os incidentes posteriores à decisão já não são, em princípio, momento idóneo
para esse efeito, a recorrente procura justificar a admissibilidade do recurso,
apesar de não ter suscitado a questão antes do acórdão que julgou a revista, com
o carácter inesperado da interpretação dada ao artigo 22.º da Lei Uniforme sobre
Cheques pelo acórdão recorrido. Adiantou esta justificação no requerimento de
arguição de nulidades e repetiu-a no requerimento de interposição.
É, portanto, esta a primeira questão que, no capítulo dos requisitos de
admissibilidade do recurso, passa a analisar-se.
Efectivamente, o Tribunal tem admitido que constituem excepção à regra de que
após a prolação da decisão já não é possível suscitar a questão de
inconstitucionalidade aqueles casos em que o recorrente é confrontado com uma
interpretação ou aplicação normativa de todo imprevista ou inesperada feita na
decisão, porque também aí dever considerar-se que o interessado não dispôs de
efectiva oportunidade processual para suscitar a questão antes de esgotado o
poder jurisdicional. Trata-se, todavia, de uma situação excepcional, que só pode
considerar-se verificada se o interessado se deparar com uma interpretação ou
aplicação de todo insólita ou inesperada, com que não devesse razoavelmente
contar analisando as diversas possibilidades interpretativas susceptíveis de
virem a ser seguidas.
Ora, no caso é abusivo dizer que se está perante uma situação deste género,
porque o Supremo Tribunal de Justiça fez, no acórdão em que decidiu a revista,
uma interpretação e aplicação do artigo 22.º da Lei Uniforme no essencial
coincidente com aquela que tinha sido adoptada pela Relação, no acórdão que
decidiu a apelação desfavoravelmente à ora recorrente.
Com efeito, apreciando o fundamento dos embargos retirado do artigo 22.º da Lei
Uniforme disse o acórdão da Relação:
“(…)
3.4. Improcedendo – desde logo por insuficiência probatória –a tese da
embargante sobre o aduzido desapossamento, importa analisar agora o outro
fundamento dos embargos (preenchimento abusivo), cujo conhecimento – já o
dissemos – foi tido por prejudicado na 1ª instância.
Releva, na espécie, o comando do art.º 22.º, segundo o qual as pessoas
accionadas por virtude de um cheque não podem opor ao portador as excepções
fundadas sobre as suas relações pessoais com o sacador ou com os portadores
anteriores, salvo se o portador accionante ao adquirir o título tiver procedido
conscientemente em detrimento do devedor – art.º 22.º
‘Ter procedido conscientemente em detrimento do devedor” significa que o
adquirente, ao adquirir o cheque, agiu com a consciência de, por essa via,
causar um prejuízo ao devedor.
É o que sucede quando ele conhecia a verificação de excepções juridicamente
relevantes, que fossem oponíveis ao seu endossante pelo devedor demandado.
A previsão do normativo em análise não se basta, porém, com a má fé do
adquirente, ou seja, com o conhecimento do vício anterior, antes exige também a
consciência, por banda do portador mediato demandante, de causar um prejuízo ao
devedor por virtude dessa aquisição e subsequente demanda.
Revertendo ao concreto dos autos, verifica-se que a embargante veio invocar as
excepções fundadas sobre as relações pessoais dela, sacadora, com o anterior
detentor do cheque – preenchimento abusivo.
Mas, nessa incursão alegatória, limitou-se a aduzir o próprio ‘preenchimento
abusivo’ – que provou – guardando absoluto silêncio sobre o eventual
conhecimento desse vício por parte do exequente.
É dizer que não alegou – e, por via disso, também não provou – a ‘má fé’ do
exequente e o seu propósito de causar prejuízo à embargante com a assinalada
aquisição do cheque.
Assim chegados, resta concluir que também improcede o fundamento em análise.”
E, ponderando as objecções da recorrente a este entendimento, veio dizer o
Supremo Tribunal de Justiça:
“(…)
E é o Artigo 22 que se reporta ao adquirente que tenha conscientemente adquirido
o cheque em detrimento de devedor:
As pessoas accionadas em virtude de um cheque não podem opor ao portador as
excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador, ou com os
portadores anteriores, salvo se o portador ao adquirir o cheque tiver procedido
conscientemente em detrimento do devedor.
Se o adquirente do cheque age com a consciência de causar por via dessa
aquisição um prejuízo ao devedor, isto é, se conhecia da existência de excepções
juridicamente relevantes oponíveis pelo sacador ao seu endossante, então está
consubstanciada a má fé e a culpa grave na aquisição do cheque.
Ora dos factos provados não resulta que o embargo tivesse conhecimento que o
cheque fora entregue ao Marido da embargante para pagar uma máquina da roupa,
nem que se o não soubesse o poderia saber face às circunstâncias, se actuasse
com a devida diligência, passando a sim a ser portador ilegítimo.
Nada há a censurar ao Acórdão recorrido que fundamentou devidamente a sua
decisão chegando à solução legal.
Procede conscientemente em detrimento do devedor, a que se reporta este artigo,
se o portador do cheque agiu, ao adquiri-lo, com a consciência de causar por via
dessa aquisição um prejuízo ao devedor, ou seja, se conhecia a existência de
excepções juridicamente relevantes por aquele oponíveis ao seu «endossante».
(…).”
O simples cotejo destes dois textos torna imediatamente evidente que o Supremo
Tribunal de Justiça se limitou, quanto a este fundamento do recurso, a confirmar
o entendimento do artigo 22.º da L.U. e a aplicá-lo ao caso nos mesmos termos
que o acórdão da Relação tinha adoptado. Não era, portanto, sequer necessário
que a recorrente analisasse as diversas hipóteses interpretativas susceptíveis
de ser adoptadas. Basta-lhe, muito normalmente, colocar em crise perante o
Supremo Tribunal de Justiça a constitucionalidade do entendimento adoptado no
acórdão da Relação contra o qual reagia, para a hipótese de vir a ser
confirmado. Não o tendo feito, o recurso não pode prosseguir.
Tanto basta, sem necessidade de examinar outras razões, para que imediatamente
se decida, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, não conhecer do recurso
de constitucionalidade.
5. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do recurso e condenar a
recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 8 (oito) unidades de conta.”
2. A recorrente reclamou desta decisão, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A da
LTC, sustentando que deve conhecer-se do recurso, em síntese, pelo seguinte:
- A interpretação da norma em causa adoptada pela decisão recorrida, apesar de
confirmar o entendimento da Relação, deve ser considerada inesperada,
considerando a sua injustiça e carácter erróneo e as responsabilidades
acrescidas do Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de revista;
- A questão suscitada pelo recorrente em sede de revista denunciava uma clara
inconstitucionalidade, pelo que, sendo a inconstitucionalidade a lei de
conhecimento oficioso, o Supremo Tribunal de Justiça estava obrigado a dela
conhecer;
- No acórdão em que apreciou a arguição de nulidades, o Supremo Tribunal de
Justiça acabou por conhecer da questão de constitucionalidade, pelo que
legitimou a admissão de recurso para o Tribunal Constitucional.
O recorrido responde que a reclamação deve ser indeferida pelos fundamentos
da decisão reclamada.
3. Qualquer dos fundamentos da reclamação é manifestamente improcedente.
(Quanto ao primeiro fundamento)
A abertura excepcional do recurso de constitucionalidade, apesar de o
interessado não ter colocado a questão anteriormente à aplicação da norma pelo
tribunal a quo, fundada no carácter inesperado ou insólito da aplicação da norma
ao caso ou da sua aplicação com determinado sentido, só se justifica naquelas
situações – que, face à estrutura contraditória do processo, serão sempre
hipóteses excepcionais ou anómalas – em que o recorrente não tenha disposto de
oportunidade processual, agindo com normal diligência e previsão, de confrontar
esse tribunal com a inconstitucionalidade dessa norma ou sentido normativo. Não
é a simples improbabilidade de adopção de determinado entendimento pelo tribunal
da causa, considerando o seu carácter erróneo ou injusto, mas o seu carácter
imprevisível que releva para o efeito. Ora, reagindo o recorrente perante o
tribunal superior contra determinada interpretação de um dado preceito legal
adoptada pela instância que proferiu a decisão que impugna, por mais convencido
que esteja do acerto da sua pretensão, tem de prever que uma das possibilidades
de solução do litígio consista na confirmação desse entendimento que tem por
errado ou injusto.
(Quanto ao segundo fundamento)
O dever de, nos feitos submetidos a julgamento, os tribunais não aplicarem
normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela
consignados (artigo 204.º da CRP) não dispensa do ónus de o interessado suscitar
a questão de constitucionalidade, se quiser aceder ao Tribunal Constitucional
perante decisões que não apreciem a questão ou decidam que a norma não enferma
de inconstitucionalidade, como desde logo resulta da alínea b) do n.º 1 do
artigo 280.º da Constituição.
(Quanto do terceiro fundamento)
Compete ao Tribunal Constitucional decidir, em último termo, se estão
preenchidos os pressupostos do recurso de constitucionalidade interposto (n.º 3
do artigo 76.º da LTC), um dos quais é aquele que consiste em a questão de
inconstitucionalidade ter sido suscitada “de modo processualmente adequada
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar
obrigado a dela conhecer”. Assim, a circunstância de o Supremo Tribunal de
Justiça, porventura, ter examinado a questão de constitucionalidade no acórdão
em que conheceu da arguição da nulidade, apesar de ela não ter sido
oportunamente suscitada nas alegações, não precludiria a apreciação desse
pressuposto pelo Tribunal Constitucional. Sem prejuízo disso, salienta‑se que
não é exacto que, no acórdão de 23 de Maio de 2006, o Supremo Tribunal de
Justiça tenha considerado a questão suscitada de modo idóneo e tenha dela
conhecido. Pelo contrário, afirmou expressamente que esse momento já não era
processualmente adequado para suscitar a questão, tendo a afirmação de que a
interpretação do artigo 22.º da Lei Uniforme sobre Cheques não padece “de
qualquer tipo de inconstitucionalidade” sido produzida ex abundanti e sem ceder
quanto ao momento em que a questão foi levantada.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar a reclamante nas
custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 9 de Outubro de 2006
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício