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Processo n.º 681/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria a A. (ora recorrida) requereu a
falência de A. e mulher (ora recorrentes). Os requeridos deduziram oposição,
tendo, para prova dos factos por si alegados no articulado de oposição,
oferecido duas testemunhas. O Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, porém,
tendo considerado irrelevante para a decisão a proferir a matéria de facto
alegada pelos requeridos na oposição, optou por não marcar a audiência de
julgamento e, considerando improcedente a excepção de caducidade arguida pelos
oponentes, decidiu declarar desde logo a falência dos requeridos. Inconformados
com o assim decidido os requeridos deduziram embargos à sentença que declarou a
falência, embargos esses que vieram a ser julgados improcedentes no despacho
saneador.
2. Novamente inconformados os requeridos recorreram para o Tribunal da Relação
de Coimbra que, por acórdão de 28 de Junho de 2005, julgou a apelação totalmente
improcedente.
3. Ainda inconformados os requeridos recorreram para o Supremo Tribunal de
Justiça que, por acórdão de 18 de Maio de 2005, decidiu negar provimento à
revista, fundamentando assim a decisão:
“É essencialmente uma a questão suscitada na revista e que consiste em saber se,
em processo de falência, deduzida que seja oposição pelos requeridos e
apresentado requerimento de prova, poderá o julgador dispensar a audiência de
julgamento, caso entenda estarem já assentes os factos essenciais de que depende
a decisão, embora se mantenham controvertidos outros factos irrelevantes para a
decisão, ou quando os fundamentos da oposição se traduzam em meras questões de
direito, não dependentes da produção de prova, embora haja factualidade alegada,
ou se, mesmo perante este circunstancialismo se impõe a realização da audiência,
sob pena de se violar o princípio do contraditório e o Art.º 9º do C.P.E.R.E.F.
[...]
Nos termos do Art° 123 n.º 1 do C.P.E.R.E.F., tendo ocorrido oposição ao
requerimento de falência e não se verificando a situação prevista no n.º 3 do
Artº 25, é logo marcada audiência de julgamento para um dos 5 dias subsequentes
ao despacho que ordene o prosseguimento da acção, e segundo o Artº 124 do mesmo
diploma legal, é nessa fase da audiência que o juiz deve fixar a base
instrutória, produzir a prova e decidir desde logo a matéria de facto.
Verifica-se aqui, claramente uma preocupação de celeridade processual aliás
articulada com o disposto no Art.º 10 que atribui ao processo de recuperação de
empresa e de falência o carácter de urgência, sendo essa celeridade processual
que explica o regime simplificado que o Art° 123 nº1 consagrou para este tipo de
acção, em relação ao qual, diferentemente do processo comum, se prevê apenas um
articulado – oposição, seguindo-se sem mais termos a audiência.
[...]
De notar que, conforme resulta do Art° 124 é na fase da audiência que o juiz
organiza a base instrutória. Quanto aos factos assentes (isto é provados) era
omisso o referido preceito, no domínio do D.I. 315/98, mas era entendimento
aceite que, tais factos não deviam ser levados à base instrutória, onde
tecnicamente apenas cabem os factos controvertidos.
Parece, assim, que no domínio do processo de falência, os factos assentes,
seriam pura e simplesmente considerados na sentença de acordo com os princípios
gerais de direito processual civil (cfr. p. ex. Arts. 646 nº e 659 n.º 3 do
C.P.C.)
Notar-se-á, no entanto, que hoje a questão está expressamente resolvida pelo
novo C. de Insolvência e da Recup. de Empresas, como se vê do Art. 35 n.º 5, que
manda o juiz, na fase da audiência, seleccionar os factos assentes, bem como os
que devam constituir a base instrutória.
Portanto, destinando-se a audiência a decidir sobre a matéria de facto, parece
impor-se a conclusão de que ela pressupõe a necessidade da fixação da base
instrutória.
Isto é, pressupõe que existam factos controvertidos com interesse para a
decisão, pois só estes são levados à base instrutória (Art° 511 nº1 do C.P.C.).
Por isso mesmo é que, não havendo oposição, deve o juiz declarar logo a falência
no despacho que ordene o prosseguimento da acção, como determina o Art° 122 do
C.P.E.R.E.F.
Ora, por identidade de razões, mesmo havendo oposição, se nesta apenas se
suscitam questões de direito, parece claro que não se justifica designar dia
para a audiência visto que não se torna necessário julgar qualquer matéria de
facto.
Da mesma forma ainda que haja matéria de facto controvertida, se estiverem
assentes os factos essenciais para a decisão, também não faz sentido realizar-se
a audiência de discussão e julgamento, para discutir matéria de facto
irrelevante ou desnecessária para a decisão.
Na verdade, em qualquer destes casos, a realização da audiência representará a
prática de um acto inútil, logo, proibido por lei.
Consequentemente, em qualquer das aludidas situações impõe-se que desde logo se
conheça do mérito, por o estado do processo permitir, sem necessidade de mais
provas a apreciação total do pedido ou de alguma excepção peremptória, como
determina o Art° 510 n.º 1 do C.P.C., que traduz um princípio geral, sem dúvida
aplicável ao caso, até por força do disposto no Art° 463 n.º 1 do C.P.C., visto
que não contende com a preocupação de celeridade processual que inspira o regime
especialmente simplificado dos Art°s 123 n.º 1 e 124 do C.P.E.R.E.F., antes o
complementa e reforça, como é óbvio.
[...]
Concluímos, assim, que, nos casos em que o Tribunal entenda estarem assentes os
factos essenciais para a decisão, deverá desde logo decidir-se do mérito, sem
necessidade de designar e realizar a audiência de julgamento.
E não se diga que, podendo o oponente apresentar prova documental e/ou
testemunhal até ao início da audiência (Art.º 123 nº 2) ficaria prejudicado, de
alguma forma, o direito de defesa.
É que tais documentos ou testemunhas destinam-se a provar a factualidade alegada
e não factos novos, de modo que estando já assentes os factos essenciais à
decisão, tais meios de prova não teriam objecto útil, como é evidente.
Por conseguinte a dispensa da audiência de julgamento perante o acima aludido
circunstancialismo, de modo algum viola o princípio do contraditório, ou o
direito de defesa do oponente, não representando, pois, a omissão de qualquer
acto que a lei imponha, capaz de gerar nulidade.
Mas é claro, haverá já violação do princípio do contraditório, bem como violação
do direito de defesa, quando se tenha dispensado a audiência havendo, porém,
factos controvertidos que sejam essenciais para a decisão ou para o conhecimento
de alguma excepção arguida.
Ora, no caso concreto, alegam os recorrentes desde logo, que não eram devidos a
totalidade dos créditos reclamados pelo banco requerente. Todavia, e quanto a
este aspecto, não têm razão os recorrentes, desde logo porque não se vê
articulado na petição de embargos tal matéria, e é da decisão proferida nos
embargos que se recorre.
Portanto, se a questão não foi posta nos embargos, não pode agora ser objecto
dos recursos que recaíram sobre a decisão neles proferida.
Seja como for, como se vê da sentença que decretou a falência, que se encontra
certificada nos autos, se é certo que os requeridos puseram em causa na sua
oposição parte da dívida alegada em fundamento da pretendida falência, também é
certo que aceitam estar em dívida um crédito no valor total de 3.943.590.18 €,
há muito vencido e não pago, confessando que não dispõem de rendimentos ou
património que permita pagar tal crédito que reconhecem existir a favor da
C.G.D.
Por conseguinte está demonstrada a situação prevista na alínea a) do n.º 1 do
Art° 8 do C.P.E.R.E.F., que por si só justifica o requerimento da falência nos
termos do n.º3 do preceito citado, independentemente de se provar ou não a parte
dos créditos impugnada, sendo ainda certo que os recorrentes não ficam
minimamente prejudicados, porquanto podem sempre contestar os créditos
reclamados nos termos do disposto no Art° 192 do referido diploma legal.
Alegam ainda os requeridos que a dispensa da audição das testemunhas que
arrolaram na oposição à falência, coarctou aos recorrentes a possibilidade de
provarem os factos alegados, os quais, uma vez provados fundamentariam a
excepção de caducidade que arguíram, bem como a invocada coacção moral.
Coacção
[...]
Ora, no caso, é manifesto que, mesmo a provar-se a factualidade alegada pelos
recorrentes nunca se estaria perante qualquer tipo de coacção moral (aliás,
naturalmente, que ocorreram negociações prévias, durante as quais o banco terá
exigido a prestação de garantias como condição da concessão de crédito).
Se o banco exigiu dos recorrentes a prestação de garantias pessoais como meio de
conceder crédito à sociedade de que o recorrente marido foi administrador,
estava no seu pleníssimo direito. É, de resto a regra geral em situações
idênticas, visto que o banco não está obrigado a conceder crédito a quem quer
que seja, sendo perfeitamente legítimo que exija as garantias que entender como
condição para conceder um qualquer pretendido crédito. Não há, pois, qualquer
ameaça, muito menos ilícita de um mal, como seria necessário para se
caracterizar uma situação de coacção moral.
De resto, como se diz no n.º 3 do Art° 255 do CC “não constitui coacção a ameaça
do exercício normal de um direito, nem o simples termos reverencial.
Por conseguinte não tem qualquer interesse produzir prova sobre esta
factualidade visto que, mesmo que integralmente provada, não caracterizaria
qualquer tipo de coacção moral e, portanto, nunca levaria à nulidade das
garantias pessoais prestadas pelos recorrentes.
Caducidade
Resta analisar a questão da caducidade (Art. 9 do C.P.E.R.E.F).
Mas, também aqui não assiste razão aos recorrentes porquanto não tem aplicação
ao caso concreto, o prazo de caducidade a que se refere o preceito citado.
[...]
No caso concreto o recorrente marido, não obstante ter sido administrador da
sociedade beneficiária do crédito concedido pela requerente da falência, prestou
as respectivas garantias a título pessoal e não na qualidade de administrador da
Mortam/Safril ou na de titular de qualquer empresa, o mesmo acontecendo em
relação à recorrente esposa.
Quer dizer, a dívida dos recorrentes para com a recorrida, emergiu de avais e
fianças prestados por aqueles a título meramente individual e pessoal.
Consequentemente, não pode falar-se aqui, em relação a eles em qualquer cessação
de actividade da qual emergiram as dívidas que fundamentaram a declaração de
falência, pelo que não estava a requerente da falência limitada por qualquer
prazo de caducidade para pedir a falência dos recorrentes, podendo fazê-lo
enquanto se mantivesse a situação de insolvência
De resto, mesmo que se entendesse, como alguns autores entendem (cof. Carvalho
Fernandes e João Labareda – C.P.E.R.E.F. - anotado), ser suficiente que a dívida
tenha emergido de uma actividade profissional, seja ela empresarial ou não,
mesmo então não teria aplicação ao caso dos autos o prazo de 1 ano a que se
refere o aludido Art.9, pois a dívida dos recorrentes não resultou, como vimos,
de qualquer actividade profissional que entretanto tivesse cessado.
Assim sendo, é claro que não tinha qualquer interesse provar-se os factos
descritos nos artigos 5, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, pois, mesmo que
integralmente demonstrados não consubstanciariam a alegada excepção de
caducidade.
Improcedem, pois, todas as conclusões”.
4. Desta decisão foi interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1, do art. 70º da
LTC, recurso de constitucionalidade, através de um requerimento que tem o
seguinte teor:
“[...], não se conformando com o douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de
18 de Maio de 2006, dele pretende interpor recurso para o Tribunal
Constitucional ao abrigo do disposto no Artigo 280º nº 1 alínea b) da C.R.P e
nos artigos 69º e seguintes da L.T.C.
Este recurso é interposto nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da
L.T.C., e destina-se a apreciar a inconstitucionalidade do Artigo 25º nº 2 do
C.P.E.R.E.F., bem como a interpretação feita no douto Acórdão de 18 de Maio de
2006 das normas constantes dos Artigos 3º e 265º nº 3 do C.P.C. e Artigos 20º,
nº 2, 24º 123º e 124º do C.P.E.R.E.F.
No entender da Recorrida essa interpretação está em clara contradição com as
normas e princípios constitucionais consagrados nos Artigos 20º, nº 1, 202º e
204º da C.R.P., tendo a questão da inconstitucionalidade sido já suscitada no
processo”.
5. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao
abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão
sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. É o seguinte, na
parte relevante, o seu teor:
“[...] Cumpre, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do objecto do presente
recurso, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal
Constitucional (cfr. art. 76º, n.º 3 da LTC).
Nos termos do requerimento de interposição do recurso, que delimita o respectivo
objecto, os recorrentes pretendem ver apreciada a “inconstitucionalidade do
Artigo 25º nº 2 do C.P.E.R.E.F., bem como a interpretação feita no douto Acórdão
de 18 de Maio de 2006 das normas constantes dos Artigos 3º e 265º nº 3 do C.P.C.
e Artigos 20º, nº 2, 24º 123º e 124º do C.P.E.R.E.F.”, por alegada violação das
“normas e princípios constitucionais consagrados nos Artigos 200º, nº 1, 202º e
204º da C.R.P”. Mas, como sumariamente se verá já de seguida, não pode, por mais
do que uma razão, qualquer delas só por si suficiente, conhecer-se do objecto
deste recurso. Vejamos.
5.1. O recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, tem por objecto a apreciação da constitucionalidade de normas
jurídicas – ou, se for o caso, de uma determinada interpretação normativa – e
pressupõe, nomeadamente, que o recorrente tenha suscitado “de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida”
(artigo 72º, n.º 2, do mesmo diploma) a exacta questão de constitucionalidade
normativa que pretende ver apreciada.
Ora, no caso dos autos, tal não aconteceu. Com efeito, se atentarmos nas
conclusões da alegação de recurso que os recorrentes apresentaram perante o
Supremo Tribunal de Justiça, verificamos que estes, quando se referem a uma
alegada violação do princípio do contraditório - e apenas implicitamente o fazem
- imputam essa violação à própria decisão recorrida e não a normas por ela
aplicadas (cfr. conclusões 13 a 17). Para o demonstrar basta recordar aqui o
conteúdo dessas conclusões:
«[…] 13 – O princípio do contraditório traduz-se não só no direito de deduzir
oposição como no direito de produzir prova sobre os factos alegados.
14 – A não audição das testemunhas indicadas na Oposição ao pedido de falência,
coarctou aos recorrentes o direito de fazer prova quanto aos factos alegados,
que permitiriam fundamentar a excepção da caducidade e coacção invocadas.
15 – Ao ser decretada de imediato a falência sem contraditório foi preterida
formalidade essencial, o que constitui nulidade.
16 – A douta sentença que julgou improcedentes os embargos mantendo a sentença
que declarou a falência recusou de novo o direito do contraditório quanto aos
embargos.
17 – O douto acórdão recorrido ao confirmar a sentença da 1ª instância,
entendendo que não foi preterido o contraditório, interpreta erradamente o
disposto nos artigos 3º e 265º do C.P.C., bem como os Artigos 9º, 20º, nº 2,
24º, 123º e 124º do C.P.E.R.E.F.». (Negrito aditado).
Como resulta evidente da transcrição acima efectuada, os recorrentes não imputam
ali, como deviam se pretendiam salvaguardar a possibilidade de um eventual
recurso para o Tribunal Constitucional, a violação do princípio do contraditório
a qualquer norma jurídica mas, como se viu, à “não audição das testemunhas”, ao
“ser decretada de imediato a falência” ou, finalmente, à “douta sentença que
julgou improcedentes os embargos” e ao “acórdão recorrido”. Constitui, porém,
jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada que objecto do recurso de
fiscalização concreta da constitucionalidade são normas e não actos,
designadamente a própria decisão judicial. Assim resulta do disposto no artigo
280º da Constituição e no artigo 70º da Lei n.º 28/82 e assim tem sido afirmado
pelo Tribunal Constitucional em inúmeras ocasiões. O que conduz à
impossibilidade de conhecimento do recurso.
5.2. E, a conclusão que imediatamente supra se alcançou, não é infirmada pelo
facto de na conclusão 18 da referida alegação – única em que os recorrentes se
referem explicitamente a um preceito constitucional – se acrescentar que “Tal
interpretação mostra-se contrária ao princípio constitucional vertido no Artigo
20º, nº 1 da Constituição da República”. É que, mesmo que se pudesse considerar
que a questão de constitucionalidade, nesta conclusão, já vem imputada a uma
determinada interpretação normativa dos vários preceitos legais referidos por si
referidos naquela peça processual - e não à decisão que os aplicou – ainda assim
os recorrentes nunca identificaram, em termos que possam ser considerados
minimamente suficientes, qual a exacta interpretação normativa desses preceitos
que consideravam inconstitucional. Com efeito, como o Tribunal Constitucional
tem afirmado, repetidamente, nada obsta a que seja questionada apenas uma certa
interpretação ou dimensão normativa de um determinado preceito. Porém, nesses
casos, recai sobre o recorrente o ónus de explicitar, de forma clara e
perceptível, o exacto sentido normativo do(s) preceito(s) que considera
inconstitucional. Como se disse, por exemplo, no Acórdão n.º 178/95 (Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 30º vol., p.1118.) “tendo a questão de
constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre
outros, o Acórdão n.º 269/94, Diário da República, II Série, de 18 de Junho de
1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de
determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos
que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa
enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que
houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os
operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não
pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental”.
Ora, não tendo os recorrentes identificado a interpretação questionada,
igualmente há que concluir que o Tribunal está impedido de conhecer do objecto
do recurso.
5.3. Acresce, por outro lado, que, como o Tribunal também tem repetidamente
afirmado (cfr., entre muitos outros nesse sentido, os Acórdãos n.ºs 337/94,
498/96 e 3/2000 – publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série,
de 4 de Novembro de 1994, de 22 de Julho de 1996 e de 8 de Março de 2000 -, e os
Acórdãos n.ºs 283/97, 556/98, 490/99 – disponíveis na página Internet do
Tribunal, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), o recurso de
constitucionalidade, tal como previsto no artigo 280º da Constituição e nos
artigos 70º e seguintes da LTC, desempenha uma função instrumental. Isso
significa, como se afirmou, por exemplo, no Acórdão n.º 498/96, já citado, que
há-de aferir-se da “sua utilidade no concreto processo de que emerge, de tal
forma que o interesse no conhecimento de tal recurso há-de depender da
repercussão da respectiva decisão na decisão final a proferir na causa”. Como
então se acrescentou, “não visando os recursos dirimir questões meramente
teóricas ou académicas, a irrelevância ou inutilidade do recurso de
constitucionalidade sobre a decisão de mérito torna-o uma mera questão académica
sem qualquer interesse processual, pelo que a averiguação deste interesse
representa uma condição de admissibilidade do próprio recurso”. Em síntese, e
retomando agora as palavras do acórdão n.º 556/98, também já citado, só tem
sentido conhecer do recurso de constitucionalidade quando a decisão aí proferida
“se pode projectar com utilidade sobre a causa”, concluindo-se, assim, “que dele
se não deve conhecer quando se não verifique qualquer efeito útil do mesmo sobre
ela”.
Ora, é justamente o que acontece nos presentes autos, em que se verifica,
precisamente, que um eventual juízo de inconstitucionalidade sobre uma norma que
permita a declaração imediata da falência sem que sejam ouvidas as testemunhas
indicadas pelos requeridos, não seria susceptível de inverter o sentido da
decisão que decretou a falência, uma vez que no acórdão recorrido – como
claramente resulta da transcrição supra - se considerou, em termos que a este
Tribunal não compete obviamente sindicar, absolutamente irrelevante para a
decisão a proferir, ainda que inteiramente provada, a matéria de facto alegada
pelos requeridos na oposição.
Também por esta razão, só por si igualmente suficiente, se não pode conhecer do
objecto do recurso.
6. Assim sendo, apenas resta ao Tribunal concluir, em face do exposto, que não é
possível conhecer do objecto do recurso, por evidente falta dos seus
pressupostos de admissibilidade, ficando deste modo precludida a possibilidade
de indagação de um eventual carácter manifestamente infundado da questão de
constitucionalidade.”
6. É desta decisão que vem interposta, ao abrigo do disposto no art. 78º-A, n.º
3 da LTC, a presente reclamação para a Conferência, que os reclamantes
fundamentam nos seguintes termos:
“[...], notificados da decisão sumária de 24 de Julho de 2006, vêm nos termos do
Artigo 78.° - A n.º 3 da L.C.T. apresentar a seguinte RECLAMAÇÃO PARA A
CONFERÊNCIA nos termos e com os seguintes fundamentos:
Decidiu o Mmo. Juiz Relator não tomar conhecimento do Recurso interposto por
entender que:
I) — Não se encontram verificados os pressupostos de admissibilidade do Recurso;
II) — Um eventual juízo de inconstitucionalidade sobre uma norma que permita a
declaração imediata da falência sem que sejam ouvidas as testemunhas indicadas
pelos requeridos, não seria susceptível de inverter o sentido da decisão que
decretou a falência, sendo por isso o recurso irrelevante e inútil.
Não podem os ora Reclamantes concordar com tais argumentos.
I) — Quanto à falta de pressupostos de admissibilidade do Recurso.
Os Reclamantes vieram interpor Recurso para o Tribunal Constitucional do douto
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Maio de 2006, nos termos da
alínea b) do Artigo 70° da LTC.
Dispõe a referida norma legal que:
“1 — Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos
tribunais:
b) — Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o
processo.
2 — Os recursos previstos nas alíneas b) e f) do número anterior apenas cabem de
decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já
haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam, salvo os destinados a
uniformização de jurisprudência”.
Por sua vez o Artigo 72° n.º 2 da L.C.T. determina o seguinte:
“2 — Os recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70°, só podem
ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade
ou da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”.
A lei faz assim depender a admissibilidade do recurso para o Tribunal
Constitucional previsto na alínea b) do Artigo 70° de três requisitos
cumulativos:
1) - que da decisão recorrida não seja possível interpor recurso ordinário;
2) - que a decisão recorrida tenha aplicado normas cuja inconstitucionalidade
tenha sido suscitada durante o processo;
3) - e que tenha sido o recorrente a suscitar a questão de
inconstitucionalidade;
Afigura-se aos Reclamantes que no caso concreto se encontram verificados estes
três requisitos, assim:
1) - Quanto ao primeiro desses pressupostos, certo é que o douto Acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Maio de 2006 não é susceptível de recurso
ordinário, estando por isso verificado o primeiro dos pressupostos da
admissibilidade do Recurso para o Tribunal Constitucional.
2) - Quanto ao segundo pressuposto:
O acesso ao direito e aos tribunais traduz-se também no direito da fazer prova
sobre os factos invocados.
Por isso mesmo, no entender dos Reclamantes, o douto Acórdão do Supremo Tribunal
de Justiça que veio confirmar a sentença da 1ª instância, e Acórdão da Relação
de Coimbra, julgando ser legítimo mesmo havendo oposição dos Requeridos decretar
a falência sem designar audiência de julgamento e sem produção de prova, usando
como argumento a norma do Artigo 25° do C.P.E.R.E.F. que permite decretar a
falência sem produção de prova, interpreta erradamente o princípio do
contraditório que se encontra plasmado nos Artigos 3°, 265° n.º 3 do C.P.C. e
Artigos 20° n.º 2, 24.°, 123.° e 124.° do C.P.E.R.E.F.
A norma em causa, e a interpretação que dela feita, está em clara contradição
com as normas e princípios constitucionais consagrados nos Artigos 20° n.º 1,
202° n.º 2 e 204° da C. R. P. que asseguram a todos o acesso ao direito e aos
tribunais para defesa dos seus direitos e Interesses.
O douto Acórdão recorrido do Supremo Tribunal de Justiça aplicou pois norma que
no entender dos Reclamantes é inconstitucional (Artigo 25° n.º 2 do
C.P.E.R.E.F.) e interpretou os Artigos 20° n.º 2, 24°, 123° e 124° do
C.P.E.R.E.F. em contradição com as normas e princípios constitucionais acima
invocados.
A questão da inconstitucionalidade foi suscitada de forma clara e precisa pelos
Reclamantes durante o processo, nas Alegações apresentadas no Supremo Tribunal
de Justiça.
Como se tentou explicar, de nada valeria num processo de falência dar aos
Requeridos a possibilidade e o direito de deduzir oposição se os mesmos não
tivessem a possibilidade de fazer prova dos factos por si invocados.
Admitir, como fizeram as instâncias anteriores, que ao abrigo do disposto no
Artigo 25° n.º 2 do C.P.E.R.E.F. o Tribunal pode e deve decretar a falência sem
marcação da audiência de julgamento e sem realizar as diligências necessárias à
averiguação dos factos invocados, traduz-se numa preterição do direito do
contraditório e numa denegação do princípio constitucional do acesso ao direito
e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses. Afigura-se pois aos
Reclamantes que o segundo pressuposto da admissibilidade do Recurso encontra-se
também verificado.
3) - Quanto ao terceiro pressuposto: A questão da inconstitucionalidade foi
suscitada pelos próprios Recorrentes no processo, e como tal os mesmos têm
legitimidade para interpor recurso para o Tribunal Constitucional, estando por
isso verificado o terceiro pressuposto da admissibilidade do Recurso.
II) — Da inutilidade do presente Recurso
No entender do Exmo. Senhor Relator o recurso interposto pelos Reclamantes
mostra-se irrelevante e inútil.
Diz-se no douto despacho de 24 de Julho de 2006 que: “...no caso concreto um
eventual juízo da inconstitucionalidade sobre uma norma que permita a declaração
imediata da fa1ência sem que sejam ouvidas as testemunhas indicadas pelos
requeridos, não seria susceptível da inverter o sentido da decisão que decretou
a falência”.
Não podem como é óbvio os Reclamantes concordar com tal afirmação.
Até porque, a decisão proferida neste processo pela 1ª instância, pela Relação
de Coimbra e pelo Supremo Tribunal quanto à interpretação dada ao disposto no
Artigo 25° n.º 2 ‚ 20° n.º 2, 24°, 123° e 124° do C.P.E.R.E.F. está em
contradição com decisões já proferidas pelo Supremo Tribunal de Justiça,
nomeadamente com o decidido no douto Acórdão de 02/1 0/2002 in www.dsi.pt que
diz o seguinte: “Requerida a fa1ência do devedor e deduzida por este oposição,
tem de ser marcada audiência da julgamento, mesmo que o juiz entenda poder
conhecer do mérito por ausência da matéria de facto susceptível da ser levada
base instrutória art. 25° 2ª parte e art. 123° do C.P.E.R.E.F.)“ e ainda Acórdão
do Tribunal da Relação do Porto de 02/04/2002 in www.dsi.pt: “... nos casos em
que for deduzida oposição há falência, há necessariamente que realizar a
audiência da julgamento, ainda que a produção da prova testemunhal possa parecer
acto inútil.”
O mais extraordinário deste caso é que a 1ª Secção do Supremo Tribunal de
Justiça, quanto à mesma questão e em casos completamente idênticos tem dois
pesos e medidas.
Assim, a 1ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça no Processo n.º 366/05 em que
era Requerido o filho dos aqui Reclamantes, decidiu por Acórdão de 21/03/2006
conceder revista ao recurso interpostos, anulando o processo e ordenando a
realização de julgamento com os seguintes fundamentos:
“Ao prescrever a obrigatoriedade da realização da audiência de discussão e
julgamento, a lei apenas estabelece uma ressalva, que é a de ter havido oposição
constante do nº 3 do artigo 25°‚ caso em que haverá de seguir como recuperação,
hipótese aqui sem interesse.
É certo que a aplicação dos princípios do processo civil (designadamente os
artigos 511.° e 513.°) poderia levar a concluir que não existindo factos que
necessariamente deveriam ser apurados, se impunha desde logo a decisão de
mérito, já que não haveria mat6ria de facto a seleccionar.
A verdade, porém, é que o processo de falência é um processo especial, tendo,
inclusive, a declaração de falência tem efeitos sobre o estado das pessoas e
sobre a sua liberdade — Cons. Pedro Macedo — “Manual de Direito de Falência”
1968, II, pág. 22.
Os Requeridos gozam de prazo para apresentar prova documental e prova
instrumental afim de confirmarem ou infirmarem a factualidade em questão,
respeitando-se assim o princípio do contraditório. A não marcação e realização
da audiência de julgamento pode pois influir de forma essencial no exame e
decisão da causa e é fundamento de anulação de todos os actos praticados pelos
Tribunal após a omissão da marcação da audiência de julgamento, incluindo a
própria sentença falimentar (artigo 205º n.º 1, 206º n.° 3 e 207º do C. Processo
Civil”.
Por outros lado, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Maio de 2006
em apreço, diz exactamente o contrário, não dando ao pai aquilo que foi
concedido ao filho.
Repare-se até que tendo sido pedido neste processo julgamento ampliado de
revista para uniformização de jurisprudência, tal foi denegado com o fundamento
de que a questão não tinha dignidade para ser apreciada pelo Tribunal Pleno.
Tudo assenta assim, na existência de uma norma (Artigo 25° n.º 2 do C. P. E. R.
E. F.) que permite que seja decretada a falência sem que o Requerido possa fazer
prova e na interpretação contraditória que o Supremo Tribunal de Justiça dá à
mesma norma.
No entender dos Reclamantes, a quem foram coarctados direitos constitucionais,
V. Exas. certamente não irão considerar que tal assunto não tem dignidade para
ser apreciado.
Em conclusão:
Estando verificados, no entender dos Reclamantes, todos os pressupostos
processuais de admissibilidade deste Recurso e sendo o mesmo útil, deverá o
mesmo ser admitido e apreciado por esse douto Tribunal, o que aqui se requer”.
7. A reclamada, notificada da presente reclamação, nada disse.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II – Fundamentação
8. Na decisão sumária reclamada entendeu-se não conhecer do objecto de um
recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da L.T.C., em
que o recorrente pretendia ver apreciada “a inconstitucionalidade do Artigo 25º
nº 2 do C.P.E.R.E.F., bem como a interpretação feita no douto Acórdão de 18 de
Maio de 2006 das normas constantes dos Artigos 3º e 265º nº 3 do C.P.C. e
Artigos 20º, nº 2, 24º, 123º e 124º do C.P.E.R.E.F.”.
8.1. Esta decisão fundou-se, em primeiro lugar, na circunstância de o
recorrente, na alegação de recurso apresentada no Supremo Tribunal de Justiça,
que proferiu a decisão recorrida, nunca ter imputado, como podia e devia, a
violação da Constituição a uma qualquer norma jurídica, designadamente às por si
agora indicadas no requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade, mas antes, como então se demonstrou, à “não audição das
testemunhas”, ao “ser decretada de imediato a falência” ou, finalmente, à “douta
sentença que julgou improcedentes os embargos” e ao “acórdão recorrido”.
Considerou-se, em suma e em primeiro lugar, que não tendo os recorrentes
suscitado, durante o processo e de modo processualmente adequado, como exige o
n.º 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), qualquer questão de
constitucionalidade normativa, não estaria presente, pelo menos, um dos
pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do
art. 70º da LTC.
Os reclamantes vêm contestar esta conclusão. Basta, porém, ler o teor da
reclamação, que supra já transcrevemos integralmente, para verificar que, nesta
parte, os mesmos se limitam a dar como demonstrado precisamente aquilo que
deveriam demonstrar. Ou seja: limitam-se a afirmar que “a questão de
constitucionalidade foi suscitada de forma clara e precisa pelos reclamantes
durante o processo, nas Alegações apresentadas no Supremo Tribunal de Justiça”,
ou, mais à frente, no mesmo sentido, que “a questão de inconstitucionalidade foi
suscitada pelos próprios Recorrentes no processo, e como tal os mesmos têm
legitimidade para interpor recurso para o Tribunal Constitucional, estando por
isso verificado o terceiro pressuposto da admissibilidade do Recurso”, sem,
contudo, cuidarem minimamente de revelar onde, na alegação de recurso
apresentada perante o Supremo Tribunal de Justiça, foi por si adequadamente
suscitada uma questão de constitucionalidade normativa susceptível de integrar o
recurso que pretenderam interpor. E, de facto, percebe-se porque motivo assim o
fazem, uma vez que, como já se demonstrou demoradamente na decisão sumária
reclamada, em termos que merecem a nossa inteira concordância, pelo que agora se
reiteram, se atentarmos nas conclusões da alegação de recurso que os recorrentes
apresentaram perante aquele Supremo Tribunal, verificamos que, quando - e apenas
implicitamente - os mesmos se referem a uma alegada violação do princípio do
contraditório, imputam essa violação à própria decisão recorrida e não a normas
por ela aplicadas.
8.2 A decisão sumária reclamada baseou-se ainda, para não conhecer do objecto do
recurso, na circunstância de um eventual juízo de inconstitucionalidade sobre as
normas que vinham questionadas pelos recorrentes não ser, no caso concreto,
susceptível de inverter o sentido da decisão recorrida, na parte em que a mesma
decretou a falência, uma vez que no acórdão recorrido se considerou, em termos
que a este Tribunal não compete sindicar, absolutamente irrelevante para a
decisão a proferir a matéria de facto alegada pelos requeridos na oposição.
Também esta conclusão vem questionada pelos reclamantes. Mais uma vez, porém, em
termos que manifestamente em nada não abalam a fundamentação em que, nesta
parte, assenta a decisão sumária reclamada, limitando-se agora os reclamantes a
invocarem – facto absolutamente irrelevante no contexto do presente recurso de
constitucionalidade - que, em outras situações alegadamente idênticas, o Supremo
Tribunal de Justiça terá feito uma diferente interpretação dos preceitos em
causa, ordenando a realização da audiência antes de decretar a falência.
9. Assim sendo, pelas razões já constantes da decisão reclamada, que mantém
inteira validade e em nada é infirmada pela presente reclamação, é efectivamente
de não conhecer do objecto do recurso que os ora reclamantes interpuseram.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do
recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 27 de Setembro de 2006
Gil Galvão
Bravo Serra
Artur Maurício