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Processo n.º 734/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A., melhor identificado nos autos, reclama, ao abrigo do
disposto no n.º 3 do art.º 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua
actual versão (LTC), da decisão sumária proferida pelo relator onde se decidiu
não tomar conhecimento da constitucionalidade da norma do artigo 170.º, n.º 1,
do Código Penal.
2 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
«1 – A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça,
de 13 de Julho de 2006, que, havendo concedido parcial provimento ao recurso
interposto do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, o condenou na pena
unitária de sete anos de prisão, pela prática de um crime de lenocínio, p. e p.
pelo art. 170.º n.º 1, do Código Penal, de um crime de auxílio à imigração
ilegal, p. e p. pelo art. 134.º-A, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de
Agosto, de dois crimes de sequestro, p. e p. pelo art. 158.º, n.º 1 do Código
Penal, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 275.º, nºs 1
e 3, do mesmo código e de um crime de uso ilegal de arma, p. e p. pelo art. 6.º,
n.º 1, da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, pretendendo ver fiscalizada a
“constitucionalidade ou ilegalidade do n.º 1 do artigo 170.º do Código Penal”,
por violação do “disposto nos artigos 2.º, alínea d) do artigo 9.º, n.º 2 do
artigo 18.º e 104.º todos da Constituição da República Portuguesa, tendo sido
suscitada, quer no decurso do inquérito, quer na sua contestação a questão de
inconstitucionalidade”.
2 – Dado que, nos termos do artigo 76.º, n.º 3, da LTC, o despacho que
admitiu o recurso não vincula o Tribunal Constitucional e uma vez que nele se
configura uma situação enquadrável no âmbito normativo recortado no artigo
78.º-A, n.º 1, do mesmo diploma, passa a decidir-se.
3 – Como vem sendo repetidamente afirmado pela jurisprudência do
Tribunal Constitucional, o recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da CRP e na
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, em cuja categoria se insere o
presente, apenas pode ter como objecto normas jurídicas que hajam sido aplicadas
como sua ratio decidendi pela decisão recorrida e não decisões judiciais ou
outros actos não normativos embora estes tenham feito aplicação directa de
normas ou princípios constitucionais, devendo a questão de constitucionalidade
ser adequadamente suscitada durante o processo [cf. Cardoso da Costa, “A
jurisdição constitucional em Portugal”, in Estudos em homenagem ao Professor
Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra, I, 1984, pp. 210 e ss., e, entre outros, os Acórdãos n.º 352/94,
publicado no Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994, n.º 560/94,
publicado no mesmo jornal oficial, de 10 de Janeiro de 1995, e, ainda na mesma
linha de pensamento, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República II
Série, de 20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de
citar, o Acórdão n.º 192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de
Outubro de 2000].
Relativamente a este último aspecto, importa salientar que o artigo
72.º, n.º 2, da LTC, é claro ao exigir que, nos recursos interpostos ao abrigo
da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da mesma Lei, a questão de
inconstitucionalidade que se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie
tenha sido suscitada perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em
termos deste ficar vinculado ao seu conhecimento.
Ora, in casu, compulsados os autos, constata-se que a questão de
constitucionalidade que consubstancia o objecto do presente recurso – a norma do
n.º 1 do art. 170.º do Código Penal – não foi suscitada perante o tribunal
recorrido – o Supremo Tribunal de Justiça –, pelo que, verificando-se a falta de
tal pressuposto específico do recurso de constitucionalidade, não pode tomar-se
conhecimento deste.
De facto, tendo o âmbito do recurso para o Supremo ficado restringido às
questões que lhe foram postas nas conclusões das alegações (cf. fls. 7096 a
7110) e o recurso de constitucionalidade, por mor da sua função instrumental,
apenas poder ter, como já disse, por objecto normas que hajam constituído o
fundamento normativo da concreta decisão – não servindo, consequentemente, como
instrumento de reponderação “de todas e quaisquer questões que hajam sido
colocadas ao longo da tramitação do processo” –, seria fundamental, que, na
óptica do cumprimento do ónus de adopção de uma estratégia processual adequada
para interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (cfr. o acórdão n.º
479/89, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14.º vol., págs. 143-154), o
recorrente tivesse levado ao conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça a
questão que agora pretende controverter.
Estando obrigado a esgotar os recursos ordinários que no caso caibam, de acordo
com o disposto nos nºs 2 e 4 do art. 70.º da LTC, incumbe ao recorrente o ónus
de colocar à instância de que possa vir a recorrer para o Tribunal
Constitucional (a última instância de recurso ordinário ou outra de grau
inferior em caso de renúncia aos graus de recurso ordinário ainda admissíveis) a
questão de constitucionalidade, de modo a que tal tribunal, dentro do sistema de
controlo difuso da constitucionalidade adoptado pela nossa Lei fundamental,
possa apreciar a questão e recusar a aplicação da norma, no caso de concluir
pela sua enfermidade constitucional (cf. art. 204.º da CRP).
Como o recorrente não suscitou a questão de constitucionalidade da norma do
artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, perante o tribunal recorrido, e este,
consequentemente, não tratou da questão de constitucionalidade normativa
invocada pelo recorrente, não podem dar-se por verificados os requisitos para se
poder tomar conhecimento do presente recurso (cf., inter alia, os Acórdãos nºs
528/05, 498/05, 179/05, 157/05, 468/04, 222/02, 54/02 e 396/01, todos
disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
A suscitação da questão de constitucionalidade perante outro tribunal, inferior
na respectiva hierarquia da ordem dos tribunais, não importa a satisfação
material e formal do respectivo ónus, porquanto não coloca ao reexame do
tribunal ad quem, integrado em tal sistema de controlo difuso de
constitucionalidade, e de cuja decisão se pretende recorrer para o Tribunal
Constitucional, a mesma questão, de modo a que este a possa reapreciar.
A não recolocação, perante o Supremo Tribunal de Justiça, da questão de
constitucionalidade posta perante outros tribunais da hierarquia da ordem dos
tribunais judiciais – no caso, conforme alega o recorrente, perante o juiz de
instrução e o juiz de julgamento em 1.ª instância – corresponde a um abandono do
conhecimento de tal questão.
4 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não
tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 UCs.».
3 – Discordando do decidido, vem o reclamante dizer que:
«A., arguido e devidamente identificado nos
epigrafados autos, não se conformando com a douta decisão sumária proferida
pelo Exmo. Juiz Conselheiro Relator, nos termos do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC
(redacção da Lei n.º 13-A/98 de 26 de Fevereiro), vem da mesma apresentar
reclamação, nos termos do disposto no n.º 3 do referido artigo 78º-A do citado
diploma, com os seguintes fundamentos:
I- Do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de
Justiça, o
arguido, A., interpôs, nos termos do
disposto na alínea b) do n.º 1 do Artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional (Lei 28/82, de 15 de Novembro) e do n.º 1 do
artigo 280º da Constituição da República Portuguesa, recurso
para o Tribunal Constitucional, submetendo à apreciação deste
Tribunal a inconstitucionalidade ou ilegalidade do n.º 1 do artigo
170º do Código Penal.
II- Mais considerou, violado o disposto nos artigos 2º,
alínea d) do
artigo 9º, n.º 2 do artigo 18º e 204º todos da Constituição da
República Portuguesa, e suscitou quer no decurso do inquérito,
quer na sua Contestação a questão da inconstitucionalidade que
não mereceu acolhimento, tendo alinhado, à data, os seguintes
fundamentos:
1- O artigo 170º, n.º 1, com a redacção dada pela alteração, lei 65/98, é
inconstitucional;
2- A actual redacção do n.º 1 do artigo 170º do Código Penal, viola os artigos
2º e 18º, nº 2 da CRP, nomeadamente, o princípio da necessidade da pena e a
proibição do excesso;
3- De facto, tal normativo impõe que o Estado deva abster-se de intervir em
áreas de dignidade contraordenacional, sob pena de se violar o princípio da
intervenção mínima;
4- E, “in casu”, a matéria ou o bem jurídico protegido com a incriminação, não é
a liberdade sexual, mas sim a de protecção de determinadas concepções de vida,
bem que a C.R.P. protege mas que não tem dignidade penal, mas sim
contraordenacional.
5- Ora, apesar da dignidade punitiva de certa conduta que possa ser
absolutamente criminógena, mas, irrelevante em termos de tutela penal, o Estado
deve abster-se de incriminar, sendo certo que no caso em apreço o bem é
eticamente censurável, mas sem relevância Penal;
6- De resto, esta orientação já era a que se encontrava plasmada na revisão do
Código Penal de 1995, consoante as actas e o texto legal aprovado, e que
actualmente se verifica em todos os países da Europa, pelo que, o bem jurídico
que se veio proteger “determinadas concepções de vida, nas palavras de Moura
Ferraz ou a defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade, no entendimento
do Prof. Figueiredo Dias”, não tem dignidade penal e por isso a sua
neocriminalização é hoje inconstitucional;
7- Acresce que, não é necessária a punição de tal conduta, já que o bem pode ser
definido de outro modo menos gravoso, como já acontecia já no Código Penal de
1995, nomeadamente, através de coimas, e a sua incriminação é proteger bens
jurídicos transpersonalistas de étimo moralista por via do direito penal, o que
é hoje ilegítimo e conduzirá a um direito penal de fachada; (H. H. Jescheck)
8- Posição esta, defendida pelo Prof. Figueiredo Dias e Anabela Rodrigues, em
anotações ao artigo 170º n.º 1, do Código Conimbricense e com dúvidas quanto à
inconstitucionalidade do texto actual, José Mouraz Lopes, em “Os Crimes contra a
liberdade e autodeterminação sexual no C. Penal” página, 67;
9- E porque assim, salvo melhor opinião, violou-se o artigo 2º e 18º, n.º 2 do
C.R.P com a alteração do artigo 170º, n.º 1 do Código Penal efectuada pela Lei
65/98, devendo a mesma ser declarada inconstitucional já na 1ª instância, ao
abrigo do artigo 204º da C.R.P.
III- Percorridas as várias instâncias, o recurso ora em questão, numa
primeira fase, assim considerando, foi admitido pelo Supremo Tribunal de
Justiça, sendo certo que o despacho que o admitiu, atento o disposto no artigo
76º, n.º 3 da LTC, não vincula o Tribunal Constitucional e resultou na decisão
sumária proferida pelo Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Relator no âmbito normativo
recortado do artigo 78º-A, n.º 1 do mesmo diploma, que em suma culminou com as
seguintes considerações:
-... Como o recorrente não suscitou a questão de constitucionalidade da norma do
artigo 170º, n.º 1, do Código Penal, perante o tribunal recorrido, e este,
consequentemente, não tratou da questão de constitucionalidade normativa
invocada pelo recorrente, não podem dar-se por verificados os requisitos para se
poder tomar conhecimento do presente recurso...
-…A suscitação da questão de constitucionalidade perante outro tribunal,
inferior na respectiva hierarquia da ordem dos tribunais, não importa a
satisfação material e formal do respectivo ónus, porquanto não coloca ao reexame
do tribunal ad quem, integrado em tal sistema de controlo difuso de
constitucionalidade, e de cuja decisão se pretende recorrer para o Tribunal
Constitucional, a mesma questão, de modo a que este a possa reapreciar.
-... A não recolocação, perante Supremo Tribunal de Justiça, da questão de
constitucionalidade posta perante outros tribunais da hierarquia da ordem dos
tribunais judiciais - no caso, conforme alega o recorrente, perante o Juiz de
Instrução e o Juiz de julgamento em 1ª instância - corresponde a um abandono do
conhecimento de tal questão.
- Assim sendo, o Tribunal Constitucional decidiu não tomar conhecimento do
objecto do recurso.
IV- Ora a ser considerada esta decisão, entende o arguido que
estão a ser violadas as suas garantias de defesa constitucionalmente consagradas
na nossa constituição, desde logo;
V- A inconstitucionalidade da norma em questão, não só foi
suscitada durante o processo, muito embora na sua fase inicial, como o tribunal
recorrido aplicou a norma em questão e as instâncias de recurso já se encontram
esgotadas, daí o recurso para o presente Tribunal;
VI- Além do mais, sendo o arguido obrigado a suscitar a
inconstitucionalidade da norma em questão em todas as instâncias de recurso, na
sua perspectiva, a sua estratégia de defesa, contrariamente ao que vem sendo
entendido, ficaria sim limitada, isto porque o que está em causa é a realização
da justiça material e não da justiça meramente formal;
VII- E por meras questões de forma secundárias não poderá o
presente recurso deixar de ser apreciado, sob pena de se estar a deixar a
essência valorizando-se o invólucro, o que cada vez é menos a razão da justiça.
VIII- A que acresce ainda, que o simples facto da questão da
inconstitucionalidade apenas ter sido suscitada na 1ª instância, que considerou
a norma constitucional e de não mais ter sido levantada em sede de recurso por
mera irregularidade formal, a não ser perante este Tribunal, não pode ser
considerado só por si como desinteresse e abandono da discussão desta questão
por parte do arguido que após as doutas decisões proferidas só agora se
apercebeu da importância e relevo da declaração de inconstitucionalidade do
Artigo 170º n.º 1 do Código Penal e entendeu fazer uso deste seu direito;
Em face do exposto, requer-se a V. Exª., nos termos do disposto no nº 5 do
artigo 78-A da LTC, que merecendo acolhimento a presente reclamação, decidam
ordenar o prosseguimento do recurso em questão e em consequência seja o arguido
aqui recorrente notificado para apresentar as suas alegações. »
4 – Notificado do teor da reclamação, o Representante do
Ministério Público junto deste Tribunal pugnou pelo seu indeferimento.
B – Fundamentação
5 – A argumentação expendida pelo reclamante em nada abala os
fundamentos da decisão reclamada, não se vislumbrando em que medida a exigência
constante do artigo 72.º, n.º 2, da LTC, atento o recorte do nosso sistema de
controlo da constitucionalidade, preclude “a realização da justiça material”.
Como é consabido, o acesso aos tribunais não dispensa, num
Estado de direito, a existência de um conjunto de normas adjectivas cujo
cumprimento se encontra orientado para se alcançar a justa realização concreta
do direito.
Por outro lado, ao afirmar que apenas têm legitimidade para
recorrer para o Tribunal Constitucional a “parte que haja suscitado a questão da
inconstitucionalidade (...) de modo processualmente adequado perante o tribunal
que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela
conhecer”, o artigo 72.º, n.º 2, da LTC não impõe aos recorrentes um ónus
susceptível de ser qualificado como desproporcionado, desrazoável ou arbitrário.
Nessa medida, não podia o reclamante ter-se por dispensado de
suscitar a questão de constitucionalidade de modo processualmente adequado
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida.
C – Decisão
6 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20
(vinte) UCs.
Lisboa, 20 de Setembro de 2006
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos