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Processo n.º 719/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal
Constitucional
1. A., cidadã estrangeira, nascida em Cabo-Verde, arguida no
processo principal por crime de tráfico de estupefacientes, reclamou, ao abrigo
do n.º 4 do artigo 76.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC) – a
reclamante, por evidente lapso ou desatenção ao regime especial instituído pelo
artigo 76.º da LTC, invocou o artigo 405.º do Código de Processo Penal – do
despacho de 22 de Junho de 2006 que lhe não admitiu o recurso que interpôs do
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 1 de Junho de 2006, que manteve a sua
condenação na pena de 4 anos de prisão e na pena acessória de expulsão e
interdição de entrada no território nacional pelo período de 5 anos.
O recurso foi interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC e não foi admitido com fundamento em que o acórdão recorrido
não aplicou norma anteriormente julgada inconstitucional, nomeadamente o artigo
34.º do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro.
A reclamante argumenta nos seguintes termos:
“(…)
7. No que concerne à pena acessória de expulsão, cumpre referir, com reporte ao
mencionado no Acórdão recorrido, que a mera existência de condenações penais não
determina a aplicação automática (ipso iure) da sobredita pena acessória.
8. Sucede que o Exmo. Conselheiro Relator entendeu não admitir o recurso
interposto para o Tribunal Constitucional, alegando que o Tribunal recorrido não
havia aplicado norma inconstitucional, nomeadamente o artigo 34.º do Decreto-Lei
n.º 430/83, de 13 de Dezembro, pelo que o recurso não é admissível.
9. Todavia, e s.m. e m.d.o., o recurso interposto punha em crise a interpretação
da mencionada disposição legal feita pelos Meritíssimos Juízes da 1ª Instância,
ao não fundamentarem convenientemente a decisão de expulsão da recorrente.
10. Não se põe em causa, em termos de constitucionalidade, que os portugueses
possam decretar a expulsão de um estrangeiro, como sanção acessória, na
sequência da aplicação de uma sanção penal de certa gravidade, como é o caso.
11. A questão suscitada tem que ver necessariamente em termos substanciais com a
interpretação dada pelos julgadores da 1ª instância ao artigo 34.º da
supracitada lei, que no entender da recorrente, aponta no sentido oposto ao da
interpretação fixada pelo Mais Alto Tribunal no Ac. 93-359-2, de 25 de Maio de
1993.
12. Por conseguinte, cumpre esclarecer que a recorrente não recorreu em virtude
de o Tribunal a quo ter aplicado norma inconstitucional, in casu, o artigo 34.º.
13. Recorreu isso sim da interpretação produzida do artigo 34.º não ter sido a
que melhor se coaduna ao espírito que resultou da decisão sobredita do TC.
14. Disse-se a respeito que a insuficiente fundamentação da decisão de expulsão
pareceu querer ‘ressuscitar’ uma interpretação contrária à letra e ao espírito
da Constituição da República Portuguesa, e bem assim, contrário à previsão
normativa consagrada actualmente no artigo 34.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93,
de 22 de Janeiro.”
O Exmo. Magistrado do Ministério Público respondeu nos termos
seguintes:
“A presente reclamação é manifestamente improcedente, apenas se podendo explicar
pelo evidente equívoco da reclamante acerca do fundamento jurídico da pena
acessória de expulsão que lhe foi aplicada e da natureza do recurso de
fiscalização concreta tipificado na alínea g do n.º 1 do art.º 70.º da Lei n.º
28/82.
Como decorre expressamente do acórdão que se pretendeu impugnar, tal pena
assentou normativamente na aplicação do disposto no art.º 101.º do DL 4/01, de
10 de Janeiro (diploma que alterou o DL n.º 244/98), sendo, pois, perfeitamente
descabido invocar o estatuído no art.º 34.º do DL n.º 430/83.
Acresce, de um ponto de vista substancial, que o STJ não realizou obviamente
qualquer interpretação normativa assente no carácter “automático” de tal pena
acessória, realizando uma autónoma ponderação devidamente justificada, das
circunstâncias do caso.”
2. Para apreciação das questões que importa resolver na
presente reclamação, relevam as ocorrências processuais seguintes:
a) A arguida, ora reclamante, foi condenada no 3.º Juízo
Criminal da Comarca de Cascais pela prática do crime de tráfico de
estupefacientes do artigo 21.º, n.º 1 do DL 15/93, de 22/1 na pena de 4 (quatro)
anos de prisão e na pena acessória de expulsão e interdição de entrada no
território nacional pelo período de 5 (cinco) anos.
b) Por acórdão de 1 de Junho de 2006, o Supremo Tribunal de
Justiça negou provimento a recurso interposto pela arguida com a seguinte
fundamentação:
“(…)
E quanto à pena acessória de expulsão do território nacional e de interdição de
entrada no nosso país, também nada há a objectar.
Com efeito, a recorrente taxa a decisão, neste capítulo, de infundamentada ou
escassamente fundamentada. Porém sem razão. Com efeito, a decisão recorrida
ponderou os respectivos pressupostos, embora ao mesmo tempo que com os da pena
principal. Mas resultam bem evidenciados os seguintes factores: o facto de ter
caducado, em Agosto de 2005, o visto de permanência da recorrente no nosso país
- facto que a recorrente não contesta - embora já tenham decorrido 6 anos que se
encontra em Portugal, para onde veio com o seu companheiro e deixando em Cabo
Verde, entregues aos cuidados de familiares, os dois filhos que tem desta união;
o facto de a recorrente ter deixado de viver com esse seu companheiro havia 3
anos à data dos factos dos autos, tendo passado a viver sozinha no Bairro das
Marianas, onde, por vezes, vendia bebidas e comidas de Cabo Verde; o facto de
ser uma pessoa «sem competências pessoais, analfabeta, sem suporte afectivo em
Portugal para além do tal companheiro», factos que, constando do referido
Relatório Social, para o qual explicitamente aponta a decisão recorrida, a
tornam muito vulnerável e exposta a «factores de risco elevados».
Acresce a gravidade dos factos praticados, que a decisão recorrida também
ponderou.
Ora, todos estes factores servem de fundamento a tal decisão, pelo que as
críticas tecidas a tal respeito não são pertinentes. E muito menos o são naquela
parte da motivação e respectivas conclusões em que se assaca à decisão recorrida
a ligação automática do efeito de expulsão à condenação por crime doloso com
pena superior a 3 anos de prisão.
De modo nenhum resulta da decisão recorrida um tal automatismo. Antes pelo
contrário: a referida pena acessória foi ponderada no contexto do crime e das
circunstâncias de ligação da recorrente ao país do ponto de vista económico,
social, cultural, afectivo, familiar e ainda administrativo, sucedendo que a
recorrente neste momento tem o seu visto de permanência no nosso país caducado.
Ora, de tudo isto resulta não só que a referida pena acessória foi fundamentada,
contextualizada e analisada sob o prisma da ratio legis que levou o legislador a
estabelecer a pena acessória, tudo dentro do condicionalismo do art. 101º do DL
4/2001, de 10 de Janeiro.
Acresce que não há razões, por tudo quanto se expôs, para revogar a pena
acessória.”
c) A arguida interpôs recurso ao abrigo da alínea g) do n.º 1
do artigo 70.º da LTC, por requerimento em que afirma o seguinte:
“(…)
No que concerne à pena acessória de expulsão, cumpre referir, com reporte ao
mencionado no Acórdão recorrido, que a mera existência de condenações penais não
determina a aplicação automática (ipso iure) da sobredita pena acessória.
Aliás, o entendimento que, ao que parece, esteve na base da decisão de expulsão,
mereceu já a veemente censura do Tribunal Constitucional, melhor expressa no Ac.
93-359-2 TC, de 25 de Maio de 1993, quando por via daquele se julgou
inconstitucional a norma constante do artigo 34º, nº 2 do Decreto-Lei nº 430/83,
de 13 de Dezembro, interpretada no sentido de que a condenação de um estrangeiro
pelo crime de tráfico, tem como efeito necessário a expulsão do País.
Aquele Tribunal Constitucional estribou a sua posição na estatuição consagrada
no nº 4 do artigo 30º da Constituição da República Portuguesa, onde se
estabelece que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer
direitos civis, profissionais ou políticos, abrangendo tanto os efeitos ligados
a certas penas como os ligados à condenação por certos crimes, “pretendendo-se
com tal preceito proibir que, em resultado de quaisquer condenações penais, se
produzisse ope legis a perda daqueles direitos”.
Como resultado daquela decisão constitucional veio a ser conferida, por via da
publicação do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, actualmente em vigor, uma
nova redacção ao artigo 34º, desta feita conforme com o Texto Constitucional, de
onde resulta que ao julgador assiste a faculdade de poder ordenar a expulsão do
País.
Tal significa, em abono do princípio do Estado de Direito democrático, e do
princípio vigente por via do artigo 15º, nº 1 da C.R.P., de igualdade de
tratamento, ou até por força do princípio político-criminal de luta contra o
efeito estigmatizante, dessocializador e criminógeno das penas que se apresenta
indiscutível que a nossa Constituição político-criminal através do artigo 30º,
nº 4 da C.R.P., não aceita que a condenação de alguém em pena superior a três
anos de prisão, implique sem mais (automaticamente, necessariamente) a sua
expulsão.
Com o devido respeito, e que aliás, é muito, a insuficiente fundamentação da
decisão de expulsão parece querer “ressuscitar” uma interpretação contrária à
letra e ao espírito da Constituição da República Portuguesa, e bem assim,
contrário à previsão normativa consagrada actualmente no artigo 34º, nº1 do
Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
Assim, as normas constitucionais que se consideram violadas são ainda as
vertidas nos nºs 2 e 5 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.”
c) Sobre este requerimento recaiu o despacho de 22 de Junho de
2006, do seguinte teor [despacho reclamado]:
“Não admito o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, porquanto este
Tribunal, ao contrário do alegado, não aplicou norma anteriormente julgada
inconstitucional, nomeadamente o art. 34º do DL 430/83, de 13 de Dezembro, pelo
que o recurso com tal fundamento não é admissível.
Notifique”
3. Ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC cabe
recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos demais tribunais que
apliquem norma já julgada inconstitucional (ou ilegal por violação de lei com
valor reforçado) pelo próprio Tribunal Constitucional. Esta abertura do recurso
perante decisões negativas de inconstitucionalidade, sem exigência de prévia
colocação da questão perante o próprio tribunal que proferiu a decisão
recorrida, é inspirada pelo objectivo de garantir a harmonia de julgados e a
autoridade do Tribunal Constitucional, ou seja, de maximizar a probabilidade de
que não subsistam decisões de outros tribunais que julguem questões de
constitucionalidade em sentido contrário a julgamentos de inconstitucionalidade
(decisões positivas de inconstitucionalidade) proferidos por este Tribunal
(cfr., entre outros, acórdão n.º 214/90, Diário da República, II Série, de 17 de
Novembro de 1990).
É requisito essencial do acto de interposição do recurso, além
da indicação da norma cuja apreciação de constitucionalidade se pretende, também
a indicação da decisão do Tribunal Constitucional que, com anterioridade, tenha
julgado inconstitucional a norma aplicada pela decisão recorrida (n.º 3 do
artigo 75.º-A da LTC). Não basta, para que possa aceder-se ao Tribunal
Constitucional ao abrigo deste fundamento tipificado de recurso, que se trate do
mesmo problema essencial de constitucionalidade ou, como diz a reclamante, que a
solução acolhida, porventura, não seja “a que melhor se coaduna ao espírito que
resultou da decisão [anterior] do TC”. É necessário que a norma submetida a
apreciação seja precisamente aquela que foi anteriormente julgada
inconstitucional e que essa norma tenha sido aplicada pela decisão recorrida.
Ora, é manifesto que o acórdão recorrido não fez aplicação da
norma que o acórdão-fundamento invocado julgou inconstitucional. Efectivamente,
no acórdão n.º 359/93 o Tribunal julgou inconstitucional a norma do n.º 2 do
artigo 34.º do Decreto‑Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, interpretada no
sentido de que a condenação de um estrangeiro pelo crime previsto no artigo
24º., nº. 1 [do mesmo Decreto-Lei], tem como efeito necessário a sua expulsão
do País. No caso, não só a condenação da recorrente ocorreu no domínio e por
crime previsto e punido pelo Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que
revogou aquele outro diploma legal (cfr. artigo 75.º do Decreto-Lei n.º 15/93),
como a pena de expulsão foi aplicada ao abrigo do artigo 101.º do Decreto-Lei
n.º 244/98, de 8 de Agosto, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 4/2001, de
10 de Janeiro (regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de
estrangeiros do território nacional), que regula em novos moldes a aplicação da
pena acessória de expulsão de estrangeiros em consequência da prática de crimes
dolosos. Portanto, o acórdão recorrido aplicou um regime jurídico formal e
materialmente distinto daquele que incluía a norma que foi julgada
inconstitucional pelo acórdão n.º 359/93, sendo absolutamente despropositado
invocar o estatuído no artigo 34.º do Decreto-Lei n.º 430/83.
Assim, bem se decidiu no despacho sob reclamação ao não admitir o recurso de
constitucionalidade. E isto sem necessidade de outras indagações, designadamente
quanto à definição do objecto do recurso no requerimento de interposição, uma
vez que, com o fundamento ao abrigo do qual foi interposto, só poderia versar
sobre norma que é indiscutível não ter sido aplicada pela decisão recorrida.
De todo o modo e sem prejuízo do que antecede e é decisivo, como salienta o
Exmo. Procurador-Geral Adjunto, nem sequer é exacto que o acórdão recorrido
tenha realizado ou acolhido qualquer interpretação normativa assente no carácter
automático da pena acessória, fazendo-a decorrer a expulsão e a interdição de
entrada no território nacional como efeito necessário da condenação pelo crime
de tráfico de estupefacientes. Pelo contrário, o acórdão recorrido expressou o
entendimento do regime legal que aplicou no sentido de que a imposição da pena
acessória exige uma autónoma ponderação das circunstâncias do caso, ponderação
esta que considerou efectuada e devidamente fundamentada pela sentença de 1ª
instância que confirmou.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Indeferir a reclamação, confirmando-se o despacho que não admitiu o recurso
de constitucionalidade;
b) Condenar a reclamante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte)
unidades de conta.
Lisboa, 10 de Agosto de 2006
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Rui Manuel Moura Ramos