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Processo nº 388/2006
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Tribunal da Relação de Lisboa, o arguido A. foi condenado pela prática de um
crime de falsificação de documento, por acórdão do Tribunal Criminal da Comarca
de Lisboa, de 2 de Julho de 2004.
O arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo o
seguinte:
1. O recorrente foi condenado pela prática de um crime de falsificação, p. no
artigo 256.°, n.° 1, als. a) e c), e n.° 3, do Código Penal, na pena de 200 dias
de muita à taxa diária de € 7 (sete euros).
2. Salvo o devido respeito, esteve mal o douto Acórdão recorrido ao condenar o
recorrente.
3. A fls. 628 e seguintes o arguido foi acusado por factos que indiciavam,
segundo o Ministério Público, a prática em concurso real de um crime de burla,
p. e p. pelos arts. 26.°, 217.°, n.° 1, e 218.°, n.° 2, al. a), e de um crime de
falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.°, n.° 1, als. a) e c), e n.°
3, do Código Penal, e ainda de um crime de fraude na obtenção de subsídio ou
subvenção, p. e p. pelos art. 36.°, n.° 1, als. a) e c), por referência aos n.°
2 e n.° 5, al. a), do Dec.-Lei n.° 28/84, de 20 de Janeiro.
4. O Meritíssimo Juiz de Instrução entendeu ser de alterar a qualificação
jurídica dos mesmos factos (cfr. douto Despacho de fls. 751 ss.), tendo
pronunciado o ora recorrente pela prática de um único crime de fraude na
obtenção de subsídio ou subvenção, p. e p. pelos art. 36.°, n.° 1, als. a) e c),
por referência aos n.° 2 e n.° 5, al. a), do Dec.-Lei n.° 28/84, de 20 de
Janeiro.
5. Finalmente, em sede de audiência de julgamento (cfr. fls. 984 ss.), o douto
Tribunal a quo proferiu o seguinte Despacho: «Os arguidos A. e B. encontram-se
pronunciados, em co-autoria, da prática de um crime de fraude na obtenção de
subsídio previsto e punido pelo art. 36.° do Dec.-Lei n.° 28/84, de 20 de
Janeiro. Face à prova produzida, designadamente as declarações dos arguidos, na
eventualidade de aos mesmos vir a ser imputada a prática de um crime de
falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.°, n.° 1, als. a) e c), e n.°
3, do Código Penal, ao abrigo do disposto no n.° 1 e n.° 3 do artigo 358.° do
mesmo Código, comunica-se neste momento aos arguidos a eventual alteração e se
assim o desejarem, concede-se prazo para preparação e apresentação da respectiva
defesa.»
6. Salvo melhor opinião, não podia o douto Tribunal a quo proceder a nova
alteração (a terceira, nos mesmos autos) da qualificação jurídica dos factos
imputados ao ora recorrente.
7. Ora, considerando que a lei prevê que o Meritíssimo Juiz de Instrução pode
alterar a qualificação jurídica dos factos vertida na acusação, e bem assim que
o Tribunal em fase de julgamento pode alterar a mesma qualificação relativamente
à pronúncia, mas não prevê expressamente essa dupla alteração dentro do mesmo
processo, teremos de – sempre à luz das mencionadas referências doutrinais –
enquadrar tal possibilidade.
8. Salvo melhor opinião, com o douto Despacho de pronúncia constituiu-se, no
tocante à qualificação jurídica dos factos, caso julgado formal (cfr. art. 672.°
CPC, aplicável ex vi o disposto no artigo 4.° do CPP) – ou pelo menos
irrevogabilidade (cfr. art. 666.° CPC, também aplicável ex vi o disposto no
artigo 4.° do CPP).
9. A alteração da qualificação jurídica operada no douto Despacho de pronúncia
ter-se-á tomado irrevogável (art. 666.° CPC), e constitui-se caso julgado formal
(art. 672.° CPC) sobre esta matéria.
10. Ao decidir em contrário, o douto Tribunal a quo violou, por erro de
interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 303.° e 358.°, n.° 1 e n.° 3,
ambos do CPP, e nos artigos 666.° e 672.°, ambos do CPC, aplicáveis ex vi o
disposto no artigo 4.° do CPP.
11. Deveria ter interpretado e aplicado correctamente o disposto nestes
preceitos, mantendo a qualificação jurídica dos factos imputados ao recorrente,
constante do douto Despacho de pronúncia – crime de fraude na obtenção de
subsídio ou subvenção, p. e p. pelos art. 36.°, n.° 1, als. a) e c), por
referência aos n.° 2 e n.° 5, al. a), do Dec.-Lei n.° 28/84, de 20 de Janeiro.
12. Pelo que deve ser substituída por outra que o faça, com os legais efeitos.
13. Aliás, os próprios artigos 303.° e 358.°, n.° 1 e n.° 3, ambos do CPP, e
nos artigos 666.° e 672.°, ambos do CPC, aplicáveis ex vi o disposto no artigo
4.° do CPP, no entendimento do Tribunal a quo de que é admissível alterar por
diversas vezes a qualificação jurídica dos factos no âmbito do mesmo processo,
seriam salvo melhor opinião inconstitucionais, por violação do disposto no
artigo 20.° da Constituição da República Portuguesa.
14. Ora, mantendo-se a imputação vertida no douto Despacho de pronúncia (o
mencionado crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção), deveria ser o
ora recorrente absolvido, por força das considerações expendidas no douto
Acórdão recorrido que por razões de economia processual se dão aqui por
reproduzidas, e que no essencial traduzem – e bem não se verificar a comissão do
crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção.
15. Por outro lado, e mesmo admitindo que seria possível operar a pretendida
alteração da qualificação jurídica dos factos (o que, sem conceder, só por mero
dever de patrocínio se admite), a verdade é que igualmente não se verifica a
prática de um crime de falsificação, p. no artigo 256.°, n.° 1, als. a) e c), e
n.° 3, do Código Penal.
16. Com efeito, o elemento subjectivo deste tipo de crime exige que o agente
actue com intenção de causar prejuízo a outrem, ou de obter para si ou para
terceiro benefício ilegítimo.
17. No tocante a esta última exigência, não se verifica benefício ilegítimo
porquanto o subsídio concedido pelo ICEP foi concedido em data anterior (cfr.
ponto 5 dos factos dados como provados) à da alegada utilização de documento
falso (cfr. ponto 15 dos factos dados como provados), e bem assim aquela
entidade decidiu não revogar o subsídio concedido, e declarou que “não se
considera prejudicado em termos patrimoniais, pelo que não pretende obter a
devolução da verba concedida ou qualquer outra indemnização” (cfr. ponto 26 dos
factos dados como provados).
18. O subsídio pago pelo ICEP era efectivamente devido à empresa de que o
recorrente é sócio-gerente.
19. Quanto à intenção de causar prejuízo a outrem, note-se que o efeito prático
de a certidão apresentada evidenciar a existência de dívidas à Segurança Social
seria o de ser retida a percentagem de 25% do subsídio em dívida – cfr. ponto 16
dos factos dados como provados.
20. Ora, ficou também provado que «face às dívidas à Segurança Social, a
Transgranitos celebrou acordo ao abrigo do chamado “Plano Mateus”, tendo
cumprido com pontualidade as suas obrigações. A sua situação contributiva
perante esta entidade encontra-se regularizada.» – ponto 25 dos factos dados
como provados.
21. A este respeito, o próprio ICEP referiu que «a Segurança Social não deixou
de receber os valores a que tinha direito, pois que, como se viu, a situação se
encontra regularizada (...)» e que «(...) os valores entregues ao abrigo do
contrato de concessão de apoios financeiros a que em assunto se alude foram
investidos de acordo com o previsto no mesmo contrato (...)», pelo que «(...)
Pode-se, pois, concluir que nenhuma das entidades acima referenciadas ficou
defraudada em qualquer valor pela não retenção da verba correspondente a 25% de
Esc. 18.961.661$00» (fls. 593).
22. O que é reafirmado a fls. 595 («o que havia a pagar pela empresa à
Segurança Social foi já pago e, ainda o que havia a investir no projecto foi
investido») e a fls. 597 («o facto de a Transgranitos ter regularizado
atempadamente a sua situação devedora perante a Segurança Social, bem como ter
aplicado os valores recebidos ao abrigo do contrato em epígrafe aos fins nele
previstos»).
23. Mais: o montante correspondente aos 25% de retenção da Segurança Social era
de Esc. 4.745.415$00 (cfr. ponto 16 dos factos dados como provados).
24. O Plano Mateus ao abrigo do qual a arguida Transgranitos regularizou as
suas dívidas previa o vencimento de juros a uma taxa de 10,25%, pelo que a
Segurança Social recebeu já não apenas o valor inicial em causa, como um
substancial valor de juros calculados a uma taxa (10,25%) que não lograria obter
na banca comercial ou em aplicações financeiras alternativas.
25. Estando a situação contributiva totalmente regularizada perante a Segurança
Social (ponto 26 dos factos dados como provados) não apenas não existe qualquer
prejuízo patrimonial para aquela entidade, e/ou benefício indevido para o ora
recorrente, como fica demonstrado que jamais foi intenção deste lesar
patrimonialmente a Segurança Social uma vez que toda a dívida veio a ser paga.
26. Acresce que se mostra incorrectamente julgado o ponto 16 dos factos dados
como provados, na parte em que concluiu que a adulteração da certidão “permitiu
que o incentivo fosse liquidado integralmente em 21 de Maio de 1996 pelo ICEP”,
uma vez que conforme exposto quer o ICEP por escrito (fls. 580 a fls. 597), quer
as testemunhas C. (fls. 960, estando as declarações gravadas na cassette 2, lado
A, rotações 2567 a 3395) e D. (fls. 982-983, estando as declarações gravadas na
cassette 1, lado A, rotações 3108, a lado B, rotações 2044), evidenciaram
peremptoriamente que o recebimento do subsídio nada tinha a ver com a existência
de dívidas à Segurança Social, e estas apenas determinavam a retenção de 25%.
27. Com base nos mencionados meios de prova, deve pois ser corrigido o ponto 16
dos factos dados como provados, com a correcção explicitada.
28. O douto Tribunal a quo violou assim, por erro de interpretação e aplicação,
o disposto no artigo 256.°, n.° 1, als. a) e c), e n.° 3, do Código Penal, ao
condenar o arguido pela prática de um crime de falsificação.
29. Deveria ter interpretado e aplicado correctamente tal preceito, absolvendo
o arguido.
30. Pelo que, conforme todo o exposto, deve ser substituído por outro que
absolva o arguido, com os legais efeitos.
31. Em sede de contestação, requereu o ora recorrente que fosse ordenado exame
comparativo de letra e assinatura do documento junto aos autos a fls. 319 (e
também a fls. 55), para determinar a identidade do respectivo subscritor, com
recolha de autógrafos ao próprio e ao arguido B..
32. Por douto Despacho datado de 5 de Junho de 2003, foi decidido: «Quanto ao
exame pericial, em sede de julgamento se tomará posição acerca da necessidade,
utilidade e/ou viabilidade material e temporal da mesma».
33. No entanto, nunca o Tribunal a quo se pronunciou sobre esta questão, nem em
sede de julgamento nem em qualquer outro momento nos autos.
34. Pelo que se verifica, salvo melhor opinião, violação dos direitos de defesa
do recorrente, a qual integra omissão de pronúncia e/ou nulidade insanável, a
qual deverá ser declarada com os legais efeitos.
35. Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deve
ser revogado o douto Acórdão recorrido, e ser o mesmo substituído por douto
Acórdão que absolva o recorrente com os legais efeitos, assim se fazendo a
habitual
JUSTIÇA
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 16 de Março de 2006, negou
provimento ao recurso. Quanto à questão da alteração da qualificação jurídica
dos factos, entendeu o Tribunal o seguinte:
Entende o recorrente, nos termos e com os fundamentos atrás referidos, que,
tendo o Meritíssimo Juiz de Instrução, quando da pronúncia, alterado a
qualificação jurídica dos factos vertida na acusação (alteração que a seu ver se
tornou irrevogável, constituindo-se caso julgado formal), o Tribunal a quo não
podia proceder a nova alteração da qualificação jurídica dos factos imputados.
Logo da própria letra da lei aplicável decorre que, contrariamente ao que
defende, a qualificação jurídica dos factos feita na pronúncia não faz caso
julgado formal nem é, de modo algum, irrevogável.
Assim, dispondo o art° 358° do C.P.P. no seu n° 1 que se, no decurso da
audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na
acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o
presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e
concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a
preparação da defesa, no seu n° 3 estabelece-se que o disposto no n° 1 é
correspondentemente aplicável quando o Tribunal alterar a qualificação jurídica
dos factos descritos na acusação ou na pronúncia – de tudo resultando
incontornável que a alteração da qualificação é admissível mesmo tendo havido
pronúncia.
Não havendo dúvida de que este preceito se aplica na fase de julgamento, nada na
sua letra ou razão de ser (e é patente que o que informa este e os demais
preceitos que estabelecem os limites e condições dos alterações do objecto do
processo é a salvaguarda dos direitos da defesa na medida em que dependa da sua
definição) ou no espírito do sistema afasta a possibilidade da respectiva
aplicação quando na pronúncia tenha havido, relativamente à considerada na
acusação, alteração da qualificação dos factos – esta por sua vez seguramente
autorizada pela disciplina processual, designadamente pelo art° 303° n° 1 do CP
que admite alteração não substancial dos factos (à qual o legislador equiparou,
como vimos, a alteração da qualificação jurídica dos factos na fase de
julgamento, por maioria de razão devendo ser a tal equiparada também em fase de
pronúncia).
Temos pois que nada obsta do ponto de vista legal (quer de preceito expresso,
como sejam os vindos de citar, quer da disciplina processual global no seu corpo
e espírito) a que concorram alterações da qualificação jurídica dos factos em
distintos momentos processuais em que a lei as autorize, concretamente, como foi
caso, em sede de decisão instrutória/pronúncia e em sede de julgamento,
cumpridas que sejam (como foram) as formalidades legais exigidas, mediante as
quais o legislador considerou ficarem salvaguardados os interesses que com as
normas disciplinadoras de tal alteração visou acautelar (e que essencialmente se
reconduzem a definição, também sob o enfoque do enquadramento jurídico, do
próprio objecto do processo, que, possibilitando a este a preparação da defesa e
em tais termos garantindo o contraditório relativamente a um certo ilícito em
concreto, constitui uma garantia de defesa do arguido).
Nenhum preceito legal maxime constitucional, foi assim violado com a alteração
ora operada, nos termos que pretende ou em quaisquer outros, não sendo
designadamente ofendidos em qualquer medida, os preceitos que consagram
garantias de defesa do arguido.
Também quanto a esta questão improcede pois a sua argumentação.
2. O arguido interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:
A., arguido nos autos à margem referenciados, interpõe recurso para o Tribunal
Constitucional do douto Acórdão proferido por esse Venerando Tribunal em 16 de
Março de 2006, nos termos do artigo 70.°, n.° 1, alínea b), da Lei n.° 28/82, de
15 de Novembro (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional), o que faz nos termos e
com os fundamentos seguintes:
O Requerente suscitou a questão da inconstitucionalidade dos artigos 303.° e
358.°, n.° 1 e 3, do Código de Processo Penal, e 666.° e 672.°, ambos do CPC,
aplicáveis ex vi o disposto no artigo 4.° do CPP, na motivação do recurso que
interpôs para o Tribunal da Relação de Lisboa;
As alegações de inconstitucionalidade constam quer da motivação, quer da
conclusão 13•a das alegações de recurso;
Assiste assim ao Recorrente o direito à interposição do presente recurso, para o
qual tem legitimidade nos termos do disposto nos artigos 71.º e 72.° da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro;
O Recorrente considera violado o artigo 20.° da Constituição da República
Portuguesa – cfr. artigo 75.°-A, n.° 2, da Lei n.° 28/ 82, de 15 de Novembro;
O Recorrente pretende ver declarada a inconstitucionalidade dos artigos 303.° e
358.°, n.° 1 e 3, do Código de Processo Penal, e 666.° e 672.°, ambos do CPC,
aplicáveis ex vi o disposto no artigo 4.° do CPP.
Termos em que requer a V. Ex.a que, indo este aos autos, considere interposto
recurso para o Tribunal Constitucional, do douto Acórdão desse Venerando
Tribunal, com o âmbito acima indicado.
Notificado para produzir alegações o recorrente alegou concluindo o seguinte:
A) Os artigos 303.° e 358.°, n.° 1 e n.° 3, ambos do CPP e os artigos 666.° e
672.°, ambos do CPC, aplicáveis ex vi o disposto no artigo 4.° do CPP, no
entendimento do Tribunal a quo de que é admissível alterar por diversas vezes a
qualificação jurídica dos factos no âmbito do mesmo processo, e em concreto
alterar – diga-se por iniciativa do Tribunal – a qualificação jurídica dos
factos no decurso da audiência de julgamento, com consequente aumento da pena em
que o arguido pode incorrer, são pelas razões já aduzidas inconstitucionais, por
violação do disposto nos artigos 20.° e 32.° ambos da Constituição da República
Portuguesa.
B) O direito ao principio do acusatório e contraditório em processo penal, bem
como, de acesso ao direito e tribunais para obtenção de uma decisão num prazo
razoável e mediante um processo equitativo, num estado de direito, não é
conciliável com a acumulação num Juiz de Direito das vestes de julgador e
acusador,
C) Ao decidir em contrário, o douto Tribunal a quo violou, por erro de
interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 303.° e 358.°, n.° 1 e n.° 3,
ambos do CPP, e nos artigos 666.° e 672.°, ambos do CPC, aplicáveis ex vi o
disposto no artigo 4.° do CPP, em manifesta oposição com os direitos
fundamentais consagrados nos artigos 20.° e 32.° da Constituição da República
Portuguesa.
Decidindo nestes termos, e nos mais que V. Exas. doutamente suprirão, deve o
presente recurso ter provimento, decidindo-se pela inconstitucionalidade dos
preceitos e da Lei supra referidos com os legais efeitos, assim se fazendo a
habitual JUSTIÇA!
O Ministério Público contra‑alegou, concluindo o seguinte:
1 – Não deverá conhecer-se do recurso quando o que se questiona é a própria
decisão recorrida e não normas jurídicas por si interpretadas e aplicadas, em
desconformidade com a Constituição.
2 – A não entender-se, assim, há que reconhecer que não é inconstitucional uma
interpretação normativa dos preceitos dos artigos 303° e 358°, n°s 1 e 3 do
Código de Processo Penal, segundo a qual pode ocorrer, no mesmo processo, em
sede de pronúncia e, após, no decurso da audiência de julgamento, uma alteração
da qualificação jurídica dos factos.
3 – Termos em que não deverá proceder o presente recurso.
O recorrente respondeu à questão prévia suscitada pelo Ministério Público,
pugnando a sua improcedência.
Cumpre apreciar.
II
Fundamentação
A)
Questão prévia
3. O Ministério Público sustenta que o recorrente apenas impugnou nos presentes
autos a decisão e não normas jurídicas, invocando o Acórdão do Tribunal
Constitucional onde os então recorrentes impugnaram a interpretação alegadamente
feita pelas instâncias dos próprios preceitos constitucionais.
Ora, nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o recorrente
esboçou, ainda que de modo não muito claro, uma questão de constitucionalidade
normativa. Com efeito, no ponto 13 das conclusões das alegações (transcrito
supra) são enunciados os elementos essenciais de uma questão de
constitucionalidade normativa, tendo o tribunal recorrido apreciado e decidido
substancialmente a questão.
Assim, tomar‑se‑á conhecimento da questão de constitucionalidade suscitada.
B)
Apreciação do objecto do recurso
5. O recorrente entende que os artigos 303º e 358º, nºs 1 e 3, do Código de
Processo Penal, e os artigos 66º e 672º do Código de Processo Civil, aplicados
por força do artigo 4º do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de
permitirem a alteração da qualificação jurídica de factos mais do que uma vez no
mesmo processo, violam os artigos 32º, nº 1, e 20º, nº 1, da Constituição.
Preliminarmente, sublinha‑se que o recorrente considera inconstitucional não o
regime legal de alteração da qualificação jurídica dos factos mas somente a
possibilidade de ocorrência de mais do que uma alteração dessa natureza no mesmo
processo. Por outro lado, realça‑se, igualmente, que foi sempre concedido ao
arguido prazo para preparar a respectiva defesa sempre que se procedeu à
alteração da qualificação jurídica dos factos.
O recorrente invoca caso julgado formal ocorrido com a prolação do despacho de
pronúncia quanto à qualificação jurídica dos factos.
Ora, o despacho de pronúncia traduz‑se na decisão de submeter o arguido a
julgamento.
Por força da estrutura acusatória do processo penal, tal decisão fixa o objecto
do processo, encontrando‑se o juiz de julgamento tematicamente vinculado na
apreciação da acusação (em sentido material).
Contudo, no momento da pronúncia, o julgamento ainda não foi realizado. O juiz
de julgamento tem poderes de investigação e tem naturalmente o poder de aplicar
o Direito.
O princípio da vinculação temática constitui uma garantia de defesa, na medida
em que impede alterações significativas do objecto de processo, alterações essas
que prejudicariam (poderiam até inviabilizar) a defesa. Porém, a dimensão do
objecto do processo cuja alteração se repercute irreparavelmente na estratégia
da defesa, e por isso só pode ser alterada em casos específicos, é a dimensão da
alteração dos factos suporte de uma qualificação jurídica. E é assim, já que a
alteração substancial de factos implicará, por parte da defesa, uma necessária
reorganização em matéria de prova.
Já a alteração da mera qualificação jurídica dos factos importa uma discussão
sobre o Direito aplicável, mas não tem a mesma repercussão na defesa que tem a
alteração substancial dos factos. Daí que a lei preveja para os casos de
alteração da qualificação jurídica (em qualquer fase) apenas a oportunidade de a
defesa se pronunciar, nos termos do contraditório (artigo 358º, nºs 1 e 3).
Regime que foi introduzido no Código de Processo Penal pela Lei nº 59/98, de 25
de Agosto, na sequência da jurisprudência do Tribunal Constitucional (Acórdão nº
22/96, D.R., II Série, de 17 de Maio de 1996). O regime do objecto do processo
deve ser interpretado de modo substancial em articulação com as garantias da
defesa, é certo, mas também em equilíbrio com os demais princípios do Processo
Penal, tais como os do jura novit cura, da verdade material e o imperativo da
correcta aplicação do Direito.
A alteração da qualificação jurídica dos factos durante o processo, ainda que
mais do que uma vez, não colide com a estrutura acusatória do Processo Penal nem
com as garantias da defesa. Na verdade, a investigação tem por objecto os
factos.
A qualificação jurídica depende da interpretação da lei em face do apuramento
dos factos investigados. O juiz de julgamento tem, naturalmente, o poder de
proceder à alteração da interpretação do Direito, salvaguardada que seja a
oportunidade do arguido poder considerar na sua defesa a qualificação jurídica
dos factos que lhe são imputados. O entendimento do recorrente retira os poderes
de investigação que, reconhecidamente, o sistema português confere ao juiz de
julgamento, dentro, naturalmente, do objecto definido pela acusação. Nem a fase
em que é feita a alteração da qualificação jurídica nem o facto de ser repetida
põem em causa a estrutura acusatória do Processo Penal.
A invocação da existência do caso julgado formal, numa lógica de Direito
Processual Civil, a propósito da prolação do despacho de pronúncia não procede,
dado que no Processo Penal, e em particular na matéria em causa nos presentes
autos, regem, como foi dito, o princípio acusatório, o princípio da vinculação
temática e o regime da articulação entre poderes de interpretação e poderes de
julgamento. Depois da instrução o processo segue para julgamento. No julgamento,
o juiz aprecia os factos constantes da pronúncia e faz a aplicação do Direito.
O recorrente sustenta ainda que no saneamento o juiz não pode proceder a uma
correcção da qualificação jurídica. Trata‑se, porém, de um momento diferente do
que aqui se analisa. Com efeito, o saneamento não se confunde com a audiência de
julgamento. E mesmo na fase de saneamento o recorrente acaba por admitir que a
correcção pode ter lugar, já que sustenta que a acusação deve ser devolvida para
correcção.
Na audiência de julgamento, tal solução não se justifica, não existindo qualquer
princípio constitucional que impeça a qualificação jurídica dos factos pelo
juiz, desde que seja realizada com respeito pelas garantias de defesa.
Não ocorre, portanto, a inconstitucionalidade sustentada pelo recorrente, pelo
que se negará provimento ao recurso.
III
Decisão
6. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Apreciar a questão de constitucionalidade suscitada;
b) Negar provimento ao recurso, confirmando consequentemente a decisão
recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 27 de Setembro de 2006
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos