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Processo n.º 503/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional:
A – Relatório
1 – O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional,
reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art. 78.º-A da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), da decisão do relator
que decidiu não conhecer do recurso interposto do acórdão da Secção de
Contencioso Administrativo daquele Supremo Tribunal, de 23 de Março de 2006 que
julgou extinta a instância do recurso jurisdicional para este Supremo Tribunal
por inutilidade superveniente da lide.
2 – A decisão sumária reclamada tem o seguinte teor:
«1 – A Magistrada do Ministério Público, junto do Supremo
Tribunal Administrativo, recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto nos art. 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República
Portuguesa (CRP), 70.º, n.º 1, alínea b), 71.º, n.º 1, e 72.º, n.º 1, alínea a)
da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do acórdão da
Secção de Contencioso Administrativo daquele Supremo Tribunal, de 23 de Março de
2006, pretendendo que o Tribunal Constitucional aprecie a “norma do art. 287.º,
alínea e), do CPC, numa interpretação que a vicia de inconstitucionalidade, por
violadora das normas dos art. 20.º, nºs 1 e 5, e do art. 268.º, n.º 4, da CRP,
conforme foi invocado pelo Ministério Público na sua intervenção de fls. 512 a
517” dos autos”.
2 – Tendo sido convidado pelo relator, no Tribunal
Constitucional, a definir a norma ou dimensão normativa, erigida pelo recorrente
a objecto do recurso, veio este a fazê-lo nos termos seguintes:
«O recurso, interposto através do requerimento de fls. 576, fundado na alínea b)
do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, tem como objecto a interpretação
normativa do artigo 287º, alínea e), do Código de Processo Civil, aplicável no
domínio do contencioso administrativo, segundo a qual fica irremediavelmente
precludido o conhecimento do recurso contencioso de anulação, interposto pelo
Ministério Público numa actividade de defesa da legalidade democrática, apenas
pelo facto de ter sido celebrado contrato administrativo entre o
Estado-Administração Central e as demais entidades interessadas, públicas e
privadas, mediante o qual se procurou resolver o diferendo com os titulares do
invocado direito à realização da operação urbanística fundada no acto impugnado,
sem, todavia, tal acordo operar a eliminação jurídica dos actos contenciosamente
recorridos – por tal via se vedando ao Ministério Público o acesso à justiça
administrativa, com vista à obtenção de uma decisão jurisdicional de mérito
definitiva sobre a ilegalidade do acto administrativo em causa.
A questão da inconstitucionalidade de tal interpretação normativa, violadora dos
princípios da legalidade administrativa (artigo 266°, nº 2 da Constituição da
República Portuguesa), do acesso à justiça e da tutela jurisdicional efectiva
(artigo 20º da Constituição da República Portuguesa) no âmbito da defesa
objectiva da legalidade democrática, constitucionalmente cometida ao Ministério
Público pelo artigo 219º, nº 1, da Constituição, foi suscitada, pelo Ministério
Público recorrente, através do parecer emitido a fls. 512/517 e reiterado a 546,
sendo tal interpretação normativa aplicada efectivamente pelo acórdão recorrido,
proferido a fls. 548 e seguintes».
3 – O recurso foi admitido pelo tribunal a quo. Todavia, essa
decisão não vincula o Tribunal Constitucional, como se prescreve no n.º 3 do
art. 76.º da LTC. Deste modo, porque se configura uma situação que se enquadra
na hipótese recortada no n.º 1 do art. 78.º-A da mesma LTC, passa a decidir-se
imediatamente.
4 – O objecto do recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da
Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, disposição esta que
se limita a reproduzir o comando constitucional, corporiza-se na questão de
(in)constitucionalidade da(s) norma(s) de que a decisão recorrida haja feito
efectiva aplicação ou tenha(m) constituído o fundamento normativo do aí
decidido.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de
constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e
incidental) do recurso de constitucionalidade, tal como o mesmo se encontra
desenhado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da
constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da
natureza da própria função jurisdicional constitucional (cf. Cardoso da Costa,
«A jurisdição constitucional em Portugal», in Estudos em homenagem ao Professor
Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, I,
1984, pp. 210 e ss., e, entre outros, os Acórdãos n.º 352/94, publicado no
Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994, n.º 560/94, publicado no
mesmo jornal oficial, de 10 de Janeiro de 1995 e, ainda na mesma linha de
pensamento, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República II Série, de
20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o
Acórdão n.º 192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de
2000).
Dentro desta perspectiva, importa, deste modo, notar que, sendo
o objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído
por normas jurídicas que violem preceitos ou princípios constitucionais, não
pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si
própria, mesmo quando ela faça aplicação directa de preceitos ou princípios
constitucionais, quer no que tange à correcção, no plano do direito
infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no
que importa ao modo como o critério normativo previamente determinado foi
aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (juízo subsuntivo).
Como se afirmou, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos
interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a
(in)constitucionalidade de normas, não sendo, deste modo, admissíveis os
recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo
espanhol, sindiquem sub species constitutionis a concreta aplicação do direito
efectuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao acto judicial de
“aplicação” a violação (directa) de parâmetros jurídico-constitucionais.
Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e
o mérito do julgamento efectuado in concreto pelo tribunal a quo – a intervenção
do Tribunal Constitucional não incide sobre a correcção jurídica do concreto
julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas
pela decisão recorrida.
Reflectindo sobre esta matéria, constata, porém, Carlos Lopes
do Rego («O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta de
constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal
Constitucional», in Jurisprudência Constitucional, 3, p. 8) que “É, aliás,
perceptível que, em numerosos casos – embora sob a capa formal da invocação da
inconstitucionalidade de certo preceito legal tal como foi aplicado pela decisão
recorrida – o que realmente se pretende controverter é a concreta e casuística
valoração pelo julgador das múltiplas e específicas circunstâncias do caso sub
judicio […]; a adequação e correcção do juízo de valoração das provas e de
fixação da matéria de facto provada na sentença (…) ou a estrita qualificação
jurídica dos factos relevantes para a aplicação do direito […]».
5 – E tal é, ao fim e ao cabo, a pretensão do recorrente. Em
rectas contas, o que este pretende ver sindicado é a correcção do juízo de
subsunção feito pela decisão recorrida das específicas circunstâncias factuais e
jurídicas que caracterizam o caso concreto – em cuja modelação o recorrente
releva o que considera corresponder ao conteúdo de determinado contrato
administrativo que foi celebrado entre os interessados e os efeitos que, em
certo âmbito jurídico, ele, segundo a sua óptica, não terá contemplado (“a
eliminação jurídica do acto impugnado”), – ao âmbito normativo recortado na
alínea e) do art. 287.º do Código de Processo Civil.
6 – Em ordem à melhor apreensão da bondade desta conclusão,
importa transcrever os fundamentos de direito em que se abonou o acórdão do
Supremo Tribunal Administrativo.
Discreteou-se, aí:
«II. O DIREITO.
1. O antecedente relato informa-nos que a Recorrida Particular solicitou à
Câmara Municipal de Sesimbra (doravante CMS) o licenciamento de uma operação de
loteamento e urbanização de um terreno de que se dizia proprietária na Aldeia do
Meco e que, tendo o mesmo sido tacitamente deferido, requereu a emissão do
respectivo alvará, mas sem êxito já que tal pedido foi indeferido pela
deliberação daquela Câmara de 11/08/75, a qual foi anulada pelo Acórdão do Pleno
deste STA, de 23/06/91, que a considerou ilegal por violar o “acto tácito de
deferimento do pedido de loteamento formulado pela ora Recorrente”.
Na sequência desta anulação, foi instaurada execução do identificado Acórdão
onde veio a ser decidido que a mesma devia consistir na “emissão do Alvará de
Loteamento Urbano para um conjunto turístico em Aldeia do Meco, requerido pela
recorrente “A. Ld.ª” e que havia sido indeferido pela deliberação de 11/8/75,
anulada pelo mesmo acórdão” e no “processamento subsequente do referido Alvará e
sua entrega, após assinado, autenticado e registado, à interessada atrás
identificada”
O que forçou o Sr. Presidente da CMS a emitir, em 13/10/99, o Alvará de
Loteamento nº 5/99 o qual foi ratificado por deliberação dessa autarquia de
27/10/99.
Ora é contra este acto de emissão de alvará e contra a deliberação que o
ratificou que a Digna Magistrada do M.P., junto do TAC de Lisboa, intentou este
recurso contencioso pedindo a sua anulação alegando que os mesmos eram nulos e
de nenhum efeito por violarem a legislação nacional e comunitária que protege o
direito a um ambiente ecologicamente equilibrado e os instrumentos de
ordenamento do território.
Recurso que foi rejeitado com fundamento na irrecorribilidade dos actos
impugnados.
Para assim decidir o Sr. Juiz a quo afirmou que aqueles actos constituíam “mera
execução do Acórdão do STA de 18/06/98, o qual negou provimento ao recurso
interposto da sentença deste TACL, de 28/12/93, onde se especificaram os actos e
operações em que devia consistir a execução do Acórdão do Pleno da 1ª Secção do
STA, de 23/06/91, não possuindo, por isso, eficácia lesiva própria, donde, e em
última análise, consistiria num acto a todos os títulos irrecorrível.”.
Acrescia que à data em que foi proferido o Acórdão de 18/06/98 a área onde a
referenciada operação urbanística iria ser levada a cabo tinha já sido objecto
dos instrumentos legais invocados pelo M.P. – designadamente já tinham sido
publicados os diplomas que criavam a RAN e a REN – e que, sendo assim, e sendo
que nenhum vício tinha sido imputado aquele Aresto, os actos de execução ora
impugnados eram insusceptíveis de sindicância a coberto do disposto no nº 4 do
art. 151º do CPA. Com efeito, “para que um acto de execução seja susceptível de
impugnação é necessário que sejam alegadas ilegalidades próprias do acto de
operação de execução, não relevando as ilegalidades já contidas no acto
exequendo”, sendo certo que, in casu, essas ilegalidades não existiam na medida
em que os actos impugnados se limitaram a “dar cumprimento à decisão judicial,
transitada em julgado, em sede de execução de sentença, e após determinação dos
actos a praticar pela autoridade executada.”
Acrescentou, ainda, que o articulado superveniente apresentado pelo M.P. – onde
se alegava que uma parcela do terreno abrangida pelo Alvará 5/99 não pertencia,
nem nunca pertencera, à Recorrida Particular e que tal determinava a nulidade
daquele Alvará — era irrelevante uma vez que, a existirem, os vícios ora
invocados eram contemporâneos do acto exequendo e não constituíam vícios
próprios dos actos impugnados. Além disso, e a ser verdadeira a alegação do
M.P., o terceiro afectado podia recorrer aos meios legais ao seu dispor para
defender os seus direitos, fosse para defesa da posse fosse para defesa da
propriedade.
A Ilustre Magistrada do M. P. não aceita este julgamento pelas razões sumariadas
nas conclusões deste recurso jurisdicional.
2. Posteriormente à interposição deste agravo a CMS juntou aos autos o Acordo
celebrado entre ela, o Estado, a Recorrida Particular e a sociedade B., S.A.,
nos termos do qual o Estado e a CMS obrigaram-se a “atribuir à sociedade A.,
noutro local, direitos de urbanização e edificação equivalentes em área,
localização e valor económico aos titulados pelo referido alvará” e a praticar
todos os actos e medidas necessárias para que a Recorrida Particular pudesse
“legalmente transferir os direitos de urbanização e de edificação titulados pelo
alvará de loteamento 5/99 para terrenos de que a sociedade B.. é proprietária…”
e a A., por seu turno, obrigou-se a “não realizar a operação urbanística
prevista e titulada pelo Alvará 5/99, bem como, na data da emissão do alvará a
que se refere o número seguinte, a entregar para afectação ao domínio público do
Estado, libertos de ónus, encargos ou responsabilidades, os terrenos abrangidos
por aquele alvará, com excepção dos que têm a propriedade registada a favor do
Instituto da Conservação da Natureza.” – vd. suas cláusulas 2ª, 3ª e 4ª.
O Conselho Consultivo da PGR, chamado a pronunciar-se sobre a legalidade desse
Acordo, emitiu Parecer onde concluiu que ele tinha a natureza jurídica de
contrato administrativo com cláusulas que podiam figurar num contrato de direito
privado e outras que se poderiam integrar num acto administrativo, que a
Administração, salvas as limitações decorrentes da lei ou da natureza das
relações a estabelecer e desde que operasse em espaços com poderes
discricionários, podia usar o contrato administrativo tanto para produzir um
acto administrativo como para se comprometer a praticar acto administrativo de
determinado conteúdo e, portanto, nestes aspectos não lhe colocava objecções.
Todavia, considerou ilegal, por falta de suporte normativo, a transferência dos
direitos de urbanização e de edificação previstos no alvará 5/99 para outro
local e a exclusão do volume de construção que o plano de pormenor a elaborar
para a Mata de Sesimbra viesse a acolher para assegurar a transferência dos
direitos de urbanização e construção titulados por aquele alvará.
Rematou afirmando que “não obstante os vícios assinalados... nada impede a
manutenção da sua parte não viciada, designadamente a obrigação de reconhecer em
terrenos localizados na Mata de Sesimbra ou noutro local, direitos de
urbanização e de edificação equivalentes em área, localização e valor económico
os titulados pelo alvará de loteamento 5/99”.
Na sequência desse Parecer, e com o propósito de corrigir as irregularidades que
nele lhe foram apontadas, foi celebrado um Adicional ao citado Acordo onde as
partes referiram que “ao adoptarem a expressão «transferir os direitos de
urbanização e de edificação titulados pelo Alvará de Loteamento nº 5/99»…
fizeram-no, não com o sentido da transferência se processar de um para outro
terreno, em simétrica deslocalização, mas sim, imbuídas do espírito ínsito nas
demais Cláusulas… o sentido de viabilizar uma solução alternativa à titulada por
aquele alvará de Loteamento, equivalente em área, localização e valor económico,
seja em que terrenos for, designadamente em terrenos da Mata de Sesimbra” e
eliminaram os nº 2 das cláusulas quinta e sétima daquele Acordo.
A CMS entendeu que a celebração daquele Acordo e respectivo Adicional deram
resposta às ilegalidades apontadas pelo M.P. neste recurso contencioso e, porque
assim, requereu a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
A Ex.ma Sra. Procuradora Geral Adjunta não compartilha desse entendimento, daí
que se tenha oposto ao deferimento daquela pretensão, e justificou o
prosseguimento dos autos dizendo que os citados Instrumentos não operavam “a
eliminação jurídica dos actos contenciosamente recorridos” e que os mesmos
assentavam “no pressuposto de que o alvará aqui em causa é válido e que tal
alvará titula legalmente o direito de proceder às operações urbanísticas a que
se reporta.” E, sendo assim, e sendo que a extinção da instância com fundamento
na al. e) do art. 287º do CPC só podia ter lugar quando a lide fosse
absolutamente inútil, o que não era o caso, requereu que se conhecesse do mérito
da causa.
A primeira questão a resolver é, pois, como se vê, a de saber se se justifica a
extinção da instância com fundamento na inutilidade superveniente da lide. Só
depois, na improcedência desta, é tempo de conhecer do mérito.
3. O recurso contencioso é, como se sabe, no regime instituído pela LPTA, o meio
próprio de impugnação da ilegalidade dos actos administrativos pelo que, em
princípio, não se pode considerar inútil a prossecução de um processo cuja
finalidade é, justamente, o apuramento dessa ilegalidade e a consequente remoção
da ordem jurídica dos actos reputados de ilegais. O que não significa que todos
os recursos tenham de terminar por uma decisão de mérito sobre a legalidade dos
actos impugnados, uma vez que a lei prevê a possibilidade da instância se
extinguir sem que essa decisão seja proferida. Tal acontecerá, por ex., quando o
efeito útil da lide tenha sido alcançado e, consequentemente, o seu
prosseguimento se revele de todo inútil. – al. e) do art. 287º do CPC.
Questiona-se, por vezes, quais as circunstâncias que justificam um julgamento
dessa natureza, matéria em que este Tribunal tem repetido que a lide só deve
prosseguir quando dela possam decorrer efeitos úteis, isto é, quando a pronúncia
sobre a legalidade do acto impugnado possa ser, mediata ou imediatamente,
operante. A utilidade da lide está, assim, directamente relacionada com o grau
de satisfação do interesse subjacente à pretensão anulatória, o que significa
que a utilidade do conhecimento do mérito da causa não se pode quedar numa mera
pronúncia académica relativa à legalidade, ou ilegalidade, do acto impugnado
destituída de efeitos práticos. A declaração de invalidade e a consequente
anulação do acto recorrido tem de ter, assim, utilidade concreta a qual, por
regra, está relacionada com supressão dos efeitos dos seus efeitos jurídicos.
“A extinção da instância por inutilidade da lide só deve ser declarada desde que
se conclua, com a necessária segurança, que o provimento do recurso em nada pode
beneficiar o Recorrente, não o colocando, de todo o modo, numa situação
vantajosa “ – Ac. de 18/1/01, (rec. nº 46.727), com sublinhados nossos. Sendo
que “na ponderação da utilidade do recurso contencioso há que partir da
pretensão subjacente do recorrente, que é o de afastar a lesão de que foi
objecto o seu direito ou interesse legítimo pela prática do acto impugnado.”-
Acórdão do Pleno 25/3/03, rec. 46.580
E, porque assim, e porque resulta da Reforma do CPC levada a cabo pelo DL
329/95, de 12/12, “o princípio da prevalência do fundo sobre a forma… a extinção
da instância… nos casos de impossibilidade ou inutilidade da lide, deve ser
vista à luz daquele princípio, pelo que, sempre que possível a apreciação do
mérito da pretensão deduzida perante o Tribunal deve prevalecer sobre uma
“composição” do litígio que não aprecie a pretensão material deduzida.” - Vd.
Acórdão de 19/10/2000, rec. 46.306, com sublinhados nossos[1]
3. 1. Analisando o caso sub judicio verificamos que existindo conflito entre a
CMS, a Recorrida Particular e o M.P. acerca da possibilidade de concretização
dos direitos consagrados no Alvará de Loteamento nº 5/99 – e daí a interposição
deste recurso anulatório – aquelas duas entidades, a que se juntaram o Estado e
uma sociedade de investimento imobiliário, decidiram celebrar um Acordo tendo em
vista a sanação das ilegalidades apontadas àquele instrumento de gestão
territorial. Nele a Recorrida Particular renunciou aos direitos decorrentes da
titularidade daquele alvará, obrigando-se o Estado e aquela Câmara, em
contrapartida, a praticar todos os actos e medidas necessárias à concretização
legal daquela transferência de direitos.
E acordaram, ainda, que se o plano de pormenor para o novo local, necessário à
efectivação daquela transferência, não estivesse em vigor dentro do prazo
fixado, “por motivos imputáveis ao Estado ou ao Município, ou se o mesmo não
respeitar alguma das condições previstas no presente acordo, a sociedade A. tem,
sem prejuízo de outros direitos que lhe assistam, o direito de resolver o
presente acordo e de exigir uma indemnização pelos prejuízos causados pelo
atraso na resolução do litígio.” – ponto 2 da cláusula 9ª.
O que fica dito evidencia que a renúncia da Recorrida Particular aos direitos
titulados pelo citado Alvará foi uma renúncia definitiva, não tendo sido fixada
qualquer condição que permitisse recolocá-lo em vigor. Ao invés, de forma muito
clara, as partes convencionaram que na hipótese de incumprimento por parte da
Administração, a Recorrida Particular teria direito a rescindir o contrato e a
receber uma indemnização pelos prejuízos causados pelo atraso na resolução do
litígio, embora, reconhece-se, “sem prejuízo de outros direitos que lhe
assistam”. Só que, nesses outros direitos, não está seguramente, não pode estar,
a possibilidade de fazer reviver os direitos construtivos resultantes do
referido alvará nº 5/99. Por duas razões. Em primeiro lugar, porque a renúncia
foi produzida de forma incondicional, cessando nesse momento todos os efeitos
jurídicos favoráveis que dele resultavam e os correspondentes direitos que lhe
conferia. Em segundo lugar, apresentando-se como uma razão essencial, se essa
tivesse sido a vontade efectiva da Recorrida sociedade A., não teria deixado de
o dizer objectiva e claramente, exigindo que ficasse a constar expressamente que
o não cumprimento do acordado por parte da Administração reporia em vigor o
aludido alvará. Interpretando o ponto 2 da cláusula 9 do contrato em apreço, não
pode concluir-se de outro modo. Com efeito, sendo essa a sua vontade, não faria
qualquer sentido que, a acrescer à indemnização, remetesse para uma fórmula
imprecisa e indefinida de “outros direitos que lhe assistam”, deixando no ar que
não sabia quais eram – a própria forma verbal aponta para “hipotéticos” – quando
tinha logo ali aqueles muito reais, claros e precisos – que na sua opinião,
anteriormente, até já estavam integrados na sua esfera jurídica – e que eram os
que decorriam do alvará. Estamos, portanto, perante um caso típico de
inutilidade da lide, por não se retirar dela qualquer efeito útil para os
interesses da parte. Finalmente, esta sociedade, tendo sido notificada para se
pronunciar sobre a invocada inutilidade da lide suscitada pela CMS nada veio
dizer, o que deixa antever, pelo menos, que se não oporia à extinção da
instância.
Procede, assim, a referida questão.
Face ao exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal em julgar extinta a
instância por inutilidade superveniente da lide (art. 287º, e) do CPC, ex vi
art. 1 da LPTA).
Sem custas.».
7 – Como resulta do relatado, a questão que o acórdão recorrido
resolveu – e no sentido afirmativo – foi a de saber se o conteúdo jurídico do
estipulado no contrato administrativo celebrado entre os interessados [Estado,
Câmara Municipal de Sesimbra, recorrida particular (A., S.A.) e a sociedade B.,
S.A.], conteúdo esse apurado em face da estipulação originária e da constante de
adicional, tornava supervenientemente inútil o conhecimento da “lide” ou seja,
do objecto do recurso jurisdicional, então em apreciação.
Recorde-se que o Ministério Público contestava, em via de
recurso para o STA, a correcção da sentença de 1.ª instância, que julgara que os
actos de emissão do Alvará de Loteamento Urbano n.º 5/99, emitido pelo
Presidente da Câmara Municipal de Sesimbra, e a deliberação, de 27 de Outubro de
1999, dessa mesma autarquia, que ratificara a emissão do mesmo alvará, eram
actos contenciosamente irrecorríveis, por constituírem “mera execução do Acórdão
do STA de 18/06/98, o qual negou provimento ao recurso interposto da sentença
deste TACL, de 28/12/93, onde se especificaram os actos e operações em que devia
consistir a execução do Acórdão do Pleno da 1.ª Secção do STA, de 23/06/91”,
mesmo entrando em linha de conta com o alegado supervenientemente pelo M.º P.º
(de que “uma parcela de terreno abrangida pelo Alvará n.º 5/99 não pertencia,
nem nunca pertencera, à Recorrida Particular e que tal determinava a nulidade do
alvará”), por os vícios então alegados, a existirem, serem “contemporâneos do
acto exequendo e não constituíam vícios próprios dos actos impugnados”.
E refutava a correcção de tal decisão jurisdicional, em
síntese, com o argumento de que, embora não em vigor à data da prolação do acto
administrativo exequendo judicialmente, as proibições decorrentes da Lei de
Bases do Ambiente e dos diplomas que criaram a RAN e a REN abrangiam o espaço
territorial urbanizado e feriam de nulidade os actos de execução em causa
(emissão do Alvará n.º 5/99 e deliberação municipal que a ratificou),
constituindo seus vícios próprios, arguíveis na execução, e, ainda, com o
fundamento de que o acto de emissão do alvará estava inquinado da ilegalidade,
por o seu requerente não haver feito prova de que a gestão de negócios, invocada
para requerer o loteamento, e na sequência de cujo pedido foi praticado o acto
exequendo, fora ratificada por quem tinha legitimidade ou que havia adquirido a
propriedade do prédio, donde resultaria que o acto exequendo, conquanto válido,
seria, todavia, ineficaz e que esta ineficácia impediria a concretização
jurídico-prática dos efeitos jurídicos constituídos na ordem jurídica por aquele
acto exequendo, nestes compreendidos a aptitude de poder ser titulado mediante
alvará de loteamento.
Para resolver a questão da inutilidade do conhecimento do
objecto do recurso jurisdicional, o acórdão do STA, começou por delimitar o
significado normativo do conceito de “inutilidade superveniente” que o artigo
287.º, alínea e) assume como causa de extinção da instância.
Depois de começar por afirmar que “o recurso contencioso é (…)
o meio próprio de impugnação da ilegalidade dos actos administrativos, pelo que,
em princípio, não se pode considerar inútil a prossecução de um processo [de
recurso contencioso] cuja finalidade é, justamente, o apuramento dessa
ilegalidade e a consequente remoção da ordem jurídica dos actos reputados
ilegais”, o acórdão do STA regista que nem todos os recursos “tenham de terminar
por uma decisão de mérito sobre a legalidade dos actos impugnados, uma vez que a
lei prevê a possibilidade da instância se extinguir sem que essa decisão seja
proferida” (fls. 560/561).
E continuando a indagar em que circunstâncias é que a instância
deve prosseguir, o mesmo acórdão refere que o “Tribunal tem repetido que a lide
só deve prosseguir quando dela possam decorrer efeitos úteis, isto é, quando a
pronúncia sobre a legalidade do acto impugnado possa ser, mediata ou
imediatamente, operante”.
E precisando melhor o seu entendimento, esclarece o mesmo
acórdão que “a declaração de invalidade e a consequente anulação do acto
recorrido tem de ter, assim, utilidade concreta, a qual, por regra, está
relacionada com a supressão dos efeitos dos seus efeitos jurídicos” e que “a
extinção da instância por inutilidade da lide só deve ser declarada desde que se
conclua, com a necessária segurança, que o provimento do recurso em nada pode
beneficiar o recorrente, não o colocando, de todo o modo, numa situação
vantajosa…”, “sendo que na ponderação da utilidade do recurso contencioso há que
partir da pretensão subjacente do recorrente, que é o de afastar a lesão de que
foi objecto o seu direito ou interesse legítimo pela prática do acto impugnado”.
Ora, antes de mais, deve anotar-se que não cabe ao Tribunal
Constitucional aferir da bondade, no plano do direito ordinário, da
determinação, em face das pertinentes regras de hermenêutica jurídica, do
sentido a que o tribunal recorrido aportou relativamente à norma
constitucionalmente impugnada – o art. 287.º, alínea e), do CPC.
O Tribunal Constitucional não pode conhecer da questão se esse
é o melhor direito, à luz do direito infraconstitucional, mas apenas se o
direito, assim definido, é constitucionalmente inválido, por ferir normas ou
princípios constitucionais.
Passando à determinação do conteúdo do contrato administrativo,
que fora alegado pela recorrida Câmara Municipal de Sesimbra como fundamento da
inutilidade superveniente da instância, em face do estipulado pelos interessados
no referido contrato administrativo – julgamento este, cuja bondade, quer
envolva a resposta a questões de facto, quer contenda com a solução de questões
de direito infraconstitucional, escapa à possibilidade de controlo do Tribunal
Constitucional, pelas razões já acima aduzidas –, o acórdão recorrido concluiu
que:
- “a Recorrida Particular renunciou aos direitos decorrentes da
titularidade daquele alvará, obrigando-se o Estado e aquela Câmara, em
contrapartida, a praticar os actos e medidas necessárias à concretização legal
daquela transferência de direitos”;
- nesse contrato «acordaram, ainda, se o plano de pormenor para
o novo local, necessário à efectivação daquela transferência, não estivesse em
vigor dentro do prazo fixado, “por motivos imputáveis ao Estado ou ao Município,
ou se o mesmo não respeitar alguma das condições previstas no presente acordo, a
sociedade A. tem, sem prejuízo de outros direitos que lhe assistam, o direito de
resolver o presente acordo e de exigir uma indemnização pelos prejuízos causados
pelo atraso na resolução do litígio”»;
- «a renúncia da Recorrida Particular aos direitos titulados
pelo citado Alvará foi uma renúncia definitiva, não tendo sido fixada qualquer
condição que permitisse recolocá-lo em vigor. Ao invés, de forma muito clara, as
partes convencionaram que na hipótese de incumprimento por parte da
Administração, a Recorrida Particular teria direito a rescindir o contrato e a
receber uma indemnização pelos prejuízos causados pelo atraso na resolução do
litígio, embora, reconhece-se, “sem prejuízo de outros direitos que lhe
assistam”. Só que, nesses outros direitos, não está seguramente, não pode estar,
a possibilidade de fazer reviver os direitos construtivos resultantes do
referido Alvará n.º 5/99».
E de seguida, o acórdão aduz os fundamentos com base nos quais
acaba por chegar à conclusão de que “estamos, portanto, perante um caso típico
de inutilidade da lide, por não se retirar dela qualquer efeito útil para os
interesses da parte”, discorrendo do seguinte jeito, reproduzindo o que já acima
se transcreveu:
«Por duas razões. Em primeiro lugar, porque a renúncia foi produzida de forma
incondicional, cessando nesse momento todos os efeitos jurídicos favoráveis que
dele resultavam e os correspondentes direitos que lhe conferia. Em segundo
lugar, apresentando-se como uma razão essencial, se essa tivesse sido a vontade
efectiva da Recorrida sociedade A., não teria deixado de o dizer objectiva e
claramente, exigindo que ficasse a constar expressamente que o não cumprimento
do acordado por parte da Administração reporia em vigor o aludido alvará.
Interpretando o ponto 2 da cláusula 9 do contrato em apreço, não pode
concluir-se de outro modo. Com efeito, sendo essa a sua vontade, não faria
qualquer sentido que, a acrescer à indemnização, remetesse para uma fórmula
imprecisa e indefinida de “outros direitos que lhe assistam”, deixando no ar que
não sabia quais eram – a própria forma verbal aponta para “hipotéticos” – quando
tinha logo ali aqueles muito reais, claros e precisos – que na sua opinião,
anteriormente, até já estavam integrados na sua esfera jurídica – e que.eram os
que decorriam do alvará».
No acórdão recorrido foi, pois, firmado o entendimento de que o
contrato administrativo celebrado entre o Estado, a Câmara Municipal de
Sesimbra, a Recorrida Particular (A., S.A.) e a sociedade B., S.A. resolveu
completamente o diferendo com os titulares do direito à realização da operação
urbanística que fora titulada pelo Alvará n.º 5/99, ratificado pela mencionada
deliberação municipal, e que essa resolução importa a extinção de “todos os
direitos favoráveis que dele [alvará] resultavam e os correspondentes direitos
que lhe conferia”.
Ora, é a leitura destes efeitos jurídicos que o acórdão
recorrido infere do estipulado no contrato administrativo (constante do acordo
originário e do adicional) que o recorrente controverte ou não aceita,
construindo a partir dessa sua diferente leitura o critério normativo ou
dimensão normativa do art. 287.º, alínea e), do CPC, cuja conformidade com a Lei
fundamental quer que o Tribunal Constitucional aprecie.
Enquanto o acórdão recorrido considera que o contrato
administrativo extinguiu, definitivamente, todos os direitos de urbanização que
haviam sido constituídos em favor dos interessados particulares e que eram
titulados pelo Alvará n.º 5/99 ou seja, que se haviam extinguido, de vez, os
direitos constituídos na ordem jurídica pelos actos impugnados, o recorrente,
com vista a definir a dimensão normativa da referida alínea e) do art. 287.º do
CPC, pretendida sindicar constitucionalmente, parte da argumentação de que esse
contrato “procurou resolver o diferendo com os titulares do invocado direito à
realização da operação urbanística fundada no acto impugnado, sem todavia, tal
acordo operar a eliminação jurídica dos actos contenciosamente recorridos”.
Neste ponto, o recorrente ter-se-á iluminado na posição tomada
no voto de vencido, aposto ao acórdão recorrido.
Na verdade, defendendo, embora, a improcedência, de meritis,
dos fundamentos do recurso interposto pelo Ministério e o seu consequente não
provimento, o voto de vencido louva-se num diferente julgamento relativamente às
estipulações constantes do contrato administrativo, sustentando que a renúncia
aos direitos titulados pelo alvará seria uma “renúncia condicional”, podendo
significar, em caso de incumprimento das obrigações do Estado ou da Câmara
Municipal de Sesimbra “a reemergência dos direitos titulados pelo aludido
alvará, e, consequentemente, que a pretensão formulada no recurso contencioso
poderia readquirir toda a sua vitalidade”.
Mas sendo assim, tem de concluir-se que o recorrente se
apresenta a questionar a correcção do julgamento efectuado pelo tribunal a quo
quanto aos efeitos jurídicos que constituem o conteúdo da estipulação levada a
cabo através do contrato administrativo celebrado entre os referidos sujeitos ou
seja, concluindo, que o que o recorrente controverte é a decisão judicial em si
própria.
Todavia, como já se disse, não cabe nos poderes do Tribunal
Constitucional aferir da bondade dessa solução jurídica, donde não poder tomar
conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade.
Mas, mesmo que se admita que o recorrente pretende questionar a
constitucionalidade de uma norma jurídica, ainda assim não poderá ser diversa a
conclusão a tirar quanto ao não conhecimento do recurso de constitucionalidade.
Em tal hipótese, impõe-se constatar que a norma pretendida
sindicar constitucionalmente não constituiu a efectiva ratio decidendi do
acórdão recorrido, sendo, antes, outra a norma que foi aplicada como fundamento
normativo da decisão.
Na verdade, ao invés do alegado, o art. 287.º, alínea e), do
CPC não foi aplicado na interpretação, “segundo a qual fica irremediavelmente
precludido o conhecimento do recurso contencioso de anulação, interposto pelo
Ministério Público numa actividade de defesa da legalidade democrática, apenas
pelo facto de ter sido celebrado contrato administrativo entre o
Estado-Administração Central e as demais entidades interessadas, públicas e
privadas, mediante o qual se procurou resolver o diferendo com os titulares do
invocado direito à realização da operação urbanística fundada no acto impugnado,
sem todavia, tal acordo operar a eliminação jurídica dos actos contenciosamente
recorridos – por tal via se vedando ao Ministério Público o acesso à justiça
administrativa, com vista à obtenção de uma decisão jurisdicional de mérito
definitiva sobre a ilegalidade do acto administrativo em causa”, mas antes na
interpretação, segundo a qual é supervenientemente inútil o conhecimento do
recurso contencioso de anulação, interposto pelo Ministério Público numa
actividade de defesa da legalidade democrática, numa situação em que o concreto
diferendo relativo aos direitos urbanísticos constituídos em favor dos
particulares e titulados pelo alvará, cuja legalidade se impugna, ficou
definitivamente resolvido através da extinção, na ordem jurídica, de tais
direitos mediante renúncia definitiva, efectuada pelo seu titular particular e
em que a declaração de invalidade e a consequente anulação do acto
contenciosamente recorrido não tem utilidade concreta.
Também, sob esta óptica não pode o Tribunal Constitucional
tomar conhecimento do objecto do recurso.
8 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Sem custas por delas estar isento o recorrente.».
3 – Fundamentando a sua reclamação, o reclamante discorre do
seguinte jeito:
«1 — Aderindo, no essencial, aos fundamentos invocados pela douta decisão ora
reclamada, no que concerne à natureza do objecto dos recursos de fiscalização
concreta, permitimo-nos, todavia, formular uma objecção, no que concerne à
matéria dos efeitos da renúncia, decorrente do contrato administrativo
celebrado, aos direitos decorrentes da titularidade do alvará de construção em
causa no presente processo.
2 — Efectivamente, é inquestionável que não cabe no âmbito dos poderes
cognitivos do Tribunal Constitucional determinar se tal “renúncia” é
“definitiva” ou meramente “condicional”, cumprindo, quanto a este ponto, acatar
inteiramente a solução que o acórdão, proferido pelo Supremo Tribunal
Administrativo, entendeu aplicar.
3 — Daí que, ao delimitar o objecto do recurso, se tenha evitado qualquer
referência ou menção a este aspecto ou dimensão, atinente à interpretação das
cláusulas contratuais susceptíveis de fundarem tal efeito extintivo de direitos
do administrado.
4 — Centrando-se, pelo contrário, a questão de constitucionalidade, ali
delineada, na circunstância de tal acto de renúncia não ter a mesma eficácia
jurídica que teria a prolação de uma “decisão jurisdicional de mérito definitiva
sobre a ilegalidade do acto administrativo em causa”.
5 — É que a dita “renúncia”, acordada entre os litigantes — mesmo que definitiva
e incondicional — não nos parece susceptível de operar uma total eliminação da
ordem jurídica dos actos administrativos contenciosamente recorridos, idêntica à
que decorreria da verificação judicial da respectiva ilegalidade, nos termos
sustentados pelo Ministério Público.
6 — Ou seja: a renúncia a um direito, envolvida no âmbito de uma espécie de
“transacção” entre os interessados, não equivale, em absoluto, à verificação
judicial da ilegalidade do acto administrativo subjacente à constituição da
situação jurídica a que o administrado “renuncia” “ex nunc”, atentos os efeitos
naturalmente mais profundos e extensos que decorrem da anulação do acto
administrativo contenciosamente impugnado.
7 — Daí que se tenha afirmado, no requerimento de aperfeiçoamento do recurso de
constitucionalidade, ao enunciar a dimensão normativa a que o recurso vem
reportado, que o acordo celebrado entre a Administração e os particulares não
tinha virtualidades para operar uma plena “eliminação jurídica” do acto
contenciosamente recorrido (equivalente e perfeitamente coincidente com o efeito
típico associado à prolação de decisão jurisdicional de mérito definitivo sobre
a questão da ilegalidade originária do acto).
8 — E, nesta óptica, será precisamente esta a questão de constitucionalidade que
se pretendia colocar à apreciação do Tribunal Constitucional: a da interpretação
da norma do Código de Processo Civil em questão no presente recurso em termos de
precludir a apreciação do mérito do recurso contencioso de anulação, interposto
pelo Ministério Público com base na defesa objectiva da legalidade, em função de
celebração de um “acordo” entre a Administração e os particulares envolvidos,
cujo efeito abdicativo — mesmo admitindo, naturalmente, como inquestionável
neste recurso, que operou uma renúncia incondicionada aos direitos emergentes de
certo alvará — não elimina juridicamente, em termos retroactivos plenos e
integrais, o acto administrativo contenciosamente recorrido.
9 — Não parecendo, salvo melhor opinião, que ocorra obstáculo à apreciação da
constitucionalidade deste critério normativo, expressamente enunciado pelo
recorrente como objecto do recurso.».
4 – Respondendo à reclamação, disse a recorrida Câmara
Municipal de Sesimbra:
«1 – No acordo celebrado, identificado nos autos, a recorrida particular
renunciou aos direitos da titularidade do alvará, renúncia esta que foi aceite
pela Câmara Municipal de Sesimbra, o seu Presidente e pela Assembleia Municipal
de Sesimbra.
2 – A renúncia implicou para a recorrida particular a perda de titularidade do
direito conferido pelo alvará de loteamento nº 5/99, daí resultando a extinção
do procedimento respectivo bem como dos actos administrativos nele praticados
(cfr. art. 110º do Código do Procedimento Administrativo).
3 – Não se vislumbra por isso qual o interesse na fiscalização da legalidade de
um acto extinto e que não chegou a produzir efeitos, com excepção de diversos
recursos contenciosos de anulação.
4 – O que o Ministério Público parece pretender, e afirmá-lo com o devido
respeito, que é muito, é fiscalizar o acordo pelo qual foi extinto o acto sub
judice.
5 – Porém em nosso entender não é neste processo que poderá fazê‑lo, mas
eventualmente noutro que venha a intentar.
Termos em que deve manter-se o decidido na douta decisão sumária, com o que se
fará
JUSTIÇA.».
B – Fundamentação
5 – Como resulta dos próprios termos da sua reclamação, ao
afirmar vir “formular uma objecção, no que concerne à matéria dos efeitos da
renúncia, decorrente do contrato administrativo celebrado”, o reclamante
constrói a sua argumentação a partir de uma postulação dos “efeitos da renúncia
aos direitos decorrentes da titularidade do alvará de construção em causa no
presente processo” e consequentes do contrato administrativo celebrado,
diferente daquela que o acórdão recorrido acabou por considerar relevante para
decidir-se pela inutilidade superveniente do recurso.
Na verdade, conquanto a decisão recorrida tenha assumido como
regra o princípio de que a “remoção da ordem jurídica dos actos reputados de
ilegais” é consequência própria do apuramento da sua ilegalidade, e este só
poder ser efectuado no processo judicial, com um julgamento de meritis, como
defende o reclamante, o certo é que o aresto acabou por seguir um outro
entendimento normativo possível, qual seja o de que “a lide só deve prosseguir
quando dela possam decorrer efeitos úteis, isto é, quando a pronúncia sobre a
legalidade possa ser, mediata ou imediatamente, operante”, havendo concluído,
perante o conteúdo do contrato, que não havia efeitos que derivassem do
impugnado alvará que pudessem ter-se por operantes e, consequentemente, que a
lide se tornara supervenientemente inútil [independentemente de, como
constituirá suposição implícita do seu raciocínio, de os actos eventualmente
ilegais não serem removidos da ordem jurídica, mas apenas verem paralizados os
seus efeitos ou a sua eficácia].
Quer isto dizer que o reclamante controverte, no plano do
direito ordinário, a solução que foi acolhida pelo acórdão recorrido, dentre as
várias soluções possíveis da questão jurídica sobre a utilidade do julgamento de
meritis, sobre que este discreteou, bem como a subsunção ao quadro normativo
elegido do conteúdo do contrato, efectuado por este.
Ora, como se demonstrou na decisão ora reclamada – e cuja
argumentação aqui se recupera, pela sua bondade – tal corresponde a controverter
a concreta decisão judicial no que concerne à correcção da determinação do
direito infraconstitucional aplicável ao caso e do subsequente juízo subsuntivo
do quadro de facto (o conteúdo do contrato em que ocorreu a renúncia aos
direitos emergentes do alvará).
Consequentemente, a reclamação não pode proceder.
Mas a reclamação deverá ainda improceder por uma outra razão. É
que o reclamante deixa intocado o segundo fundamento em que se abona a decisão
sumária reclamada, qual seja o de a questão de constitucionalidade que se
pretende ver apreciada dizer respeito a norma jurídica diferente daquela que
suporta a decisão recorrida.
C - Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação.
Sem custas por delas estar isento o M.º P.º.
Lisboa, 27 de Setembro de 2006
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos
[1] Neste sentido podem ver-se, entre outros, os Acórdãos do PLENO de 3/7/02
(rec. 28.775), de 30/10/02 (rec. 38.242), e de 25/3/03 (rec. 46.580) e da SECÇÃO
de 30/9/97 (rec. 38.858), de 23/9/99 (rec. 42.048), de 5/12/00 (rec. 46.306), de
19/12/00 (rec. 46.306), de 9/1/02 (rec. 46.557), de 5/02/02 (rec. 48.198), de
12/2/02 (rec. 46.963), de 9/7/02 (rec. 826/02), de 24/10/02 (rec. 1.347/02), de
19/2/03 (rec.s 1.573/03 e 1.980102), de 13/5/03 (rec. 2056/02), de 18/6/03
(rec.866I03), de 10/7/03 (rec. 433/03), de 22/10/03 (rec. 351/03), de 25/1/03
(rec. 1451/93) e de 18/3/04 (rec. 1948/03).