Imprimir acórdão
Processo nº 636/06
1ª Secção
Relator: Conselheiro Rui Moura Ramos
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
Sob invocação do regime resultante das disposições conjugadas dos arts. 41º,
n.º2, da Lei n.º100/97, de 13/09, e 56° e 74°, estes do D.L. n.º143/99, de
30/04, na redacção introduzida pelo D.L. n.º382 – A/99, de 23/09, a Companhia de
Seguros A., S.A., na qualidade de responsável pelo pagamento da pensão anual e
vitalícia fixada ao sinistrado B., requereu, no Tribunal do Trabalho de
Bragança, a respectiva remição, alegando, para o efeito, que, a partir de
01.01.2003, a mesma se havia tornado obrigatoriamente remível por ser inferior a
seis vezes a remuneração mínima nacional garantida à data da sua fixação.
Notificado para, no prazo de dez dias, declarar nos autos se se opunha à
remissão da respectiva pensão, com a expressa advertência de que um eventual
silêncio seria havido como oposição, o sinistrado beneficiário nada disse.
Por despacho judicial datado de 24.04.2006, a pretendida remição da pensão foi
indeferida.
Para fundamentar tal decisão, aí se escreveu o seguinte:
2. Nos termos dos artigos 33° n.º 1 da Lei 100/97 de 13/9 e 56° n.º 1 als. a) e
b) do D.L. 143/99 de 30/4, aplicável às pensões resultantes de acidentes
ocorridos antes da sua entrada em vigor, por força do disposto no artigos 41°
n.º 2, al. a) da Lei, passaram a ser obrigatoriamente remíveis as pensões anuais
devidas a sinistrados e a beneficiários legais de pensões vitalícias que não
sejam superior a seis vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à
data da fixação da pensão e as devidas a sinistrados, independentemente do valor
da pensão anual, por incapacidade permanente e parcial inferior a 30%.
Alinhamos com a posição expressa no Ac. do STJ de 13/7/2004 (n.º convencional
JSTJ000, in http.//www.dgsi.pt), no sentido de que a data da fixação da pensão
não pode ser entendida como a data da decisão judicial que a fixou, mas antes a
data a partir da qual a pensão é devida. Esta tese não colide, salvo melhor
entendimento, com a uniformização de jurisprudência fixada pelo STJ no seu
Acórdão n.º 4/2005, publicado no DR 1-A de 2/5/2005.
Ora, o sinistrado está afectado de incapacidade permanente parcial para o
trabalho de 45,19%, sendo a pensão em causa devida desde 29/09/1988. Por sua
vez, o seu valor era de 116.040$00 (€ 578,81), ou seja, era inferior a seis
vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada estabelecida pelo D.L.
411/87 de 30/12, que era de 27.200$00 (€ 135,67).
Estariam, pois, à partida, reunidos os pressupostos necessários à remição
obrigatória da pensão.
3. Contudo, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão nº 34/2006 publicado
no D.R. I — A de 8/2, no qual reproduz a fundamentação do Acórdão n.º 56/2005
publicado no Diário da República, II Série, n.º 44 de 3/5/2005, doutamente
relatado pelo Exm° Conselheiro Paulo Mota Pinto, veio declarar a
inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante do artigo
74° do Dec. Lei n.º 143/99 de 30/4, na redacção dada pelo Dec. Lei n.º 382-A/99
de 22/9, interpretado no sentido de impor a remição obrigatória total de pensões
vitalícias atribuídas por incapacidades parciais permanentes do
trabalhador/sinistrado, nos casos em que estas incapacidades excedam 30%.
3.1 Transcreve-se, por isso, parte da fundamentação do supracitado Ac. n.º
56/2005:
« (…).
5-No Acórdão n.º 379/2002 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional,
vol. 54, págs. 313-321) escreveu-se, a propósito, então, do artigo 56° do
Decreto-Lei n.º 143/99, que a ‘filosofia subjacente” à remição obrigatória de
pensões prevista no seu n.º 1, segundo dois diferentes critérios — o do montante
diminuto da pensão, segundo a alínea a), e o do grau de incapacidade laboral,
nos termos da alínea b) — e à remição facultativa de pensões, prevista no seu
n.º 2, era a de permitir que a compensação correspondente à pensão fixada ao
trabalhador vítima de acidente de trabalho ou de doença profissional, não
impeditivos de posterior exercício da sua actividade, possa converter-se em
capital e, assim, ser aplicada porventura de modo mais rentável do que a
permitida pela mera percepção de uma renda anual. Se a via que o legislador
encontrou é válida perante uma incapacidade diminuta, a que corresponda montante
de pensão reduzido, já não o será em casos de maior gravidade, de modo a
colocar, porventura, em causa, dada a álea inerente, a aplicação do capital. Daí
o não se aceitar que, nos casos de incapacidade de trabalho fixada em maior
percentagem, com natural repercussão no montante da pensão, se estabeleça uma
limitação ao poder de o trabalhador pedir ou não a remição, reflectida na
obrigatoriedade de a esta se proceder.” Tal interpretação da teleologia das
normas é corroborada pela salvaguarda, no n.º 2 do artigo 33° da Lei n.º 100/97,
de 13 de Setembro, de um limite máximo á remição parcial em situações de
“incapacidade igual ou superior a 30%” (“desde que a pensão sobrante seja igual
ou superior a 50% do valor da remuneração mínima mensal garantida mais
elevada”), e pela inexistência de previsão de “um capital de remição”, no artigo
170 da Lei n.º 100/97, para situações em que a incapacidade fosse superior a
30%. (...). Em todo o caso, o argumento mais relevante apresentado pela decisão
recorrida contra a conformidade constitucional da norma do artigo 740 do
Decreto-Lei n.º 143/99 (na redacção dada pelo artigo 2°, do Decreto-Lei n.º
382-A/99, e na interpretação que foi efectuada pela decisão recorrida, que o
Tribunal Constitucional tem de aceitar como um dado no presente recurso) foi,
justamente, o dos limites à teleologia da remição: nesses casos de incapacidade
elevada, “só a subsistência de uma pensão vitalícia poderá precaver o sinistrado
contra o destino, eventualmente aleatório, do capital resultante da remição
obrigatória, em casos como o sub judice”.
Neste ponto, a decisão recorrida foi também ao encontro da ponderação reiterada
pelo Tribunal Constitucional no Acórdão 302/99 (publicado em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, vol. 43, págs. 597-603), no qual se pode ler:
“o estabelecimento de pensões por incapacidade tem em vista a compensação pela
perda da capacidade de trabalho dos trabalhadores devida a infortúnios de que
foram alvo no ou por causa do desempenho do respectivo labor.
E, por isso, compreende-se que, se uma tal perda não foi por demais acentuada, o
que o mesmo é dizer que o acidente de trabalho ou a doença profissional não
implicou a futura continuação do desempenho de labor por parte do trabalhador
(ainda que tenha reflexo, mesmo em medida não muito relevante, na retribuição
por aquele desempenho, justamente pela circunstância de não apresentar uma total
capacidade de trabalho), se permita que a compensação correspondente à pensão
que lhe foi fixada - e sabido que é que, de uma banda, o montante das pensões é
de pouco relevo e, de outra, que o quantitativo fixado se degrada com o passar
do tempo - possa ser ‘transformada’ em capital, a fim de ser aplicada em
finalidades económicas porventura mais úteis e rentáveis do que a mera percepção
de uma ‘renda’ anual cujo quantitativo não pode permitir qualquer subsistência
digna a quem quer que seja.
Transformação essa que ocorrerá a requerimento do trabalhador ou da entidade
responsável pelo pagamento da pensão, ou, até, obrigatoriamente, por força da
própria lei, neste último caso quando a incapacidade for diminuta (até 10%) e o
montante da pensão for reduzido.
Outrotanto se não passará quando em causa se postarem acidentes de trabalho ou
doenças profissionais cuja gravidade seja de tal sorte que vá acentuadamente
diminuir a capacidade laboral do trabalhador e, reflexamente, a possibilidade de
auferir salário condigno com, ao menos, a sua digna subsistência. Nestas
situações, e porque a pensão é, necessariamente, de mais elevado montante,
servirá ela de complemento à parca (e por vezes nula) remuneração que aufere em
consequência da reduzida capacidade de trabalho. Se o montante dessas pensões se
perspectivar como algo que actua (ou actuaria desejavelmente) como um mínimo de
asseguramento de subsistência, então compreende-se que o legislador pretenda,
como assinala o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto na sua alegação, “colocar o
trabalhador a coberto dos riscos de aplicação do capital de remição”.
Efectivamente, a aplicação de um capital - ainda que no momento em que essa
intenção é formulada se apresente como um investimento adequado, porquanto
proporcionador de um rendimento mais satisfatório do que o correspondente à
percepção da pensão anual - é sempre alguma coisa que, em virtude de ser
aleatória, comporta riscos. E daí se aceitar que, nos casos em que a
incapacidade de trabalho se situa em maior percentagem (com o consequente maior
montante da pensão), o legislador, para ressalva do próprio trabalhador que
dessa incapacidade padece, não autorize a remição das respectivas pensões, desta
sorte estabelecendo uma limitação ao poder do trabalhador de pedir ou não a
remição.”
Neste acórdão n.º 302/99 (bem como no Acórdão n.º 482/99, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal Constitucional pronunciou-se sobre a
conformidade constitucional de disposições que vedam a remição de certas pensões
“a requerimento dos pensionistas ou das entidades responsáveis”, e julgou-as
inconstitucionais por violação das disposições conjugadas dos artigos 13°, n.º
1, 59°, n.º 1, alínea f), e 63°, n.º 3, da Constituição.
No presente caso, o problema é de certa forma inverso, pois não está em causa a
limitação ao poder de o trabalhador ponderar se, atento o diminuto quantitativo
da pensão, não seria mais compensador a efectivação da remição {que redundava —
disse-se —, “verdadeiramente, na consagração de uma discriminação materialmente
infundada, actuando como um obstáculo a que o sistema de segurança social
proteja adequadamente [...] o direito dos trabalhadores à justa reparação,
quando vitimas de acidentes de trabalho ou de doença profissional [artigo 59°,
n.°1, alínea f), do diploma básico]”}, mas antes a limitação a continuar a
receber a pensão, pela imposição de uma remição obrigatória, para todas as
pensões infortunísticas laborais, mesmo que por incapacidades parciais
permanentes que excedam 30%.
Todavia, também no presente caso a interpretação em causa redunda numa limitação
do poder de o trabalhador ponderar se é menos arriscado continuar a receber a
pensão e recusar a remição — numa imposição do risco do capital a receber —, a
qual, com a extensão que a dimensão normativa admite, tornaria precário e
limitaria o direito dos trabalhadores a uma justa reparação, quando vítimas de
acidente de trabalho ou doença profissional.
Pode, assim, concluir-se, como nos acórdãos citados, que a remição total
obrigatória — isto é, independentemente da vontade do beneficiário — de uma
pensão vitalícia atribuída por uma incapacidade parcial permanente superior a
30% é inconstitucional por violação do direito à justa reparação por acidente de
trabalho ou doença profissional consagrado no artigo 59°, n.°1, alínea 1), da
Constituição.
3.2 O juízo de inconstitucionalidade e os ensinamentos resultantes da
jurisprudência constitucional citada, embora se refiram ao artigo 74° do D.L.
143/99 de 30/4, valem igualmente para o art. 56°, n.º1, al.a) quando
interpretado no sentido de impor a remição obrigatória total, isto é
independentemente da vontade do titular, de pensões atribuídas por incapacidades
parciais permanentes iguais ou superiores a 30%, na medida em que, ao impor uma
limitação ao direito do sinistrado poder optar, ou pela remição, ou, antes, pelo
recebimento da sua pensão sob a forma de renda anual, tal interpretação põe em
causa o principio constitucional do direito à justa reparação por acidente de
trabalho ou doença profissional estabelecido no art. 59º, n.º1, alínea f), da
Constituição.
4. Pelo exposto, considerando que o sinistrado nestes autos, pelo seu silêncio,
se opôs à remição da sua pensão, decide-se não aplicar, por inconstitucional,
por violação do art. 59° n.°1 al. f) da Constituição, a norma resultante do art.
56° n.º 1 al. a) do D.L. 143/99 de 30/4, quando interpretada no sentido de impor
a remição obrigatória total, isto é independentemente da vontade do titular, de
pensões atribuídas por incapacidades parciais permanentes superiores a 30% ou
por morte, e, consequentemente, indeferir a requerida remição obrigatória da
pensão fixada nestes autos ao sinistrado B..
Nos termos previstos nos arts.70º, n.º1, al.a), 72º, n.º1,
al.a) e n.º3, ambos da LTC, desta decisão foi interposto pela Magistrada do
Ministério Público junto do Tribunal de Trabalho de Bragança o presente recurso
obrigatório, tendo por objecto a recusa de aplicação, por inconstitucionalidade
material fundada na violação do art.59º, n.º1, al.f), da CRP, «[…] da norma
resultante do art.56º, n.º1, al.a), do DL 143/99, de 30/04, “quando interpretada
no sentido de impor a remição obrigatória total, isto é, independentemente da
vontade do titular, de pensões atribuídas por incapacidades parciais permanentes
superiores a 30% ou por morte …”».
Já neste Tribunal, apenas o Digno Recorrente produziu
alegações, o que fez nos termos que seguidamente se transcrevem:
«1. Apreciação da questão de inconstitucionalidade suscitada
O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da
decisão, proferida pelo Tribunal de Trabalho de Bragança, nos autos de processo
resultante de acidente de trabalho em que é sinistrado B., que recusou aplicar,
com fundamento em inconstitucionalidade material, a norma constante do art.56º,
n.º1, al.a), do Decreto-Lei n.º143/99, de 30 de Abril, quando interpretada no
sentido de impor a remissão obrigatória total, independentemente da vontade do
trabalhador/sinistrado, de pensões atribuídas por incapacidades parciais
permanentes superiores a 30% ou por morte.
Constitui jurisprudência uniforme e reiterada deste Tribunal a que se
consubstancia no juízo de inconstitucionalidade da norma que integra o objecto
do presente recurso (cfr., nomeadamente, os acórdãos n.º58/06, 118/06, 292/06,
323/06, 322/06, considerando estes dois últimos que tal norma viola ainda o
princípio da confiança, quando aplicada – como sucede no caso dos autos – a
acidentes ocorridos anteriormente à data da sua entrada em vigor.
Cabe naturalmente aplicar à situação dos autos tal corrente jurisprudencial, o
que conduz a um julgamento de inconstitucionalidade, pelo menos com base na
violação da alínea f) do n.º1 do art.59º da Constituição da República
Portuguesa.
2. Conclusão.
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1- É inconstitucional, por violação do art.59º, n.º1, al.f) da
Constituição da República Portuguesa, a norma constante da alínea a) do art.56º
do Decreto-Lei n.º143/99, de 30 de Abril, quando interpretada no sentido de
impor, independentemente da vontade do trabalhador sinistrado, a remição total
de pensões atribuídas por incapacidade parcial permanente superior a 30% ou por
morte.
2- Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade
constante da decisão recorrida».
II. Fundamentação.
O presente recurso, tendo sido interposto ao abrigo da alínea a) do n.º1 do
art.70º da LTC, incide sobre a decisão proferida pelo Tribunal de Trabalho de
Bragança que recusou a aplicação, por inconstitucionalidade material decorrente
da violação do art. 59°, n.°1, al.f), da Constituição, da norma resultante do
art. 56°, n.º 1, al.a) do D.L. 143/99 de 30/4, quando interpretada no sentido de
impor a remição obrigatória total – isto é, independentemente da vontade do
titular – de pensões atribuídas por incapacidades parciais permanentes
superiores a 30% ou por morte.
Por efeito de tal recusa, o mesmo Tribunal indeferiu a remição da pensão anual e
vitalícia fixada ao sinistrado B., afectado de incapacidade permanente parcial
para o trabalho de 45,19% na sequência de acidente ocorrido aos 17.04.1986,
remição essa aí requerida pela Companhia de Seguros A., S.A. na qualidade de
responsável pelo respectivo pagamento.
Sobre a questão da legitimidade constitucional da dimensão
normativa extraída do art. 56°, n.º 1, al.a), do D.L. 143/99, de 30/04, recusada
aplicar no âmbito dos presentes autos foi já este Tribunal por mais do que uma
vez chamado a pronunciar-se, tendo-o feito em termos invariavelmente
confirmatórios do juízo de inconstitucionalidade contido na decisão aqui
recorrida.
Assim sucedeu através do Acórdão n.º58/2006 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos), em cuja fundamentação se escreveu o
seguinte:
«Conforme se refere nas alegações do Ministério Público, era sustentável – face
à situação de facto subjacente à decisão recorrida, reportada a acidente de
trabalho ocorrido em 18 de Junho de 1975 – que se considerasse aplicável o
disposto no artigo 74.º, e não directamente o estatuído no artigo 56.º, n.º 1,
alínea a), do Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril.
No entanto, foi esta última a norma cuja aplicação foi expressamente recusada,
com fundamento na sua inconstitucionalidade, pela decisão recorrida, pelo que é
a questão da sua conformidade constitucional que constitui objecto do presente
recurso, embora circunscrita à dimensão susceptível de aplicação ao caso
concreto, isto é, enquanto determina a remição obrigatória de pensões anuais
devidas a sinistrados de acidentes de trabalho que não sejam superiores a seis
vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data da fixação da
pensão, em casos em que do acidente resultou incapacidade parcial permanente do
sinistrado superior a 30%. Ficam, assim, excluídas as dimensões normativas
reportadas a situações em que o beneficiário da pensão não seja o sinistrado
e/ou aos casos em que ocorreu a morte do sinistrado.
Relativamente à dimensão que constitui objecto do presente recurso, há apenas
que reconhecer que são para aqui inteiramente transponíveis as considerações que
levaram à emissão de juízos de inconstitucionalidade, por violação do artigo
59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, da norma do
artigo 74.º do Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, na redacção dada pelo
Decreto‑Lei n.º 382‑A/99, de 22 de Setembro, interpretado no sentido de impor a
remição obrigatória total de pensões vitalícias atribuídas por incapacidades
parciais permanentes do trabalhador/sinistrado, nos casos em que estas
incapacidades excedam 30%, constantes do Acórdão n.º 56/2005 (cuja fundamentação
foi transcrita na sentença recorrida, em passagem reproduzida no precedente
relatório) e das Decisões Sumárias n.ºs 234/2005 e 247/2005, e que culminaram
com a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade dessa
norma constante do Acórdão n.º 34/2006.
Na verdade, tendo o estabelecimento de pensões por incapacidade em vista a
compensação pela perda de capacidade de trabalho dos trabalhadores devida a
infortúnios de que foram alvo no ou por causa do desempenho do respectivo labor,
compreende‑se que, se uma tal perda não foi por demais acentuada e, assim, não
afecta significativamente a continuação do desempenho da sua actividade
laboral, se permita que a compensação correspondente à pensão que lhe foi
fixada (cujo quantitativo, em regra, de pouco relevo, se degrada com o passar
do tempo) possa ser “transformada” em capital, a fim de ser aplicada em
finalidades económicas porventura mais úteis e rentáveis do que a mera
percepção de uma “renda” anual cujo quantitativo não pode permitir qualquer
subsistência digna a quem quer que seja; porém, quando em causa estiverem
acidentes de trabalho cuja gravidade acentuadamente diminuiu a capacidade
laboral do sinistrado e, reflexamente, a possibilidade de auferir salário
condigno com, ao menos, a sua digna subsistência, servindo a pensão de
complemento à parca (e por vezes nula) remuneração que aufere em consequência da
reduzida capacidade de trabalho, então a aplicação de um capital, mesmo que no
momento em que é feito aparente ser um investimento adequado, porquanto
proporcionador de um rendimento mais satisfatório do que o correspondente à
percepção da pensão anual, é sempre algo que, por ser aleatório, comporta
riscos. Neste último tipo de situações, tornar legalmente obrigatória a remição
significaria privar o trabalhador da faculdade de ponderar se é menos
arriscado continuar a receber a pensão e recusar a remição, impondo‑lhe a
assunção de um risco que, com a extensão que a dimensão normativa admite, torna
precário e limita o direito dos trabalhadores a uma justa reparação, quando
vítimas de acidente de trabalho.
Assim, a remição total obrigatória – isto é, independentemente da vontade do
beneficiário – de uma pensão vitalícia atribuída por uma incapacidade parcial
permanente superior a 30% é inconstitucional por violação do direito à justa
reparação por acidente de trabalho, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea
f), da Constituição.
[…]».
A jurisprudência constante do Acórdão parcialmente acabado de
transcrever veio a ser subsequentemente reiterada nos Acórdãos n.º118/06 e
204/06, através dos quais uma vez mais decidiu este Tribunal «julgar
inconstitucional, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da
Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 56.º, n.º 1, alínea a),
do Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, interpretada no sentido de impor a
remição obrigatória total de pensões vitalícias atribuídas por incapacidades
parciais permanentes do trabalhador/sinistrado, nos casos em que estas
incapacidades excedam 30%» (ambos igualmente disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos).
Para além do juízo formulado através do já citado Acórdão n.º58/2006 – para cuja
fundamentação aqui se remete –, o caso em presença, por se reportar a pensão
anual e vitalícia devida por acidente ocorrido antes da entrada em vigor do
Decreto Lei n.º143/99, de 30 de Abril, permite ainda a convocação do discurso
argumentativo inserto nos Acórdãos n.º322/2006 e 323/2006 a propósito da
legitimação constitucional da norma aqui recusada aplicar no confronto com o
princípio da confiança, inerente ao princípio do Estado de Direito consagrado no
art.2º da Lei Fundamental.
No primeiro dos referidos arrestos, pode ler-se o seguinte:
«Para além disso, também está agora em causa a aplicação do disposto na alínea
a) do n.º 1 do artigo 56º do Decreto-Lei n.º 143/99 a acidentes ocorridos à data
da sua entrada em vigor (cfr. Artigo 41º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, que faz
reportar a produção de efeitos à data da entrada em vigor do decreto-lei que a
regulamentar, e que foi o Decreto-Lei n.º 143/99) […].
A aplicação a acidentes anteriores – no caso, em 1960 – suscita, na verdade, a
dúvida da compatibilização da norma em apreciação com as exigências do princípio
da confiança, inerente ao princípio do Estado de Direito, pois se trata da
aplicação de um regime “que prevê consequências jurídicas para situações que se
constituíram antes da sua entrada em vigor mas que se mantêm nessa data”
(acórdão n.º 232/91, Diário da República, II série, de 17 de Setembro de 1991.
Ver, ainda, acórdãos n.ºs 287/90, Diário da República, II série, de 20 de
Fevereiro de 1991 e 467/2003, Diário da República, II série, de 19 de Novembro
de 2003, e jurisprudência neles citada).
Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, isto não significa,
naturalmente, que exista qualquer “direito à não frustração de expectativas
jurídicas ou à manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou
relativamente a factos complexos já parcialmente realizados. Ao legislador não
está vedado alterar o regime do casamento, do arrendamento, do funcionalismo ou
das pensões, por exemplo (…). Cabe saber se se justifica ou não na hipótese da
parte dos sujeitos de direito ou dos agentes um ‘investimento na confiança’ na
manutenção do regime legal (…)” (citado acórdão n.º 287/90).
Significa, antes, que não será consentânea com tal princípio a aplicação de uma
lei nova a efeitos decorrentes de factos anteriores se “a confiança do cidadão
na manutenção da situação jurídica com base na qual tomou as suas decisões for
violada de forma intolerável, opressiva ou demasiado acentuada. Num tal caso,
com efeito, a confiança na situação jurídica preexistente haverá de prevalecer
sobre a medida legislativa que veio agravar a posição do cidadão. E isso porque,
tendo tal confiança, nesse caso, maior ‘peso’ ou ‘relevo’ constitucional do que
o interesse público subjacente à alteração legislativa em causa, é justo que o
conflito se resolva daquela maneira” (mesmo acórdão n.º 232/91); dito por outras
palavras, será inconstitucional se “atingir de forma inadmissível, intolerável,
arbitrária ou desproporcionadamente onerosa aqueles mínimos de segurança que as
pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar” (acórdão n.º 486/97, Diário
da República, II série, de 17 de Outubro de 1997).
Ora, no caso presente, impor ao beneficiário de uma pensão actualizável
correspondente a um acidente ocorrido em 1960 a sua substituição por um capital
de remição, obrigando-o a providenciar pela respectiva aplicação em termos de
garantir, em idêntica medida, a sua subsistência, afecta de forma inaceitável a
expectativa que legitimamente fundou na manutenção de um regime legal que lhe
permitiu organizar a vida contando com o pagamento periódico e vitalício daquela
quantia.
É certo que a obrigatoriedade de remição traz óbvias vantagens para a
seguradora, obrigada a pagar repetidamente e durante um longo período de tempo
inúmeras pensões de reduzido montante; e que, por essa via, o novo regime se
explica facilmente por critérios de racionalidade económica. Não se vê, todavia,
que tais vantagens sejam aptas a prevalecer sobre o risco que dela poderá
resultar para a subsistência do beneficiário, que confiou, nos termos expostos,
na manutenção da pensão.
Deve assim concluir-se pela inconstitucionalidade da norma que constitui o
objecto do presente recurso, por violação conjugada do disposto na alínea f) do
n.º 1 do artigo 59º da Constituição e do princípio da confiança, inerente ao
princípio Estado de Direito (artigo 2º da Constituição)».
Apesar da pertinência que, por se tratar também aqui de pensão
atribuída por sinistro ocorrido em momento anterior à entrada em vigor do
Decreto Lei n.º143/99, de 30 de Abril, não deixa de assumir o juízo de
desconformidade constitucional formulado sob convocação do princípio da
confiança, o certo é que a confirmação do julgamento de inconstitucionalidade
incidente sobre a precisa dimensão normativa recusada aplicar pela decisão
recorrida se basta, em todo o caso, com a reiteração do pronunciamento expresso
através do Acórdão n.º58/2006, já que, independentemente da relação de
precedência a estabelecer entre aqueles dois eventos, em causa desde logo está o
indeferimento da remição de uma pensão anual e vitalícia atribuída por
incapacidade parcial permanente do trabalhador/sinistrado superior a 30% quando
este a tal se opôs.
III. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea
f), da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 56.º, n.º 1,
alínea a), do Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, interpretada no sentido de
impor a remição obrigatória total de pensões vitalícias atribuídas por
incapacidades parciais permanentes do trabalhador/sinistrado, nos casos em que
estas incapacidades excedam 30%;
b) Negar consequentemente provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida na parte impugnada.
Sem custas.
Lisboa, 14 de Novembro de 2006
Rui Manuel Moura Ramos
Maria João Antunes
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira – voto o acórdão com a declaração de que perfilho o entendimento de que a norma ofende o princípio da confiança.
Artur Maurício (com a declaração de que entendo igualmente violado o princípio da confiança nos termos dos Acs 322/06 e 323/06)