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Processo n.º 363/04
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do tribunal constitucional:
I – Relatório
1.Por acórdão datado de 29 de Janeiro de 2004, o Supremo Tribunal de Justiça
decidiu negar o recurso de revista interposto por A. do acórdão do Tribunal da
Relação de Lisboa de 13 de Março de 2003, que confirmou a sentença do Tribunal
de Família e Menores de Lisboa datada de 26 de Junho de 2002, que decretou a
adopção plena do menor B., filho daquela, por C. e D., bem como determinou a
alteração do nome do adoptando para E..
Pode ler-se naquele aresto:
«1. D. e C. requereram a adopção plena do menor B., filho de A. A acção foi
julgada procedente, tendo a sentença de 1ª instância sido confirmada por acórdão
da Relação de Lisboa de 13 de Março de 2003.
Inconformada, recorreu A. para este Tribunal,(...).
3. Sobre a admissibilidade do recurso
Consideram os Recorridos e o Ministério Público que o recurso é inadmissível
face ao disposto no artigo 1411.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, nos
termos do qual “Das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou
oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”.
A este respeito importa observar que se antes da entrada em vigor desta
disposição, na redacção que lhe foi dada pela reforma processual de 1995, se
entendia não existir recurso para o Supremo das decisões proferidas nos
processos de jurisdição voluntária e, assim, nos processos de adopção como tal
considerados (artigo 150.º da O.T.M. – vejam-se, entre outros, os acórdãos do
S.T.J. de 29 de Abril de 1993, revista n.º 83481, de 27 de Março de 1994,
revista n.º 85066, e de 11 de Outubro de 1995, revista n.º 87285), esta
jurisprudência hoje não pode ser mantida.
Face à nova redacção do mencionado preceito, importa averiguar se a decisão em
causa foi proferida “segundo critérios de conveniência ou oportunidade”, devendo
entender-se que assim é quando, muito embora tenham sido apreciadas questões de
direito, o que sobre elas foi decidido não influiu na decisão final (acórdão de
25 de Setembro de 2003, proferido na revista n.º 1056/03).
Ora, não é este o caso no presente processo uma vez que as questões de direito
suscitadas pela Recorrente, a serem julgadas procedentes, obstam à adopção.
4. Quanto ao mérito
São as seguintes as questões suscitadas no presente recurso: Violação dos
artigos 227.º, § 5, da Constituição da República Federativa do Brasil e 45.º da
Lei Federal n.º 8.069, de 13 de Julho de 1990 (1), violação da Constituição da
República Portuguesa ao considerar-se preenchido o requisito da inibição do
poder paternal, sem qualquer processo para o efeito instaurado (2),
inconstitucionalidade do artigo 1981º, n.º 1, alínea c), do Código Civil, e
violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, da Convenção sobre os
Direitos da Criança e da Declaração dos Direitos da Criança, se interpretado no
sentido do acórdão recorrido (3).
4.1 e 2. A aplicação do direito brasileiro
Estabelece o artigo 60.º, n.º 1, [do Código Civil] que “à constituição da
filiação adoptiva é aplicável a lei pessoal do adoptante, sem prejuízo do
disposto no número seguinte”, que em nada releva no presente caso. E o n.º 4
dispõe que “Se a lei competente para regular as relações entre o adoptando e os
seus progenitores não conhecer o instituto da adopção, ou não o admitir em
relação a quem se encontre na situação familiar do adoptando, a adopção não é
permitida”.
Ora, sendo a lei competente para regular as relações entre a Recorrente e seu
filho, lei pessoal daquela (artigo 57.º, n.º 2, do mesmo Código), ou seja, a lei
brasileira, importa averiguar o que esta lei dispõe relativamente à constituição
do vínculo da adopção.
Considera a Recorrente que os artigos 227.º, § 5, da Constituição da República
Federativa do Brasil e o artigo 45.º da Lei Federal n.º 8.069 exigem o
consentimento pessoal dos pais do adoptando, consentimento este que só pode ser
dispensado em caso de inibição do poder paternal, que no presente caso não foi
decretada.
No entender da Recorrente o artigo 7.º da Lei de Introdução ao Código Civil
Brasileiro (Decreto-Lei n.º 4.657, de 4 de Setembro de 1942), ao remeter para a
lei do domicílio a regulação da constituição do vínculo da adopção é
incompatível com aquelas disposições.
Quanto a esta questão importa observar que não compete aos tribunais portugueses
apreciar a questão da inconstitucionalidade em causa, sendo, aliás, possível que
as disposições mencionadas da Constituição Brasileira e da Lei Federal sejam
aplicáveis apenas nos casos em que é aplicável a lei brasileira.
Nestas condições, é apenas aplicável o direito português, país da residência
habitual da Recorrente (artigo 18.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).
Afigura-se, pois, irrelevante a questão que se prende com a ausência de processo
de inibição do poder paternal, requisito que não existe no direito português, no
caso em apreço, como veremos.
4.3. O artigo 1981.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil
Prevê o artigo 1981.º do Código Civil a dispensa do consentimento dos pais do
adoptando quando tenha havido confiança judicial fundada nas circunstâncias
mencionadas nas alíneas c), d) e e) do artigo 1978.º do mesmo Código (n.º 3,
alínea b)), o que foi o caso.
Pretende a Recorrente que tal dispensa, quando o fundamento da confiança tenha
desaparecido, viola disposições constitucionais bem como das convenções e
declaração internacionais, acima mencionadas.
A este respeito importa observar que nada nos autos permite concluir pela
inexistência dos fundamentos que levaram à confiança judicial do filho da
Recorrente.
E mesmo que assim fosse continuaria a ser legítima a dispensa do consentimento
para a adopção.
Com efeito, a confiança judicial, destinada a futura adopção, cria entre o menor
e os futuros pais adoptivos relações cuja estabilidade não deve ser afectada por
uma eventual modificação das circunstâncias em que essa confiança assenta. É
inadmissível que os laços de afectividade criados durante esta fase de
pré-adopção sejam abruptamente quebrados, com as inerentes perturbações
psíquicas, para salvaguarda de simples direitos resultantes da maternidade
biológica.
Sendo o interesse do menor, assim concebido, o objectivo prosseguido pelos
direitos modernos no domínio da adopção, não se compreende a invocação da
Declaração dos Direitos da Criança e da Convenção sobre os Direitos da Criança
invocados, sem fundamentação, pela Recorrente. E o mesmo se diga no que respeita
à Convenção dos Direitos do Homem e às disposições constitucionais que esta
considera violadas, sem se compreender por que razão.
Nega-se, pois, a revista.»
2.Inconformada com esta decisão, a recorrente veio interpor recurso para este
Tribunal, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, pretendendo ver apreciada a
constitucionalidade do artigo 60.º, n.º 4, do Código Civil, «quando interpretado
e aplicado no sentido de que “a adopção é permitida não obstante a recusa de
consentimento por parte da mãe do menor, mesmo quando a lei competente para
regular as relações entre esta e o adoptando não tenha dispensado a necessidade
do seu consentimento...”», “por considerar que tal interpretação e aplicação
caracterizam a inconstitucionalidade material do referido artigo 60.º, n.º 4, do
CC, por violação do quanto disposto pelos artigos 2.º, 8.º, 9.º, alínea b),
13.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 20.º, n.º 4, 26.º, n.º 4, 36.º, 202.º, n.º 2,
203.º e 204.º, todos da Constituição da República Portuguesa; bem como dos
artigos 1.º, 2.º, 6.º, 7.º, 8.º e 10.º da Declaração Universal dos Direitos do
Homem; dos artigos 6.º, 8.º e 14.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
do princípio sexto e sétimo, terceiro parágrafo, ambos da Declaração dos
Direitos da Criança, adoptada pela ONU, em 1959; dos artigos 7.º, n.º 1, 8.º,
n.º 1, 9.º, n.º 1, e 16.º, n.º 1, todos da Convenção sobre os Direitos da
Criança”.
A recorrente pretende, ainda, ver apreciada a constitucionalidade do artigo
1981.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil, «quando interpretado e aplicado no
sentido de que “... a necessidade do consentimento dos pais do adoptando acha-se
vinculada à não existência de confiança judicial, mesmo quando se verifique, por
ocasião do processo de adopção, o desaparecimento da circunstância anterior que
justificou a confiança, decorrente do facto de a mãe do menor, que se encontrava
mentalmente enferma durante o processo de confiança, ter recobrado a sua saúde e
manifestado a sua oposição à adopção, antes mesmo da conclusão do processo
referente a esta última...”, por considerar que “tal interpretação e aplicação
caracterizam a inconstitucionalidade material do artigo 1981.º, n.º 1, alínea
c), do Código Civil, por violação do disposto pelos artigos 8.º, 16.º e 20.º,
n.ºs 4 e 5, todos da Constituição da República Portuguesa; do artigo 8.º da
Declaração Universal dos Direitos do Homem, adoptada pela ONU em 1948, e dos
artigos 6.º, n.º 1, primeira parte, e 13.º da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem, assinada em Roma, aos 04/11/1959, que estabelecem o direito a um processo
equitativo e efectivo”.
Admitido o recurso, e determinada a produção de alegações, a recorrente concluiu
assim as suas:
«1.º Nas alegações do seu recurso de revista, para o Venerando Supremo Tribunal
de Justiça (cfr. motivação e respectivas conclusões – estas nos pontos 13.º,
14.º e 15.º), a recorrente suscitou a inconstitucionalidade material do artigo
60.º, n.º 4, do Código Civil, na forma com que restou interpretado e aplicado,
no douto acórdão recorrido, no sentido de que “...a adopção é permitida, não
obstante a recusa de consentimento por parte da mãe do menor mesmo quando a lei
competente para regular as relações entre esta e o adoptando não tenha
dispensado a necessidade do seu consentimento...”.
2.º O douto acórdão reconhece o facto de que é a lei brasileira, no caso em
exame, aquela que admitirá, ou não, a adopção do filho menor da recorrente.
3.º E os artigos 227.º, § 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil,
bem como o artigo 45.º da sua Lei Federal n.º 8.069, de 13 de Julho de 1990, não
permitem a adopção do filho menor da recorrente, sem o seu consentimento.
4.º Mas o douto acórdão recorrido, não obstante tal “obstáculo jurídico”, houve
por bem aplicar a lei portuguesa, face ao disposto pelo artigo 7.º do
Decreto-Lei n.º 4.657, de 4 de Setembro de 1942 (conhecido como Lei de
Introdução ao Código Civil Brasileiro), por entender que não poderia, no
processo perante os tribunais portugueses, ser reconhecida a sua
inconstitucionalidade material (contrariando desde logo, salvo sempre o devido
respeito, o disposto pelo artigo 23.º, n.º 1, do Código Civil).
5.º Recusou, assim, o douto acórdão, a aplicar o disposto pelo artigo 227.º, §
5º, da Constituição da República Federativa do Brasil, dando prevalência ao
artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 4.657, de 4 de Setembro de 1942.
6º. Dispositivo não recepcionado pela Constituição da República Federativa do
Brasil, promulgada mais de 46 anos depois, que impôs sobre tal matéria, como
preceito de ordem pública, a reserva legal sobre o instituto jurídico da
adopção, no que envolve cidadãos estrangeiros.
7.º Assim, o douto acórdão não põe em causa o facto de que o artigo 227.º, n.º
5, da Constituição da República Federativa do Brasil não autoriza a adopção do
filho menor da recorrente, sem o seu consentimento, mas afirma ser impossível
aos tribunais portugueses, reconhecer a sua supremacia face ao artigo 7.º do
Decreto-Lei n.° 4.657, de 4 de Setembro de 1942, porque tal implicaria em
apreciar “questão de inconstitucionalidade” do direito brasileiro.
8.º Salvo o devido respeito, a aplicação directa do disposto pelo artigo 227.º,
n.º 5, da Constituição da República Federativa do Brasil não se confunde com a
declaração de inconstitucionalidade material do artigo 7.º do Decreto-Lei n°
4.657, de 4 de Setembro de 1942.
9.º Mas ainda que assim não fosse, não se tratando de declaração de
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, o seu controle difuso sempre
estaria ao alcance do pronunciamento do Venerando Supremo Tribunal de Justiça
(cfr. artigo 23.º, n.º 1, do Código Civil).
10.º Acabou por afirmar o douto acórdão recorrido, que a Constituição da
República Federativa do Brasil não pode ser aplicada pelos tribunais
portugueses, que são forçados a fazer prevalecer a “norma de conflitos
brasileira”, mesmo que de natureza infra constitucional.
11.º Razão porque a recorrente perpetrou a suscitada material
inconstitucionalidade do artigo 60.º, n.º 4, do Código Civil, desde logo por
violação do disposto pelos artigos 2.º, 8.º, 16.º, 17.º, 18.º e 20.º, n.º 4, da
Constituição da República Portuguesa; bem como do artigo 10.º da Declaração
Universal dos Direitos do Homem; bem como do artigo 6.º da Convenção Europeia
dos Direitos do Homem.
12.º Disposições que, inclusivamente por aplicação directa, asseguram à
recorrente o direito a um processo equitativo, que apenas se concretiza quando
torna possível a aplicação efectiva da Constituição da República Federativa do
Brasil (sua “Lei Maior”), com primazia sobre uma anterior legislação ordinária,
estabelecida mais de 46 anos antes, em sentido não mais admissível, salvo sempre
o devido respeito.
13.º Incidindo ainda, na suscitada inconstitucionalidade material, salvo sempre
o devido respeito, também por violação do disposto pelos artigos 2.º, 8.º, 9.º,
alínea b), 13.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 20.º, n.º 4, 26.º, n.º 4, 36.º, 202.º,
n.º 2, 203.º e 204.º, todos da Constituição da República; bem como pelos artigos
1.º, 2.º, 6.º, 7.º, 8.º e 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem;
pelo artigo 6.º, 8.º e 14.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; pelo
princípio sexto e sétimo, terceiro parágrafo, ambos da Declaração dos Direitos
da Criança, adoptada pela ONU, em 1959; pelos artigos 7.º, n.º 1, 8.º, n.º 1,
9.º, n.º 1, e 16.º, n.º 1, todos da Convenção sobre os Direitos da Criança.
14.º Disposições directamente aplicáveis (cfr. artigos 8.º, 16.º, 17.º e 18.º,
todos da Constituição da República), que não permitem a adopção do filho menor
da recorrente contra a sua vontade expressa (cfr. artigos 1.º, 2.º, 6.º, 7.º,
8.º e 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; e artigos 6.º, 8.º e
14.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem), sem observância dos
requisitos exigidos pela lei, de observância obrigatória pelos tribunais (cfr.
artigo 202.º, n.º 2, 203.º e 204.º, também da Constituição da República), salvo
sempre o devido respeito.
15.º Porque implicaria na injusta separação do filho de sua mãe natural (vedada
pelos artigos 13.º, n.º 2, 15.º, n.º 1, 36.º e 26.º, n.ºs 4 e 6, da Constituição
da República, bem como pelo princípio sexto e sétimo, terceiro parágrafo, ambos
da Declaração dos Direitos da Criança, adoptada pela ONU, em 1959; bem como
pelos artigos 7.º, n.º 1, 8.º, n.º 1, 9.º, n.º 1, e 16.º, n.º 1, todos da
Convenção sobre os Direitos da Criança), que não pode ser perpetrada por um
Estado de Direito Democrático, que tem inclusive o dever de ampará-los (cfr.
artigos 2.º e 9.º, alínea b)) salvo sempre o devido respeito.
16.º A recorrente suscitou igualmente, nas alegações de seu recurso de revista
(cfr. motivação e respectivas conclusões, estas nos seus “pontos 18.º, 19.º,
20.º, 21.º, 22.º, 23.º e 24.º”), a inconstitucionalidade material do artigo
1981.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil, quando interpretado e aplicado no
sentido de que “...a necessidade do consentimento dos pais do adoptando acha-se
vinculada à não existência de confiança judicial, mesmo quando se verifique, por
ocasião do processo de adopção, o desaparecimento da circunstância anterior que
justificou a confiança, decorrente do facto de a mãe do menor, que se encontrava
mentalmente enferma durante o processo de confiança, ter recobrado a sua saúde e
manifestado a sua oposição à adopção, antes mesmo da conclusão do processo
referente a esta última...”.
17.º Ao promover tal interpretação e aplicação do artigo 1981.º, n.º 1, alínea
c), do Código Civil, o douto acórdão incidiu numa profunda inversão de valores,
salvo sempre o devido respeito.
18.º Apelidando de “simples direitos resultantes de maternidade biológica”
aquilo que num Estado de Direito Democrático é um valor fundamental, que deve
ser protegido e tutelado (a maternidade e a família – cfr. artigo 36.º, n.º 6,
da Constituição da República, complementado por seus artigos 67.º e 68.º).
19.º Dando preferência a uma realidade pretérita face à actual, estabelecendo a
figura jurídica da “confiança irreversível”, elevando-a, praticamente, à
categoria de adopção plena, salvo sempre o devido respeito.
20.º Negando à recorrente, salvo sempre o devido respeito, o direito a um
processo equitativo e efectivo, violando com tal interpretação e aplicação o
disposto pelos artigos 8.º, 16.º e 20.º, n.ºs 4 e 5, todos da Constituição da
República; o artigo 8.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, adoptada
pela ONU, em 1948; o artigo 6.º, n.º 1, primeira parte, e 13.º da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, assinada em Roma, aos 04/11/1959.
21.º Porque restou impedida de discutir judicialmente, no presente processo de
adopção, o desaparecimento da circunstância que levaria à dispensa do seu
consentimento, salvo sempre o devido respeito.
22.º Inconstitucionalidades materiais dos artigos 60.º, n.º 4, e 1981.º, n.º 1,
alínea c), ambos do Código Civil, que a recorrente pede sejam reconhecidas e
proclamadas, com seus legais efeitos, por este Venerando Tribunal
Constitucional.»
Em resposta, o representante do Ministério Público junto do Tribunal
Constitucional, formulou as seguintes conclusões:
«1.º – O acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça não aplicou como
“ratio decidendi” as interpretações normativas especificadas pela recorrente no
seu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
2.º – Termos em que não deverá conhecer-se do recurso, por inverificação dos
respectivos pressupostos de admissibilidade.»
Para fundamentar estas conclusões, afirmou o Ministério Público:
«Quanto à questão suscitada no plano do direito internacional privado, importa
distinguir claramente – ao contrário do que fez a recorrente – as questões de
constitucionalidade atinentes às normas de conflitos e as questões de
constitucionalidade referentes às normas do direito estrangeiro, por via
daquelas aplicáveis ao caso.
Ora, neste plano, a “ratio decidendi” do acórdão recorrido assentou
exclusivamente na aplicação da norma constante do artigo 18.º, n.ºs 1 e 2, do
Código Civil, regulamentadora do reenvio, conjugada com o preceito constante do
artigo 7.º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, interpretada em
termos de remeter para a lei do domicílio (no caso, a lei portuguesa) a
regulação da constituição do vínculo da adopção – e não na interpretação do
artigo 60.º, n.º 4, do Código Civil português, indicada pela recorrente.
Quanto à questão colocada em torno da inconstitucionalidade do artigo 1981.º,
n.º 1, alínea c), do Código Civil, é evidente que o Supremo também não realizou
a interpretação normativa especificada pela recorrente, em termos de dispensar a
necessidade de consentimento dos progenitores naturais do adoptando quando tiver
ocorrido “o desaparecimento da circunstância anterior que justificou a
confiança, decorrente do facto de a mãe do menor, que se encontrava mentalmente
enferma durante o processo de confiança, ter recobrado a sua saúde e manifestado
a sua oposição à adopção”: na verdade, o acórdão proferido, a fls. 439, afirma
expressamente que “nada nos autos permite concluir pela inexistência dos
fundamentos que levaram à confiança judicial do filho da recorrente” –
afirmando, de seguida, a necessária prevalência do interesse do menor, em
quaisquer circunstâncias. Deste modo, a matéria de facto em que assentou a
decisão proferida pelo Supremo não passou manifestamente pela verificação da
circunstância que a recorrente invocava, como caracterizadora da interpretação
normativa alegadamente inconstitucional, o que, sem mais, impede a apreciação do
mérito do recurso.»
Os requeridos apresentaram também contra-alegações, dizendo:
«(...)
3. Mantém como fundamento a interposição do presente recurso para o Tribunal
Constitucional a violação de normas constitucionais em razão da não aplicação de
regras substantivas correspondentes à não prévia audição da mãe natural do menor
em relação à adopção ora decretada.
4. E como eventual fundamento de inconstitucionalidade veio igualmente
invocar-se a violação normativa decorrente de não ter sido apreciada questão
sobre a aplicabilidade da Lei Brasileira.
5. O douto Acórdão recorrido escreveu por um lado que a Lei competente para
regular as relações entre a mãe natural e o seu filho seria a Lei brasileira.
6. No entanto, esta referência foi nos termos do Acórdão claramente
instrumental, servindo como mero ponto de partida para apurar se era a Lei
brasileira aplicável ou não ao caso concreto e mais se a questão colocada era um
problema de relação pessoal entre a recorrente e o seu filho.
7. E certo é que após a douta análise do Acórdão recorrido a que aderimos o
Venerando Supremo Tribunal de Justiça conclui que é aplicável à questão a Lei
Portuguesa, designadamente em função da residência habitual da recorrente, o que
por esta não é posto em causa nas suas alegações.
8. Deste modo se é aplicável a Lei Portuguesa cai por terra toda a
inconstitucionalidade arguida dos art.ºs 57.º e 60.º do Código Civil, que
pressupunha a aplicação da Lei Brasileira, uma vez que a recorrente foi tratada
em absoluto pé de igualdade e com o mesmo acesso à Justiça que qualquer cidadão
português nas mesmas circunstâncias.
9. Efectivamente este pressuposto de não audição da mãe e enquanto tal, acabou
por se concretizar no regime da adopção definido pela Lei Portuguesa e no
momento processual próprio.
10. Posto isto, a aplicação nesta fase processual das normas de conflitos sobre
a Lei aplicável reconduzir-se-ia sempre ao processo de adopção de que aqui se
cura, com as suas correspondentes conexões.
11. E neste mesmo processo, o casal adoptante é português com domicílio em
Portugal, território onde igualmente vive o menor adoptado, o qual, ao sê‑lo
plenamente por nacionais portugueses, terá também a nacionalidade portuguesa.
12. Daí, não é aplicável ao presente caso o art.º 57.º do CC que regula as
relações entre pais e filhos em termos de relação de parentesco, não alterada
por uma anterior confiança judicial, nem tão-pouco têm relevância os art.ºs.
60.º, n.º 4, e 61.º, n.º 2, do mesmo Código, que a mãe do menor chamou à
colação, uma vez que respeitam o primeiro deles às relações do adoptando com os
seus progenitores quando a intenção destes é legalmente exigida, o que não é o
caso, e o segundo a consentimento de terceiro, familiar ou tutor, que não
necessariamente os pais naturais, cuja situação e posição já foram analisadas no
processo prévio de confiança judicial.
13. Mas mesmo que, e tal como as decisões recorridas, por hipótese de raciocínio
admitem, que pudesse haver algum reenvio para a Lei Brasileira, a mesma Lei quer
pelo art.º 7.º do Decreto-Lei 4657, de 4 de Setembro de 1942, quer pelo art.º
45.º da igualmente Lei Brasileira n.º 8069, de 13 de Julho de 1990, já posterior
à alteração da Constituição da República Federativa do Brasil, não impõem que o
consentimento dos pais ou do representante legal para adopção seja prestado no
processo de adopção stricto sensu, já depois de transitada a confiança judicial
em que esse consentimento está previsto e é analisado.
14. A segurança do ordenamento jurídico obriga ao respeito total e na íntegra
pelas decisões transitadas em instâncias autónomas mesmo como pressuposto de
outras instâncias e com a correspondente natureza.
15. Por outro lado e quanto especificadamente ao art.º 1981.º do C. Civil já no
âmbito deste processo e em vários momentos processuais foi posto em crise pela
ora recorrente a questão da sua não audição na instância de adopção stricto
sensu.
16. Todavia e mais uma vez se salienta que, por douto Acórdão do Tribunal da
Relação de Lisboa, proferido no recurso de agravo que sob o n.º 1110/01 da 18.ª
Secção, foram expendidas doutas considerações nas quais se dizia que o processo
de confiança judicial não constitui um simples incidente do processo de adopção,
pois a Lei não o tipifica como tal, tratando-se, por isso, de um processo
proprio sensu embora com a especificidade de pressupor sempre a instauração
futura de um processo de adopção.
17. Em consequência, transitado em julgado o processo de confiança judicial no
qual como instância autónoma foi tomada em consideração e relevada a posição da
mãe natural do menor, ora recorrente, esta situação encontra-se plenamente
integrada no art.º 1981.º, n.º 1, alínea c), do C. Civil, sem qualquer
inconstitucionalidade que lhe possa ser imputada.
18. Quer isto dizer que, no momento processual próprio e adequado, e tendo
existido a instância prévia de confiança judicial, ficaram salvaguardados os
interesses da mãe natural e da sua efectiva audição, exigida por Lei e até pelas
leis em confronto.
19. Eventualmente poderia colocar-se a questão de se ter apurado nas instâncias
recorridas se a causa da doença de que a mãe natural padecia se encontrava ou
não sanada.
20. A verdade é que foi a própria mãe natural que por sua iniciativa decidiu
colocar a criança numa instituição de beneficência, o que veio a revelar-se a
decisão mais adequada perante a irreversibilidade da doença, que resulta da
prova dos autos.
21. Não colhe por isso qualquer afirmação constante nas alegações da recorrente
de inconstitucionalidade material do art. 1981.º, n.º 1, alínea c), do C. Civil.
22. E igualmente não resulta de nenhuma das disposições citadas que esse
consentimento tenha de ser prestado depois de a confiança judicial transitada em
julgado, se nela foram tomadas todas as precauções para que esse direito pudesse
ser devidamente exercido.
23. E confirmam as próprias alegações da recorrente que qualquer tomada de
posição da mãe do menor, em sentido diverso já teria sido tomada após o
correspondente trânsito em julgado.
24. Para além de tudo isso, a verdade é que a recorrente alega como dado
adquirido a sua recuperação sem ter curado sequer de demonstrar ou provar essa
mesma cura, aliás, afirmada em contradição com os relatórios e depoimentos
médicos anteriores.
25. A segurança do ordenamento jurídico obriga ao respeito total e na íntegra
pelas decisões transitadas em instâncias autónomas mesmo como pressuposto de
outras instâncias e com a correspondente natureza.
26. E como muito bem diz o douto Acórdão recorrido, a estabilidade criada pela
confiança judicial entre o menor e os futuros pais adoptivos não deve ser
afectada por uma eventual modificação das circunstâncias em que essa confiança
assenta, sendo esse o interesse do menor e o objectivo prosseguido pelo Direito
moderno nos domínios da adopção.
27. A análise da situação de acordo com o interesse do menor foi realizada e
definida já precisamente nestes actos, e em sede de confiança onde o Tribunal
valorou a protecção do menor e a defesa dos seus interesses nos termos do art.º
2.º da OTM.
28. Mesmo a norma constitucional brasileira citada é meramente remissiva para
uma disposição concreta, que não foi violada em sede de confiança judicial.
29. Deste modo, quer pela inaplicabilidade das normas de conflito invocadas,
quer pela forma e intangível conexão do art.º 60.º com a Lei Portuguesa, quer
ainda por que ao nível de confiança judicial, pressuposto da adopção, o Tribunal
não omitiu qualquer diligência da audição do mãe do menor, é com todo o devido
respeito, falho de razão e de base o presente recurso.
30. Não tendo havido qualquer violação material de Lei Constitucional,
substantiva ou adjectiva do douto Acórdão recorrido.»
Por despacho datado de 2 de Julho de 2004, foi a recorrente notificada para se
pronunciar, querendo, sobre a questão prévia de não conhecimento do recurso,
suscitada nas contra-alegações do Ministério Público, vindo dizer:
«I – Questão Prévia relativa ao Direito Internacional Privado:
(Artigo 60.º, n.º 4, do Código Civil)
A recorrente discorda, salvo o devido respeito, com a questão aflorada pelo
Ministério Público.
Com efeito, o equívoco perpetrado pelo Ministério Público, nesta posição,
refere-se ao facto de que, em matéria internacionalprivatística, a “ratio
decidendi” adoptada pelo douto acórdão recorrido não poderia sequer chegar ao
ponto de se aplicar o artigo 18.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Civil, in casu.
Isto porque, ao contrário do doutamente sustentado, o artigo 23.º, n.º 1, do
Código Civil, conforme referido pela recorrente, determina que a lei estrangeira
“é interpretada dentro do sistema a que pertence e de acordo com as regras
interpretativas nele fixadas”.
Segundo leccionou o emérito e saudoso Professor Ferrer Correia, a Teoria do
Reenvio Total ou “Foreign Court Theory” possui a ideia básica de que a
referência da norma de conflitos do foro, a determinada lei estrangeira, impõe
aos tribunais locais o dever de julgarem a causa tal como ela seria
provavelmente julgada no Estado onde a lei vigora.
Isto quer dizer, salvo melhor opinião, que o artigo 23.º, n.º 1, do Código
Civil, em complemento ao artigo 16.º do mesmo diploma, impõe a estrita
observância do sistema ad quem designado, na sua inteireza.
Pelo que, o sustentado pela recorrente em sede recursal não foram questões de
constitucionalidade atinentes às normas de conflitos e as questões de
constitucionalidade referentes às normas do direito estrangeiro, por via
daquelas aplicáveis ao caso, mas sim, que a norma de conflito brasileira (art.º
7.º da Lei de Introdução ao Código Civil), referenciada pelo Sistema de DIP
português sequer deveria ser aplicada, in casu.
Por supremacia hierárquica da própria Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988 que estabeleceu, como já sustentado em sede de recurso, o
princípio da reserva legal ao dispor através do artigo 227.º, parágrafo 5.º, que
somente a lei brasileira estabelecerá os casos e condições de sua efectivação
por parte de estrangeiros, impossibilitando assim, ope legis, pelo próprio
ordenamento ad quem, a aplicação do seu referido art.º 7.º do DL n.º 4.657/42,
de 4/9, bem como, por via reflexa, do artigo 18.º, n.º 1, do Código Civil
português, como sustentado pelo Ministério Público.
Conforme referido e leccionado pelo emérito Professor Moura Ramos:
“Com a introdução da possibilidade do controlo da constitucionalidade (sem
sentido próprio, e, portanto, à face do ordenamento ad quem) da lei estrangeira,
não está pois em causa qualquer nota específica das relações entre a
Constituição – enquanto estatuto político e documento ordenador da vida da
comunidade política – e o Direito Internacional Privado, mas antes e só uma
questão que tem a ver apenas com a determinação da lei estrangeira que é
realmente aplicada no sistema jurídico competente pela regra de conflitos do
foro.”
Desta forma, o douto acórdão recorrido laborou em equívoco e perpetrou a
suscitada inconstitucionalidade material, quando recusou aplicar a Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988, desconsiderando o disposto pelo
artigo 23.º, n.º 1, do Código Civil e interpretando o artigo 60.º, n.º 4, do
mesmo diploma como fez, pelo que a recorrente reitera em todos os seus termos as
alegações e conclusões produzidas a este respeito, rogando pelo conhecimento do
recurso, nesta matéria.
II – Questão Prévia relativa ao artigo 1981.º, n.º 1, al. c), do Código Civil:
Igualmente, ao contrário do doutamente sustentado pelo Ministério Público, a
matéria de facto, considerada provada pelo Supremo, indica, expressamente no seu
ponto “20” que “conforme se extrai dos vários documentos juntos aos autos, neste
exaustivo processo, a Recorrente sofre de esquizofrenia de tipo paranóide,
encontrando-se à data de 12 de Novembro de 1999, assintomática”.
Nestes termos, ao ter sido dado como provado que a 12/11/99, a recorrente
encontrava-se ASSINTOMÁTICA, verifica-se clara e objectivamente, que a mesma se
opôs à adopção de seu filho, antes mesmo da acção de adopção ter sido
distribuída.
Desta forma, o douto acórdão recorrido incidiu, salvo o devido respeito, na
interpretação destacada pela recorrente, no que concerne a suscitada
inconstitucionalidade material do artigo 1981.º, n.º 1, al. c), do Código Civil,
devendo o recurso interposto para este Venerando Tribunal Constitucional, ser
apreciado, no mínimo, quanto ao mérito, neste ponto, salvo o devido respeito.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3.O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei do Tribunal Constitucional, e, como se sabe, para se poder conhecer
deste tipo de recurso, torna-se necessário, a mais do esgotamento dos recursos
ordinários e de que a inconstitucionalidade normativa tenha sido suscitada
durante o processo, que a norma ou dimensão normativa impugnada tenha sido
aplicada, como ratio decidendi, pela decisão recorrida. As questões prévias
suscitadas, no sentido da impossibilidade de se tomar conhecimento do recurso,
prendem-se com o preenchimento deste último requisito, que importa averiguar.
4.No requerimento de recurso indicam-se duas normas, que a recorrente pretende
ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional, correspondentes a interpretações
normativas de preceitos do Código Civil:
· o artigo 60.º, n.º 4, do Código Civil, «quando interpretado e
aplicado no sentido de que “a adopção é permitida não obstante a recusa de
consentimento por parte da mãe do menor, mesmo quando a lei competente para
regular as relações entre esta e o adoptando não tenha dispensado a necessidade
do seu consentimento”», e
· o artigo 1981.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil, interpretado no
sentido de que “a necessidade do consentimento dos pais do adoptando acha-se
vinculada à não existência de confiança judicial, mesmo quando se verifique, por
ocasião do processo de adopção, o desaparecimento da circunstância anterior que
justificou a confiança, decorrente do facto de a mãe do menor, que se encontrava
mentalmente enferma durante o processo de confiança, ter recobrado a sua saúde e
manifestado a sua oposição à adopção, antes mesmo da conclusão do processo
referente a esta última”.
Começando por esta última dimensão normativa, verifica-se que, efectivamente, a
decisão recorrida considerou, no caso dos autos, “legítima a dispensa do
consentimento para a adopção”, invocando a existência de confiança judicial e os
seus fundamentos e efeitos, bem como o interesse do menor. Todavia, não pode
dizer-se que a decisão recorrida tenha afirmado a desnecessidade de
consentimento dos pais (no caso, da mãe) do adoptando, em caso de confiança
judicial, “mesmo quando se verifique, por ocasião do processo de adopção, o
desaparecimento da circunstância anterior que justificou a confiança, decorrente
do facto de a mãe do menor, que se encontrava mentalmente enferma durante o
processo de confiança, ter recobrado a sua saúde e manifestado a sua oposição à
adopção, antes mesmo da conclusão do processo referente a esta última” (itálicos
aditados).
Na verdade, e como salienta o Ministério Público, o que pode ler-se no acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça recorrido, depois de se referir à alegação do
desaparecimento do fundamento para a confiança judicial, é, antes, que “nada nos
autos permite concluir pela inexistência dos fundamentos que levaram à confiança
judicial do filho da Recorrente”. As considerações subsequentes, sobre a
legitimidade da dispensa do consentimento, estão subordinadas a uma hipótese que
não se deu por preenchida (“mesmo que assim fosse”). A interpretação normativa
identificada pela recorrente não constituiu, portanto, ratio decidendi para o
tribunal recorrido, antes este começou logo por afirmar a falta de elementos nos
autos que permitissem concluir pela inexistência dos fundamentos que levaram à
confiança judicial. E, como se sabe, o Tribunal Constitucional não pode
controlar a exactidão desta última afirmação.
Não pode, pois, tomar-se conhecimento do presente recurso, na parte em que
incide sobre a interpretação do artigo 1981.º, n.º 1, alínea c), do Código
Civil, enunciada pela recorrente, pois o tribunal recorrido apoiou-se, antes, na
consideração de que nada nos autos permitiria concluir pela inexistência ou
desaparecimento “dos fundamentos que levaram à confiança judicial do filho da
Recorrente”.
5.Pretende também a recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a
conformidade com a Constituição da República Portuguesa da norma do artigo 60.º,
n.º 4, do Código Civil, «quando interpretado e aplicado no sentido de que “a
adopção é permitida não obstante a recusa de consentimento por parte da mãe do
menor, mesmo quando a lei competente para regular as relações entre esta e o
adoptando não tenha dispensado a necessidade do seu consentimento”». Recorde-se
a redacção desse artigo 60.º (dada pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de
Novembro):
“Artigo 60.º (Filiação adoptiva)
1. À constituição da filiação adoptiva é aplicável a lei pessoal do adoptante,
sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2. Se a adopção for realizada por marido e mulher ou o adoptando for filho do
cônjuge do adoptante, é competente a lei nacional comum dos cônjuges e, na falta
desta, a lei da sua residência habitual comum; se também esta faltar, será
aplicável a lei do país com o qual a vida familiar dos adoptantes se ache mais
estreitamente conexa.
3. As relações entre adoptante e adoptado, e entre este e a família de origem,
estão sujeitas à lei pessoal do adoptante; no caso previsto no número anterior é
aplicável o disposto no artigo 57º.
4. Se a lei competente para regular as relações entre o adoptando e os seus
progenitores não conhecer o instituto da adopção, ou não o admitir em relação a
quem se encontre na situação familiar do adoptando, a adopção não é permitida.”
A este respeito, o que pode ler-se na decisão recorrida, e que se recorda do que
supra se transcreveu, é o seguinte:
«Estabelece o artigo 60.º, n.º 1, [do Código Civil] que “à constituição da
filiação adoptiva é aplicável a lei pessoal do adoptante, sem prejuízo do
disposto no número seguinte”, que em nada releva no presente caso. E o n.º 4
dispõe que “Se a lei competente para regular as relações entre o adoptando e os
seus progenitores não conhecer o instituto da adopção, ou não o admitir em
relação a quem se encontre na situação familiar do adoptando, a adopção não é
permitida”.
Ora, sendo a lei competente para regular as relações entre a Recorrente e seu
filho, lei pessoal daquela (artigo 57.º, n.º 2, do mesmo Código), ou seja, a lei
brasileira, importa averiguar o que esta lei dispõe relativamente à constituição
do vínculo da adopção.
Considera a Recorrente que os artigos 227.º, § 5, da Constituição da República
Federativa do Brasil e o artigo 45.º da Lei Federal n.º 8.069 exigem o
consentimento pessoal dos pais do adoptando, consentimento este que só pode ser
dispensado em caso de inibição do poder paternal, que no presente caso não foi
decretada.
No entender da Recorrente o artigo 7.º da Lei de Introdução ao Código Civil
Brasileiro (Decreto-Lei n.º 4.657, de 4 de Setembro de 1942), ao remeter para a
lei do domicílio a regulação da constituição do vínculo da adopção é
incompatível com aquelas disposições.
Quanto a esta questão importa observar que não compete aos tribunais portugueses
apreciar a questão da inconstitucionalidade em causa, sendo, aliás, possível que
as disposições mencionadas da Constituição Brasileira e da Lei Federal sejam
aplicáveis apenas nos casos em que é aplicável a lei brasileira.
Nestas condições, é apenas aplicável o direito português, país da residência
habitual da Recorrente (artigo 18.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).
Afigura-se, pois, irrelevante a questão que se prende com a ausência de processo
de inibição do poder paternal, requisito que não existe no direito português, no
caso em apreço, como veremos.»
Resulta destas considerações que o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que era
irrelevante a inexistência de processo de inibição de poder paternal por ser
aplicável o direito português, que o dispensa, e, para concluir pela
aplicabilidade do direito português, invocou o reenvio para a lei portuguesa,
nos termos do artigo 18.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, conjugado com o artigo
7.º da Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro e com a circunstância de a
recorrente ter a sua residência habitual em território português (conclusão,
esta última, que também não pode estar em causa na presente sede). Dispõe, com
efeito, o referido artigo 7.º da citada Lei de Introdução ao Código Civil
brasileiro (Decreto-Lei n.º 4.657, de 4 de Setembro de 1942):
«Art. 7.º – A lei do país em que for domiciliada a pessoa determina as regras
sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de
família.
(…)
§ 8.º – Quando a pessoa não tiver domicílio, considerar-se-á domiciliada no
lugar de sua residência ou naquele em que se encontre.»
Por sua vez, o citado artigo 18.º do Código Civil Português dispõe, no n.º 1,
que “[s]e o direito internacional privado da lei designada pela norma de
conflitos devolver para o direito interno português, é este o direito
aplicável”, e, no n.º 2, que “[q]uando, porém, se trate de matéria compreendida
no estatuto pessoal, a lei portuguesa só é aplicável se o interessado tiver em
território português a sua residência habitual ou se a lei do país desta
residência considerar igualmente competente o direito interno português”.
A recorrente sustenta que o artigo 7.º da citada Lei de Introdução ao Código
Civil brasileiro é inconstitucional, por violação da Constituição da República
Federativa do Brasil, pelo que não deveria ter sido aplicado – dizendo “que o
artigo 23.º, n.º 1, do Código Civil, em complemento ao artigo 16.º do mesmo
diploma, impõe a estrita observância do sistema ad quem designado, na sua
inteireza”, e que a decisão recorrida “recusou aplicar a Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, desconsiderando o disposto pelo artigo
23.º, n.º 1, do Código Civil e interpretando o artigo 60.º, n.º 4, do mesmo
diploma como fez”, pelo que, reiterando as conclusões das suas alegações,
defendeu que a decisão recorrida aplicou o citado artigo 60.º, n.º 4, na
dimensão que se identificou.
Ora, como é sabido, o Tribunal Constitucional não tem poderes para apreciar a
constitucionalidade de uma norma de direito estrangeiro (no caso, o citado
artigo 7.º) à luz de um parâmetro constitucional também estrangeiro (a invocada
norma da Constituição brasileira). E a própria recorrente salienta que o que
veio invocar “não foram (…) questões de constitucionalidade referentes às normas
do direito estrangeiro (…) mas, sim, que a norma de conflito brasileira (art.º
7.º da Lei de Introdução ao Código Civil), referenciada pelo Sistema de DIP
português sequer deveria ser aplicada, in casu”.
Verifica-se, porém, que o acórdão recorrido aplicou o artigo 7.º da Lei do
Introdução ao Código Civil brasileiro, não por força de qualquer interpretação
do artigo 60.º, n.º 4, do Código Civil português – pois de qualquer modo este,
para prever uma limitação à solução resultante da lei aplicável, designadamente,
nos termos do n.º 1 desse artigo 60.º (a lei pessoal do adoptante), apenas
remeteria para o direito material da “lei competente para regular as relações
entre o adoptando e os seus progenitores” –, mas apenas, como passo
incontornável, por força do mecanismo do reenvio para a lei portuguesa previsto
no artigo 18.º do Código Civil português: depois de considerar que “a lei
competente para regular as relações entre a Recorrente e seu filho” era a “lei
pessoal daquela (artigo 57.º, n.º 2, do mesmo Código), ou seja, a lei
brasileira”, o Supremo Tribunal de Justiça, afirmando que não competia aos
tribunais portugueses apreciar a questão da inconstitucionalidade do artigo 7.º
da Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro, concluiu, por invocar o artigo
18.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, que era apenas “aplicável o direito
português, país da residência habitual da Recorrente”. Foi, pois, apenas por
entender que a lei brasileira, no artigo 7.º da Lei de Introdução ao Código
Civil, remete para a lei da residência habitual, além do mais, a regulação da
constituição do vínculo da adopção, e por entender que esse artigo 7.º era
aplicável por força do artigo 18.º do Código Civil português, que o tribunal
recorrido entendeu que era aplicável apenas a lei portuguesa.
Poderá, porém, ainda entender-se, numa certa perspectiva, que o artigo 18.º do
Código Civil, sobre o “reenvio para a lei portuguesa”, é uma regra que se
destina a ser aplicada conjuntamente com a regra de conflitos nacional em causa
(no caso, as regras do artigo 60.º, n.ºs 1 e 4) que desencadeiam a sua
aplicação, e como forma de complementação da estatuição destas regras, não se
tornando assim indispensável uma suscitação e impugnação autónoma das regras
sobre o reenvio quando se imputa a inconstitucionalidade a essas regras de
conflitos.
6.Analisando a interpretação do artigo 60.º, n.º 4, do Código Civil identificada
pelo recorrente, verifica-se, no entanto, que ela se refere também a um
pressuposto que o tribunal a quo implicitamente põe em causa – designadamente, o
de que “a adopção é permitida não obstante a recusa de consentimento por parte
da mãe do menor, mesmo quando a lei competente para regular as relações entre
esta e o adoptando não tenha dispensado a necessidade do seu consentimento”
(itálico aditado).
É certo que o tribunal recorrido começa por afirmar que a lei competente para
regular as relações entre a recorrente e o seu filho era a lei pessoal daquela,
“ou seja, a lei brasileira”. Mas logo de seguida aplicou o artigo 7.º da Lei de
Introdução ao Código Civil Brasileiro, nos termos do qual é a lei do país em que
estiver domiciliada a pessoa que determina em geral “os direitos de família”, e
portanto, também as relações entre a mãe e o adoptando, para concluir, por
aplicação desse artigo 7.º da citada Lei de Introdução e do artigo 18.º, n.ºs 1
e 2, do Código Civil Português, que, “[n]estas condições, é apenas aplicável o
direito português”.
A recorrente – note-se – não impugnou frontalmente a constitucionalidade das
regras do sistema português de adopção, que permite em casos como o presente, de
confiança judicial do menor, a dispensa do consentimento da mãe para a adopção,
regras, essas, já aplicadas desde a 1.ª instância. Nem sequer suscitou, como
questão autónoma, a inconstitucionalidade de normas que permitissem a dispensa,
não só do seu consentimento, como da sua audição. Por tal razão, o Tribunal
Constitucional não pode pronunciar-se sobre as questões de constitucionalidade
que tais regras poderão suscitar.
Antes a recorrente pôs sempre a questão, quer nas instâncias, quer perante o
Tribunal Constitucional, à luz das regras do direito que entendia aplicável,
isto é, da lei (e até da conformidade com a Constituição) brasileira, quando
desde a 1.ª instância se defendeu que o direito aplicável era, antes, o
português (por aplicação do sistema do reenvio, segundo a posição da decisão
recorrida).
Por insistir sempre na aplicação do direito brasileiro e, também, da
Constituição Federal Brasileira, de 1988, a recorrente acabou por imputar a
inconstitucionalidade a uma alegada “interpretação” do preceito (o referido
artigo 60.º, n.º 4) que, com uma estatuição material, impede a adopção quando
esta, apesar de permitida pela lei aplicável segundo as regras de conflitos
anteriores (designadamente o artigo 60.º, n.º 1), não for conhecida, ou não for
admitida em relação a quem se encontre na situação familiar do adoptando, pela
lei competente para regular as relações entre o adoptando e os seus
progenitores.
Não cumpre aqui apreciar a adequação da “estratégia processual” adoptada pela
recorrente, optando por insistir na aplicação das regras do direito brasileiro,
que lhe eram favoráveis, em vez de pôr em causa as regras do sistema português
de adopção, na parte em que permitem a dispensa do consentimento da mãe em casos
de confiança judicial do menor, que as instâncias haviam considerado aplicáveis.
Mas tem de concluir-se que não pode apreciar-se a constitucionalidade das regras
desse sistema, na parte em que dispensam o consentimento da mãe em caso de
confiança judicial, a propósito de uma alegada “interpretação” da norma do
artigo 60.º, n.º 4, do Código Civil. Desde logo, tais regras subsistiriam com
independência do juízo sobre este artigo 60.º, n.º 4, que apenas contém uma
regra para os casos em que a lei que regula as relações entre os progenitores e
o adoptando não admitia a adopção de quem se encontrasse na situação familiar do
adoptando. E, no presente caso, a referida “interpretação” deste preceito, além
de contrariar o seu teor literal, não foi sequer aplicada como ratio decidendi,
pois o que o tribunal recorrido entendeu, por aplicação do artigo 18.º do Código
Civil Português e do artigo 7.º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro,
foi que era apenas aplicável o direito português, por isso podendo concluir que,
num caso como o dos autos, não era necessário o consentimento ou a prévia
inibição de poder paternal.
Não tendo, pois, a norma impugnada sido aplicada pelo tribunal recorrido como
ratio decidendi, não pode o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do
presente recurso de constitucionalidade, também nesta parte.
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento
do presente recurso.
Custas pela recorrente, com 3 ( três ) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 16 de Novembro de 2006
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos