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Processo nº 720/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é
reclamante A. e reclamado o Ministério Público, foi deduzida reclamação, ao
abrigo do disposto no artigo 76º, nº 4, da Lei da Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho proferido naquele
Tribunal, em 13 de Julho de 2006, que decidiu não admitir, por intempestividade,
recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
2. Em 16 de Maio de 2006, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu no sentido da
execução de dois mandados de detenção europeus de A., emitidos na Alemanha, com
suspensão da entrega da pessoa procurada, para o efeito de ser sujeita a
procedimento criminal pendente em Portugal.
Interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, foi negado provimento ao
mesmo, por acórdão de 22 de Junho de 2006, com os seguintes fundamentos:
«NULIDADE DO ACÓRDÃO RECORRIDO POR FALTA DE PRONÚNCIA?
O recorrente vem arguir a nulidade do acórdão recorrido, nos termos dos art.°s
379.°, n.° 1, al. c) e 425.°, n.° 4, do CPP, por não se te pronunciado sobre uma
questão que tinha sido suscitada nos autos e que é fundamental para a decisão da
causa, a violação do princípio “ne bis in idem”.
Contudo, toda a fundamentação do acórdão recorrido, que nem sequer é escassa, é
sobre essa problemática, como se pode ver por esta transcrição:
« As citadas alíneas b, e h, do art. 12, prevêem a recusa facultativa de
execução do mandado de detenção europeu se “estiver pendente em Portugal
procedimento penal contra a pessoa procurada pelo facto que motiva a emissão do
mandado de detenção europeu” (al. b) e se “o mandado de detenção europeu tiver
por objecto infracção que ... segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, em
todo ou em parte, em território nacional...” (al. h).
No caso, como resulta de fls. 243 e segs. e de fls. 312, está pendente em
Portugal procedimento contra o opoente por crime de trafico de estupefacientes
agravado pelos factos descritos a fls.243
Posteriormente ao acórdão de fls.265, veio a apurar-se que, em relação a essa
acusação não foi requerida instrução, encontrando-se o processo em fase de
julgamento (processo C. C. nº148/05. 5JELSB da 3ª Secção, da 5ª Vara Criminal de
Lisboa).
Como resulta da certidão junta aos autos, nesse processo é imputado ao opoente o
facto de, em 24Abr.05, em Lisboa com outro, deter 15202,8gr. de cocaína
destinada à cedência a terceiros, dizendo-se na acusação ainda, que o mesmo
vinha sendo investigado na Alemanha por, concertadamente com outros, vir-se
dedicando desde início de 2004, à introdução de cocaína e outros produtos
estupefacientes na Europa.
Importa, assim, saber se o procedimento criminal que corre em Portugal é pelo
facto que motiva a emissão dos mencionados mandados de detenção europeu
A possibilidade de recusa da execução do mandato por esse fundamento ao
contrário do que parece pretender alegar o opoente não se destina a evitar a
violação do princípio ne bis in idem, pois este pressupõe a existência de um
decisão transitada em julgada, hipótese em que ocorre fundamento de recusa
obrigatória (art. 11, al.b).
A pendência de procedimento criminal pelo mesmo facto nos dois estados, apenas
cria a potencialidade de vir a ocorrer violação de tal princípio e reconduz-se
antes, à figura da litispendência que se traduz na repetição de uma causa
estando a anterior pendente
O Código de Processo Penal não regula a figura da litispendência o que justifica
a aplicação subsidiária da disciplina do Código de Processo Civil, sendo os seus
limites os mesmos do caso julgado.
Olhando aos factos descritos em cada um dos mandados de detenção em causa, em
nenhum deles se descreve os factos ocorridos em Lisboa em 24Abr.05 (detenção
pelo opoente de cocaína com o peso bruto de 15202,8gr.), tendo os últimos actos
descritos em tais mandados ocorrido em Jan.05, não sendo tais factos, também,
descritos na acusação formulada no processo n°148/05. 5JELSB.
Defende o opoente, porém, que todos os factos, os do processo pendente em
Portugal e os dos mandados recebidos da Alemanha, integram a mesma actividade,
de trafico de estupefacientes o que constitui um único crime, objecto do
julgamento em Portugal, dessa forma estando preenchida a citada alínea b, do
art. 12.
De facto, como resulta da própria letra do art.21, do Dec. Lei n°15/93, de 22-1,
o crime de trafico é um crime de mera actividade, punindo quem, sem autorização,
cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda,
vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar
a outrem, transportar, importar, exportar, fazer transitar ou ilicitamente
detiver estupefaciente.
Isso não exclui, porém, a possibilidade do mesmo agente poder ser condenado por
mais de um crime dessa natureza, tudo dependendo das circunstâncias concretas de
cada caso.
Na verdade, tudo depende da existência de unidade de desígnio e intenção
criminosa.
Como refere o Prof Eduardo Correia (…) “... verificado que entre as actividades
do agente existe uma conexão no tempo tal que, de harmonia com a experiência
comum e as leis psicológicas conhecidas, se deva presumir tê-las executado a
todas sem renovar o respectivo processo de motivação, estamos em presença de uma
unidade jurídica, de uma só infracção”.
Com base nos elementos disponíveis nos autos não é possível concluir pela
unidade ou pluralidade de resoluções criminosas.
Contudo, mesmo na hipótese de se tratar de um único crime de trafico de
estupefacientes, com actos parcelares praticados na Alemanha e em Portugal,
entendemos que a pendência do referido processo em Portugal com o objecto que é
definido pela acusação junta aos autos não justifica a recusa de entrega do
opoente.
Com efeito, recusar a entrega significaria deixar impune grande parte da
actividade de tráfico desenvolvida pelo opoente, o que não pode deixar de
repugnar. Embora toda a actividade possa constituir um único crime, em termos de
ilicitude e culpa, não é indiferente o conhecimento e ponderação de certos
factos parcelares que integrando a actividade não constam do processo n°148/05.
Ao contrário do que defende o opoente, os actos parcelares integradores da
actividade de tráfico por ele desenvolvida e que são descritos nos MDE em causa,
não lhe são imputados na acusação formulada no C.C. n°148/05. Nesta acusação, o
Ministério Público, limita-se a alegar que o arguido “… já se vinha dedicando,
pelo menos desde inícios de 2004, à introdução de cocaína e outros produtos na
Europa... factos que estavam a ser investigados pelas autoridades alemães que o
apontam como responsáveis pelo transporte ... de pelo menos cerca de 100Kgs. de
cocaína…” , sendo tal alegação feita, apenas, como forma de enquadrar os actos
praticados em Lisboa, em particular o crime de falsificação que lhe é imputado e
relativo à sua identificação.
De texto da acusação, é evidente que o Ministério Público não acusa o arguido de
actos ocorridos na Alemanha, se o fizesse não se louvaria em investigações
feitas pelas autoridades alemães, mas em investigações levadas a cabo no
inquérito de Lisboa, pois para deduzir acusação teriam de constar dele os
indícios suficientes da verificação do crime (art.283, n°1, do CPP) e teria a
acusação desses factos de ser feita com a precisão exigida pela alínea b, do
n°3, do art.283, do CPP, quanto às circunstâncias de tempo e lugar de ocorrência
dos factos e não da forma genérica como são referidos os actos da Alemanha. Por
outro lado, na parte da acusação em que é feita referência aos elementos
subjectivos dos crimes imputados e à motivação da conduta (n°s24 a 26 e 37 da
acusação) nada é dito quanto aos actos, alegadamente, ocorridos na Alemanha.
Assim, da actividade de tráfico alegadamente desenvolvida pelo opoente só é
imputado no processo de Lisboa o acto parcelar de 24Abr. 05.
Aceitar que o simples facto do opoente responder por aquele acto trafico em
Portugal impede que o mesmo seja submetido a julgamento na Alemanha, por outros
actos parcelares, eventualmente integradores da mesma actividade, mas diferentes
dos apreciados em Portugal, seria admitir, como referimos, que parte da
actividade ilícita ficasse impune, já que, nunca poderia no processo pendente em
Portugal ser proferida uma decisão que tivesse em conta o real grau da ilicitude
e da culpa, o que pressupõe apreciação, também, dos actos concretos descritos
nos dois mandados de detenção em causa que, como vimos, não estão no âmbito do
objecto do processo de Lisboa.
Numa Europa, onde as leis são cada vez mais iguais umas às outras e os Estados,
cada vez menos países, integrados numa União com objectivo de tornar-se um
espaço de liberdade, de segurança e de justiça, constituindo o regime jurídico
do mandado de detenção europeu um regime simplificado de entrega de pessoas e um
instrumento de combate à criminalidade internacional, é óbvio que este regime
jurídico não pode servir para abrir a porta à impunidade, ainda que parcial, de
certos comportamentos que integram actividades ilícitas, cujo combate constitui
prioridade dos Estados e das Instituições da União.
Não sendo possível a apreciação global, no processo pendente em Portugal, de
todos os actos parcelares que integram a actividade ilícita em causa, porque
esses factos não constam da acusação e não houve delegação do procedimento penal
pelos actos ocorridos na Alemanha nas autoridades portuguesas (arts. 79 e segs.
da Lei n°144/99, de 31-8), só um segundo julgamento, neste caso na Alemanha,
apreciando globalmente os factos e respeitando o caso julgado formado entretanto
em relação à decisão portuguesa, permitirá uma adequada e suficiente apreciação
penal da conduta global. (…)
Esta solução não ofende o caso julgado (…) , uma vez que os factos do segundo
processo não coincidem com os do primeiro, nem o princípio ne bis in idem, pois
este tem subjacente uma ideia de limitação do poder punitivo do estado,
considerando o carácter punitivo repressivo do Direito Penal, assim como a ideia
de que a cada indivíduo será aplicada a sanção correspondente e suficiente para
os seus actos (princípio da proporcionalidade), sendo certo que só a
possibilidade de um julgamento que tenha como objecto toda a actividade permite
encontrar a sanção adequada.(…)
Não são violados, ainda, princípios constitucionais, nem os direitos de defesa
do arguido, já que existem mecanismos jurídicos na União que os salvaguardam. É
o caso da Convenção entre Estados Membros das Comunidades Europeias Sobre
Aplicação do Princípio “ne bis in idem “, aprovada para ratificação em Portugal
pela Resolução da Assembleia da República n°22/95, de 11 Abr., de que a Alemanha
é parte e do Acordo de Schengen, que no seu art. 54 e segs. prevê a aplicação do
princípio ne bis in idem.
Só numa interpretação literal da alínea b, do art. 12, do regime jurídico do
mandado de detenção europeu se pode defender que a simples pendência em Portugal
de acusação por trafico de estupefacientes agravado, obsta a que o agente possa
ser entregue a outro país da União para ser julgado por acto parcelares da mesma
actividade ilícita não tidos em conta no processo pendente no nosso país.
Com efeito, na definição do que seja facto que motiva a emissão” (expressão
usada naquela alínea b), teremos de recorrer ao conceito que nos é dado por
Figueiredo Dias (…) de facto punível, como sendo ‘formado pelo tipo de ilícito e
pelo tipo de culpa como pressupostos categoriais sistemáticos mínimos enquanto
expressões de dignidade penal tipicizada”
Ora, pelo que decorre do que antes dissemos, não existe coincidência total entre
o facto que constitui objecto do processo pendente em Portugal e aqueles a que
se refere cada um dos mandados, só sendo possível uma apreciação adequada da
ilicitude e da culpa em hipótese de submissão do agente a julgamento por todos
os factos.
Quanto ao fundamento de recusa previsto na alínea h, do art. 12, n°1, da Lei
n°65/03, também não ocorre, pois os mandados de detenção não têm por objecto os
actos concretos que são imputados ao opoente no inquérito n°148/05.5JELSB, não
sendo os actos parcelares descritas nos MDE necessários para preenchimento dos
elementos do tipo por que o arguido está acusado em Portugal (o acto que lhe é
imputado como tendo ocorrido em Lisboa preenche, só por si os elementos do crime
de trafico), sendo certo que no conceito de infracção previsto nessa alínea deve
entrar a noção de facto punível antes referida.
Concluindo:
Na definição dos conceitos de facto que motiva a emissão” e “infracção”
mencionados nas alíneas b, e h, do art. 12, n°1, da Lei n°65/03, como fundamento
de recusa facultativa da execução de mandado de detenção europeu, deve ser tido
em conta não só o tipo de ilícito, mas também o tipo de culpa, por forma que a
pendência de procedimento criminal no país de execução não impeça a apreciação
penal no país de emissão do mesmo tipo de ilícito, mas integrado por actos
concretos diferentes e susceptíveis de revelar graus de ilícito e culpa
diferentes.
Num crime de tráfico de estupefacientes, com prática de actos parcelares em
Portugal e na Alemanha, a pendência em Portugal de processo por um acto parcelar
dessa actividade, não obsta à entrega do agente à Alemanha, onde foram
praticados outros actos parcelares daquela actividade ilícita, só assim sendo
possível uma apreciação global da ilicitude e da culpa do agente, não derivando
daí qualquer prejuízo para os direitos de defesa do arguido, uma vez que o
estado Alemão se vinculou por convenção a respeitar o princípio ne bis in idem.
Obedecendo os mandados de detenção emitidos pela Alemanha a todos os requisitos
legais, não ocorrente fundamento de recusa voluntária, nem de recusa
facultativa, deve o opoente ser entregue ao Estado emitente, com execução
diferida nos termos do art. 31, n°1, do regime jurídico em causa, para que o
mesmo seja sujeito ao procedimento criminal pendente em Portugal. »
A transcrição da fundamentação do acórdão recorrido demonstra que é improcedente
a arguição de nulidade por falta de pronúncia sobre a questão da alegada
violação do princípio “ne bis in idem”, pois aí se trata desta temática de forma
completa, quase que diríamos exaustiva.
O recorrente entende, porém, que o tribunal recorrido devia ter decidido de
forma clara se os factos investigados em Portugal e na Alemanha constituem um só
crime de tráfico de estupefacientes, pois só assim se daria resposta ao problema
suscitado.
E, na verdade, a decisão recorrida respondeu que «com base nos elementos
disponíveis nos autos não é possível concluir pela unidade ou pluralidade de
resoluções criminosas.».
Mas esta afirmação não corresponde a um “non liquet” como triunfalmente anuncia
o recorrente e nem sequer a uma falta de pronúncia, pois o Acórdão recorrido
responde que essa questão é irrelevante para a decisão sobre a entrega ou não
entrega do opoente («Contudo, mesmo na hipótese de se tratar de um único crime
de trafico de estupefacientes. com actos parcelares praticados na Alemanha e em
Portugal, entendemos que a pendência do referido processo em Portugal com o
objecto que é definido pela acusação junta aos autos não justifica a recusa de
entrega do opoente.). E depois destas afirmações, a decisão recorrida explica
abundantemente os motivos da opção tomada.
Em suma, o recorrente entende que a questão de se saber se estamos ou não
perante um único crime é fulcral para decidir se está verificada a causa
facultativa de oposição à execução do mandado de detenção europeu prevista no
art.° 12.°, n.° 1, al. b). Pelo contrário, o acórdão recorrido entende que tal
não é relevante, pois a pendência de um processo em Portugal por crime cometido
parcelarmente no seu território, não justifica a recusa de entrega do opoente à
Alemanha se aí estiver a ser investigado por outra parcela do crime que aí tenha
sido executada.
Portanto, não se está face a uma falta de pronúncia sobre a questão em causa,
mas perante um diverso entendimento entre o Acórdão recorrido e a opinião do
recorrente.
Não se verifica, pois, a nulidade por falta de pronúncia, nos termos dos art.°s
379.º, n.° 1, al. c) e 425.°, n.° 4, do CPP.
NE BIS N IDEM?
O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado
membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa
procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena
ou medida de segurança privativas da liberdade (art.° 1.º, n.° 1, do Lei n.°
65/2003, de 23 de Agosto). O mandado de detenção europeu é executado com base no
princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente
lei e na Decisão Quadro n.° 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho (n.° 2).
Trata-se de um instrumento destinado a reforçar a cooperação entre as
autoridades judiciárias dos Estados-Membros suprimindo o recurso à extradição,
pelo que os seus procedimentos são expeditos e com prazos reduzidos, embora com
total salvaguarda dos direitos constitucionais de defesa.
A lei prevê causas de recusa obrigatória de execução do mandado (art.° 11) e
outras que são de recusa facultativa (art.° 12.°).
A recusa facultativa, como já decidiu este STJ (Ac. de 17-03-2005, rec.
1135/05-5, relator Cons. Pereira Madeira), «não pode ser concebida como um acto
gratuito ou arbitrário do tribunal. Há-de, decerto, assentar em argumentos e
elementos de facto adicionais aportados ao processo susceptíveis de adequada
ponderação, nomeadamente invocados pelo interessado, que, devidamente
equacionados, levem o tribunal a dar justificada prevalência ao processo
nacional sobre o do Estado requerente».
Ora, o cidadão A., nacional do Líbano, foi alvo de três mandados de detenção
europeus, emitidos pelo Ministério Público de Berlim, um por falsificação de
documentos e entrada ilegal e dois outros por crimes de tráfico de
estupefacientes.
Em relação ao primeiro, já foi ordenada a sua execução, por decisão transitada
em julgado, embora ainda não tenha sido efectivamente executada, pois o referido
cidadão está em prisão preventiva em Portugal à ordem de um processo por tráfico
de estupefacientes, cometido no território nacional.
No que toca aos outros dois mandados de detenção europeus, o mesmo cidadão
opôs-se à sua execução, alegando que se verificam as alíneas b) e h) do n.° 1 do
referido art.° 12.°, que são motivos de recusa facultativa e que rezam assim:
«1. A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando:
b) Estiver pendente em Portugal procedimento penal contra a pessoa procurada
pelo facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu;
. . . h) O mandado de detenção europeu tiver por objecto infracção que:
i) Segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, em todo ou em parte, em
território nacional...».
A procedência de qualquer um destes motivos que o requerido invocou para recusa
facultativa de execução dos MDE radica na existência de “um único facto
criminoso”, que abarcaria os factos pelos quais está a ser julgado em Portugal e
os factos que constam dos mandados de detenção europeus de fls. 32 e 126.
Contudo, pelo quadro que se segue, em que se indicam as datas, os locais, as
quantidades de droga e os co-arguidos do recorrente, respectivamente, no
processo que corre termos em Portugal e nos mandados de detenção de fls. 32 e
126, pode ver-se que não se tratam dos mesmos factos:
PROCESSOSDATAS LOCAIS DROGA CO-ARGUIDOS
Proc.
148/05. 5JELSB 24-04-2005 Lisboa, proveniência desconhecida 15,2028 kg de
cocaína B.
MDE de fls. 32 Março 2004
Abril ou Maio
de 2004 Berlim, proveniência dos Países Baixos 100 kg haxixe e 3 kg
cocaína
100 kg cocaína
MDE de fls. 126 27-02-2004
Novembro de
2004
Novembro -
Dezembro
31 Janeiro
2005 Bruxelas
Berlim
Berlim
Berlim
Todos proveniência de
S. Paulo 6,031 kg cocaína
cocaína (quantidade desconhecida)
cocaína (quantidade desconhecida)
20,23 kg cocaína C., o D., E., F., G., H. e I
É visível que nem as datas, nem as quantidades, nem os locais, nem os
co-arguidos coincidem.
Como se permite o recorrente, então, invocar que estamos perante o mesmo facto?
Não é o mesmo facto do ponto de vista naturalístico. Não é o mesmo facto também
do ponto de vista jurídico.
É evidente que não se desconhece a jurisprudência dominante neste STJ de que o
tráfico de estupefacientes é um crime de actividade e que, por isso, quando há
uma homogeneidade da conduta reprodutível a uma mesma prática prolongada no
tempo, unifica-se tal conduta a um só crime de execução continuada, o crime de
trato sucessivo (vejam-se, por exemplo, os Acs. STJ de 19/01/1994, proc. n°
45826, de 10/05/1995, proc. n° 47129, de 08/11/1995, proc. n° 47714, de
15/11/1995, proc. n°47721, de 17/01/1996, proc. n°48685, de 02/05/1996, proc.
n°26/96, etc.).
Mas, essa homogeneidade tem de resultar da apreciação global dos factos e não
existe só porque o agente é o mesmo no número de condutas considerado. Na
verdade, o mesmo indivíduo pode cometer ao longo do tempo vários crimes de
tráfico que não devem ser unificados, bastando que haja diversas resoluções
criminosas, de acordo com as regras definidas no art.° 30.° do C. Penal. O mesmo
agente pode, inclusivamente, cometer diversas actividades paralelas de tráfico
de droga, em circunstâncias distintas e correspondentes a resoluções criminosas
distintas, não havendo então um só crime, mas tantos crimes quantas as
resoluções.
No caso em apreço, não há factos que permitam reconduzir a conduta do recorrente
em Portugal às condutas que se investigam na Alemanha e homogeneizá-las numa só
conduta de trato sucessivo.
Na acusação formulada em Portugal, os primeiros factos (o arguido actuando
concertadamente com outros indivíduos não totalmente identificados já se vinha
dedicando, pelo menos desde inícios de 2004, à introdução de cocaína e outros
produtos estupefacientes na Europa...factos que estavam a ser investigados pelas
autoridades alemãs que o apontam, bem como aos demais indivíduos que com ele
actuam concertadamente, como responsáveis pelo transporte desde a América do Sul
e subsequente introdução, por via aérea, na Europa de pelo menos cerca de 100
kgs de cocaína) são factos que enquadram a investigação policial que levou à
captura do ora recorrente, mas que não lhe imputam, por si mesmos, qualquer
responsabilidade criminal, tanto mais que se desconhece se a cocaína apreendida
em Portugal era proveniente da América do Sul como está no preâmbulo.
Tal como são de enquadramento policial os factos iniciais do MDE de fls. 126
(...juntaram-se para, com alternância dos graus de participação, com interesse
comum, e para obtenção comum de lucros, comprar cocaína em volume de
respectivamente 15 a 20 quilos (bruto,) com um teor de pureza quase sempre em
torno de 80%, e para realizar o transporte aéreo através de transportadores
respectivamente organizados, transportando os estupefacientes em malas do Brasil
para a Alemanha e outros países europeus, e lá vendê-los). Estes factos nada nos
dizem sobre a droga que mais tarde foi apreendida em Portugal, mas sobre a droga
que foi vendida em Bruxelas e em Berlim.
Assim, não há identidade de factos, nem no espaço nem no tempo, apenas um dos
agentes é o mesmo, mas já não os outros co-responsáveis.
Por isso, pode afirmar-se com segurança que não está pendente em Portugal
procedimento penal contra a pessoa procurada pelo facto que motiva a emissão dos
mandados de detenção europeus, ou que estes têm por objecto infracção que
segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, em todo ou em parte, em território
nacional. Falecem, deste modo, as razões do recorrente para deduzir uma oposição
facultativa, isto é a que o tribunal poderia levar em conta na ponderação dos
interesses em jogo, relativamente à execução dos MDE.
É certo que não está excluído que se possa vir a apurar que os factos ocorridos
em Portugal e os que são alvo de procedimento na Alemanha estão de tal modo
interligados e gozam de uma tal homogeneidade que a ordem jurídica os pode
unificar num único crime de trato sucessivo, em que a ilicitude é a
correspondente a um tráfico durante “x” tempo, relativamente a uma quantidade
“y” de droga, em que interveio um número “z” de comparticipantes. Porém, esse é
um cenário que não está no enquadramento actual e que só pode equacionar-se após
o julgamento das respectivas questões de fundo que se vão colocar caso a caso.
É, portanto, uma questão de fundo e que nada tem de preliminar nesta fase
processual.
Não é no âmbito da validação judicial da execução de um mandado de detenção
europeu, que é um procedimento que a lei prevê como ultra célere (decorre da Lei
que o prazo legal para decisão do recurso é de apenas 5 dias, quando num vulgar
recurso vai aos 15 e, mesmo, num procedimento expedito e urgente como é o caso
da providência de «habeas corpus», atinge os 8 dias – art.°s 417.°, n.° 4 e
223.°, n.° 2, do Código de Processo Penal e 16.°, n.° 2, da Lei n.° 65/2003 de
23 de Agosto), que se vai fazer o apuramento se há ou não homogeneidade das
condutas.
Improcedem, assim, as razões invocadas pelo recorrente para recusa facultativa.
INCONSTITUCIONALIDADE NA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO “NE BIS IN IDEM”?
Não há motivo de recusa facultativa, como não há violação do princípio “ne bis
in idem”.
Tal princípio está consagrado no art.° 29.°, n.° 5, da Constituição, onde se diz
que «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime».
Ora, já vimos que os factos pelos quais o recorrente está a ser julgado em
Portugal são diversos dos que lhe são imputados na Alemanha.
Tanto basta para afastar qualquer possibilidade de violação do princípio
constitucional em causa.
Mas, mesmo que fosse possível configurar que os factos poderiam ser unificados
numa única conduta de trato sucessivo e já vimos que só os julgamentos futuros o
poderão determinar – o recorrente teria de ser julgado por todos os factos
enquadráveis nessa conduta unificável, não podendo ser julgado só por alguns
deles e não pelos outros. É que o crime único assim configurado abarca todos os
factos conhecidos e é punido com uma só pena, mas de acordo com a ilicitude e
culpa próprias do conjunto factual.
A lei processual encarrega-se de resolver esse problema, ou com a conexão de
processos quando é conhecida e permitida, ou com julgamentos autónomos.
Na verdade, se determinado arguido é julgado e condenado por um só crime, por
exemplo, por ter vendido certa quantidade de droga num determinado local durante
os meses de Janeiro e Fevereiro, poderá vir a ser julgado por aí ter traficado
em Março uma outra quantidade de droga, concluindo o tribunal da última
condenação que a conduta criminalmente punível abarca os 3 meses em causa e
condená-lo numa única pena pela globalidade dos factos. E segundo julgamento não
é uma violação do “ne bis in idem”, pois o “mesmo crime” referido na Lei
Constitucional reporta-se ao conjunto de factos que ficou delimitado na acusação
como crime e que foi o objecto do julgamento.
O que o princípio “ne bis in idem” impede é o de, no exemplo apontado, julgar o
mesmo arguido por mais uma venda efectuada nos meses de Janeiro ou Fevereiro no
mesmo local, que por omissão não havia sido considerada no primeiro julgamento,
pois este julgamento fixou para o mundo jurídico a matéria de facto relativa a
esse acontecimento e por ela o arguido não pode ser julgado novamente.
Anotamos, por exemplo, os seguintes sumários de Acórdãos do STJ que apontam no
mesmo sentido da orientação que aqui perfilhámos: (…)
Assim, no caso dos autos, ainda que pudesse haver um só crime de trato sucessivo
(juridicamente considerado), o recorrente teria de ser julgado por todos os
factos naturalisticamente considerados e em processos autónomos, pois as regras
de competência internacional não permitiriam juntá-los, cabendo-lhe apenas
reivindicar uma só pena pela globalidade da sua conduta.
Esta interpretação, que no fundo foi a argumentação do Tribunal recorrido (mas
de que este STJ prescinde, pois, repete que não estamos perante a evidência ou a
aparência do mesmo facto criminoso, de trato sucessivo), não afronta o art.°
29.°, n.° 5, da Constituição da República Portuguesa, pelo que improcede também
essa alegação do recorrente».
3. Desta decisão foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, através
de requerimento do seguinte teor:
«1 - O presente recurso visa a fiscalização concreta da constitucionalidade, nos
termos do art. 70.°, al. b) da L.T.C., do entendimento expresso pelo S.T.J dos
arts. 12.°, n.° 1, al.b) da Lei n.° 65/2003, de 23 de Agosto, art.° 283.° n.°3
al. b) do C.P.P e art. 21.° da Lei n.° 15/93 constante da decisão em apreço na
sua conformação com o sentido, âmbito de aplicação e extensão do art.° 29° n°5
da Constituição da República Portuguesa que consagra o princípio “ne bis in
idem” que postula de forma cristalina que “ninguém pode SER JULGADO mais do que
uma vez PELA PRÁTICA DO MESMO CRIME”.
2. Durante o processo, desde o primeiro requerimento de oposição à entrega, o
recorrente tem vindo a prevenir sucessivamente a questão de não
constitucionalidade que agora pretende ver declarada, suscitando a
inconstitucionalidade, primeiro, do art. 12.°, n.° 1 al.b) da Lei n° 65/2003 e,
depois, do art. 283.º, n.° 3, al. b) do CPP e art. 21.º da Lei n.° 15/9- neste
caso, porque até à prolacção do Acórdão do STJ não era possível ou exigível ao
Recorrente antever a interpretação violadora da Constituição que veio a ser
perfilhada -, sempre por violação do art.°29° n°5 da C.R.P.
3. “In casu”, o arguido encontrava-se acusado em processo crime pendente em
Portugal e foi, entretanto, julgado e absolvido por uma actividade de tráfico de
estupefacientes, que decorreria desde o início de 2004, que visaria a introdução
de cocaína e outros produtos estupefacientes na Europa e que contaria com a
colaboração na qualidade de “correio” de um 2° arguido no mesmo processo.
4. Esta acusação abrange toda a actividade delituosa imputada ao arguido
exercida desde o início de 2004, em comparticipação, visando a introdução de
cocaína e outros produtos estupefacientes na Europa, usando na respectiva
execução “correios”, actividade que culminou com o último acto de execução no
dia 24 de Abril de 2005 em Lisboa,
5. Do confronto das descrições fácticas, constantes da acusação formulada no
âmbito do processo pendente em Portugal e a dos mandados de detenção constata-se
que se está perante um e o mesmo crime de tráfico de estupefacientes.
6. De facto afirmam as autoridades alemãs que o recorrente, em comparticipação
com outros indivíduos, visando a obtenção de lucro, decidiram comprar cocaína,
em regra 15 a 20 Kgs, introduzindo-a com recurso a “correios” e através de
transporte aéreo, na Alemanha e outros países da Europa com proveniência de S.
Paulo.
7. Nos termos do art°283° n°3 al. b) do C.P.P. a acusação contém a narração dos
factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de
segurança e inclui os factos que integram os elementos objectivos e subjectivos
exigidos pela disposição incriminadora que estiver em causa e as demais
circunstâncias relevantes a que se refere o n.° 3 citado.
8. Considerar, como o faz o Supremo Tribunal de Justiça, que factos constantes
de uma acusação, que expressamente fundamentam uma imputação típica (uma
actividade de tráfico de estupefacientes que pela sua reiteração, organização e
quantidades envolvidas justificam mesmo a agravação do art°24° do D.L. n°15/93)
e justificariam uma pena não são factos, mas apenas informações com relevância
policial, permitindo que tais factos, assim desconsiderados, sejam objecto de
novo julgamento consubstancia uma interpretação inconstitucional do disposto no
art°283° n°3 al. b) do C.P.P. por violação do disposto no art°29° n°5 da C.R.P..
9. Este entendimento, ao criar uma nova categoria conceitual de factos no âmbito
de uma acusação – factos de contextualização ou de informação – por oposição aos
factos com relevância criminal (que integram os elementos objectivos e
subjectivos do crime) permite que um mesmo arguido seja julgado duas vezes pelos
mesmos factos em clara violação do princípio “ne bis in idem”.
10. O art°283° n°3 al.b) do C.P.P. impõe que se considerem factos relevantes
para a configuração do crime todos os descritos na acusação, sendo que todos os
factos descritos na acusação são objecto de julgamento, constituindo mesmo a
ausência de menção expressa a tais factos ou a condenação por factos diversos
uma nulidade da decisão nos termos do art°379° n°1 als a) e b) do C.P.P.
11. Por outro lado, constituindo o crime de tráfico de estupefacientes, imputado
ao requerente tanto na Alemanha como em Portugal, um crime de perigo abstracto,
em que se previne o risco de lesão da saúde pública, conceitualmente
configurado, de forma unânime pela doutrina e pela jurisprudência como um crime
exaurido ou de execução continuada, que se traduz numa actividade em que os
diversos actos se integram na respectiva execução sem revestirem autonomia
típica, não pode deixar de considerar-se que tal actividade, imputada ao
arguido, foi já objecto de julgamento em Portugal e de consequente absolvição
tal como resulta expressa e explicitamente da acusação e subsequentes julgamento
e decisão.
12 – Por outro lado, considerar, como o faz o S.T.J., que a natureza continuada
da actividade que justifica a incriminação unitária depende da prova de uma
unidade resolutiva ou de uma absoluta identidade do processo de execução, desde
os mesmos comparticipantes, a mesma proveniência da substância ilícita (que no
caso até se verifica), a mesma resolução criminosa (que imputadamente também se
verifica no caso) configura uma interpretação inconstitucional da norma prevista
no art°21° do D.L. n°15/93 por violação do disposto no art°29° n°5 da C.R.P.
13. Com tal interpretação permitir-se-ia que fosse autonomamente incriminado
cada acto de execução num crime que é, por natureza, de execução continuada,
onde tais actos concretos não assumem relevância típica individualizada.
14. Finalmente, estando o arguido indiciado por um crime que se traduz numa
actividade em que os diversos actos se integram na respectiva execução sem
revestirem autonomia típica, tendo tal actividade sido objecto de julgamento em
Portugal é inquestionável que se encontra preenchida a alínea b) do n° 1 do
artigo 12° da Lei n° 65/2003 de 23 de Agosto.
15. A verificação da referida alínea consubstancia uma causa de recusa de
execução, pelo que deveria, consequentemente e com esse fundamento, ser negada a
entrega do requerido às autoridades alemãs.
16. Assim, a decisão de ordenar a sua entrega viola claramente o princípio “ne
bis in idem” previsto no art°29.° n.°5 da C.R.P..
17. Que o princípio “ne bis in idem” proíbe o duplo julgamento,
independentemente do respectivo resultado é a própria Constituição que o
esclarece postulando de forma cristalina “ninguém pode SER JULGADO mais do que
uma vez PELA PRÁTICA DO MESMO CRIME”.
18. Assim, a interpretação insíta à decisão sub judice que exige outros
elementos, que não apenas a acusação, para decidir se o crime em julgamento em
Portugal é o mesmo pelo qual o arguido é perseguido na Alemanha é
inconstitucional por fazer depender a análise do crime de outros elementos,
sejam os meios de prova produzidos, seja a respectiva eficácia, quando a
Constituição se basta com a mera sujeição a julgamento, em Portugal
consubstanciada na acusação que define o objecto do processo.
19. O recorrente tem legitimidade para recorrer nos termos do disposto na alínea
b) do n° 1 e do n°2 do art. 72° da Lei de Organização, Funcionamento e Processo
do Tribunal Constitucional.
20. O presente recurso sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito
suspensivo, nos termos do disposto no art. 78° da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional».
4. Por despacho de 13 de Julho de 2006, o recurso de constitucionalidade não foi
admitido, por intempestividade, pelas seguintes razões:
«Nos termos do art.° 24.°, n.° 2, da Lei n.° 65/2003, de 23 de Agosto, o prazo
para interposição do recurso da decisão final sobre a execução do mandado de
detenção europeu é de 5 dias, justificando-se a redução do prazo normal pela
extrema urgência do processamento que resulta de todos os procedimentos
previstos nesse diploma, já realçada no Acórdão deste STJ.
Ora, tendo o Il. Advogado do requerido sido notificado do Acórdão deste STJ, que
fixou a decisão final sobre o MDE, por carta registada remetida em 26 de Junho,
a notificação considerou-se efectuada em 29 de Junho (art.° 113.°, n.° 2, do
CPP) e o prazo findou em 7 de Julho, mesmo contando com os 3 dias úteis em que o
acto pode ser efectuado com pagamento de multa (art.° 145.° do CPC).
Por isso, nessa data ficou definitivamente transitado em julgado o Acórdão deste
STJ, pelo que não se conhece por intempestividade o pedido de aclaração de fls.
475 e seguintes e, pelo mesmo motivo, não se recebe o recurso de fls. 481 e
seguintes para o Tribunal Constitucional, ambos enviados por fax em 10 de
Julho».
5. Deste despacho reclamou A., concluindo o seguinte:
«I – Ao recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade é aplicável o
regime previsto na Lei n.° 28/82, de 1:5 de Novembro, com a actual redacção da
Lei n.° 13-A/98, de 26 de Fevereiro e não o procedimento especial previsto na
Lei n.° 65/2003, de 23 de Agosto.
II – Assim, o prazo para interposição de recurso é de 10 dias nos termos do
art°75° da Lei do Tribunal Constitucional e não de 5 dias previsto no art°24° da
Lei do Mandado de Detenção Europeu.
III – A previsão do procedimento estatuído no art°24° supra referido aplica-se
em exclusivo aos recursos ordinários, no caso aos recursos interpostos das
decisões finais do Tribunal da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça.
IV – No sentido deste entendimento apontam os elementos literal, sistemático e
mesmo teleológico.
V – O elemento literal por se afirmar expressamente, no respectivo n°5, que os
recursos previstos neste artigo são da competência das Secções Criminais do STJ
(afastando qualquer outra competência ou jurisdição).
VI – O elemento sistemático por se tratar de procedimento decalcado da
tramitação unitária dos recursos ordinários em processo criminal com a única
especialidade do prazo e do tribunal competente, o que permite restringir o seu
campo de aplicação ao recurso ordinário da Relação para o Supremo Tribunal de
Justiça, sendo, por outro lado, essa tramitação incongruente com a que é
estabelecida no caso de recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade
pelo que será sempre de afastar a sua aplicabilidade nesta sede.
VII – O elemento teleológico porque a despeito da urgência que a Lei do Mandado
de Detenção Europeu reclama admitiu a mesma lei que, em caso de recurso para o
Tribunal Constitucional, os prazos do procedimento e de duração máxima da
detenção sejam substancialmente alargados para acomodar o cumprimento do
procedimento previsto para este recurso; alargamento para mais do dobro da sua
duração normal ( de 60 para 150 dias ) e no dobro da extensão prevista em caso
de recurso para o STJ (30 dias de extensão para o recurso do STJ e 60 dias a
mais para o recurso para o Tribunal Constitucional).
VIII – O entendimento de que o art°24° da Lei n.° 65/2003, de 23 de Agosto e
designadamente o prazo aí previsto, são aplicáveis aos recursos em matéria de
fiscalização concreta de constitucionalidade é inconstitucional por violação dos
art°s 280° n°1 al.b) e n°4 da C.R.P, já que afasta a lei que regula
expressamente o regime de admissão deste tipo de recurso.
IX – E viola também o art°32° n°1 da C.R.P. que assegura ao arguido todos os
direitos de defesa incluindo o direito ao recurso,
X – Tendo o impetrante interposto recurso por requerimento ao abrigo dos arts.
70.°, 75.° e 75°-A da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.° 28/82 de 15 de
Novembro, com a actual redacção da Lei n.° 13-A/98, de 26 de Fevereiro) e tendo
tal requerimento dado entrada no Supremo Tribunal de Justiça dentro do prazo de
10 dias previsto no art°75° supra referido deve o recurso ser admitido e
tramitado nos termos, da Lei do Tribunal Constitucional».
6. Notificado da presente reclamação, o Ministério Público respondeu nos
seguintes termos:
«O ora reclamante tem razão no que respeita à determinação do prazo para
interpor o recurso de constitucionalidade: efectivamente, a norma invocada pelo
despacho reclamado tem o seu âmbito de aplicação circunscrito aos recursos
interpostos na ordem dos tribunais judiciais, em nada podendo afectar a plena
vigência da regra constante do n.º 1 do art. 75º da Lei 28/82. Aliás, tendo a
Lei do Tribunal Constitucional a natureza de “lei orgânica” (arts. 164º, alínea
c), e 166º, nº 2, da Constituição) e detendo, por isso, “valor reforçado”, nos
termos da primeira parte do nº 3 do artº 112º, sempre estaria excluída a sua
sobreposição ao regime delineado, quanto ao prazo de interposição de recursos
para este Tribunal Constitucional, pelo citado artº 75º, nº 1 – beneficiando,
deste modo, o recorrente do prazo de 10 dias para interpor o recurso de
fiscalização concreta.
Consideramos, porém, que ocorreram outros motivos que levam à improcedência da
presente reclamação.
É que o reclamante confunde o plano normativo, típico dos recursos de
constitucionalidade, com outros dois planos ou perspectivas, estranhos aos
poderes cognitivos do Tribunal Constitucional. Na verdade, as questões que
suscita quanto às “normas” dos arts. 283º, nº 3, alínea b), do CPP e do art. 21º
da Lei 15/93 são manifestamente desprovidas de natureza normativa, já que se
conexionam exclusivamente:
– a primeira questão, com a actividade de concreta interpretação dos termos
de uma peça processual inserida no âmbito de uma causa que corre termos perante
os tribunais judiciais: está manifestamente excluído das competências do
Tribunal Constitucional – circunscritas à estrita apreciação da questão de
inconstitucionalidade normativa suscitada – proceder a uma autónoma
interpretação dos termos de uma acusação, deduzida pelo Mº Pº, de modo a
sindicar – e eventualmente “corrigir” – o entendimento seguido pelo STJ, segundo
o qual o objecto de tal peça acusatória se consubstancia exclusivamente em certa
conduta ou comportamento do arguido verificada, em certa data e local, em
território português – sendo as vagas e imprecisas “considerações preliminares”,
feitas pelo Mº Pº, um “mero enquadramento da investigação policial”,
insusceptíveis de imputar ao arguido, em si mesmas, qualquer responsabilidade
criminal, e, portanto, irrelevantes para a delimitação do objecto processual;
– a segunda questão, consubstanciada na determinação da existência ou
inexistência de “homogeneidade” entre as várias condutas imputadas ao arguido
nos vários processos contra si pendentes, prende-se decisivamente com a própria
determinação ou fixação da matéria de facto, no que respeita ao apuramento da
existência de “diversas resoluções criminosas” – sendo, nessa medida, obviamente
insindicável por este Tribunal a conclusão do STJ, segundo a qual os vários
comportamentos do arguido, referenciados a fls. 38, implicam que não haja
identidade, naturalística e jurídica, dos factos de constituem objecto dos
processos pendentes em Portugal e na Alemanha. Note-se ainda que – como decorre
do acórdão recorrido, a fls. 39, – tal conclusão alicerçou-se na invocação e
aplicação do art. 30º do C. Penal, norma que o recorrente nem sequer incluiu nas
que indicou como integrando o objecto do presente recurso.
Deste modo, somos de parecer que a presente reclamação deverá improceder, embora
por fundamento diverso da intempestividade do recurso, afirmada na decisão
reclamada».
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. A presente reclamação tem como objecto o despacho do Supremo Tribunal de
Justiça que não admitiu, por intempestividade, o recurso que foi interposto para
o Tribunal Constitucional no âmbito do processo judicial de execução de dois
mandados de detenção europeus de A..
A decisão reclamada concluiu neste sentido por aplicação do nº 2 do artigo 24º
da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, segundo o qual o prazo para interposição do
recurso da decisão final sobre a execução do mandado de detenção europeu é de
cinco dias, o que afastaria a regra contida no nº 1 do artigo 75º da LTC, de
acordo com a qual prazo de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional é de dez dias.
Acompanhando o representante do Ministério Público junto deste Tribunal, é de
concluir que o nº 2 do artigo 24º da Lei do mandado de detenção europeu é
aplicável exclusivamente aos recursos interpostos na ordem dos tribunais
judiciais e, consequentemente, pela tempestividade do recurso interposto.
Aponta neste sentido quer a inserção sistemática daquela norma – insere-se num
artigo que dispõe sobre o regime do recurso da decisão que mantiver a detenção
ou a substituir por medida de coacção ou da decisão final sobre a execução do
mandado de detenção europeu; quer a natureza de “lei orgânica” da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (artigos 164º,
alínea c), 166º, nº 2, e 112º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa),
que obsta à qualificação daquela norma da Lei nº 65/2003 como norma especial por
contraposição à norma geral contida no artigo 75º, nº 1, da LTC.
Importa, assim, concluir pela tempestividade do recurso de constitucionalidade,
na medida em que foi interposto no prazo previsto no nº 1 do artigo do artigo
75º da LTC.
2. Apesar de ter sido interposto no prazo legalmente previsto, há razões para
indeferir a presente reclamação e confirmar, consequentemente, a decisão de não
admissão do recurso interposto para o Tribunal Constitucional, atendendo aos
requisitos do recurso que o ora reclamante pretendeu interpor – o previsto na
alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC.
De forma reiterada, este Tribunal tem vindo a entender, face ao disposto no nº 4
do artigo 77º da LTC, que lhe cabe verificar os requisitos do artigo 75º-A da
LTC e os pressupostos do recurso de constitucionalidade interposto, ainda que a
reclamação tenha exclusivamente como objecto os concretos fundamentos da não
admissão do recurso.
2.1. O recorrente pretende a apreciação do artigo 12º, nº 1, alínea b), da Lei
nº 65/2003, interpretado no sentido de serem exigíveis outros elementos, que não
apenas a acusação, para decidir se o crime em julgamento em Portugal é o mesmo
pelo qual o arguido é perseguido na Alemanha, à luz do disposto no artigo 29º,
nº 5, da Constituição da República Portuguesa.
Independentemente da questão de saber se, em rigor, o recorrente pretende,
afinal, a apreciação da inconstitucionalidade da decisão recorrida (cf. ponto 16
do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal), não pode dar-se
como verificado o requisito da aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio
decidendi, da norma cuja constitucionalidade é questionada pelo recorrente.
Resulta do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que esta instância não
interpretou e aplicou o artigo 12º, nº 1, alínea b), naquele sentido. Pelo
contrário, dele decorre antes que a decisão no sentido de serem outros os factos
que motivaram a emissão dos mandados de detenção assentou exclusivamente na
acusação deduzida no processo criminal pendente em Portugal. Tal resulta de
forma particularmente clara quer do quadro de fl. 38 dos presentes autos quer da
contraposição da acusação ao teor dos mandados de detenção e da conclusão que se
lhe segue no sentido de não haver identidade de factos (fl. 39 e s. dos
presentes autos).
2.2. O recorrente questiona também a constitucionalidade do artigo 283º, nº 3,
alínea b), do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de “que factos
constantes de uma acusação, que expressamente fundamentam uma imputação típica
(uma actividade de tráfico de estupefacientes que pela sua reiteração,
organização e quantidades envolvidas justificam mesmo a agravação do artº 24º do
D. L. nº 15/93) e justificariam uma pena não são factos, mas apenas informações
com relevância policial, permitindo que tais factos, assim desconsiderados,
sejam objecto de novo julgamento”, à luz do disposto no artigo 29º, nº 5, da
Constituição da República Portuguesa.
Em face desta formulação e do teor da decisão recorrida, é de concluir que só
artificialmente foi formulada uma questão de inconstitucionalidade normativa.
Trata-se de formulação que traduz, isso sim, a discordância do recorrente quanto
à interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça fez do texto da acusação
deduzida no processo criminal pendente em Portugal, para o efeito de saber quais
os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de
segurança, concretamente para o efeito de saber se em tais factos também se
integra o descrito nos pontos 1 a 8 daquela peça processual (cf. fl. 30 dos
presentes autos).
Como o recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC é um recurso
que visa a apreciação da inconstitucionalidade de normas, “está manifestamente
excluído das competências do Tribunal Constitucional (…) proceder a uma autónoma
interpretação dos termos de uma acusação, deduzida pelo Mº Pº, de modo a
sindicar – e eventualmente “corrigir” – o entendimento seguido pelo STJ, segundo
o qual o objecto de tal peça acusatória se consubstancia exclusivamente em certa
conduta ou comportamento do arguido verificada, em certa data e local, em
território português – sendo as vagas e imprecisas “considerações preliminares”,
feitas pelo Mº Pº, um “mero enquadramento da investigação policial”,
insusceptíveis de imputar ao arguido, em si mesmas, qualquer responsabilidade
criminal, e, portanto, irrelevantes para a delimitação do objecto processual”
(cf. ponto 6. do Relatório).
2.3. O recorrente pretende, ainda, a apreciação do artigo 21º do Decreto-Lei nº
15/93, interpretado no sentido de que “a natureza continuada da actividade que
justifica a incriminação unitária depende da prova de uma unidade resolutiva ou
de uma absoluta identidade do processo de execução, desde os mesmos
comparticipantes, a mesma proveniência ilícita (que no caso até se verifica), a
mesma resolução criminosa (que imputadamente também se verifica no caso)”, à luz
do consagrado no artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.
Independentemente da questão de saber se esta formulação é significativa da
discordância do recorrente quanto à decisão, nomeadamente por esta ter concluído
que não era a mesma a resolução criminosa, impõe-se concluir que a letra do
artigo 21º daquela Lei não comporta, de todo, a interpretação que o recorrente
enuncia, resultando do texto da decisão recorrida (cf. fl. 39 dos presentes
autos) que o Supremo Tribunal de Justiça fez aplicação do artigo 30º do Código
Penal.
Por outro lado, não se pode dar como verificado um dos requisitos do recurso de
constitucionalidade interposto – a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio
decidendi, da norma cuja constitucionalidade é questionada pelo recorrente –, na
medida em que aquele Tribunal não aplicou o artigo 30º (e muito menos o 21º da
Lei nº 15/93), interpretando-o no sentido da natureza continuada da actividade
que justifica a incriminação unitária depender da prova de uma unidade
resolutiva ou de uma absoluta identidade do processo de execução. Pelo
contrário, a abertura que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça revela quanto
à possibilidade de os factos ocorridos em Portugal e os que são alvo de
procedimento na Alemanha poderem vir a ser considerados interligados e a gozar
de uma tal homogeneidade que a ordem jurídica os possa unificar num único crime
(fl. 40) é reveladora de que a decisão recorrida não fez a interpretação rígida
que o recorrente lhe imputa.
Assim, embora por razões diferentes das que fundamentaram o despacho reclamado,
é de concluir que o recurso não pode ser admitido.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 7 de Agosto de 2006
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício