Imprimir acórdão
Processo n.º 574/06
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 370 foi proferida a seguinte decisão sumária:
«1. A. foi condenado por acórdão da 5.ª Vara Criminal de Lisboa de 13 de Outubro
de 2005, de fls. 180, como autor de um crime de tráfico de estupefacientes,
previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de
Janeiro, com referência à tabela anexa I-C, na pena quatro anos de prisão.
Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da
Relação de Lisboa que, por acórdão de 15 de Dezembro de 2005, de fls. 258,
rejeitou o recurso por manifesta improcedência.
Ainda inconformado, A. interpôs recurso para o Supremo Tribunal
de Justiça, que lhe negou provimento por acórdão de 18 de Maio de 2006, de fls.
343.
Para o que agora releva, o Supremo Tribunal de Justiça
pronunciou-se nestes termos:
“Entende o recorrente que a decisão proferida em 1ª instância
enferma do vício previsto na alínea a) do nº 2 do artigo 410º, do Código de
Processo Penal, sob a alegação de que se consideraram não provados factos
indispensáveis para a sua defesa e relevantes para a decisão da causa,
designadamente o facto por si invocado de que era consumidor de haxixe à data
dos factos objecto do processo, bem como o de que o haxixe apreendido se
destinava ao seu consumo, tanto mais que a averiguação e apuramento de tais
factos incumbia oficiosamente ao tribunal.
Mais entende que, não tendo o tribunal de 1ª instância apurado
se o recorrente era ou não consumidor de haxixe, tendo o mesmo confessado
consumir aquela substância desde os 18 anos de idade, o que colocou o tribunal
em dúvida em relação à verificação de tal facto, deveria ter-se considerado
provado ser consumidor de haxixe face ao princípio in dubio pro reo.
E, após ter esclarecido tratar-se de um recurso “agora
puramente de revista”, o Supremo Tribunal de Justiça lembrou que o mesmo “terá
que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida ( a do Tribunal da
Relação) em matéria de direito, embora se admita que, para evitar que a decisão
de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em
erro notório de apreciação ou assente em premissas contraditórias, possa o
Supremo Tribunal de Justiça abster-se do conhecimento do fundo da causa e
ordenar o reenvio do processo para novo julgamento.
Deste modo, só naqueles apertados limites pode o Supremo
Tribunal de Justiça avaliar da ocorrência dos vícios previstos nas alíneas a) a
c) do nº 2 do artigo 410º, do Código de Processo Penal.”
Considerando não se verificar nenhum dos vícios, o Supremo
Tribunal de Justiça passou “à questão da eventual violação do princípio in dubio
pro reo, começar-se-á por assinalar que o Supremo Tribunal de Justiça só pode
sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão impugnada
resulta, por forma evidente, que o tribunal recorrido ficou na dúvida em
relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o
arguido, posto que, saber se o tribunal recorrido deveria ter ficado em estado
de dúvida, é uma questão de facto que exorbita os poderes de cognição do Supremo
Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista.
Do exame do acórdão impugnado, tendo em atenção a decisão de
facto que lhe subjaz, decorre que o tribunal recorrido não ficou em dúvida em
relação a qualquer facto, designadamente no que concerne ao consumo de haxixe
por parte do recorrente”.
2. Novamente inconformado, A. recorreu para o Tribunal
Constitucional, nos termos seguintes:
“- O recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (…);
- Pretende-se ver apreciada inconstitucionalidade da norma do
artigo 410.º do CPP, com a interpretação que lhe foi dada na decisão recorrida;
- Tal norma viola o princípio in dubio pro reo, consagrado no
artigo 32.º da Constituição.
- A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos autos,
nas motivações de recurso apresentadas pelo recorrente para o Tribunal da
Relação de Lisboa, nas motivações de recurso apresentadas pelo recorrente para o
Supremo Tribunal de Justiça, e no próprio acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, com o voto de vencido a fls. 15 do douto acórdão.”
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este
Tribunal (nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. O Tribunal Constitucional não pode, todavia, conhecer do
presente recurso, desde logo porque o recorrente não suscitou “durante o
processo” (al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82) qualquer questão de
constitucionalidade normativa referida ao artigo 410.º do Código de Processo
Penal.
Com efeito, quer na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação
de Lisboa, quer na motivação do recurso dirigido ao Supremo Tribunal e Justiça,
o recorrente limita-se a afirmar, no primeiro caso, que a decisão do tribunal de
1.ª instância violou “os artigos 410.º do CPP e o artigo 32.º da CRP” (cfr. fls.
207 e 217) e, no segundo caso, que o acórdão do Tribunal da Relação violou as
mesmas normas (cfr. fls. 284).
Ora a invocação da violação do artigo 410.º do Código de Processo Penal pelas
decisões proferidas nos autos não substitui naturalmente o ónus, a cargo do
recorrente (n.º 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82), de suscitar a
inconstitucionalidade de uma norma contida naquele preceito, susceptível de vir
a ser apreciada num recurso de constitucionalidade.
O mesmo se diga quanto à circunstância de ter sido aposto um voto de vencido ao
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de ter sido violado o
referido princípio in dubio pro reo.
Falta, pois, um pressuposto indispensável ao conhecimento do
objecto do recurso: não foi suscitada durante o processo, nos termos exigidos
pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, a inconstitucionalidade
da norma que o recorrente pretende seja apreciada pelo Tribunal Constitucional.
Como este Tribunal tem reiteradamente afirmado, este requisito
da invocação da inconstitucionalidade de uma norma, ou de uma sua interpretação,
durante o processo traduz-se na necessidade de que tal questão seja colocada
perante o tribunal recorrido de forma a proporcionar-lhe a oportunidade de a
apreciar. Só nos casos excepcionais e anómalos, que aqui manifestamente não
ocorrem, em que o recorrente não dispôs processualmente dessa possibilidade, é
que será admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de
exemplo, os Acórdãos deste Tribunal n.º 62/85, n.º 90/85 e n.º 160/94,
publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º vol.,
págs. 497 e 663, e no Diário da República, II Série, de 28 de Maio de 1994).
4. Estão, portanto, reunidas as condições necessárias para que
se proceda à emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei
nº 28/82, de 15 de Novembro.
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs,
sem prejuízo do apoio judiciário concedido.»
2. Inconformado, o recorrente reclamou para a conferência, ao
abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a
revogação da decisão sumária.
Em síntese, o recorrente sustenta ter invocado devidamente a
inconstitucionalidade do artigo 410º do Código de Processo Penal, 'com a
interpretação que lhe foi aplicada na decisão recorrida, por tal norma violar o
Princípio do In dubio pro reo, consagrado no artigo 32º da Constituição'. Como
afirma expressamente, 'O recorrente ao afirmar que o acórdão recorrido violou os
artigos 410 do CPP e o artigo 32º da Constituição da República Portuguesa está a
invocar a inconstitucionalidade da primeira por violação da segunda'.
Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no
sentido do indeferimento da reclamação, porque 'assenta numa inadmissível
confusão entre os conceitos de inconstitucionalidade normativa e de
inconstitucionalidade directamente impugnada a uma decisão judicial, supondo
erroneamente a suscitar a questão da inconstitucionalidade de certa norma é o
mesmo que suscitar a inconstitucionalidade de determinado acto ou decisão
judicial'.
3. Com efeito, a reclamação é improcedente.
Como se disse na decisão reclamada, o recorrente não suscitou, 'durante o
processo', a inconstitucionalidade de nenhuma norma que, contida no artigo 410º
do Código de Processo Penal, tenha sido aplicada pelo acórdão recorrido em
violação da Constituição.
Note-se, aliás, que nem na reclamação o recorrente definiu que norma pretende
que o Tribunal Constitucional aprecie; e que não é manifestamente equivalente
afirmar que uma decisão judicial violou, simultaneamente, um preceito legal e
uma norma constitucional e suscitar a inconstitucionalidade da própria norma de
direito ordinário, aplicada por aquela decisão.
Note-se que se trata de um problema central do recurso de constitucionalidade:
o da definição do respectivo objecto, em termos de o Tribunal Constitucional ter
competência para o julgar. Está fora do âmbito do recurso de constitucionalidade
a averiguação, pelo Tribunal Constitucional, da forma como o acórdão recorrido
terá interpretado o artigo 410º do Código de Processo Penal; isso equivaleria a
que lhe incumbiria a ele, Tribunal Constitucional, definir o objecto do recurso
que julga.
Não foi, portanto, suscitada devidamente qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, referida ao artigo 410º do Código de Processo
Penal.
4. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de não
conhecimento do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs, sem prejuízo do
apoio judiciário concedido.
Lisboa, 25 de Julho de 2006
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício