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Processo n.º 794/13
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, o relator proferiu decisão sumária de não conhecimento do objeto do recurso na parte em que se refere à interpretação das normas constantes dos artigos 70.º e 71.º do Código Penal e de não julgamento de inconstitucionalidade da norma contida na alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, na dimensão de vedar o recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, com os seguintes fundamentos (cfr. Decisão Sumária n.º 593/2013, fls. 226-238):
«II – Fundamentação
4. Cumpre, a partir do teor do requerimento de interposição de recurso apresentado pela recorrente delimitar o objeto do recurso de constitucionalidade por referência ao que foi também submetido à apreciação do Tribunal recorrido, a saber, a alegada inconstitucionalidade da «norma do nº 1 alin f) do artigo 400º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos condenatórios, proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos» (fls. 213), sendo também alegado pela recorrente que «a interpretação e aplicação do disposto nos arts. 70º, 71º do CP, pelo Insigne Tribunal da Relação do Porto, viola o art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidades essas invocadas previamente no seu recurso da 2ª vara do Tribunal Criminal do Porto, para o Tribunal da Relação do Porto» (idem).
Da análise das peças processuais juntas aos autos pode verificar-se que as questões de constitucionalidade colocadas pela recorrente reportam-se, por um lado, à norma contida no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, quando interpretado «no sentido de não é admissível recurso de acórdãos condenatórios, proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos» (cfr. fls. 213, sublinhado acrescentado) e, por outro lado, à interpretação do disposto nos artigos 70.º e 71.º do Código Penal feita pelo Tribunal da Relação do Porto, já que «ao erguer a culpa – como critério principal de determinação da pena - e a prevenção como critério secundário, o Tribunal “a quo” não avalizou corretamente o artigo 71.º do CP, não cumprindo com o princípio constitucional de adequação e proporcionalidade das penas, revelando-se justo aplicar apenas uma pena concreta correspondente ao limite mínimo abstratamente aplicável para aquele tipo de ilícito, especialmente atenuada. Violou assim também o douto acórdão recorrido o princípio da proporcionalidade» (cfr. fls. 214).
5. Começando por esta última questão, deve primeiramente lembrar-se que, segundo jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, a admissibilidade do recurso apresentado nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC depende da verificação, cumulativa, dos seguintes requisitos: ter havido previamente lugar ao esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC), tratar-se de uma questão de inconstitucionalidade normativa, a questão de inconstitucionalidade normativa haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (artigo 72.º, n.º 2, da LTC) e a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionalidade pelo recorrente (vide, entre outros, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 618/98 e 710/04 – disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt).
Faltando um destes requisitos, o Tribunal não pode conhecer do recurso.
5.1. No presente caso, a decisão judicial recorrida é a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 9/08/2013, que indeferiu a reclamação deduzida contra a não admissão, pelo relator na 2ª instância, do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 3/12/2012.
Com efeito, dos autos resulta que a recorrente foi condenada na 2ª Vara Criminal do Porto na pena de oito anos de prisão pela prática de um crime p.e p. nos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alínea c) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, e de um ano e seis meses de prisão pela prática de um crime p. e p. no artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, sendo, em cúmulo jurídico, condenada na pena de oito anos e seis meses de prisão. Recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que, em acórdão datado de 3/12/2012, proferido na Segunda Secção Criminal, em conferência, manteve a condenação da 1ª instância, reduzindo as penas, parcelar e única, respetivamente, para sete anos e seis meses e para oito anos de prisão (cfr. fls. 16 a 181).
Não se conformando com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, a ora recorrente apresentou recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 185 a 195), o qual não foi admitido nos termos da decisão do Tribunal da Relação do Porto de 3/05/2013 (a fls. 198), por aplicação das normas constantes do artigo 400.º, n.º 1, alínea f) e 414.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Dessa decisão de não admissão de recurso, deduziu reclamação para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo a reclamação sido indeferida em 9/08/2013 (fls. 202 a 207), por se concluir que «o recurso não é admissível ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP» (fls. 207). E é desta decisão de indeferimento da reclamação deduzida contra a decisão da 2ª instância de não admissão de recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça que se recorre para o Tribunal Constitucional.
Verifica-se, desde logo, que a alegada interpretação normativa dos artigos 70.º e 71.º do Código Penal cuja inconstitucionalidade é suscitada não constituiu a base jurídica da decisão judicial recorrida. E nem de outo modo poderia ser, já que nesta sede cumpria tão só aos juízes decidir sobre a impugnação deduzida contra a decisão de não admissão do recurso interposto, como decorre, aliás, do teor e fundamentação da decisão recorrida. Não há pois lugar à decisão de fundo pretendida, ou seja, à efetiva aplicação dos artigos 70.º e 71.º do Código Penal que se referem, sucessivamente, ao critério de escolha da pena e à determinação da medida da pena.
5.2. Em consequência conclui-se que, por não terem sido aplicadas as normas (interpretações normativas) invocadas como “ratio decidendi” da decisão recorrida, não se pode conhecer do objeto do recurso, na parte em que se refere às normas contidas nos artigos 70.º e 71.º, do Código Penal, em estrito cumprimento do artigo 79.º-C da LTC.
5.3. E mesmo que, por mera hipótese, tivesse sido recorrido o citado aresto do Tribunal da Relação do Porto de 3/12/2012, que decidiu a questão de fundo, mantendo a decisão condenatória de 1ª instância (e não o foi, atenta a delimitação do objeto do recurso feita pelo recorrente e que sempre lhe competiria), também aqui faltaria ainda a verificação de outro pressuposto de admissibilidade do recurso – a suscitação de uma questão de constitucionalidade normativa pela recorrente em termos de poder ser decidida pelo Tribunal a quo no acórdão em causa e por este Tribunal, no âmbito do presente recurso.
O sistema português de fiscalização da constitucionalidade confere ao Tribunal Constitucional competência para exercer um controlo de constitucionalidade de natureza estritamente normativa – que exclui a apreciação da constitucionalidade de decisões, incluindo as decisões administrativas e judiciais – pelo que os recursos para o Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta, interpostos de decisões dos tribunais só podem ter por objeto «interpretações» ou «critérios normativos» identificados com caráter de generalidade e por isso passíveis de aplicação a outras situações independentemente das particularidades do caso concreto, sob pena de inadmissibilidade.
Ora, quanto à alegada questão de inconstitucionalidade relativa aos artigos 70.º e 71.º do Código Penal, do teor e fundamentação do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal decorre que a recorrente não pretende que o Tribunal exerça um controlo da constitucionalidade com natureza normativa. Daquele elemento resulta, pelo contrário, que a recorrente imputa a violação das normas constitucionais que considera violadas à própria decisão recorrida.
No fundo, trata-se de um pedido de sindicância da decisão condenatória (e da decisão que a confirmou), pretendendo a recorrente, logo em sede de recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que «a condenação da arguida a 8 anos e seis meses de prisão será exagerada, devendo ser aplicada uma pena de prisão de mais leve, suspensa na sua execução. (…) Em consequência, o Douto Acórdão recorrido violou por errada interpretação o disposto nos art.ºs 374º, 379º, 410º, 70º e 71º do CPP, art. 25º da Lei nº 15/93 e art.º 32º da CRP» (cfr. alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto, LXXXVIII e LXXXIX). Isto, em função da sua situação pessoal, «atendendo à idade da arguida, condições pessoais, e ao desejo de ressocialização» (cfr. idem, LXXXIV). Depois, não se conformando com a decisão de 2ª instância (que determinou a aplicação de uma pena de 8 anos), a arguida recorreu sucessivamente para o Supremo Tribunal de Justiça, reiterando a sua discordância quanto à determinação em concreto da pena aplicada.
Não se tratando de uma questão de inconstitucionalidade normativa, mas de um juízo dirigido à concreta medida da pena aplicada, verifica-se que em sede de alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto a pretensa questão de constitucionalidade não se reporta a qualquer critério normativo identificado com caráter de generalidade em relação às normas que ora se pretendem ver sindicadas. Depois, nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (de fls. 183-195), a recorrente não suscita sequer qualquer questão de inconstitucionalidade dos artigos 70º e 71.º do Código Penal.
E foi nesta ótica de inexistência de objeto normativo que se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto no seu acórdão de 03/12/2012 sobre o recurso apresentado, reportando-se tão só às circunstâncias do caso concreto (cfr. fls. 178-179).
A fiscalização da constitucionalidade e da legalidade da competência deste Tribunal incide sobre normas e não sobre decisões, incluindo, como se pretende no caso, decisões judiciais. Como se afirma no Acórdão n.º 526/98 deste Tribunal (II, 3):
«A competência para apreciar a constitucionalidade das decisões judiciais, consideradas em si mesmas - que é própria de sistemas que consagram o recurso de amparo - não a detém, entre nós, o Tribunal Constitucional.».
Assim, mesmo na hipótese agora colocada afigura-se ocorrer a ausência de dimensão normativa do objeto do presente recurso na parte em que se refere à pretensa inconstitucionalidade dos artigos 70.º e 71.º do Código Penal, em termos que também obstariam ao seu conhecimento.
6. Já a primeira questão colocada pela recorrente é a da constitucionalidade da norma constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na redação da Lei n.º 48/2007, na medida em que condiciona a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça aos «acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos».
6.1. A este propósito, importa lembrar que a norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, mesmo na redação anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, foi diversas vezes sujeita ao escrutínio de constitucionalidade na perspetiva da violação do direito ao recurso, tendo o Tribunal Constitucional decidido reiteradamente no sentido da não inconstitucionalidade de dimensões normativas em que igualmente estava em causa a restrição do direito ao recurso, traduzida na limitação do acesso a um duplo grau de recurso ou triplo grau de jurisdição.
O Tribunal Constitucional teve também ocasião de se pronunciar repetidamente sobre critérios normativos reportados ao artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, sendo que dessa jurisprudência resultou igualmente um juízo de não inconstitucionalidade da norma em causa, designadamente quanto aos parâmetros normativos contidos nos artigos 32.º, n.º 1 e 29.º, n.º 4, da Constituição, conforme resulta dos Acórdãos n.ºs 263/2009, 645/2009, 649/2009, 174/2010, 276/2010, 277/2010, 308/2010, 359/2010, 213/2011, 215/2011, 643/2011, 51/2012 e, mais recentemente, 245/2013 e 436/2013 (todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
6.2. A específica questão normativa que constitui objeto do presente recurso de constitucionalidade - irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos – nas situações em que a pena abstratamente aplicável tem um limite superior a 8 anos, foi já ponderada no Acórdão n.º 64/2006, tirado em Plenário, que julgou não inconstitucional a norma constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso interposto apenas pelo arguido para o Supremo Tribunal de Justiça de um acórdão da Relação que, confirmando a decisão da 1ª Instância, o tenha condenado numa pena não superior a oito anos de prisão, pela prática de um crime a que seja aplicável pena superior a esse limite, com os seguintes fundamentos:
«(…)
6. Ora, como repetidamente o Tribunal tem afirmado, a Constituição não impõe um triplo grau de jurisdição ou um duplo grau de recurso, mesmo em Processo Penal. Não se pode, portanto, tratar a questão de constitucionalidade agora em causa na perspetiva de procurar justificação para uma limitação introduzida pelo direito ordinário a um direito de recurso constitucionalmente tutelado.
A norma que constitui o objeto do presente recurso, e que define, nos termos expostos, a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, releva, assim, do âmbito da liberdade de conformação do legislador.
Como se afirmou no acórdão n.º 640/2004, não é arbitrário nem manifestamente infundado reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada.
A norma em apreciação não viola, pois, qualquer direito constitucional ao recurso ou qualquer regra de proporcionalidade.»
Já depois de proferido este acórdão, a Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, alterou a redação da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código do Processo Penal, aferindo-se a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça em função da pena concretamente aplicada ao caso. E é a essa norma que a recorrente imputa o vício de inconstitucionalidade, pretendendo a «aplicação do CPP anterior ao caso em apreço, por ser mais favorável para a arguida» (fls. 213).
Também a este respeito se pronunciou o Tribunal Constitucional, concluindo por diversas vezes pela não inconstitucionalidade da norma em causa, relevando especialmente para o caso sub judice as seguintes passagens do Acórdão n.º 263/2009:
«5. A Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, alterou a redação da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código do Processo Penal, a qual dispõe agora que: “1. Não é admissível recurso: (…) f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”, situação que, para além do mais, não prejudica – ao contrário que podia suceder em casos anteriormente apreciados pelo Tribunal – a determinação prévia do direito ao recurso e das condições do respetivo exercício pelo arguido, uma vez que não o condiciona ao comportamento de outros sujeitos processuais, nomeadamente ao comportamento do Ministério Público, pois a admissibilidade do recurso é agora aferida objetivamente, em função da pena concretamente aplicada ao caso.
A razão de ser desta norma continua a ser a necessidade de limitar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior gravidade.
Assim, não obstante a interpretação normativa em questão no presente recurso não coincidir exatamente com nenhuma das que foi objeto dos acórdãos supra referidos nada impede que as razões aduzidas nestes arestos, designadamente no Acórdão n.º 189/01, sejam transponíveis para o caso.
Na verdade, é no confronto da norma com as garantias de defesa do arguido em processo penal, designadamente o direito ao recurso, e com garantia de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, que a questão de inconstitucionalidade se coloca. E a solução decorre, uma vez mais, dos limites com que a Constituição vincula o legislador ordinário em matéria de processo penal, e do reconhecimento de que, nesta área, lhe conferiu liberdade de conformação, não impondo o estabelecimento de um triplo grau de jurisdição.
A restrição ao recurso é, em suma, constitucionalmente admissível, desde que não se configure como desrazoável, arbitrária ou desproporcionada.
No entanto, a interpretação normativa sindicada apresenta-se como “racionalmente justificada, pela mesma preocupação de não assoberbar o STJ com a resolução de questões de menor gravidade (como sejam aquelas em que a pena aplicável, no caso concreto, não ultrapassa o referido limite), sendo certo que, por um lado, o direito de o arguido a ver reexaminado o seu caso se mostra já satisfeito com a pronúncia da Relação e, por outro, se obteve consenso nas duas instâncias quanto à condenação” (citado Acórdão n.º 451/03).
Aderindo à fundamentação dos mencionados acórdãos, haverá que concluir no sentido de que a interpretação normativa sindicada não viola as garantias de defesa do arguido em processo criminal, incluindo o direito ao recurso, nem o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.
6. Sucede, porém, que na interpretação normativa sub judice está em causa a aplicação da lei processual penal no tempo, tendo-se entendido ser aplicável a norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007 de 29 de agosto, aos processos em que a sentença condenatória de 1.ª instância tenha sido proferida depois da entrada em vigor daquela lei, não obstante ser mais restritiva, quanto à admissibilidade de recurso, do que a lei vigente no momento em que o processo se iniciou, o que confronta a norma com o princípio da legalidade, consagrado no artigo 29.º da Constituição.
Na verdade, na interpretação normativa sindicada, a inadmissibilidade de recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão da 1.ª instância e condenem em pena de prisão não superior a 8 anos, decorre de se aplicar a nova redação conferida à alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal nos processos iniciados anteriormente à vigência da Lei n.º 48/2007, em que a sentença de 1ª instância foi proferida após a entrada em vigor dessa lei.
Deve entender-se o critério fixado no aludido artigo 29º da Constituição, quanto à aplicação da lei de processo penal no tempo, em sintonia com o que se dispõe no artigo 5º do Código de Processo Penal: a lei nova não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência, quando possa resultar, dessa aplicação, uma limitação dos direitos de defesa do arguido. Todavia, o Tribunal também tem entendido, como já se fez notar, que a garantia consagrada no n.º 1 do artigo 32º da Constituição, quanto ao recurso, não implica, obrigatoriamente, um duplo grau de recurso, designadamente perante acórdãos condenatórios proferidos em recurso pelas relações, confirmativos de decisão da 1ª instância na qual o arguido foi condenado em pena de prisão não superior a 8 anos.
Deste modo, do aludido artigo 29º da Constituição não é possível retirar uma proibição absoluta de aplicação imediata de lei 'nova', em matéria de recursos em processo penal, da qual resulte a referida limitação, impedindo o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça de recursos de acórdãos condenatórios proferidos pelas relações nas aludidas circunstâncias.
É certo que o aludido princípio constitucional proíbe que da aplicação da lei nova possa resultar uma inesperada e imprevisível alteração do regime de recursos, em processos pendentes, que afete o exercício do direito de defesa do arguido; mas o certo é que o momento relevante para o exercício do direito de defesa do arguido, designadamente no que respeita à estratégia processual a adotar, coincide com a prolação da sentença condenatória em primeira instância e a sua notificação ao arguido, pois só então se estabilizam os elementos essenciais a atender no exercício do aludido direito de defesa. Mostra-se, por isso, preservado, no essencial, o exercício do direito de defesa do arguido quanto à oportunidade da estratégia processual a adotar.
Não pode, por isso, afirmar-se que, a norma constitui uma desproporcionada limitação das garantias de defesa do arguido, restringindo de forma inadmissível o seu direito ao recurso e, nessa medida, o direito de acesso à justiça.»
6.3. Não existindo razões para alterar o sentido da jurisprudência constitucional a este respeito proferida – tanto no Acórdão n.º 263/2009, como nos que o secundam - reitera-se a fundamentação agora transcrita e conclui-se, em conformidade com a jurisprudência anterior, pela não inconstitucionalidade da norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, na dimensão de vedar o recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.».
2. Notificada da decisão, a recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, alegando, quanto à admissibilidade do recurso, o seguinte (cfr. fls. 245-246):
«A., arguida nos presentes autos, VEM, reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82 (Lei Tribunal Constitucional), da Decisão Sumária, que decidiu não admitir o recurso de constitucionalidade por ela interposto na parte em que se refere à interpretação das normas constantes dos art.s 70º e 71º do CP, e condená-la em custas, com 7 (sete) unidades de conta de taxa de justiça.
O Tribunal a quo entende que não se encontram preenchidos os requisitos do art.º 70º n.º1 alin. b) da Lei do Tribunal Constitucional, todavia, salvo melhor opinião entendemos que sim.
É a interpretação que a Decisão do Tribunal da Relação do Porto fez dos preceitos invocados (art.s 26º n.º1 e 27º n.º1 do DL 34/2008 de 26 de fevereiro) que gera o vício da inconstitucionalidade que se invocou.
Se a recorrente não pudesse invocar as inconstitucionalidades resultantes da interpretação e aplicação das normas feitas pelos Tribunais Superiores (Relação ou Supremo Tribunal de Justiça) ficaria fora da alçada do Tribunal Constitucional uma grande parte da fiscalização concreta da constitucionalidade que cabe a esse alto tribunal.
Como é óbvio, também nesta particular questão a arguida/recorrente não podia pressupor, intuir, que o Tribunal da Relação do Porto, agiria como agiu, e interpretaria as normas do Código de Processo Penal e da própria Constituição como interpretou e aplicou.
É com a prolação da Decisão, e só nessa altura, que se tornam patentes os vícios e manifesta a interpretação inconstitucional dada às normas, afrontando de maneira gritante e inadmissível o Estado de Direito e processo Democrático, pondo em causa princípios que deviam estar mais do que consolidados na ordem jurídica portuguesa:
Assim sendo, a recorrente tem o Direito a ver apreciado o Recurso interposto para o Tribunal Constitucional no sentido de controlar a constitucionalidade:
Ora, entendemos salvo melhor opinião que a interpretação e aplicação do disposto nos arts. 70º, 71º do CP, pelo Insigne Tribunal da Relação do Porto, viola o art.º 32º da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidades essas invocadas previamente no seu recurso da 2ª vara do Tribunal Criminal do Porto, para o Tribunal da Relação do Porto.
Com efeito, ao erguer a culpa – como critério principal de determinação da pena – e a prevenção como critério secundário, o Tribunal «a quo» não avalizou corretamente o art.º 71º do CP, não cumprindo com o principio constitucional da adequação e proporcionalidade das penas, revelando-se justo aplicar apenas uma pena concreta correspondente ao limite mínimo abstratamente aplicável para aquele tipo de ilícito, especialmente atenuada.
A inconstitucionalidade resulta da interpretação dada pelo Tribunal de Recurso às normas do art.s 71º CP.
É, pois, um vício que se regista somente na Decisão que se pretende seja analisado à luz das normas da Constituição.
Desta forma, tem a recorrente o direito a ver apreciado o Recurso interposto para o Tribunal Constitucional.»
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou resposta nos termos seguintes (cfr. fls. 247-250):
«O representante do Ministério Público neste Tribunal, notificado da reclamação deduzida no processo em epígrafe, vem dizer o seguinte:
1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 593/2013, decidiu-se:
“a) não conhecer do objeto do recurso na parte em que se refere à interpretação das normas constantes dos artigos 70.º e 71.º do Código Penal;
b) não julgar inconstitucional a norma contida na alínea f) do n.º 1 do art.º 400.º do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, na dimensão de vedar o recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.”
2º
Na reclamação agora apresentada a recorrente não impugnou a Decisão Sumária na parte em que negou provimento ao recurso.
3º
Quanto ao não conhecimento do objeto do recurso, na parte em que se refere à interpretação das normas constantes dos artigos 70.º e 71.º do Código Penal, o não conhecimento fundou-se na circunstância da decisão recorrida não ter aplicado aquelas normas.
4º
Ora, parece-nos evidente que, sendo a decisão recorrida a proferida pelo Senhor Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação apresentada nos termos do artigo 405.º do CPP, ou seja, da decisão que, na Relação do Porto, não tinha admitido o recurso interposto para aquele Supremo Tribunal, essa mesma decisão não aplicou, nem podia aplicar, as normas dos artigos 70.º e 71.º do Código Penal.
5.º
Quanto a este fundamento de não admissibilidade do recurso interposto para o Tribunal Constitucional, a recorrente, na reclamação, nada diz.
6.º
Tanto bastaria para indeferir a presente reclamação.
7.º
Porém, na douta Decisão Sumária colocou-se a seguinte questão:
“ E mesmo que, por mera hipótese, tivesse sido recorrido para este Tribunal – o que não foi o caso - o citado aresto do Tribunal da Relação do Porto de 3/12/2012, que decidiu a questão de fundo, mantendo a decisão condenatória de 1ª instância (e não o foi, atenta a delimitação do objeto do recurso feita pelo recorrente e que sempre lhe competiria), também aqui faltaria ainda a verificação de outro pressuposto de admissibilidade do recurso – a suscitação de uma questão de constitucionalidade normativa pela recorrente em termos de poder ser decidida pelo Tribunal a quo no acórdão em causa e por este Tribunal, no âmbito do presente recurso”.
8.º
Ora, parece-nos também evidente que não foi enunciada no requerimento de interposição do recurso uma questão de inconstitucionalidade normativa passível de constituir objeto idóneo do recurso.
9.º
Efetivamente, a Relação do Porto, aplicando os mesmos critérios, alterou, aliás, para menos, a condenação que a recorrente sofrera na 1.ª instância.
10.º
As razões desse desagravamento contam de fls. 1488 e 1489, quando foi apreciado o recurso interposto pelo coarguido B., para onde remete a Relação quando apreciou o recurso da ora recorrente, na parte em que esta questionava a medida da pena (fls.l493 a 1495).
11.º
Nunca foi enunciada ao longo do processo, nem mesmo agora na presente reclamação, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
12.º
Assim, fundando-se o não conhecimento na inidoneidade do objeto do recurso, não tem sentido o que a recorrente afirma na reclamação sobre a não possibilidade de suscitação da questão perante a Relação do Porto.
13.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Na decisão sumária reclamada decidiu-se não conhecer do objeto do recurso, com fundamento na falta de aplicação pelo Tribunal recorrido (Supremo Tribunal de Justiça) das normas impugnadas (artigos 70.º e 71.º do Código Penal), bem como – caso fosse considerada como decisão recorrida a decisão proferida no Tribunal da Relação do Porto, o que não foi o caso – na falta de suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa, uma vez que a recorrente se limitou a invocar a inconstitucionalidade da decisão recorrida em si mesma. É sobre este último aspeto que incide a reclamação.
4.1. Ora a presente reclamação não só não infirma esta conclusão, como a confirma.
Na verdade, do teor da mesma resulta, de forma evidente, que a reclamante se limita a reiterar a argumentação expendida no requerimento de recurso para este Tribunal, não aduzindo argumentos que pudessem fundar a reponderação da conclusão alcançada na decisão sumária reclamada quando entende reportado o vício de inconstitucionalidade dos artigos 70.º e 71.º do Código Penal à própria decisão do tribunal e não a um critério normativo, que aliás a recorrente nunca chegou a enunciar expressamente perante as instâncias qual seria – não valendo agora justificar essa omissão com a pretensa impossibilidade de a recorrente «pressupor, intuir, que o Tribunal da Relação do Porto, agiria como agiu, e interpretaria as normas do Código de Processo (sic) Penal e da própria Constituição como interpretou e aplicou».
Com efeito, a leitura da reclamação revela, mais uma vez, que é à decisão do Tribunal da Relação do Porto (na determinação da medida da pena) que se imputa a violação de normas constitucionais e mesmo legais, já que «não avalizou corretamente o art.º 71º do CP» ao «erguer a culpa como critério principal de determinação da pena – e a prevenção como critério secundário» (fls. 246), repetindo a reclamante a sua pretensão de ver a pena atenuada, entendendo «justo aplicar apenas uma pena concreta correspondente ao limite mínimo abstratamente aplicável para aquele tipo de ilícito, especialmente atenuada».
Tanto bastaria para, faltando dimensão normativa ao objeto do recurso, não assistir razão à recorrente na presente reclamação.
4.2. Sublinhe-se ainda que, analisada a impugnação feita na presente Reclamação, verifica-se que a mesma não se dirige à conclusão determinante da decisão de não admissão do presente recurso de constitucionalidade quanto à decisão do Supremo Tribunal de Justiça recorrida, a partir da delimitação do objeto do recurso feita pela recorrente, e assim sintetizada na decisão sumária reclamada (cfr. fls. 231-232)
«(…) No presente caso, a decisão judicial recorrida é a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 9/08/2013, que indeferiu a reclamação deduzida contra a não admissão, pelo relator na 2ª instância, do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 3/12/2012.
(…)
Verifica-se, desde logo, que a alegada interpretação normativa dos artigos 70.º e 71.º do Código Penal cuja inconstitucionalidade é suscitada não constituiu a base jurídica da decisão judicial recorrida. E nem de outo modo poderia ser, já que nesta sede cumpria tão só aos juízes decidir sobre a impugnação deduzida contra a decisão de não admissão do recurso interposto, como decorre, aliás, do teor e fundamentação da decisão recorrida. Não há pois lugar à decisão de fundo pretendida, ou seja, à efetiva aplicação dos artigos 70.º e 71.º do Código Penal que se referem, sucessivamente, ao critério de escolha da pena e à determinação da medida da pena.
5.2. Em consequência conclui-se que, por não terem sido aplicadas as normas (interpretações normativas) invocadas como “ratio decidendi da decisão recorrida, não se pode conhecer do objeto do recurso, na parte em que se refere às normas contidas nos artigos 70.º e 71.º, do Código Penal, em estrito cumprimento do artigo 79.º-C da LTC.(…)»
5. Deste modo, e não sendo apresentados, na presente reclamação, argumentos que permitissem infletir a posição tomada na decisão sumária reclamada, resta concluir que são de manter as conclusões alcançadas quanto à aplicação ao caso vertente dos critérios de admissibilidade dos recursos em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade. Assim, não tendo sido aplicadas as normas impugnadas (artigos 70.º e 71.º, do Código Penal) na decisão recorrida – reitere-se, do STJ – é de manter o disposto na Decisão Sumária quanto à não admissão do recurso.
6. Por último, não obstante no requerimento de reclamação para a conferência a recorrente se referir à condenação em custas proferida na decisão sumária reclamada, verifica-se que também não é apresentada qualquer fundamentação quanto a este aspeto da reclamação, pelo que não há razão para alterar o decidido quanto a custas.
Sublinhe-se, aliás, que as custas foram graduadas em montante que corresponde à prática corrente do Tribunal em casos do género, dentro dos limites estabelecidos pelo artigo 6.º, sobretudo abaixo do limite máximo, e de acordo com os critérios que o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro, manda observar. Efetivamente, para efeitos de aplicação destes critérios (complexidade e natureza do processo, relevância dos interesses em causa e atividade contumaz do vencido), o presente recurso não se afasta do que ocorre na generalidade dos recursos do mesmo género e que tem sido objeto de idêntica tributação.
Assim, nada há que justifique a alteração do montante em causa.
III. Decisão
7. Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, nos termos do disposto no artigo 7.º e 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro.
Lisboa, 7 de janeiro de 2014. – Maria José Rangel de Mesquita – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral.