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Processo n.º 825/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A. apresentou reclamação para a
conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26
de Fevereiro (LTC), contra a decisão sumária do relator, de 16 de Setembro de
2006, que decidiu, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 desse preceito,
não conhecer do objecto do recurso.
1.1. A decisão sumária reclamada tem o seguinte
teor:
“1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), aprovada pela
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º
13‑A/98, de 26 de Fevereiro, referindo no respectivo requerimento de
interposição que:
«– Pretende‑se ver apreciada a inconstitucionalidade do artigo 127.º do
Código de Processo Penal, por flagrante violação do princípio da presunção de
inocência, no caso da condenação de um co‑arguido com apelo à livre apreciação
da prova, mas com base exclusivamente nas declarações de um outro co‑arguido,
não corroboradas objectivamente;
– a aplicação, nas referidas circunstâncias, do princípio da livre
apreciação da prova, contido na referida norma do artigo 127.º, viola o
disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 32.º da Constituição e os princípios
constitucionais que lhes estão subjacentes;
– a questão de inconstitucionalidade foi suscitada nos autos, no recurso
interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa da decisão proferida em 1.ª
instância, pela 4.ª Vara Criminal de Lisboa, e no recurso interposto para o
Supremo Tribunal de Justiça da decisão que confirmou o correspondente acórdão.
– Pretende‑se ver apreciada, ainda, a inconstitucionalidade do artigo
434.º, conjugado com o artigo 426.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal,
por violação do n.º 5 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa;
– a questão de inconstitucionalidade foi suscitada nos autos, no pedido de
nulidade da decisão proferida em recurso nos mesmos, pelo Supremo Tribunal de
Justiça.»
A recorrente não identifica explicitamente as decisões do STJ
de que pretende interpor recurso para o Tribunal Constitucional, mas do
referido requerimento de interposição resulta que pretenderá recorrer:
– quer do acórdão de 12 de Julho de 2006 (fls. 4084 a 4128),
que negou provimento ao recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de
22 de Fevereiro de 2006 (fls. 3924 a 3982), que, concedendo parcial provimento
ao recurso do Ministério Público e negando provimento ao recurso dos arguidos,
aditou à pena fixada na 1.ª instância à ora recorrida (pena única de 4 anos e 6
meses de prisão, pela prática, em co‑autoria material, de um crime de extorsão,
sob a forma tentada, de um crime de corrupção passiva para acto ilícito e de um
crime de violação de segredo de justiça), a sanção acessória de proibição de
exercício de funções pelo período de 5 anos;
– quer do acórdão (que a recorrente erradamente designa por
«despacho») de 6 de Setembro de 2006 (fls. 4169 a 4181), que indeferiu arguição
de nulidade do precedente acórdão.
O recurso foi admitido pelo Conselheiro Relator do STJ, decisão
que, como é sabido, não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3,
da LTC) e, de facto, entende‑se que o recurso em causa é inadmissível, o que
possibilita a prolação de decisão sumária de não conhecimento, ao abrigo do
disposto no n.º 1 do artigo 78.º‑A da LTC.
2. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade,
a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas,
hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o
sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de
inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si
mesmas consideradas, ou a condutas ou omissões processuais. A distinção entre
os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa
daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na
primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério
normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter
de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações,
enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios
normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º
1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade
depende ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de
inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida,
em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC),
e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das
dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente. Aquele
primeiro requisito (suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o
tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada) só se considera
dispensável nas situações especiais em que, por força de uma norma legal
específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão
recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o
recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de
constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo
essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de
constitucionalidade.
Constitui jurisprudência reiterada deste Tribunal
Constitucional que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a
questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal
recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se
esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido
uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua
nulidade ou o pedido da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem
já meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual
aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa
de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve
«lapso manifesto» do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na
qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes
do processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da
proferida. E também, por maioria de razão, não constitui meio adequado de
suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez,
no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas
respectivas alegações.
3. Recordados estes critérios, constata‑se que, no caso, não se
verificam os específicos requisitos de admissibilidade do recurso interposto:
adequada suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa perante o
tribunal recorrido e aplicação por este, como ratio decidendi, das dimensões
normativas arguidas de inconstitucionais.
3.1. Antes de mais, importa sublinhar que, resultando do artigo
72.º, n.º 2, da LTC que só são atendíveis as questões de inconstitucionalidade
suscitadas perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, há apenas que
considerar – para verificação do cumprimento do referido ónus de suscitação –
as peças processuais endereçadas pela recorrente a esse tribunal (no caso: a
motivação do recurso contra o acórdão condenatório da Relação e a arguição de
nulidade do acórdão do STJ que negou provimento a esse recurso), e já não as
peças produzidas perante as instâncias inferiores, razão pela qual é descabida a
menção, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional, à motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação
como sendo uma das peças onde foram suscitadas as questões de
inconstitucionalidade que se pretendiam ver apreciadas.
Aliás, no caso, a questão de inconstitucionalidade suscitada
perante o Tribunal da Relação a propósito do artigo 127.º do Código de Processo
Penal (CPP) é distinta da questão que, se bem que reportada ao mesmo preceito,
foi suscitada perante o STJ e vem identificada no requerimento de interposição
do presente recurso. Perante a Relação, a recorrente sustentou dever «ser
considerada inconstitucional a norma do artigo 127.º do Código de Processo
Penal caso no confronto exclusivo entre dois depoimentos caracterizados da forma
como são os de ambos os arguidos, B. e A., na presente decisão, o primeiro
hesitante, atabalhoado e interessado, o segundo coerente, decidido e
desinteressado, se decida a contenda, com base na livre apreciação da prova e
convicção do juiz, a favor do primeiro, por flagrante violação do princípio da
presunção de inocência, com consagração constitucional, no artigo 32.º da
Constituição da República Portuguesa» (conclusão 36.ª da motivação do recurso
para a Relação); perante o STJ a recorrente pretendeu que fosse «declarada a
inconstitucionalidade da norma contida no artigo 127.º do Código de Processo
Penal, se interpretada no sentido de, no confronto exclusivo entre depoimentos
não corroborados objectivamente de dois ou mais co‑arguidos, se decida a
contenda a favor de um deles relativamente a factos imputados aos restantes,
com base na aplicação do princípio da livre apreciação da prova e convicção do
juiz, por flagrante violação do princípio da presunção de inocência e in dubio
pro reo constitucionalmente consagrados nos n.ºs 1 e 2 do artigo 32.º da
Constituição da República Portuguesa» (alínea d) da parte final da motivação do
recurso para o STJ); e no requerimento de interposição de recurso para o
Tribunal Constitucional pretende que seja apreciada «a inconstitucionalidade do
artigo 127.º do Código de Processo Penal, por flagrante violação do princípio da
presunção da inocência, no caso da condenação de um co‑arguido com apelo à
livre apreciação da prova, mas com base exclusivamente nas declarações de um
outro co‑arguido, não corroboradas objectivamente». Nas duas últimas peças
processuais, a recorrente radica a inconstitucionalidade na fundamentação da
condenação penal exclusivamente nas declarações de co‑arguido não corroboradas
objectivamente, enquanto perante a Relação o que questionou foi a decisão
judicial de atribuir mais valor ao depoimento «hesitante, atabalhoado e
interessado» de um co‑arguido, em detrimento do depoimento «coerente, decidido e
desinteressado» de outro co‑arguido. Não há, pois, que conhecer da questão
colocada perante a Relação e não reproduzida perante o STJ, questão essa que,
aliás, sempre seria de considerar manifestamente inconsistente, quer porque
reportada directamente à conformidade constitucional da decisão judicial de
valoração das provas, então impugnada, em si mesma considerada, e não a
qualquer critério normativo, quer porque, conforme o subsequente acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa explicou, a motivação da decisão da 1.ª instância
não comporta o sentido que a recorrente lhe imputou, pois, para além da
caracterização da forma de prestação dos depoimentos dos arguidos (que, aliás,
não se cingiu à adjectivação invocada pela recorrente), procedeu à análise e
valoração dos respectivos conteúdos e respectiva eficácia probatória,
justificando, de modo coerente, claro e suficiente, a maior credibilidade
conferida a um deles.
3.2. Limitando‑nos, como cumpre, às peças produzidas pela
recorrente perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, e começando pela
motivação do recurso para o STJ, a recorrente – elencando as seguintes quatro
questões como integrando o objecto do recurso: I – Vício de raciocínio, por
simpatia, na apreciação da prova, evidenciado pela simples leitura do texto da
decisão (...), relativamente ao crime de extorsão na forma tentada; II –
Nulidade, por omissão de pronúncia (...), relativamente ao crime de corrupção
passiva; III – Inconstitucionalidade do artigo 127.º do Código de Processo
Penal, por flagrante violação do princípio da presunção de inocência, no caso de
condenação de um co‑arguido com apelo à livre apreciação da prova, mas com base
exclusivamente nas declarações de um outro co‑arguido, não corroboradas
objectivamente; IV – A sanção acessória aplicada), aduziu o seguinte, quanto à
terceira questão:
«III – A invocada inconstitucionalidade.
O fenómeno probatório encontra‑se imbuído de uma série de comandos
destinados a garantir a conformidade do procedimento às regras do
Estado‑de‑Direito.
Admitida, como já foi, esta particular e problemática fonte de conhecimento – o
depoimento do co‑arguido – como meio de prova pelo nosso ordenamento jurídico e
a necessidade imperiosa e categórica da sua corroboração objectiva, como
critério indispensável à sua valoração, não temos dúvida que, como já foi
referido, apenas à luz dos preceitos constitucionais conformadores da lei
processual‑penal se poderão ultrapassar as dificuldades que decorrem do seu
funcionamento, no quadro da livre apreciação da prova.
De facto, tornando‑se impossível exigir de tal depoimento, espontaneidade,
constância, univocidade e desinteresse, sem esquecer, no caso em apreço, o
comando contido no n.º 3 do artigo 372.º do Código Penal, deverá o julgador,
estando em causa a utilização desse mesmo depoimento, como prova decisiva na
condenação de um co‑arguido, submeter a sua convicção a uma severa crítica, com
apelo directo às normas constitucionais que garantem os direitos de todo aquele
que é perseguido criminalmente, nomeadamente e com especial relevância no que
respeita à presunção da sua inocência.
Tal não sucedeu.
Assim, não podendo jamais implicar o arbítrio, ou sequer a decisão irracional,
puramente impressionista‑emocional, nas palavras de Castanheira Neves, o
princípio da livre apreciação da prova será sempre, neste contexto, sindicável
por esse Supremo Tribunal de Justiça, mesmo quando, de forma aparente, se
verificarem preenchidos os requisitos e formalismos constantes do artigo 374.º,
n.º 2, do Código de Processo Penal.
No caso em apreço, não se verificaram, como se disse, preenchidos tais
requisitos e formalismos, já que, na ausência de quaisquer elementos
corroborantes, foi a decisão da matéria de facto toda ela fundada, como se
demonstrou, e tão‑só, numa clara e motivada simpatia do julgador pelo
depoimento do co‑arguido B., convicção que admitimos séria e verdadeira, mas
ilegítima no confronto com as exigências constitucionais de um Estado de Direito
Democrático.
E é neste sentido que a alegada inconstitucionalidade, para além de todos os
restantes vícios de que, nos termos do recurso interposto, enferma a decisão
proferida pelo Colectivo da 4.ª Vara Criminal de Lisboa, deveria ter sido
reconhecida pelo Tribunal a quo, com as devidas e requeridas consequências em
sede de decisão penal, devendo, pelas mesmas razões, sê‑lo, agora, por esse
Supremo Tribunal de Justiça.
(…)
Conclusões:
1.º – A arguida e ora recorrente foi condenada pelos crimes de extorsão, na
forma tentada, corrupção passiva para acto ilícito e na pena acessória de
suspensão de função, por um período de cinco anos, com base em toda uma
factualidade dita provada com fundamento exclusivo no depoimento do co‑arguido,
B..
2.º – Depoimento não corroborado objectiva e relativamente a todos os
factos que imputou à ora recorrente e que conduziram à sua condenação pela
prática dos referidos crimes.
3.º – Traduzindo de modo muito particular a regra da corroboração uma
exigência acrescida de fundamentação, deverá a sua falta merecer a censura de
uma fundamentação insuficiente, sendo nula a decisão assim proferida, nos termos
do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal.
4.º – Ferida, ainda, de [in]constitucionalidade, nos termos devidamente
expressos na motivação de recurso e que aqui se reproduzem para todos os
efeitos,
5.º – Dada a imprescindível convocação dos princípios constitucionais que
condicionam a estrutura acusatória do processo, na observância dos comandos
destinados a garantir a conformidade do procedimento probatório às regras de um
Estado de Direito Democrático.
6.º – Nomeadamente, presumindo‑se sempre a inocência de qualquer arguido
em processo penal, nos termos do artigo 32.º da Constituição da República
Portuguesa.
7.º – Sendo‑lhe sempre e sem qualquer excepção favorável a dúvida,
8.º – Enquanto objecto de imputação, não corroborada objectivamente, de
factos que veementemente negou, por força e na sequência do depoimento de um
co‑arguido no mesmo processo.
9.º – O Tribunal a quo errou de forma evidente, na decisão proferida sobre a
matéria de facto nos pontos 16, 17, 18 e 19.
10.º – Erro que resulta do texto da própria decisão em 1.ª instância e, por
simpatia, na ora recorrida.
11.º – Por ser patente que, ao contrário do que sustentou em apoio da posição
manifestada pelo Ministério Público, constar de forma tácita do ponto 19 o facto
de a arguida e ora recorrente ter desviado a missiva ali em causa, guardando‑a
num cacifo, longe do olhar de quem quer que seja, com o intuito de mais tarde a
utilizar em seu próprio proveito.
12.º – Constituindo tal vício erro notório na apreciação da prova e tornando
nula a decisão nesse preciso aspecto, nos termos da alínea e) do n.º 2 do artigo
410.º do Código de Processo Penal.
13.º – Com as devidas consequências na decisão penal proferida, dada a
essencialidade de toda a matéria em causa na condenação proferida,
relativamente ao crime de extorsão, na forma tentada.
14.º – Entendeu a recorrente no seu recurso para o Tribunal a quo
incorrectamente julgados os factos relativos ao caso C., concretamente os
vertidos nos pontos 29 a 38, 69, 71, 77, 81, 82 e 85.
15.º – O Tribunal a quo assim não entendeu, mas não concretizou minimamente tal
entendimento,
16.º – Apenas transcreveu a decisão da 1.ª instância, afirmando possuir estas
todas as virtudes de uma fundamentada decisão.
17.º – O que manifestamente não chega em termos do cumprimento do dever de
pronúncia, mau grado a referência feita de modo genérico para uma determinada e
delimitada parte, aliás longa e diversificada, da decisão transcrita.
18.º – Ao invés de – parafraseando a decisão desse Supremo Tribunal de Justiça
transcrita na supra motivação – concretizar a afirmação de que o Colectivo
testara o depoimento do co‑arguido B. com outros meios de prova, indicando ou
precisando, justamente, quais tinham sido esses meios de prova.
19.º – Devendo, por consequência, declarar‑se nula a decisão ora recorrida por
omissão de pronúncia, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código
de Processo Penal.
20.º – De qualquer forma, sendo patente a total ausência de corroboração do
depoimento do co‑arguido B. em toda a referida factualidade, bem como de
qualquer outro meio de prova que a sustente, com especial relevância do facto,
sempre negado pela arguida e ora requerente, relativo à entrega do relatório da
Inspecção‑Geral de Finanças,
21.º – Deverá ser considerada de todo infundamentada a decisão da matéria de
facto no referido contexto,
22.º – Vício não apenas fatal para a decisão, nos termos do n.º 2 do artigo
374.º e alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º, ambos do Código de Processo Penal,
23.º – Mas que determina a sua completa invalidade, nos termos da invocada
inconstitucionalidade, por violação dos princípios constitucionais que
constituem o verdadeiro crivo por onde deverá passar a aferição dos limites
inultrapassáveis do subjectivismo próprio do princípio da livre apreciação da
prova.
24.º – Os princípios constitucionalmente consagrados da presunção de inocência
e do in dubio pro reo.
Termos em que deverá o presente recurso ser deferido e, por força das invocadas
nulidades, ser anulada a decisão ora recorrida, substituindo‑se por outra que:
a) Absolva a arguida e ora recorrente dos crimes de extorsão, na forma tentada e
corrupção passiva para acto ilícito;
b) Mantendo‑se, apenas, a pena parcelar que lhe foi aplicada relativamente ao
crime de violação do segredo de justiça;
c) Revogue a pena acessória de proibição do exercício de função;
d) Sendo, para o efeito, salvo melhor ponderação de Vossas Excelências,
declarada a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 127.º do Código de
Processo Penal, se interpretada no sentido de, no confronto exclusivo entre
depoimentos não corroborados objectivamente, de dois ou mais co‑arguidos, se
decida a contenda a favor de um deles, relativamente a factos imputados aos
restantes, com base na aplicação do princípio da livre apreciação da prova e
convicção do juiz, por flagrante violação do princípio da presunção da inocência
e in dubio pro reo constitucionalmente consagrados nos n.ºs 1 e 2 do artigo 32.º
da Constituição da República Portuguesa;
e) Ou, caso assim não se entenda, nomeadamente, por limitação dos poderes desse
Supremo Tribunal de Justiça, estando em causa o julgamento da matéria de facto,
f) Seja determinada a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Lisboa para
efeitos do conhecimento das invocadas nulidades, inconstitucionalidade e
pronúncia sobre todas as questões que lhe compete conhecer, nos termos
expostos.»
3.3. No acórdão de 12 de Julho de 2006, o STJ julgou
improcedente a questão suscitada, desenvolvendo a seguinte argumentação:
«2.4. Posto isto, entremos no julgamento do objecto do recurso.
2.4.1. Da corroboração das declarações do co‑arguido
2.4.1.1. A recorrente, depois de elencar as questões que acima se
transcreveram como constituindo o objecto do seu recurso, adverte, desde logo,
que todas elas ‘se centram na problemática do conhecimento probatório do
co‑arguido’, adiantando ser seu entendimento que nada impede a valoração pelo
julgador das suas declarações, desde que objectivamente corroboradas.
A verdade é que, no caso, continua, a sua condenação teve por base
exclusivamente tais declarações, ‘não corroboradas, porém, objectiva e
relativamente a todos os factos que se prendem com a sua actividade de
corrupção e, corroboradas, é um facto, no que se refere ao crime de extorsão na
forma tentada, por presunções materiais ligadas à normalidade da vida e às
regras da experiência, estas, porém, alicerçadas em factos que, por um lado, se
admitiram erradamente como certos e, por outro, totalmente descontextualizados,
desenquadrados, quer no espaço, quer no tempo’.
É neste contexto que invoca, como também já vimos, a
inconstitucionalidade do artigo 127.º do CPP ‘por flagrante violação do
princípio da presunção de inocência, no caso de condenação de um co‑arguido com
apelo à livre apreciação da prova, mas com base exclusivamente nas declarações
de outro co‑arguido, não corroboradas objectivamente’ (sublinhamos).
A questão, tal como vem colocada, não coincide exactamente com o que foi
alegado no recurso para o Tribunal da Relação. Tanto assim que a recorrente
sentiu necessidade de, sobre a ‘problemática do conhecimento probatório do
co‑arguido’, clarificar o seu posicionamento.
E, na verdade, se agora se insurge contra o facto de ter sido condenada
com base exclusivamente nas declarações do co‑arguido B. sem que as mesmas
tivessem sido objectivamente corroboradas, no recurso para a Relação a crítica
foi centrada na relevância probatória dada a essas declarações em detrimento
das que ela própria prestou. E, por isso, é que denunciou a falta de exame
crítico das primeiras, em contraponto com o ‘abrangente exame crítico’ que
recaiu sobre as segundas, todavia, sem ter escapado ‘a um subjectivismo
primário, mesmo insultuoso…’; que procurou desmontar o raciocínio do Tribunal da
1.ª instância que conduziu ao descrédito das suas declarações; que intentou
demonstrar que a versão do co‑arguido é contrariada, em ‘decisivos aspectos’,
por factos provados por meios de prova de ‘superior valor probatório’ que o
Tribunal infundadamente ignorou, desvalorizou ou desvirtuou por erro notório na
sua apreciação. E concluiu que o Tribunal da 1.ª instância conferiu crédito a
‘um depoimento que não pode constituir fonte de prova’, confundindo livre
convicção com arbítrio e discricionariedade.
Mesmo a arguição da inconstitucionalidade do artigo 127.º foi então
desenhada de modo diferente: ‘Devendo ser considerada inconstitucional a norma
do artigo 127.º do Código de Processo Penal, caso no confronto exclusivo entre
dois depoimentos caracterizados da forma como são os de ambos os arguidos, B. e
A., na presente decisão, o primeiro, hesitante, atabalhoado e interessado, o
segundo coerente, decidido e desinteressado, se decida a contenda, com base na
livre apreciação da prova e convicção do juiz, a favor do primeiro, por
flagrante violação do princípio da presunção da inocência, com consagração
constitucional no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa’.
(sublinhado nosso).
Como quer que seja, está presente, em ambos os recursos, o mesmo núcleo
essencial de impugnação: a exigência de, no caso, ter de se limitar o princípio
da livre apreciação da prova, sob pena de violação do princípio estruturante da
presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP.
Vejamos, então.
2.4.1.2. A primeira nota é a de que a própria recorrente aceita nada
proibir a valoração como meio de prova das declarações de co‑arguido, sobre
factos desfavoráveis a outro.
E é, com efeito, neste sentido que se tem pronunciado tanto a
jurisprudência, que se pode dizer uniforme, do Supremo Tribunal de Justiça
(cf., por exemplo, os acórdãos de 20 de Dezembro de 2005, Proc. n.º 3128/05‑5.ª,
de 7 de Dezembro de 2005, Procs. n.º 2105/05‑5.ª e 2945/05‑3.ª, e de 23 de
Novembro de 2005, Proc. n.º 2933/05‑3.ª), como a maioria da doutrina nacional
(cf. Teresa Beleza, Revista do Ministério Público, ano 19.º, n.º 74, p. 39 e
seguintes; Medina Seiça, O Conhecimento Probatório do Co‑Arguido; e Figueiredo
Dias, de acordo com o Parecer que foi junto ao Proc. n.º 967/06, desta Secção;
contra, no sentido da proibição de prova, Rodrigo Santiago, Revista Portuguesa
de Ciência Criminal, 1994, p. 27 e seguintes).
Como refere Figueiredo Dias no citado Parecer, não é tanto a
admissibilidade de princípio da valoração das declarações dos co‑arguidos que
está em causa, mas sim os termos em que tal deve fazer‑se e os limites que lhe
são impostos. As declarações desfavoráveis aos demais co‑arguidos, pela sua
fragilidade, decorrente de eventual conflito de interesses e de antagonismo
entre si, devem ser submetidas a tratamento específico e retiradas do alcance do
regime normal da livre apreciação da prova.
E o Supremo Tribunal de Justiça vem a tal propósito entendendo dever
exigir‑se respeito pelo estatuto de arguido (incompatível com o juramento
próprio das testemunhas e com a vinculação ao dever de responder com verdade) e
pelo princípio do contraditório (concretizado na possibilidade conferida ao
defensor do arguido de formular perguntas ao co‑arguido por intermédio do
presidente do tribunal, visando as declarações prestadas, na medida em que
afectem o arguido por si representado), além de cautelas especiais na valoração
dessas declarações que, de um modo geral, se reconduzem à exigência de
corroboração.
Como nos dá conta Figueiredo Dias ainda naquele Parecer, entre as soluções
propostas para modular doutrinal e normativamente o particular regime das
declarações do co‑arguido, avulta a doutrina da corroboração, com o que se quer
significar ‘a existência de elementos oriundos de fontes probatórias distintas
da declaração que, embora não se reportem directamente ao mesmo facto narrado na
declaração, permitem concluir pela veracidade desta’. A regra da corroboração
traduz de modo particular uma exigência acrescida de fundamentação, devendo a
sua falta merecer a censura de uma fundamentação insuficiente. Significa que as
declarações do co‑arguido só podem fundamentar a prova de um facto
criminalmente relevante quando existe ‘alguma prova adicional a tornar provável
que a história do co‑arguido é verdadeira e que é razoavelmente seguro decidir
com base nas suas declarações’. Ou, noutros termos, a exigência de corroboração
significa que as declarações dos co‑arguidos nunca podem, só por si, e por mais
inequívocas e credíveis que sejam, suportar a prova de um facto criminalmente
relevante. Exige‑se para tanto que as declarações sejam confirmadas por outro
autónomo contributo que ‘fale’ no mesmo sentido, em abono daquele facto’.
2.4.1.3. No caso sub judice, como a própria recorrente aceita constar da
fundamentação da decisão sobre a matéria de facto que, depois, foi ratificada
pelo Tribunal da Relação, os factos provados que levaram ao preenchimento dos
crimes por que foi condenada, não assentaram única e exclusivamente nas
declarações do co‑arguido B.. Desde logo porque nenhum se remeteu ao silêncio,
tendo ambos produzido declarações divergentes, é certo, sobre os mesmos factos
(ou, pelo menos, sobre os factos decisivos para a condenação).
Por outro lado, e relativamente ao crime tentado de extorsão (os factos
relacionados com o casal D. e E. – n.ºs 5 e seguintes dos factos provados),
considerando os termos daquela fundamentação (fls. 3313 e seguintes do acórdão
da 1.ª instância), transcrita e analisada no acórdão recorrido (cf. fls. 3948 e
3971, respectivamente), não se pode mesmo invocar ‘a problemática do
conhecimento probatório do arguido’, nos termos em que a mesma foi equacionada.
Refere‑se aí, com efeito, a propósito deste crime, que a recorrente disse,
que:
‘Sempre que se encontravam [ela e o co‑arguido B.], em estabelecimentos de
cafetaria, adiantou que ambos falavam de vários assuntos. Um destes dizia
respeito às actividades levadas a cabo pelo casal D.E., nomeadamente em relação
a si e à sua colega e amiga F., dado que se sentiam exploradas por aquele.
Então, perguntou B. qual a razão de não os denunciar às autoridades. Na
sequência, por sua exclusiva iniciativa, este seu amigo transmitiu‑lhe que
conhecia algo sobre a vida do referido casal, através de uma pessoa amiga,
insistindo que deveria ser feita uma denúncia contra D. e E..
A arguida admitiu que tal ideia lhe agradou.
Acrescentou que, em Março de 2004, surgiu uma denúncia anónima na PGR e logo
imaginou a sua proveniência, presumindo quem era o remetente, tanto mais que B.
lhe dissera que tinha enviado uma queixa anónima, sendo verdade que teve
relutância em dar entrada à mesma, por brio profissional, chegando a pensar
colocar o assunto ao Chefe de Gabinete, acabando por não o fazer.
Reforçou que, entretanto, B. deixara de falar no assunto do terrorismo.’
E, mais adiante, que:
‘Quanto à queixa respeitante ao casal D.E., salientou que este a merecia por se
considerar usada, explorada e injustiçada, para além do que se passava, de igual
modo, em relação a F..
Explicou que B. lhe foi comunicando que estava a fazer investigações sobre tal
casal e que, por isso, não foi surpresa a denúncia que apareceu na PGR.
No que tange às conversas constantes da acusação à porta de sua casa e no … [com
o casal], a arguida A. negou‑as, classificando‑as de invenção.
...
Mais explicou que nunca teve conhecimento dos factos que constavam da denúncia
relacionada com o casal D.E., tendo esta chegado à PGR em Março de 2004.
Apesar de achar boa ideia denunciar o dito casal, como vincou, nunca o fez por
ter medo do carácter violento de D..
Disse não ser amiga de E. e acrescentou que o casal cobrava juros elevados pelos
empréstimos que fazia a diversas pessoas. Por sua vez, aquela confidenciava os
negócios, em particular.
Confirmou que era a única pessoa que sabia a proveniência da respectiva
denúncia, desconhecendo, porém, o seu teor.
Depois, a arguida explicitou como se processavam os negócios de ouro entre o
casal D.E. e F. e qual a sua intervenção nesse esquema.
Mencionou que B. lhe transmitiu que sabia factos da vida do casal D.E., através
de pessoas que frequentavam casinos, decorrendo daí a sua percepção de que
explorava pessoas.
...
Enfatizou que … as conversas sobre o casal D.E. havidas entre si e B. só
surgiram em princípios de 2004…’
E que, por sua vez, o co‑arguido B., sobre o mesmo caso, referiu que:
‘Quanto ao casal D.E., disse não ter feito nada, a não ser colocar nos
correios, em Aveiro, uma carta, cujo teor desconhece, a pedido da arguida A.,
sendo certo que a letra do respectivo envelope é sua. Esclareceu, ainda, que,
na altura em que tal aconteceu, ficou com a ideia de que tal documento visava o
mencionado casal, por causa do que a arguida A. lhe deu a entender.
Adiantou desconhecer D. e E., muito embora tivesse ouvido falar de ambos,
através da arguida A., sabendo que são pessoas que negoceiam ouro e que
emprestam dinheiro. Aliás, chegou a recorrer a empréstimos, por intermédio da
dita arguida.
Apenas tomou conhecimento da carta, quando se encontrava na PJ. Quando a
expediu, a arguida A. disse‑lhe que era uma denúncia.’
Donde, a conclusão a tirar ser a de que se, neste caso, alguém imputou algo
a alguém foi a recorrente ao seu co‑arguido e não o contrário, como de resto
foi assinalado na mesma fundamentação, fls. 3348:
‘Este caso é elucidativo do que se passou ao longo da audiência. De um lado,
A., a coberto de lógica e coerência, a tudo empurrar para cima de B. e, de
outro, B., envolto em algumas hesitações, a denotar alguma confusão, sem,
contudo, atribuir, sem mais, a responsabilidade dos factos à co‑arguida.’
De qualquer modo, como se afirma no exame crítico das provas, reexaminado
e acolhido no acórdão recorrido, também os depoimentos dos assistentes D. foram
valorados e determinantes no julgamento dos factos.
Diz‑nos, na verdade, esse momento da fundamentação, fls. 3324 e 3325 e 3348
a 3350 – reexaminado e acolhido, repete‑se, no acórdão recorrido, fls. 3971 –
que os assistentes disseram, em síntese:
– terem recebido um telefonema da recorrente a propor‑lhes um encontro,
por causa de uma denúncia anónima contra eles;
– que, nesse encontro, ela começou a ler a alegada denúncia, relacionada
com sinais exteriores de riqueza, dando a entender, a certa altura, que iria
falar com duas pessoas ligadas à investigação;
– que o D. reagiu, dizendo que ‘quem não deve não teme’;
– que, passados dias, voltaram a encontrar‑se os três, tendo a recorrente
referido que os seus dois conhecidos queriam contrapartidas e dado a entender
que poderiam ‘abafar’ as investigações;
– que não adiantou montantes nem exigiu nada para si;
– que não conheciam o co‑arguido B..
Face às diferentes versões dos arguidos, o Tribunal decidiu a matéria de
facto relacionada com este caso apoiando‑se nestes dois depoimentos e na
circunstância de a denúncia anónima ter sido encontrada no cacifo da
recorrente e concluiu, em dado passo, que ‘nada [encontrou] que suporte a versão
da arguida contra elementos que jogam contra a mesma’, descrevendo o raciocínio
que suporta essa conclusão e levou à decisão final e que mereceu o aval do
Tribunal da Relação.
Nem sequer é, pois, caso de (apenas) versões antagónicas de co‑arguidos.
Se essa prova foi ou não bem ponderada e valorada é questão que escapa aos
poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, funcionando como Tribunal de
recurso, como pressentiu, de resto, a recorrente (cf. alínea e) do pedido com
que encerrou as conclusões da motivação), atento o disposto nos artigos 434.º do
CPP e 722.º, n.º 2, do CPC.
Quanto ao crime de corrupção (factos relacionados com a ‘C.’/G.), para além
do que no início se disse (declarações antagónicas dos dois co‑arguidos),
importa referir que o Tribunal da 1.ª instância reconheceu expressamente a
necessidade de corroboração das declarações dos arguidos, por isso que fez apelo
à prova indiciária e lançou mão dos resultados decorrentes de outros meios de
prova, tudo sem notícia ou denúncia de desrespeito pelo contraditório, e
expressou o caminho seguido para chegar à decisão que tomou sobre a matéria de
facto.
Basta ler o ponto III da fundamentação, fls. 3351 dos autos, também aqui
sufragada pelo Tribunal da Relação, fls. 3792.
Aí se diz, com efeito:
‘III) Resta abordar o que aconteceu relativamente à C.. Quais as considerações a
fazer?
Em primeiro lugar, a arguida A. negou qualquer aproximação a alguém ligado ao
citado grupo empresarial, o arguido B. admitiu que, de comum acordo e em
conjugação de esforços com aquela, entrou em contacto com G., a fim de lhe
vender documentos, em segredo de justiça, relacionados com a C., excluindo que,
alguma vez, pensasse em divulgar os papéis na comunicação social, nunca tendo
abordado esse assunto, a não ser em determinada conversa que consta dos autos,
sendo certo que apenas, então, se limitou a entrar no respectivo tema
introduzido pelo seu interlocutor. Por sua vez, a arguida H. negou que tivesse
proposto o que consta da acusação, tendo agido para ajudar um amigo, enquanto
que o arguido I. referiu que visou apenas permitir contactos entre pessoas, nada
pretendendo ganhar com isso, salientando que o assunto da comunicação social
lhe foi transmitido por B.. Enfatize‑se, ainda, nesta matéria a divergência de
valores acima mencionada.
Em segundo lugar, G. descreveu todos os contactos que manteve com os arguidos
B. e H., sublinhando que a conduta desta sempre lhe surgiu como o de uma amiga
que desejava alertá‑lo e ajudá‑lo. Chegou a admitir ter havido confusão no
valor transmitido pela arguida. Referiu que o tema da comunicação social esteve
sempre presente em todas as conversas, admitindo que, ao falar com B., pudesse
estar já induzido a fazê‑lo por causa do que H. lhe dissera. Mais disse, como já
vimos, que nunca se sentiu constrangido e que apenas entregou dinheiro porque
as autoridades policiais o aconselharam nesse sentido.
Em terceiro lugar, os inspectores da Polícia Judiciária descreveram as suas
vigilâncias e tudo o mais que praticaram [anota‑se que a testemunha J. descreveu
os contactos mantidos entre o arguido B. e G., referindo que o primeiro, depois
de ter estado na C., “na sequência de telefonemas para a PGR, se encontrou com
uma senhora no Centro Comercial de Alvalade, senhora essa que veio a ser
reconhecida como sendo a recorrente”].
Em quarto lugar, as testemunhas que prestaram depoimento sobre este assunto
limitaram‑se, em boa verdade, a narrar o que vieram a saber. Com efeito, mesmo
as pessoas que estiveram em casa de H. não estiveram junto desta e de I.,
aquando da conversa essencial, à excepção de K., cujo depoimento, por ser tão
retraído, nenhuma credibilidade mereceu.
No que tange a estes factos, dúvidas não restaram ao Tribunal de que os arguidos
A. e B. actuaram em conjunto e com a finalidade de obter dinheiro de G.,
através de documentos relacionados com o relatório proveniente da IGF e que
havia dado entrada na PGR. Por sua vez, dúvidas ficaram no ar quanto à ameaça de
divulgação através da comunicação social.
Passemos, então, a explicar.
Desde logo, A. gastou muito tempo da audiência de julgamento a transmitir a
mensagem de que B. estava a “mentir para salvar a pele”. Argumento perigoso na
defesa de um co‑arguido, afirma este Tribunal, na medida em que é, como todos
entendem, reversível...
Pois bem, a arguida, apesar das suas lógica e coerência ao longo do julgamento,
para lá de ter feito certas afirmações que não foram confirmadas pela restante
prova (1 – só regressou ao trabalho, em 2003, porque tal lhe foi pedido com
grande insistência; 2 – sempre teve autorização para levar processos
confidenciais para casa; 3 – não conversou com o casal D.E., à porta de sua
casa), teve uma falha ou omissão fundamental que serviu para abalar a sua
credibilidade – referiu, durante muito tempo, que julgava que B., no dia 2 de
Abril de 2004, estava em Aveiro, pois tinha estado com ele na véspera, tendo
ficado com essa ideia. Simplesmente, a dado momento, o aludido arguido disse,
entre outras coisas, que havia dado boleia a A. até à PGR, na manhã de 2 de
Abril de 2004, o que não foi, então, desmentido.
É evidente que, não estando nos autos qualquer vigilância da Polícia Judiciária
à residência da arguida, no referido dia, não interessava saber de tal encontro
– note‑se que os documentos a entregar a G. foram, então, entregues, conforme
disse B..
Acresce que, para quem tanto falou em brio profissional, mal se compreende que,
por amizade, um dia depois de B. lhe ter falado na C. (declarações iniciais da
arguida), e depois de afirmar que ia pensar no assunto, por mero acaso apareçam
fotocópias sem timbre para serem mostradas ao arguido, tanto mais que, segundo
disse A., não sabia que o ia encontrar. Convenhamos que seriam coincidências em
demasia!...
Vejamos, agora, a alegada ameaça de divulgação dos documentos através da
comunicação social.
Essa mensagem foi transmitida por I. a H. e por esta a G.. Uma vez mais, estamos
de acordo quanto a isso.
Mas de onde partiu a mensagem? De B. ou de I.? Do primeiro, que o fez, recuando
em julgamento, por questão de estratégia? Do segundo, que o fez, admitamo‑lo,
involuntariamente, fazendo uso do adágio “quem conta um conto acrescenta um
ponto”?
Acontece que B. foi muito consistente, nesta matéria, ao longo de todo o
julgamento. Já I. vacilou nas respostas, se bem que sempre tenha seguido o mesmo
rumo.
De acordo com o princípio in dubio pro reo, não deu o Tribunal como provada a
ameaça em causa, pois viu‑se confrontado com uma dúvida insanável.
Dir‑se‑á que o acto de vender os documentos a G. só teria sentido se
acompanhado de algo mais, de forma a pressioná‑lo efectivamente.
Concede‑se tal argumento. No entanto, B. foi muito claro ao dizer que, caso G.
negasse qualquer pagamento, o plano seria colocado de lado. E tal bate certo
com o seu anterior procedimento em relação ao Banco L., não o esqueçamos.
Ora, a dúvida deve sempre favorecer o arguido.
Antes de concluirmos, que dizer dos montantes transmitidos por I. a H. e por
esta a G.?
Foram 50 000 €, 50 000 contos, 300 000 €, 70 000 contos?
Seja permitida uma certa ligeireza na abordagem deste problema. Ousamos afirmar
que nem os próprios intervenientes nas conversas o sabem neste momento, tal a
divergência que houve...
De qualquer das formas, voltando ao lado sério do problema, tal é irrelevante,
face à matéria de facto dada por assente.
Por último, o Tribunal valorou os depoimentos de todas as testemunhas de
acusação que trabalham na PGR, quanto à actividade aí desempenhada por A. e de
todas as testemunhas de defesa, no que diz respeito à reputação dos arguidos,
quer pessoal quer profissional.
Os depoimentos das testemunhas M. e K. não foram importantes. Quanto ao
primeiro, não ficou claro que conhecimento tinha dos factos, enquanto advogada e
enquanto amiga de G.. No tocante ao segundo, revelou‑se reservado em excesso,
nada convincente.’
Por aqui se vê que as instâncias seguiram o programa de valoração da prova
adequado ao caso, extraindo os factos que julgaram provados da concatenação
dos resultados produzidos pelos diversos meios de prova a que tiveram acesso (e
não do simples privilegiamento das declarações do co‑arguido B. em seu
desfavor).
E se é certo que acabou por decidir contra a versão dela, isso nada tem de
ilegal ou de atentatório dos princípios processuais em matéria de prova,
designadamente o da presunção da inocência, do in dubio pro reo, da livre
apreciação da prova ou mesmo o da exigência de corroboração das declarações de
co‑arguido. Estas, repete‑se, nos termos da fundamentação – e o Supremo Tribunal
de Justiça, no controlo do respeito por esses princípios, não pode ir além da
análise dessa parte da sentença – tem apoio bastante nos restantes provas
produzidas, sendo disso sintomático, por exemplo, o depoimento da testemunha
J..
Por outro lado, a leitura do mesmo capítulo da sentença não revela que em
momento algum o tribunal, neste caso, se tenha deixado assaltar por quaisquer
dúvidas sobre o sentido e a autoria dos factos que levaram à condenação da
recorrente. Quando isso aconteceu, como relativamente à alegada ameaça de
divulgação dos documentos através da comunicação social, disse‑o expressamente
e julgou‑os não provados.
Deste modo, também carece de fundamento a alegada inconstitucionalidade.
Se, na execução desse plano, as instâncias deram indevido relevo a umas
declarações em detrimento de outras, se valoraram incorrectamente certo meio de
prova e desvalorizaram ou desprezaram outros, é questão que, mais uma vez,
escapa aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça que, já o
dissemos, cura exclusivamente da matéria de direito.
Em suma: quer no caso “Casal D.E.” que no caso “C.”, a recorrente não foi
condenada em função única e exclusivamente de declarações desfavoráveis do
co‑arguido B.. De qualquer modo, essas declarações estão suficientemente
corroboradas por outros meio de prova, designadamente a testemunhal e a
documental.
Improcede, pois, nesta parte, o recurso.»
3.4. Como é patente, a decisão ora recorrida – ao explicitar
que a condenação da recorrente nem se baseou exclusivamente nas declarações de
outro co‑arguido nem a relevância probatória dada a estas declarações
prescindiu da corroboração objectiva das mesmas – não fez aplicação, como ratio
decidendi, do critério normativo arguido de inconstitucional pela recorrente, ao
suscitar «a inconstitucionalidade do artigo 127.º do Código de Processo Penal,
por flagrante violação do princípio da presunção da inocência, no caso da
condenação de um co‑arguido com apelo à livre apreciação da prova, mas com
base exclusivamente nas declarações de um outro co‑arguido, não corroboradas
objectivamente».
Por falta deste requisito específico do recurso previsto na
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o presente recurso é, nesta parte,
inadmissível, o que determina o não conhecimento do correspondente objecto.
3.5. Por seu turno, no requerimento de arguição de nulidade do
precedente acórdão do STJ, na parte ora em causa, a recorrente aduziu:
«II – Da dupla nulidade da decisão nesta parte.
No que respeita ao alegado erro na apreciação da prova, ponto 2.4.3 da
decisão, entendeu esse Supremo Tribunal de Justiça, no exercício dos seus
poderes de cognição, não vislumbrar, no texto da decisão recorrida, por si ou
conjugado com as regras da experiência, nenhuma falha, insuficiência ou erro
notório de julgamento.
Isto porque, tendo o Tribunal da Relação reconhecido o erro da 1.ª
instância, considerou ser relativamente indiferente o preciso local onde a
carta foi encontrada: ‘o que interessa é que ela estava, em qualquer caso, na
posse exclusiva da arguida’, verificando‑se, por consequência, o seu desvio nos
precisos termos pretendidos na decisão da 1.ª instância.
Tendo considerado esgotados os poderes de cognição com a confirmação pelo
Tribunal recorrido desse ponto da decisão da matéria de facto, não concluiu
esse Venerando Supremo Tribunal, desde logo, como seria de esperar, a
improcedência do recurso nessa parte.
Acrescentou, ainda, que a conclusão – o desvio da carta – não ofende as
regras da experiência, ‘porquanto, tratando‑se de uma funcionária da inteira
confiança dos seus superiores, o desvio de um documento não é incompatível com
tê‑lo deixado ou, até, tê‑lo propositadamente colocado no meio do aludido
monte de papéis, na medida em que aquela relação de confiança corresponde, em
geral, à ausência de especial fiscalização do conteúdo dos documentos cujo
processamento está a cargo dessa funcionária’.
Esta asserção, pelo particularismo que reveste nos seus múltiplos
aspectos, exigiria do julgador um conhecimento muito para além da circunstância
de a arguida e ora recorrente ser, efectivamente, uma funcionária da inteira
confiança dos seus superiores.
Exigiria, por exemplo, o conhecimento das reais circunstâncias e condições
de trabalho da arguida, nomeadamente, o número de pessoas que partilhavam a
sua sala de trabalho, o número e qualidade de eventuais visitantes, quais, entre
todas estas pessoas, teriam acesso directo e autorizado ao expediente em
processamento sobre a sua secretária, etc., tudo conjugado de forma
proporcional à referida confiança nela depositada, sob pena de a conduta não
suportar os correspondentes riscos.
Só assim, depois de tudo isto conhecido, se poderia apelar às regras da
experiência, para se concluir como concluiu.
De qualquer maneira, trata‑se da introdução de nova matéria de facto, não
apreciada na sede devida, para mais, incompatível com a conclusão extraída pelo
Tribunal recorrido, relativa à posse erga omnes assegurada pela caracterizada
exclusividade, conclusão, por seu turno, contraditória com a decisão proferida
em recurso pelo mesmo Tribunal recorrido, apenso a estes mesmos autos, que
concluiu não pertencer à arguida e ora recorrente a disponibilidade do lugar
correspondente ao seu local de trabalho, confirmando a regularidade de uma
busca efectuada na sua ausência.
De facto, a posse exclusiva do documento torna absolutamente incompreensível o
alegado expediente da funcionária, agora introduzido por esse Supremo Tribunal
de Justiça, em flagrante violação dos seus poderes de cognição (artigo 434.º do
Código de Processo Penal).
A decisão contradiz‑se, assim, a si própria, pois se a posse exclusiva do
documento resolvia a questão, no entender da mais alta instância de recurso,
para quê aditar‑lhe novo facto ou argumento que, negando a alegada
exclusividade, apenas vem lançar a confusão sobre o significado da localização
de um documento que, não estando, efectivamente, escondido no cacifo da
funcionária, noutro lado não poderia estar.
A funcionária, porque na posse não exclusiva de um documento, escondeu‑o entre
outros papéis?
É uma hipótese a considerar como outra qualquer.
Há que prová‑la.
Mas não nesta sede.
Esse Supremo Tribunal de Justiça, de acordo com os referidos poderes de
cognição, apenas se intromete nos aspectos fácticos nos casos das alíneas a), b)
e c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
Porém, mesmo nestes casos, não procede à renovação da prova, não exclui nem
adita novos factos, ou simples argumentos que extravasem o texto da decisão
recorrida, como foi o caso, limitando‑se a apontar ou não o vício detectado e a
determinar ou não o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do n.º
1 do artigo 426.º do Código de Processo Penal.
Excedeu, por consequência, esse Supremo Tribunal de Justiça os seus poderes de
cognição, sendo nula a decisão nesta parte, por força do previsto no artigo
434.º e alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º, ex vi n.º 4 do artigo 425.º, todos
do Código de Processo Penal.
Decidiu, também, esse Supremo Tribunal de Justiça que ‘Aliás, o facto do n.º 19
nem sequer é decisivo para a condenação da recorrente pelo crime tentado de
extorsão, preenchido que ficou com a primeira abordagem dos assistentes (factos
n.ºs 7 a 14)’.
O que constitui um erro flagrante.
Torna‑se evidente que toda a construção da base factual levada a cabo pela 1.ª
instância na sua fundamentação, aliás, confirmada pelo Tribunal a quo, na
condenação da arguida e ora recorrente pela prática de um crime de extorsão na
forma tentada, não prescinde de toda a factualidade que esse Supremo Tribunal
de Justiça pretende, agora, poder excluir, uma vez mais com excesso dos seus
poderes de cognição (n.º 1 do artigo 426.º do Código de Processo Penal).
Bastará atender a esta significativa parte da fundamentação da decisão proferida
em primeira instância, onde é patente o relevo, aliás, justíssimo, caso
correspondesse à verdade, do desvio da carta recebida na Procuradoria‑Geral da
República, posta em recato no cacifo da arguida.
Atenção, porque vai falar‑se de CORROBORAÇÃO OBJECTIVA!
É impossível não introduzir alguns reparos a todo este discurso, pois,
parafraseando o próprio julgador, é elucidativo do que se passou ao longo da
audiência:
‘I – No que tange aos factos em que estiveram envolvidos os assistentes D. e
E., são de realçar alguns aspectos.
Em primeiro lugar, como já sabemos, há versões diferentes dos arguidos A. e B..
Aquela negou os factos e atribuiu a denúncia anónima ao co‑arguido, enquanto
este disse ser alheio ao assunto, admitindo apenas que colocou no correio
determinado documento.
Em segundo lugar, há os depoimentos dos assistentes que narraram, em pormenor,
as conversas aludidas na acusação mantidas com a dita arguida. (Aqui a 1.ª
instância “branqueou” totalmente as contradições nos depoimentos dos
assistentes, aliás, acareados a requerimento da defesa da arguida, acabando o
assistente D. por dizer que a mulher tinha melhor memória e, por consequência,
seria por certo a correcta a sua versão dos acontecimentos, não a dele).
Acrescentaram os mesmos que não conhecem o arguido B., nunca sequer tendo ouvido
falar dele.
Em terceiro lugar, temos a denúncia anónima apreendida no cacifo de A. e que
estava aí retida. Este caso é elucidativo do que se passou ao longo da
audiência. De um lado, A., a coberto de lógica e coerência, a tudo empurrar para
cima de B. e, de outro lado, B., envolto em algumas hesitações, a denotar alguma
confusão, sem, contudo atribuir, sem mais, a responsabilidade dos factos à
co‑arguida. (É patente a contradição no discurso. Pode ler‑se acima que foi o
arguido B. que admitiu ter enviado a carta de Aveiro. A arguida e ora recorrente
nunca lhe atribuiu a autoria da carta, como já ficou supra devidamente
esclarecido).
Eis um exemplo da importância das declarações dos co‑arguidos.
Poderia parecer que o Tribunal deveria dar credibilidade à arguida A., muito
mais eloquente que o co‑arguido. Todavia, apelando à supra citada corroboração
objectiva das respectivas declarações, que encontramos? (Leram bem, Exmos.
Senhores Conselheiros? Corroboração objectiva: a tal que desfaz as dúvidas, que
sossega o espírito do julgador e o livra do “buraco negro” de uma absolvição por
via das mesmas).
Nada que suporte a versão da arguida contra elementos que jogam contra a mesma.
Com efeito, A. insistiu que, sabendo da proveniência da denúncia, a reteve por
brio profissional. Como perceber tal comportamento? Onde foi encontrada a
denúncia relativa ao casal D.E.? Decorre dos autos que estava no cacifo que a
arguida possuía na PGR. Ora, sendo certo que a arguida levava amiúde documentos
confidenciais para sua casa, só faz sentido que guardasse no aludido local o
documento em causa para vir a utilizá‑lo logo que achasse por bem, e por sua
exclusiva iniciativa. Caso contrário, tê‑lo‑ia destruído.’
É que, admitindo que os factos provados, descritos sob os n.ºs 7 a 14, se possam
considerar actos de execução do crime que a arguida terá decidido cometer, o que
daria ‘pano para mangas’, mas não cabe aqui discutir, só a partir da existência
da carta enviada de Aveiro, recebida na Procuradoria‑Geral da República, mas não
guardada em qualquer cacifo, a tentativa é punível, como resulta claro da
redacção da última parte do n.º 3 do artigo 23.º do Código Penal.
De facto, conforme resulta da decisão proferida em 1.ª instância: ‘13) a
arguida sabia que não existia qualquer denúncia anónima...’.
Haverá alguma dúvida quanto ao facto de ser este o ‘objecto essencial à
consumação do crime’ de que fala a norma?
Admitimos que outro enquadramento jurídico pudesse ser considerado na 1.ª
instância relativamente a este conjunto limitado de factos que compreendem a
primeira abordagem da arguida aos assistentes.
Não foi tão longe a decisão, contudo, e percebe‑se porquê.
A decisão proferida por esse Supremo Tribunal de Justiça é, assim e nesta parte,
nula, por excesso de pronúncia, por pressupor a condenação da arguida e ora
recorrente por factos que, embora descritos na fundamentação, nela não foram
considerados como suficientes para a punição.
Violou assim a decisão as normas do artigo 434.º e alínea c) do n.º 1 do artigo
379.º, ex vi n.º 4 do artigo 425.º, todos do Código de Processo Penal.
III – Da inconstitucionalidade.
A decisão proferida em primeira instância foi clara ao dizer que teve
dificuldades em apreender a prova, vincando o facto de o Tribunal ter sido
obrigado a recorrer, em alguma medida, à prova indiciária, fazendo uso das
regras da experiência comum.
Isto porque, disse: ‘estamos perante factos que ocorreram num circuito muito
fechado’.
Tal círculo, como é evidente, é o formado pelo conjunto dos arguidos, com
especial relevância para a ora recorrente e B. e, num caso particular, pelos
assistentes.
Ora, como é sabido, nenhum destes sujeitos processuais presta juramento no
início do seu depoimento.
Assim, considerou, ainda, embora por referência apenas às declarações dos
arguidos, que ‘na esteira da melhor doutrina, é importante que o respectivo
depoimento seja corroborado objectivamente’.
Quer isto dizer que a própria primeira instância, tal como depois o Tribunal a
quo, tal como, finalmente, esse Venerando Supremo Tribunal de Justiça, na
esteira da melhor doutrina consideram, tal como ensina Figueiredo Dias, que tais
meios de prova deverão ser submetidos a tratamento específico e retirados do
alcance do regime normal da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º
do Código de Processo Penal.
Já vimos que nenhum dos referidos depoimentos foi corroborado objectivamente.
Vimos, também, que ao contrário do que foi considerado na decisão, ora em crise
(pág. 39), a arguida e ora recorrente, quer no caso ‘Casal D.E.’, quer no caso
‘C.’, foi efectivamente condenada em função única e exclusivamente de
declarações desfavoráveis do co‑arguido B..
Assim sendo, não pode restar qualquer dúvida relativamente ao facto de ter sido,
efectivamente, violado o princípio da presunção da inocência. Trata‑se de um
direito fundamental da arguida e ora recorrente, como decorre do n.º 2 do
artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Como se sabe, ao contrário de outros ordenamentos constitucionais, não
contempla a lei portuguesa qualquer processo especial ou instância que conheça
da violação desses direitos, a não ser através da fiscalização concreta pelo
Tribunal Constitucional da constitucionalidade na aplicação ou recusa de
aplicação de normas. Entende a recorrente, tal como já motivou e concluiu no
presente recurso, que a norma cuja constitucionalidade é posta em causa é o
artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação ali referida.
Face a tudo quanto se expôs parece‑nos dever ser reavaliada toda a questão,
sendo agora manifesta, ao contrário do que foi decidido, a existência de
fundamento bastante da alegada inconstitucionalidade.
Acontece, porém, que ao ter excedido esse Venerando Supremo Tribunal de Justiça
o poder de cognição definido na lei, conforme se expôs, foi violado igualmente
o princípio constitucional do direito de defesa da arguida e ora recorrente,
consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Não só pela adição de novos factos ou considerações de natureza fáctica no caso
‘Casal D.E.’, relativamente aos quais a arguida não teve possibilidade de se
defender, mas, também, pela exclusão de toda a matéria de facto erradamente
apreciada pela 1.ª instância e pelo Tribunal a quo, relativamente ao mesmo caso,
cada um à sua maneira, como ficou sobejamente demonstrado.
Deverá, assim, ser declarada igualmente a inconstitucionalidade da norma
contida no artigo 434.º, conjugada com o comando previsto no n.º 1 do artigo
426.º, ambos do Código de Processo Penal, nos termos que se seguem.
Termos em que, sempre com o muito douto suprimento de V. Ex.as, deverá:
(…)
e) Ser reavaliada toda a questão colocada sobre a inconstitucionalidade da
norma do artigo 127.º do Código de Processo Penal;
f) Sendo declarada igualmente a inconstitucionalidade da norma contida no
artigo 434.º, conjugada com o comando previsto no n.º 1 do artigo 426.º, ambos
do Código de Processo Penal, se interpretado este no sentido da possibilidade
de decisão da causa, com o consequente não envio do processo para novo
julgamento, através da intromissão em aspectos fácticos, embora no âmbito das
alínea a), b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, com
aditamento de novos factos ou simples argumentos que extravasem o texto da
decisão recorrida ou com a exclusão de matéria de facto apreciada em audiência,
de forma a desvirtuar o sentido e alcance da decisão recorrida.»
3.6. Esta arguição foi desatendida pelo acórdão do STJ, de 6 de
Setembro de 2006, com a seguinte fundamentação:
«2. Decidindo:
2.1. A reclamação apresentada evidencia que a arguida não compreendeu nem a
estrutura do acórdão nem mesmo os poderes de cognição do Supremo Tribunal de
Justiça enquanto tribunal de revista. Por isso, um esclarecimento prévio.
Três das quatro questões suscitadas pela arguida no seu recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça – erro notório na apreciação da prova, omissão de
pronúncia e inconstitucionalidade do artigo 127.º do CPP – ‘[centravam-se] na
problemática do conhecimento probatório do co‑arguido’.
Pareceu‑nos, por isso, metodologicamente adequado iniciar o julgamento do
recurso por tal ‘problemática’.
E assim fizemos.
Enunciamos o problema, tal como é considerado pela doutrina e pela
jurisprudência, tomamos posição sobre a questão, adoptando a solução seguida
por Figueiredo Dias no Parecer que invocamos – no fundo o que está em causa é
uma especial exigência de fundamentação, na medida em que as declarações do
co‑arguido nunca podem, só por si, e por mais inequívocas e credíveis que sejam,
suportar a prova de um facto criminalmente relevante –, sublinhamos que,
relativamente ao crime tentado de extorsão, nem sequer podia ser invocada a
aludida ‘problemática’, mas, de qualquer modo, num caso e no outro (quer quanto
a esse crime quer quanto ao crime de corrupção), reexaminados os termos da
fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, tal como foi ratificada pelo
Tribunal da Relação, concluímos que ‘as instâncias seguiram o programa de
valoração da prova adequado ao caso, extraindo os factos que julgaram provados
da concatenação dos resultados produzidos pelos diversos meios de prova a que
tiveram acesso (e não do simples privilegiamento das declarações do co‑arguido
B. em seu desfavor)’ e que ‘quer no caso “Casal D.E.” quer no caso “C.”, a
recorrente não foi condenada em função única e exclusivamente de declarações
desfavoráveis do co‑arguido B.’.
Consequentemente, julgamos improcedente o recurso, nessa parte, sem,
todavia, termos deixado a advertência de que não cabia nos poderes de cognição
deste Tribunal qualquer apreciação ou juízo sobre o modo como as instâncias
valoraram os meios de prova de que se serviram, isto é, que não cabia nos seus
poderes sindicar eventuais erros na apreciação da prova. Trata‑se, com efeito,
de matéria que não pode ser objecto do recurso de revista, como expressamente
consignam o artigo 434.º do CPP e o n.º 2 do artigo 722.º do CPC, tanto mais que
o caso sub judice não concretiza qualquer das excepções previstas no segundo
dos preceitos referidos.
O julgamento do Supremo Tribunal de Justiça cingiu‑se, nesta parte, ao
reexame da fundamentação da decisão da matéria de facto, tal como descrita no
próprio acórdão.
Depois de resolvida a ‘questão nuclear do recurso’, então apreciamos as outras
duas, mas agora ‘despojadas da referência à “problemática do conhecimento
probatório do co-arguido”’, já resolvida.
2.2. Prestado este esclarecimento, vejamos a alegação da requerente.
2.2.1. Quanto ao crime de corrupção passiva para acto ilícito:
Alega, a par da obscuridade e ambiguidade da decisão, a sua nulidade.
2.2.1.1. Quanto à obscuridade e ambiguidade:
(…)
2.2.1.2. Quanto à nulidade
Uma primeira nulidade, ‘por contradição insanável na sua fundamentação’,
integra‑a na alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, por o acórdão dever
‘considerar‑se deficiente por ofensa ao comando do n.º 2 do artigo 374.º’ do
mesmo Código.
Desenhou‑a do seguinte modo:
‘Considerou esse Venerando Supremo Tribunal de Justiça que no ponto III da
fundamentação em primeira instância, encontrou o Tribunal recorrido preenchidas
as exigências de corroboração dos factos conhecidos por via das declarações do
arguido B., relevantes na condenação da arguida e ora recorrente pela prática
de um crime de corrupção, o que terá ocorrido com recurso ao conteúdo dessas
mesmas declarações, em manifesta contradição com o entendimento expresso
relativamente aos condicionalismos e limites de uma sua valoração, enquanto
suporte de prova de um facto criminalmente relevante’.
Uma outra integra‑a na alínea c) do n.º 1 do mesmo artigo 379.º por não
termos declarado a verificação dos vícios no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, como
oficiosamente nos competia.
Pois bem.
A questão da (eventual) necessidade de corroboração das declarações do
co‑arguido já foi apreciada. Entendemos e continuamos a entender que a
fundamentação da decisão da matéria de facto, quer relativamente a este crime,
quer relativamente ao crime tentado de extorsão, está suficientemente
fundamentada em ordem à fixação dos factos dados como provados.
Neste juízo, voltamos a repetir, estava‑nos vedada qualquer incursão sobre
eventuais erros na apreciação das provas ou na fixação dos factos. O texto da
fundamentação justifica, em nosso juízo, a decisão tomada pelas instâncias
sobre a matéria de facto e o texto da decisão não nos suscitou qualquer reparo
no domínio dos vícios do n.º 2 do artigo 410.º.
Nesta conformidade, não pode ocorrer a contradição apontada. De facto, a
‘problemática do conhecimento probatório do co-arguido’, tal como a concebemos,
abordamos e decidimos, suscita uma simples exigência especial de fundamentação
que julgamos ter sido satisfeita em função dos termos em que foi explanada pelas
instâncias. Mas não alarga os poderes de cognição do Supremo Tribunal de
Justiça, restringidos ao reexame da matéria de direito. Por isso que, analisado
aquele texto, sem possibilidade da consideração ou da invocação do que os
intervenientes processuais ali referidos efectivamente declaram, decidimos
daquela forma, pois achamo‑lo suficiente para poderem ser dados como provados os
referidos factos sem, por outro lado, encontrarmos nele contradições ou
conclusões não abalizadas pelas regras da experiência. O mesmo é dizer, voltamos
mais uma vez a repetir, que não descobrimos no texto da decisão sobre a matéria
de facto e respectiva fundamentação qualquer dos vícios do n.º 2 do artigo
410.º do CPP nem qualquer passo que indicie que as instâncias tiveram quaisquer
dúvidas sobre a verificação dos factos que deram como provados. Quando as
tiveram, expressaram‑nas e confirmaram‑nas (cf. o tantas vezes invocado ponto
III da fundamentação, fls. 3351 e 3792).
A arguida discorda e sustenta que, afinal, os elementos probatórios
adicionais ou são de ‘arredar’ ou em nada contribuíram para que os factos
pudessem ser dados como provados. Tem esse direito, também já o dissemos. Mas
não pode arvorar essa discordância em contradição ou insuficiente
fundamentação, além de que não pode discutir, perante o Supremo Tribunal de
Justiça, também já o afirmamos mais do que uma vez, pretensos erros na
apreciação de prova não vinculada.
2.2.2. Quanto ao crime tentado de extorsão:
2.2.2.1. Reclama, em primeiro lugar, a correcção do acórdão na parte em que
afirmamos ‘que a conclusão a tirar ser a de que se, neste caso, alguém imputou
algo a alguém foi a recorrente ao seu co‑arguido e não o contrário’, porquanto
tal ‘não é verdade’, já que ‘a arguida apenas disse ter presumido quem era o
remetente da denúncia anónima recebida, expedida de Aveiro, na
Procuradoria‑Geral da República e explicou porquê, com a sinceridade, verdade e
independência com que incomodou muita gente ao longo da sua vida, o que lhe
custou caro, não imputando ao seu co‑arguido o que quer que seja criminalmente
relevante’.
Tiramos efectivamente aquela conclusão, apoiados no texto da fundamentação
de fls. 3348, transcrito no acórdão, onde se diz ser ‘este caso elucidativo do
que se passou ao longo da audiência. De um lado, A., …, a tudo empurrar para
cima de B. e, de outro, B., …, sem, contudo, atribuir, sem mais, a
responsabilidade dos factos à co‑arguida’.
Perante este excerto, cremos que é razoável a conclusão agora criticada.
Se as declarações da arguida foram de sentido diferente, a situação será
de erro na fixação dos factos a arguir perante o Tribunal da Relação, o que não
foi feito.
Nada temos, por isso, a corrigir.
2.2.2.2. Quanto à ‘dupla nulidade da decisão nesta parte’
2.2.2.2.1. Uma das nulidades traduzir‑se‑ia em excesso de pronúncia, por o
Supremo Tribunal de Justiça ter ultrapassado os seus poderes de cognição.
E isso porque, como vem alegado, tendo nós entendido, no exercício dos
poderes de cognição que nos são legalmente conferidos, não se verificar no texto
da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência, nenhuma
falha, insuficiência ou erro notório de julgamento, não concluímos, desde logo,
como seria de esperar, pela improcedência do recurso nessa parte, antes lhe
acrescentando ‘que a conclusão – o desvio da carta – não ofende as regras da
experiência, “porquanto, tratando‑se de uma funcionária da inteira confiança
dos seus superiores, o desvio de um documento não é incompatível com tê‑lo
deixado ou, até, tê‑lo propositadamente colocado no meio do aludido monte de
papéis, na medida em que aquela relação de confiança corresponde, em geral, à
ausência de especial fiscalização do conteúdo dos documentos cujo processamento
está a cargo dessa funcionária”’.
Ora, entende, ‘esta asserção, pelo particularismo que reveste nos seus
múltiplos aspectos, exigiria do julgador um conhecimento muito para além da
circunstância de a arguida e ora recorrente ser, efectivamente, uma funcionária
da inteira confiança dos seus superiores’, só então se podendo apelar às regras
da experiência para se concluir como se concluiu. ‘De qualquer maneira –
prossegue –, trata‑se da introdução de nova matéria de facto, não apreciada na
sede devida, para mais, incompatível com a conclusão extraída pelo Tribunal
recorrido, relativa à posse erga omnes assegurada pela caracterizada
exclusividade, conclusão, por seu turno, contraditória com a decisão proferida
em recurso pelo mesmo Tribunal recorrido, apenso a estes mesmos autos, que
concluiu não pertencer à arguida e ora recorrente a disponibilidade do lugar
correspondente ao seu local de trabalho, confirmando a regularidade de uma busca
efectuada na sua ausência’.
Mais uma vez, afigura‑se‑nos que a requerente ou não leu com a devida
atenção ou não compreendeu o que escrevemos.
Pois bem.
Dissemos, em primeiro lugar, que a alegação de qualquer dos vícios do
artigo 410.º, n.º 2, do CPP não podia constituir objecto de recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo de este Tribunal, para poder aplicar
o direito, ‘dever oficiosamente declarar as imperfeições ou insuficiências da
decisão de facto’.
Depois, no cumprimento daquele dever, concluímos que a decisão recorrida,
nesta parte, não enfermava de qualquer vício que obstasse à boa decisão da
causa. E explicamos porquê. Foi precisamente no âmbito desta explicação que
argumentamos que a circunstância de o Tribunal da Relação ter mantido como
provado o facto do n.º 19 – isto é, e no essencial, que a arguida recebeu e
desviou certa carta –, apesar de ter rectificado, em parte, a fundamentação do
Tribunal da 1.ª instância, de que a carta não foi encontrada no cacifo da
arguida, mas antes na sua secretária, entre muitos outros papéis, não viola as
regras da experiência porque, estando em causa, como ela própria afirmou, uma
funcionária da inteira confiança dos seus superiores ‘o desvio de um documento
não é incompatível com o tê‑lo deixado ou, até, tê‑lo propositadamente colocado
no meio do aludido monte de papéis, na medida em que aquela relação de confiança
corresponde, em geral, a ausência de especial fiscalização do conteúdo dos
documentos cujo processamento está a cargo dessa funcionária’.
Quais, pois, os factos que acrescentamos, sem poder para tanto?
Salvo o devido respeito, nenhuns.
O que enunciamos foi uma regra da experiência, com base na qual concluímos
que a decisão de manter como provado certo facto, apesar da correcção da
respectiva motivação, não patenteava nenhum dos vícios do n.º 2 do artigo 410.º,
designadamente o erro notório na apreciação da prova.
A experiência comum não autoriza ou não confirma aquela regra? Bem, nesse
caso, o erro seria de julgamento, agora, como tantas vezes antes repetido, não
sindicável.
2.2.2.2.2. Ainda excesso de pronúncia volta a requerente a ver na
afirmação do acórdão de que ‘… o facto do n.º 19 nem sequer é decisivo para a
condenação da recorrente pelo crime tentado de extorsão, preenchido que ficou
com a primeira abordagem dos assistentes (factos n.ºs 7 a 14)’.
Bem, mas aqui é evidente a manifesta improcedência da alegação.
Independentemente do contexto em que foi feita a afirmação (como mero
argumento adjuvante das considerações sobre a ratificação do facto do n.º 19),
dizer com que factos dos provados se considera preenchido determinado crime é
pura e exclusiva questão de direito para cuja apreciação oficiosa pelo Supremo
Tribunal de Justiça a lei não põe qualquer entrave.
Consequentemente, tal afirmação, ainda que ultrapasse ou altere a solução
adoptada pelas instâncias, não envolve, não pode envolver, excesso de
pronúncia.
Erro flagrante ou não, será, mais uma vez, erro de julgamento…
2.2.3. Quanto à inconstitucionalidade.
Na lógica do antes alegado, designadamente a propósito da necessidade de
corroboração das declarações do co‑arguido, requer a reavaliação da questão da
inconstitucionalidade do artigo 127.º do CPP, porque, tendo sido condenada ‘em
função única e exclusivamente de declarações desfavoráveis do co‑arguido B.’,
foi violado o princípio constitucional da presunção da inocência estabelecido no
n.º 2 do artigo 32.º da CRP.
A resposta às questões antecedentes foi, como se viu, de indeferimento das
pretensões da arguida.
A reavaliação da questão da inconstitucionalidade, a que demos resposta
negativa, traduzir‑se‑ia em violação da regra do artigo 666.º, n.º 1, do CPC.
Por outro lado, a invocada inconstitucionalidade da norma do artigo 434.º,
conjugada com a do artigo 426.º, n.º 1, do CPP, é questão nova e, como tal,
insusceptível de ser aqui atendida. Há meios processuais próprios para o
efeito.
Improcede, também esta alegação.»
3.6. As questões de inconstitucionalidade suscitadas no
requerimento de arguição de nulidade transcrito, na parte relevante, em 3.4.,
arguição indeferida pelo acórdão de 6 de Setembro de 2006, reproduzido, nos
aspectos significativos, em 3.5., não podem ser objecto de apreciação pelo
Tribunal Constitucional.
Não o pode ser a questão reportada ao artigo 127.º do CPP, pois
a dimensão impugnada não foi aplicada neste último acórdão, que expressamente
declarou não poder conhecer dessa questão, já apreciada no acórdão de 12 de
Julho de 2006, por, quanto a essa matéria, estar esgotado o poder jurisdicional
do tribunal (artigo 666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
E também não pode ser apreciada a questão reportada aos artigos
434.º («Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, n.ºs 2 e 3, o recurso
interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da
matéria de direito»), conjugado com o artigo 426.º, n.º 1 («1. Sempre que, por
existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não foi
possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do
processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo
ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio»), ambos do CPP.
Não o pode ser não tanto pelas razões aduzidas pelo acórdão de
6 de Setembro de 2006: se bem se entende a questão suscitada pela recorrente,
ela consistiria em arguir a nulidade do anterior acórdão do STJ por excesso de
pronúncia, uma vez que alegadamente teria alterado ilicitamente a matéria de
facto fixada pelas instância, «com aditamento de novos factos ou simples
argumentos que extravasam o texto da decisão recorrida ou com a exclusão de
matéria de facto apreciada em audiência», questão que cabia no poder
jurisdicional do STJ ser apreciada nessa sede – como o foi –, sendo lícito, a
propósito das normas que digam directamente respeito à questão da nulidade da
decisão judicial, suscitar questões de inconstitucionalidade normativa
(justamente porque relativamente a essa questão se não mostrava ainda esgotado
o poder jurisdicional – cf., neste sentido, por último, o Acórdão n.º 375/2003;
diferente é a situação em que apenas em arguição de nulidade de decisão final da
causa se suscita a inconstitucionalidade de normas aplicadas nesta decisão,
quanto às quais já se verificara esse esgotamento, hipótese em que tal
suscitação é, em regra, extemporânea).
O motivo pelo qual não se pode, nesta parte, conhecer do
recurso consiste antes em a recorrente ter imputado directamente à decisão
judicial em causa, em si mesma considerada e incindivelmente dependente das
particularidades do caso concreto, vícios (ter dado por provados factos novos e
ter excluído factos considerados provados pelas instâncias – vícios cuja
existência, aliás, o acórdão ora recorrido não reconheceu) que representariam
violação de normas de direito ordinário e de normas constitucionais.
Simplesmente, a recorrente jamais imputou a normas ou a interpretações
normativas adequadamente identificadas a directa desconformidade com normas ou
princípios constitucionais, como seria necessário para se considerar suscitada
uma questão de inconstitucionalidade normativa. Aliás, nem sequer no
requerimento de interposição do presente recurso a recorrente esboçou a
identificação da interpretação normativa dos preceitos em causa que reputava
inconstitucional (sendo certo que a tais preceitos, na sua literal estatuição,
nenhuma acusação de inconstitucionalidade vem apontada), em termos de habilitar
o Tribunal Constitucional a, caso concedesse provimento ao recurso, apresentar
essa interpretação «na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta,
como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para
dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por,
deste modo, violar a Constituição».
5. Em face do exposto, decide‑se, ao abrigo do n.º 1 do artigo
78.º‑A da LTC, não conhecer do presente recurso.”
1.2. A reclamação da recorrente apresenta a
seguinte fundamentação:
“1.º – A decisão sumária foi proferida no sentido do não
conhecimento do recurso.
2.º – No qual se pretende ver apreciadas duas questões, a
saber:
– a inconstitucionalidade do artigo 127.º do Código de Processo
Penal, por flagrante violação da principio da presunção de inocência, no caso da
condenação de um co‑arguido com apelo à livre apreciação da prova, mas com base
exclusivamente nas declarações de um outro co‑arguido, não corroboradas
objectivamente;
– a inconstitucionalidade do artigo 434.º, conjugado com o
artigo 426.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, por violação do n.º 5 do
artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
3.º – Entendeu o Exmo. Senhor Conselheiro Relator não se
verificarem os específicos requisitos de admissibilidade do recurso interposto,
isto é, a «aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, das
dimensões normativas arguidas de inconstitucionais», no que se refere à 1.ª
questão, bem como «a adequada suscitação da questão de inconstitucionalidade
normativa» perante o mesmo tribunal, no que se refere à segunda questão.
Ora,
4.º – No que respeita à primeira questão, entende a recorrente
não haver dúvida quanto ao facto de a ratio decidendi só poder ser encontrada,
precisamente, na interpretação e aplicação da norma constante do artigo 127.º
do Código de Processo Penal («Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a
prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da
entidade competente»).
5.º – É certo que a decisão ora recorrida explicitou que, no
seu entender, a condenação da recorrente não se baseou exclusivamente nas
declarações do co‑arguido B., nem a relevância probatória dada a estas
declarações prescindiu da sua corroboração objectiva.
6.º – Acontece que a recorrente – que sempre negou os factos
por que foi acusada – entendeu precisamente o contrário, isto é, que com apelo à
livre apreciação da prova foi condenada, no que se refere aos crimes de
corrupção e tentativa de extorsão, com base exclusivamente nas declarações
daquele co‑arguido, não corroboradas objectivamente,
7.º – Chegando a classificar a decisão, tal como foi sufragada pelo Tribunal a
quo, como arbitrária e irracional.
8.º – Explicitando porquê, quer na sua motivação de recurso para o Tribunal a
quo, quer no pedido de aclaração da decisão, ora recorrida, onde, não deixando
cair a questão da inconstitucionalidade suscitada, deitou por terra, uma por
uma, as provas nomeadas por aquele tribunal como constituindo, para além das
declarações do co‑arguido B. a base da condenação pela prática dos referidos
crimes.
9.º – Demonstrando, ainda, que o único elemento corroborante de tais
declarações, digno desse nome, resultou de um lamentável lapso do juiz da 1.ª
instância, sucessivamente «branqueado» por ambas as instâncias superiores, com a
agravante de esta última e ora recorrida o ter feito com apelo a matéria de
facto nunca antes apreciada.
10.º – Ora, não sendo nem podendo ser a discordância quanto aos referidos
aspectos, suas vicissitudes ou merecimentos, o objecto do presente recurso, o
que está aqui em causa é, tão‑só, saber se foram ou não ultrapassados os
limites impostos constitucionalmente ao julgador na apreciação da prova, segundo
as regras da experiência e a sua livre convicção.
11.º – Isto é, se os poderes de que legalmente dispõe para o efeito, nos termos
previstos no artigo 127.º do Código de Processo Penal, revogado o regime da
prova legal, foram ou não correctamente por si interpretados e aplicados, com
ou sem violação do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 32.º da Constituição da
República Portuguesa.
12.º – Em suma, se é ou não inconstitucional a interpretação feita pelo Tribunal
a quo da norma contida no referido artigo 127.º do Código de Processo Penal, na
medida em que tenha, efectivamente, como defende a ora recorrente, aplicado como
ratio decidendi, o critério normativo arguido de inconstitucional.
13.º – Para tanto, por se mostrar essencial à resolução da
questão de constitucionalidade, terá esse Tribunal Constitucional de tomar
posição fundamentada face à referida discordância, aqui tomada como questão
incidental que surge pregressamente e em relação de preordenação com o juízo,
formalmente autónomo, a formular sobre a referida questão.
14.º – O Ex.mo Senhor Conselheiro Relator, ao negar à ora
recorrente o conhecimento do seu recurso, nos precisos termos em que o mesmo foi
formulado, tomou implícito partido pela tese do Tribunal a quo, sem a sujeitar,
nos precisos termos e limites referidos, a uma fundamentada crítica, no
confronto com a tese oposta da recorrente.
15.º – Termos em que deverá ser ordenado o prosseguimento do
recurso nesta parte.
16.º – No que respeita à segunda questão, entendeu o Ex.mo
Senhor Conselheiro Relator não poder conhecer do recurso em virtude de a
recorrente «ter imputado directamente à decisão judicial em causa, em si mesma
considerada e incindivelmente dependente das particularidades do caso concreto,
vícios (...) que representariam violação de normas de direito ordinário e de
normas constitucionais».
17.º – Concluindo, ainda, que «a recorrente jamais imputou a
normas ou a interpretações normativas adequadamente identificadas, a directa
desconformidade com normas ou princípios constitucionais, como seria
necessário para se considerar suscitada uma questão de inconstitucionalidade
normativa».
18.º – Se é verdade que, no requerimento de interposição do
recurso para esse Tribunal Constitucional, a recorrente não esboçou sequer a
identificação da interpretação normativa dos preceitos que reputa
inconstitucional, como refere o Ex.mo Senhor Conselheiro Relator,
19.º – Também é verdade que a tal não é obrigada (n.ºs 1 e 2 do
artigo 75.º‑A da LTC).
20.º – Se o fosse e o não tivesse feito, deveria o Ex.mo Senhor
Conselheiro Relator ter convidado a recorrente a fazê‑lo, no prazo de 10 dias
(n.º 5 da mesma disposição).
21.º – O que não aconteceu.
22.º – No entanto, se é verdade, tal como reconheceu o Ex.mo
Senhor Conselheiro Relator, ter a recorrente imputado à decisão judicial vícios
que representam violação de normas de direito ordinário, isto é, excesso de
pronúncia (alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º, ex vi n.º 4 do artigo 425.º,
ambos do Código de Processo Penal), cominando na sua nulidade,
23.º – Também é verdade, tendo sido igualmente reconhecido pelo
mesmo Senhor Relator, ter a recorrente alegado a violação do princípio
constitucional do direito de defesa da arguida e ora recorrente, consagrado no
n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
24.º – Não decorrente directamente dos imputados vícios, como
erradamente considerou o Ex.mo Senhor Conselheiro Relator, mas da errada e
inconstitucional interpretação feita pelo Tribunal a quo, no entender da ora
recorrente, da norma contida no artigo 434.º, conjugada com o comando previsto
no n.º 1 do artigo 426.º, ambos do Código de Processo Penal, no que se refere
aos seus poderes de cognição e envio do processo para novo julgamento.
25.º – Assim, suscitou a ora recorrente perante o Supremo
Tribunal de Justiça, na única ocasião que teve para o efeito, tal como foi
igualmente reconhecido pelo Exmo. Senhor Conselheiro Relator, a
«inconstitucionalidade da norma contida no artigo 434.º, conjugada com o comando
previsto no n.º 1 do artigo 426.º, ambos do Código de Processo Penal, se
interpretado este no sentido da possibilidade da decisão da causa, com o
consequente não envio do processo para novo julgamento, através da intromissão
em aspectos fácticos, embora no âmbito das alíneas a), b) e c) do n.º 2 do
artigo 410.º do Código de Processo Penal, com o aditamento de novos factos ou
simples argumentos que extravasem o texto da decisão recorrida ou com a exclusão
da matéria de facto apreciada em audiência, de forma a desvirtuar o sentido e
alcance da decisão recorrida».
26.º – Alegando, também, que tal interpretação, afectando,
nessa parte, a decisão recorrida, viola o princípio constitucional do direito de
defesa da arguida e ora recorrente, consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da
Constituição da República Portuguesa.
27.º – Ora, independentemente da razão que lhe assista, não
pode deixar de ser reconhecido ter a recorrente cumprido os requisitos dos quais
depende, também nesta parte, a admissibilidade do recurso para esse Tribunal
Constitucional.
28.º – Impondo‑se, por consequência, o seu conhecimento.”
1.3. Notificados os recorridos da apresentação
desta reclamação, o representante do Ministério Público neste Tribunal
apresentou a seguinte resposta:
“1 – A presente reclamação carece manifestamente de fundamento.
2 – Na verdade, a argumentação da reclamante em nada abala os
fundamentos da decisão reclamada no que toca à evidente inverificação dos
pressupostos de admissibilidade do recurso.”
Os restantes recorridos não apresentaram
resposta.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2.1. Relativamente à primeira questão de
inconstitucionalidade suscitada, reportada a determinada interpretação do
artigo 127.º do CPP, a decisão ora reclamada considerou o recurso inadmissível
(cf. o seu n.º 3.4), por a decisão recorrida não ter feito aplicação, como sua
ratio decidendi, do critério normativo arguido de inconstitucional pela
recorrente, que, recorde‑se, consistia em interpretar esse preceito no sentido
de consentir fundar a condenação de um co‑arguido “com base exclusivamente nas
declarações de um outro co‑arguido, não corroboradas objectivamente”.
Aduz a reclamante que o acórdão recorrido não
poderia deixar de ter aplicado o preceito do artigo 127.º do CPP e que ela
entende que, no caso, a sua condenação pelos crimes de extorsão e de corrupção
se fundou exclusivamente no depoimento do seu co‑arguido não corroborado
objectivamente.
Sendo certo que o acórdão recorrido não poderia
deitar de ter aplicado o preceituado no artigo 127.º, não é menos certo que
este preceito comporta várias interpretações e é cada uma dessas possíveis
interpretações que integrará a “norma” objecto do recurso de
constitucionalidade. A recorrente, nestes autos, como se assinalou (cf. n.º 3.1
da decisão sumária) suscitou duas distintas questões de inconstitucionalidade,
ambas reportadas ao artigo 127.º do CPP: uma perante o Tribunal da Relação de
Lisboa, que abandonou na motivação do recurso interposto para o STJ, e outra
perante este último tribunal.
Ora, o critério normativo em que se manifesta
esta última interpretação foi explicitamente repudiado pelo acórdão recorrido
(cujas passagens relevantes foram transcritas no n.º 3.3 da decisão sumária),
que expressamente aderiu (com invocação de jurisprudência e doutrina
concordantes) ao critério segundo o qual o depoimento de co‑arguido só pode
constituir suporte da condenação de outro co‑arguido desde que corroborado
objectivamente. A discordância da reclamante respeita, pois, à operação de
subsunção judicial da situação concreta do caso em análise a esse critério
normativo. Mas esta operação de subsunção, em si mesma considerada – sendo certo
que a sua correcção não pode ser sindicada pelo Tribunal Constitucional –, é
insusceptível de constituir objecto idóneo de recurso de constitucionalidade,
atentas a característica exclusivamente normativa do sistema português de
fiscalização de constitucionalidade (cf. n.º 2 da decisão sumária).
Improcede, assim, esta parte da reclamação da
recorrente.
2.2. Quanto à segunda questão de
inconstitucionalidade suscitada, reportada aos artigos 434.º e 426.º, n.º 1, do
CPP, a decisão sumária ora reclamada – embora não tenha acompanhado, neste
ponto, a posição do tribunal recorrido quanto à impossibilidade de conhecimento
da questão (antes entendendo que, não sendo a arguição de nulidade de decisão
judicial, em regra, momento adequado à suscitação da questão da
inconstitucionalidade das normas aplicadas na decisão arguida de nula, já o será
se a inconstitucionalidade visa as normas que disciplinam o próprio incidente de
arguição de nulidade, pois nesse aspecto ainda se não esgotou o poder
jurisdicional do tribunal) – considerou que a recorrente imputara “directamente
à decisão judicial em causa, em si mesmo considerada e incindivelmente
dependente das particularidades do caso concreto, vícios (ter dado por provados
factos novos e ter excluído factos considerados provados pelas instâncias –
vícios cuja existência, aliás, o acórdão ora recorrido não reconheceu) que
representariam violação de normas de direito ordinário e de normas
constitucionais”, sem jamais ter imputado “a normas ou a interpretações
normativas adequadamente identificadas a directa desconformidade com normas
ou princípios constitucionais, como seria necessário para se considerar
suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa”, acrescentando‑se que
“nem sequer no requerimento de interposição do presente recurso a recorrente
esboçou a identificação da interpretação normativa dos preceitos em causa que
reputava inconstitucional (sendo certo que a tais preceitos, na sua literal
estatuição, nenhuma acusação de inconstitucionalidade vem apontada), em termos
de habilitar o Tribunal Constitucional a, caso concedesse provimento ao
recurso, apresentar essa interpretação «na sua decisão em termos de, tanto os
destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber,
sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve
ser aplicado, por, deste modo, violar a Constituição»”.
Aduz a reclamante que não é obrigada a
identificar, no requerimento de interposição de recurso, a interpretação
normativa que acusa de inconstitucional e que teria suscitado adequadamente,
perante o STJ, a questão que pretende ver apreciada.
Quanto ao primeiro aspecto, constitui reiterada
orientação jurisprudencial do Tribunal Constitucional a de que, quando o
recorrente questiona a conformidade constitucional de uma interpretação
normativa, deve identificar essa interpretação com o mínimo de precisão, não
sendo idóneo, para esse efeito, o uso de fórmulas como “na interpretação dada
pela decisão recorrida” ou similares. Com efeito, constitui orientação pacífica
deste Tribunal a de que (utilizando a formulação do Acórdão n.º 367/94) “ao
suscitar‑se a questão de inconstitucionalidade, pode questionar‑se todo um
preceito legal, apenas parte dele ou tão‑só uma interpretação que do mesmo se
faça. (...) [E]sse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há‑de ser
enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o
Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários
desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para
dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por,
deste modo, violar a Constituição.”
Esse ónus da adequada identificação da
interpretação normativa acusada de inconstitucional vale tanto para a suscitação
da questão perante o tribunal que viria a proferir a decisão recorrida como para
a definição do objecto do recurso de constitucionalidade que deve constar do
respectivo requerimento de interposição. A indicação da “norma” cuja
inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie, imposta
pelo n.º 1 do artigo 75.º‑A da LTC, se pode ser satisfeita pela mera menção do
preceito em que a norma se contém, quando se questiona a sua literal estatuição,
já exige, quando se questiona uma determinada interpretação da norma que teria
sido feita pelo tribunal recorrido, a adequada identificação desta
interpretação, pelas razões já referidas. E se, quando a deficiência de
identificação da interpretação normativa respeita só ao requerimento de
interposição de recurso, se imporá a formulação de convite, ao abrigo dos n.ºs 5
e 6 do dito artigo 75.º‑A, para correcção da falta, já este convite não se
justifica se a deficiência de identificação afecta a própria suscitação da
questão perante o tribunal recorrido, falta esta insusceptível de correcção na
fase de admissão do recurso.
Ora, em rigor, na arguição de nulidade do
primeiro acórdão, a recorrente, atentos os termos em que suscitou a questão da
inconstitucionalidade, reportou‑a à decisão judicial então atacada, pois,
apesar da invocação de normas de direito ordinário e de normas constitucionais,
a questão mostra‑se incindivelmente ligada às particularidades do caso
concreto, assim desprovida das características da generalidade e da abstracção
usualmente associadas à actividade normativa.
Mas mesmo que se vislumbrasse naquela peça
processual a suscitação, em termos minimamente aceitáveis, de uma questão de
inconstitucionalidade normativa, sempre seria de concluir que o tribunal
recorrido não aplicou o critério normativo questionado pela recorrente, a saber:
que lhe era lícita a “intromissão em aspectos fácticos, embora no âmbito das
alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, com
aditamento de novos factos ou simples argumentos que extravasem o texto da
decisão recorrida ou com exclusão de matéria de facto apreciada em audiência, de
forma a desvirtuar o sentido e alcance da decisão recorrida”.
Na verdade, quando ao pretenso aditamento de
factos, o que o STJ fez, como resulta do próprio texto do acórdão, na passagem
em causa, foi apelar às “regras da experiência comum”, como manda o corpo do
n.º 2 do artigo 410.º do CPP, para apurar se, no caso, essas regras, conjugadas
com o texto da decisão recorrida, evidenciavam erro notório na apreciação da
prova. A argumentação desenvolvida com apelo a essas regras não traduz qualquer
“aditamento de novos factos”.
E também não ocorreu “exclusão da matéria de
facto”, pois o STJ, na segunda passagem questionada, onde refere que o “facto do
n.º 19 nem sequer é decisivo para a condenação da recorrente pelo crime tentado
de extorsão, preenchido que ficou com a primeira abordagem dos assistentes”, não
deu como não provado esse facto, limitando‑se a constatar que, mesmo sem ele,
seria de considerar verificado o cometimento do crime em causa, o que constitui
obviamente mera pronúncia sobre a questão de direito.
Assim, também por esta razão – não ter a
decisão recorrida feito aplicação do critério normativo arguido de
inconstitucional – se justifica o não conhecimento da segunda questão de
inconstitucionalidade suscitada.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pela recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 16 de Novembro de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos