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Processo n.º 680/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art.
78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), da
decisão sumária proferida pelo relator que decidiu não conhecer do recurso de
constitucionalidade interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de
Coimbra, de 7 de Junho de 2006.
2 – O reclamante refuta a decisão reclamada alegando do seguinte jeito:
«A., nos presentes autos, tendo sido notificado da decisão sumária proferida,
vem nos termos do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da LTC, apresentar reclamação
com os fundamentos seguintes:
O recurso em apreço foi interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 artigo 70º da
Lei nº 28/82 de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei nº 13-A/98 de 26 de
Fevereiro.
Pretende-se através do mesmo ver apreciada a inconstitucionalidade da aplicação
das normas constantes do DL 20-A/90 de 15 de 2001 e da lei 15/2001 de 05/06, na
medida em que tais normas, com a interpretação com que foram aplicadas na
decisão recorrida violam o disposto no artigo 29º da Constituição da República
Portuguesa.
Na decisão em apreço foi considerado que a decisão recorrida não fez aplicação
das normas constantes do Decreto-lei nº 20-A/90 de 15 de Janeiro e da Lei
15/2001 de 5 de Junho.
Ora, salvo o devido respeito, entende o recorrente que a decisão recorrida fez
efectiva aplicação das referidas normas.
Na verdade, quer o douto acórdão proferido em 21 de Novembro de 2005 quer o
douto acórdão proferido em 07 de Junho de 2006 aplicam os referidos diplomas
legais, entendendo-se em ambos que “o art. 29º da CRP em nada foi contrariado”
(acórdão recorrido).
O Tribunal da Relação, ao considerar que o artigo 29º da CRP em nada foi
contrariado, pronunciou-se sobre a questão da inconstitucionalidade, a qual foi
suscitada nos autos, em sede de alegações no recurso interposto para o mesmo.
Nestes termos deve a presente reclamação ser deferida e em consequência ser o
presente recurso admitido.».
3 – A decisão sumária tem o seguinte teor:
«1 – A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal
Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de
Coimbra, de 7 de Junho de 2006, pretendendo ver apreciada a
“inconstitucionalidade da aplicação das normas constantes do Decreto-Lei n.º
20-A/90, de 15 de Janeiro, e da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho”, por violação do
disposto no artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa.
2 – Com interesse para o julgamento do caso sub judicio colhe-se dos autos
que:
2.1 – O recorrente interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra
da decisão instrutória proferida pelo Tribunal Judicial de Seia pela qual foi
pronunciado pela prática, em co-autoria, do crime de insolvência dolosa (p. e p.
pelas disposições conjugadas dos artigos 325.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do
Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 29 de Setembro, na
redacção introduzida pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril,
227.º, n.º 1, alíneas a), b) e c) e n.º 2 do Código Penal, na redacção do
Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, 227.º, n.º 1, alíneas a), b) e c) e nºs 2
e 5 do Código Penal, na redacção da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, 12.º, n.º
1, e 28.º, n.º 1, todos do Código Penal), do crime de fraude fiscal (p. e p.
pelas disposições conjugadas dos artigos 6.º, 23.º, nºs 1, 2, alíneas a), b) e
c), 3, alíneas a), b), e) e f), e 4, do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de
Janeiro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro,
e pelos artigos 6.º, 103.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), e 104.º n.º 1, alíneas
a), b) e e), e n.º 2, da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho), e do crime de
frustração de créditos fiscais (p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos
4.º, n.º 1, 6.º e 25.º do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, 4, n.º 1,
6.º e 25.º, n.º 1, do mesmo diploma legal na redacção introduzida pelo
Decreto-Lei n.º 396/93, de 24 de Novembro, pelos artigos 3.º, alínea a), 6.º, e
88.º, n.º 1, da Lei n.º 15/01, de 5 de Junho e 28.º, n.º 1, do Código Penal).
O recorrente alegou, em síntese, que:
«[…]
Recorre também o arguido A. com as seguintes conclusões:
1. A instrução em causa nos presentes autos é nula.
2. Porquanto, não foram levadas a cabo as diligências requeridas no requerimento
de abertura da instrução, que visavam comprovar as razões de facto e de direito
de discordância relativamente à acusação e que, por isso, eram essenciais.
3. Sendo certo que o fundamento invocado para tal indeferimento das diligências
probatórias requeridas carece de razão.
4. Por outro lado, nenhum acto foi levado a cabo em sede de instrução, nenhuma
investigação foi efectuada.
5. Sendo por isso, manifesta a insuficiência de instrução e a omissão de
diligências essenciais para a descoberta da verdade.
6. De qualquer modo e mesmo que assim não fosse, o procedimento criminal
relativamente a cada um dos crimes imputados prescreveu.
7. Não obstante, sempre se dirá, que alguns dos factos constantes da acusação,
não podem constar da acusação e do despacho de pronúncia, proferidos nos
presentes autos, na medida em que,
8. Tendo sobre os mesmos incidido outro inquérito, arquivado, apenas poderia
haver uma reabertura desse mesmo inquérito, caso tivessem surgido novos factos
que indicassem, os fundamentos constantes do despacho de arquivamento.
9. O inquérito em apreço nos presentes autos e a consequente acusação e despacho
de pronúncia, ao incluírem factos investigados noutro inquérito, violam a lei e
os direitos de defesa dos arguidos.
10. Foram assim absolvidos, além do mais, o disposto nos artigos 287º nº 2 e 3,
288º nº 1 e 4, 292º, 279º do C.P.P., 118º, 119º e 120º do C.P. e verificou-se a
nulidade prevista na alínea d) do nº 2 do artigo 120º do C.P.P.
11. Deve dar-se provimento ao recurso, de clarando-se a nulidade da instrução, a
prescrição do procedimento criminal relativamente aos crimes imputados e, caso
assim não se entenda, o que só por hipótese de admite, declarando-se o presente
inquérito, acusação e decisão instrutória inadmissíveis relativamente aos factos
constantes do inquérito que correu termos pelo Tribunal de Fornos de Algodres.
[…]».
2.2 – Tal recurso foi julgado improcedente por Acórdão do Tribunal da
Relação de Coimbra de 21 de Novembro de 2005 com base nos argumentos que se
transcrevem:
«Recurso de A.:
Invoca o recorrente a nulidade da instrução, porque não foram realizadas
diligências requeridas no requerimento de abertura da instrução.
Começaremos por dizer que, conforme dispõe o art.29l°, n° 2 do Cod. Proc. Penal
(diploma a que nos reportaremos) que os actos e diligências realizados em
inquérito só serão repetidos em instrução quando tenham sido preteridas
formalidades legais ou quando tal se revele indispensável à realização das
finalidades da instrução.
A instrução visa, como já se referiu, a comprovação judicial de deduzir acusação
ou de arquivar o inquérito, sendo formada por todos os actos que o juiz entenda
levar a cabo e, obrigatoriamente, por um debate instrutório, oral e
contraditório.
No mesmo campo da delimitação dos actos de instrução, estatui-se no art. 291º,
n.º 1 que o juiz pratica ou ordena os actos que considerar úteis, sendo que ‘‘os
actos e diligências de prova praticados no inquérito só serão repetidos no caso
de não terem sido observadas as formalidades legais ou quando a repetição se
revelar indispensável à realização das finalidades da instrução” (seu n.º 2)
Da conjugação de tais normativos decorre que o juiz não é obrigado a praticar
durante a fase da instrução todos os actos que lhe sejam sugeridos ou requeridos
pelas partes, designadamente aqueles que entenda não serem necessários aos fins
da instrução, podendo ordenar a realização daqueles actos que se lhe afigurarem
úteis. E, por outro lado, não lhe é permitido repetir os actos que tiveram lugar
durante o inquérito, salvo a sua indispensabilidade para a concretização do
objectivo da instrução, ou quando os mesmos tenham sido praticados com
preterição de formalidades legais.
Nesse sentido podemos citar o Ac. do Tribunal Constitucional de 28/6/94, onde se
refere que conclui-se deste normativo (art. 291º, n.º 1, 2.º período) transcrito
que o juiz não está obrigado, na instrução, a realizar todas as diligências que
lhe forem requeridas e que, embora não lhe seja também conferido um poder
totalmente discricionário deve ordenar a realização das diligências necessárias
à realização das finalidades próprias da instrução” (DR II de 8/11/94).
Ou, como se diz no ac. do S.T.J., de 7/4/94, ‘‘é sobre o juiz que recai o ónus
de investigar e esclarecer oficiosamente – independentemente das contribuições
das partes – o facto, estendendo-se a actividade investigatória do tribunal
autonomamente a todas as circunstâncias que devam reputar-se relevantes: o
princípio do dever de investigação autónoma da verdade material, como verdade
judicial e prática, ainda que não absoluta ou ontológica’’ (Col. Jur.S.T.J., Ano
II. T.II. pág. 188)
Aliás o mesmo resulta do próprio texto da lei ao conceder ao juiz a investigação
autónoma do caso, tendo em conta a indicação constante do requerimento de
abertura da instrução (art. 288º, n.º 4), não se vendo em que medida tal poder
conferido pela lei ao juiz possa ser contrário ao princípio de acesso ao direito
garantido pelo art. 20º da Constituição da República.
Isto porque no n.º 1 desse normativo constitucional se assegura a todos o acesso
ao direito aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente
protegidos, o que o recorrente exerceu ao requerer a abertura da instrução,
discordando da decisão proferida.
O juiz de instrução terá sempre como função apurar se os factos se indiciam ou
não.
Foi essa função que o legislador conferiu ao Juiz que preside à instrução
conferindo-lhe um poder discricionário, mas não arbitrário, de realizar as
diligências que repute necessárias à finalidade da instrução.
A circunstância que, no uso desse poder, exerceu de indeferir diligências não
integra qualquer nulidade.
*
Invoca, depois, a prescrição do procedimento criminal, sustentando que os factos
reportados aos crimes de frustração de créditos fiscais e de fraude fiscal se
reportam aos anos de 1993 e 1994.
Todavia basta verificarmos a acusação e a decisão recorrida para se verificar
que a actuação referente a tais ilícitos se prolongou para além dessa data.
Elucidativo o que consta da decisão instrutória:” No seu requerimento de
abertura de instrução, pugna o arguido José Lopes Ribeiro pela prescrição do
crime de frustração de créditos fiscais que lhe é imputado.
Outros arguidos, nos seus requerimentos de abertura de instrução levantaram a
questão da prescrição do procedimento criminal, designadamente quanto aos crimes
de frustração de créditos fiscais e fraude fiscal.
Analisemos, in totum, as suscitadas questões de prescrição, desconsiderando,
pelas razões já expostas, o crime de associação criminosa.
De acordo com o art. 25º do revogado R.J.I.F.N.A. (D. L. 20-A/90, de 15/01,
posteriormente alterado pelo D. L. 394/93 de 24/11), comete o crime de
frustração de créditos fiscais “quem, sabendo que tem de pagar imposto já
liquidado ou em processo de liquidação, alienar, danificar, ocultar, fizer
desaparecer ou onerar o seu património, com a intenção de, por essa forma,
frustrar, total ou parcialmente o crédito de imposto”.
O art. 88º do R.G.I.T. (Lei 15/01, de 5 de Junho de 2001) mantém, sensivelmente
a mesma redacção.
Por sua vez, diz -se no art. 23º, versão inicial, do revogado R.J.I.F.N.A. (D.
L. 20 -A/90, de 15/01) que comete o crime de fraude fiscal “quem, com intenção
de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida, ocultar ou
alterar factos ou valores que devam constar das declarações que, para efeitos
fiscais, apresente ou preste, a fim de que a administração fiscal,
especificamente, determine, avalie ou controle a matéria colectável ou celebrar
negócio jurídico simulado, quer quanto ao valor quer quanto à natureza, quer por
interposição, omissão ou substituição de pessoas, dirigidos a uma diminuição das
receitas fiscais ou à obtenção de um benefício fiscal injustificado”.
Posteriormente, a alteração provocada pelo D. L. 394/93, de 24/11 trouxe a
seguinte redacção: “Constituem fraude fiscal as condutas ilegítimas tipificadas
no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento do imposto
ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens
patrimoniais susceptíveis de causar diminuição das receitas tributárias. A
fraude fiscal pode ter lugar por a) ocultação ou alteração de factos ou valores
que devam constar das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a
administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a
matéria colectável; b) ocultação de factos ou valores não declarados e que devam
ser revelados à administração fiscal; c) celebração de negócio simulado, quer
quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou
substituição de pessoas”.
A conduta fiscalmente fraudulenta tipificada no art. 103º do R.G.I.T. (Lei
15/01, de 5 de Junho de 2001) mantém sensivelmente a mesma redacção.
Uma diferença verdadeiramente relevante da primeira para a segunda das redacções
deste dispositivo legal incriminatório é o facto de, com a revisão de 1993,
terem passado a prever-se penas de prisão para a punição deste crime e já não
apenas de multa.
Consta, por sua vez, do art. 15º deste diploma, que “o procedimento criminal por
crime fiscal extingue -se, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do
mesmo sejam decorridos cinco anos”. Este mesmo prazo manteve-se no art. 21º, nº
1 da Lei 15/01, de 5 de Junho, que substituiu o R.J.I.F.N.A.
Posto isto, constata-se, pela leitura da acusação, que o Ministério Público,
designadamente no que à frustração de créditos fiscais diz respeito, configura
os crimes praticados como desenvolvendo-se num determinado processo, constituído
por um encadeado de actos que se prolongam no tempo, tudo ao abrigo de uma
planificação inicial, metodicamente perpetrada. Considerando esta perspectiva,
existem imputações de factos muito recentes, dentro dos últimos cinco anos, o
que, logo à partida, considerando o regime previsto para os crimes permanentes
ou continuados (cfr. Art. 119º, nº 1, als. a) e b) do C. Penal), os tornaria não
prescritos.
Mesmo que assim se não entendesse, por se considerar que o crime se consumou com
a intervenção inicial no negócio jurídico que colocou os bens formalmente de
fora da responsabilidade dos obrigados tributários, principais ou subsidiários,
ocorreu no processo um outro factor, que não pode olvidar-se e que torna
secundária a questão exposta no parágrafo anterior. É que o processo de
averiguações conduzido pela Fazenda Pública, que representa a fase inicial do
inquérito neste tipo de criminalidade, esteve vários anos suspenso, em virtude
da interposição de uma acção perante o Tribunal Tributário, por uma das
arguidas, a sociedade “Têxtil das Lamas, Lda.”. Esta acção deu entrada, com a
apresentação da respectiva motivação, em 08/01/96 (cfr. fls. 346 dos autos) e
culminou com uma sentença proferida em 11/11/02 (cfr. fls. 601 v.º dos autos).
Ora, por aplicação do art.43º, n.º 4 e 50º, n.º 1 do R.J.I.F.N.A.., durante o
decurso da dita acção, suspendeu-se o prazo de prescrição do processo penal
fiscal, o que ocorreu durante quase sete anos. Por via desta suspensão, não está
ainda exaurido o decurso do prazo de prescrição em relação aos crimes que se
investigavam no processo de averiguações das finanças, fase inicial do
inquérito.
Estes dispositivos das leis fiscais encontram o seu homólogo na lei penal geral,
nomeadamente no art. 120º, n.º 1, al. a) do C. Penal, onde se expõe que “A
prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos prazos
especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento criminal
não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal ou
de sentença a proferir por Tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma
questão prejudicial a juízo não penal”.
Foi por via desta suspensão que o processo, como decorre claramente dos autos,
esteve perfeitamente parado entre 1996 e 2002. Descontando o período da
suspensão e considerando mesmo os factos relevantes para o iter criminis mais
antigos da acusação, se constata que não estão ainda decorridos os cinco anos de
prazo de prescrição.
Por este motivo, entende o Tribunal que não estão prescritos os crimes de
frustração de créditos fiscais e de fraude fiscal de que os arguidos vêm
acusados.”
Acresce que da acusação constam factos corridos em 2002, pelo que, atendendo-se
ao prazo prescricional, não decorreu.
O mesmo se pode dizer quanto ao crime de insolvência dolosa, já que, como se
refere na decisão recorrida e resulta dos autos, a sentença que decretou a
falência da firma “J. Saraiva, Lda. só transitou em julgado em 13 de Janeiro de
1995, pelo que não decorreu ainda o prazo de 10 anos sobre tal data, que marca o
início da sua contagem (Ac. do STJ, de 19/12/96, C.J. STJ, IV, T. 3, pág.222).
*
Alega ainda que alguns dos factos constantes da acusação e da pronúncia não
podem aí ser inseridos, pois constam de inquérito que foi arquivado.
Sobre tal é elucidativo o que consta da decisão instrutória:” Uma das primeiras
questões que importa apreciar nesta instrução, até porque a sua colocação foi
unânime, é a que diz respeito à legada impossibilidade de acusação relativamente
a alguns dos factos constantes na acusação, na medida em que os mesmos já teriam
sido objecto de inquérito na comarca de Fornos de Algodres, arquivado por
despacho de 20/12/96, que não foi objecto de contestação ou impugnação.
O Tribunal solicitou cópia de tal despacho de arquivamento e, inclusivamente da
denúncia que deu início ao procedimento • criminal. Destes elementos, constantes
dos autos a fls. 15.800 e ss., resulta que o chefe de repartição de finanças do
concelho de Seja denunciou ao delegado do Ministério Público de Fornos de
Algodres, em 14 de Julho de 1994, o facto de a empresa “J. Saraiva, Lda.” ser
devedora de avultados réditos fiscais e ter alienado todos os seus maquinismos a
uma nova empresa “Têxtil das Lamas, Lda.”, constituída por sócios que eram,
respectivamente, filho do gerente daquela e seu contabilista, pelo que assim
frustrou os ditos créditos. Esta denúncia deu origem a um inquérito que viria a
ser arquivado em 20 de Dezembro de 1996, por falta de indícios contra os
arguidos, tendo a matéria factual denunciada sido enquadrada, já não na
frustração de créditos fiscais, mas antes na insolvência dolosa.
A questão a resolver resume-se no seguinte: está vedada ao Ministério Público a
possibilidade de, tendo arquivado um determinado inquérito, por falta de
indícios, poder investigar novamente tais factos, em subsequente inquérito, e
por eles deduzir acusação?
Não nos parece que assim seja.
Começa por salientar-se que a norma plasmada no art. 279º, n.º 1 do C. P. Penal
permite expressamente a reabertura de um inquérito sempre que surgirem novos
elementos de prova que invalidem o s fundamentos invocados pelo Ministério
Público no despacho de arquivamento. Daqui se extrai necessariamente a conclusão
de que não existe qualquer espécie de preclusão dos factos investigados pelo
decurso de um despacho de arquivamento em relação aos mesmos. A propósito deste
principio, escreve Germano Marques da Silva (in “Curso de Direito Processual
Penal”, vol. III, Ed. Verbo, pág. 124) : “o novo código de processo penal como
que estabelece um meio termo entre as posições extremas assumidas pela doutrina
na vigência do código anterior, aceitando o carácter não preclusivo do despacho
de arquivamento pelo Mº Pº, em qualquer das hipóteses de arquivamento previstas
no art. 277º, mas só admitindo a reabertura do inquérito se surgirem novos
factos ou elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados para o
arquivamento”.
É certo que, ao abrigo do direito objectivo anterior à entrada em vigor do
actual código de processo penal, designadamente no âmbito do art. 343º do velho
código (correspondente ao art. 277º, n.º 1 do actual) a maioria da doutrina
defendia o efeito preclusivo do despacho de arquivamento (cfr. Figueiredo Dias,
“Direito Processual Penal”, pág. 14 e ss., Eduardo Correia, “Despacho de
arquivamento do processo e caso julgado”, in R. L. J., ano 99, pág. 33 e ss),
sendo certo que também se faziam ouvir vozes contra (cfr. Fernandes Afonso, “O
caso julgado e os despachos de abstenção de acusar proferidos pelo Ministério
Público”, in Sciencia Ivridica 13, 1964, pág. 153)
Actualmente, porém, é uniforme o entendimento de que o despacho de arquivamento
não conduz a qualquer tipo de caso julgado. Isto é assim, em nosso entendimento,
desde logo, pela simples razão que não corresponde a uma apreciação ou decisão
judicial. Daí que também não faça sentido falar-se na proibição de violação do
princípio ne bis in idem, constitucionalmente consagrado, visto que tal
princípio apenas compreende a proibição de um facto ser julgado segunda vez,
após ter transitado em julgado a primeira decisão. Como é comummente sabido,
embora muitas vezes desconsiderado, o ente administrativo com autonomia
funcional que é o Ministério Público não se confunde, nem quanto à sua orgânica,
nem quanto às funções que desempenha, com os Tribunais, órgãos de soberania.
Apenas a estes compete julgar determinados factos e resolvê-los definitivamente
na ordem jurídica. É a desconsideração desta realidade basilar que permite a
confusão de conceitos que origina a reclamação apresentada pelos arguidos.
Se é certo que algumas razões militariam no sentido da defesa da preclusão do
inquérito pelo despacho de arquivamento, v. g., a paz social do arguido, é
nítido que a lei não consagrou essa realidade (cfr., ainda, Germano Marques da
Silva, “Do Processo Penal Preliminar”, Lisboa, 1990, pág. 232) . Salienta este
autor que apenas as decisões de arquivamento resultantes da conjugação de
vontades do Ministério Público e do Juiz de instrução (de que é exemplo o
disposto no art. 280º, n.º 1 do C. P. Penal) transitam em julgado, o que sucede
pela intervenção dos princípios já enunciados supra, mormente pela intervenção,
neste caso, do órgãos judicial referido.
Não deixa de ser verdade que a reabertura do inquérito não pode resultar de acto
voluntarista do Ministério Público, sendo condicionada ao facto objectivo de
surgirem novos elementos de prova, assim se prevenindo uma permanente
intranquilidade dos arguidos visados pelo inquérito, por constantes reaberturas,
pela mera junção, v. g., de um documento.
Pelos motivos expostos, não é procedente o argumento de que estaria vedada ao
Ministério Público a acusação por factos que já anteriormente tinham sido
objecto de despacho de arquivamento.”
Por se concordar com a posição assumida, nada mais nos propomos aditar.
[…]».
*
2.3 – Notificado da decisão, o recorrente requereu o seu esclarecimento,
pedido esse que foi indeferido – Acórdão de 1 de Fevereiro de 2006 –, e,
novamente inconformado, arguiu a sua nulidade dizendo que:
«A., tendo sido notificado da decisão relativa ao pedido de esclarecimento
apresentado, vem nos termos do disposto no nº 3 do artigo 670º do CPC aplicável
ex vi artigo 4º do CPP arguir a nulidade do acórdão proferido com os fundamentos
seguintes:
No douto acórdão proferido por este Venerando Tribunal foi entendido que pese
embora os actos em causa nos autos tenham sido praticados na altura em que
estava em vigor o Decreto-lei 20-A/90, de 15/01 e tal Decreto-Lei ter sido
revogado pela Lei 15/2001 de 05/06 não se encontram excluídas as condutas nele
insertas, considerando-se ainda que se trata de uma sucessão de Leis penais no
tempo.
Tal entendimento, salvo o devido respeito, constitui uma nulidade na medida em
que viola não só o disposto no artigo 5º nº 2 do CPP como ainda o disposto no
artigo 29º da CRP, constituindo ainda e por isso mesmo uma
inconstitucionalidade.
Na verdade, entender que a revogação efectuada pela Lei 15/2001, no que respeita
ao Decreto-lei nº 20-A/90 não exclui a responsabilização e que nessa medida os
factos praticados antes da entrada em vigor da lei 15/2001 possam ser por esta
julgados e condenados, constitui uma manifesta violação do artigo 5° do C.P.P e
ao disposto no artigo 29º da CRP.
Por outro lado, o Decreto-Lei nº 20-A190 foi expressamente revogado pela Lei
15/2001, pelo que o mesmo não pode continuar a aplicar-se.
Por outro lado ainda, a aplicação das normas constantes da Lei 15/2001 aos actos
em causa nos presentes autos, por violar o disposto nos artigos 5º do C.P.P. e
29º da CRP, constitui também uma nulidade e uma inconstitucionalidade, pois que
está a aplicar-se uma Lei que não estava em vigor à data da prática dos mesmos.
Termos em que devem as nulidades e as inconstitucionalidades ser declaradas,
ordenando-se o arquivamento dos autos.»
2.4 – Por Acórdão de 7 de Junho de 2006, o Tribunal da Relação julgou
improcedente a arguição de nulidade sustentando que:
«Tendo sido proferido esclarecimento, vem o recorrente arguir a nulidade
derivada da sucessão de leis legais no tempo que foi considerada, pois tal viola
o disposto no art. 5º, nº 2 do CPP e o art. 29º da CRP.
As nulidades processuais são taxativas, como se verifica pelo disposto no art.
118º do Cod. Proc. Penal, sendo que a arguida pelo recorrente em nenhuma das
situações previstas nos normativos seguintes contempla a situação suscitada pelo
recorrente.
Todavia, a sê-lo deveria ter sido arguida no prazo legalmente estabelecido, o
que não foi, pois recai apenas sobre o pedido de esclarecimento efectuado.
Por outro lado, a invocação de inconstitucionalidade tem carácter residual, pois
o art. 29º da CRP em nada foi contrariado.
Termos em que acordam em julgar improcedente a arguição de nulidade.
Custas pelo requerente, fixando a taxa de justiça em 6 UCs.»
2.5 – Discordando do decidido, o recorrente interpôs nos termos supra
referidos o presente recurso para o Tribunal Constitucional.
3 – Uma vez que o despacho que admitiu o recurso não vincula o Tribunal
Constitucional ao conhecimento do seu objecto (artigo 76.º, n.º 3, da LTC) e
integrando-se o presente caso no âmbito normativo recortado pelo artigo 78.º-A,
n.º 1, da LTC, passa a decidir-se.
4 – Vem o presente recurso interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea
b), da LTC.
Constituem exigências sustentadoras da sua admissibilidade que estejamos perante
a sindicância de uma norma efectivamente aplicada pela decisão recorrida como
sua ratio decidendi (cfr., entre muitos, os Acórdãos deste Tribunal nºs 674/99,
155/2000, 157/2000 e 232/2002, publicados no Diário da República, II Série,
respectivamente, de 25 de Fevereiro de 2000, 9 de Outubro de 2000, 9 de Outubro
de 2000 e 15 de Julho de 2002) e que a questão da inconstitucionalidade haja
sido suscitada pela recorrente durante o processo.
Quanto a este último requisito, o Tribunal Constitucional tem afirmado, em
múltiplas decisões, que ele deve ser entendido “não num sentido meramente formal
(tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da
instância)”, mas “num sentido funcional”, de tal modo que essa invocação haverá
de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da
questão, “antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que
(a mesma questão de constitucionalidade respeita” (v. Acórdão n.º 352/94,
publicado no Diário da República, II Série, de 6 de Setembro de 1994).
Tal significa que, em rigor, quer os pedidos de aclaração e reforma de uma
decisão, quer a arguição da sua nulidade, não são, enquanto incidentes
pós-decisórios, momentos adequados para suscitar uma questão de
inconstitucionalidade normativa, porquanto já não provocam a intervenção do
Tribunal Constitucional ao nível do reexame ou reapreciação da questão de
constitucionalidade (cf., nesse sentido, o já referido Acórdão 352/94 – onde se
afirma que “porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação
da sentença, e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não
constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, não torna
esta obscura e ambígua, há-de entender-se que o pedido de aclaração de uma
decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios
idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade” – e também
o Acórdão n.º 560/94 - publicado no Diário da República, II Série, de 10 de
Janeiro de 1995 -, onde se esclarece que «a exigência de um cabal cumprimento do
ónus de suscitação atempada – e processualmente adequada – da questão de
constitucionalidade não é […] “uma mera questão de forma secundária”. É uma
exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva
pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para que o Tribunal
Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame da questão»).
A razão de ser de tal exigência é explicada por Cardoso da Costa (A jurisdição
constitucional em Portugal, in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Afonso
Rodrigues Queiró, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, I,
1984, pp. 210 e ss.): “quanto ao controlo concreto – ao controlo incidental da
constitucionalidade (…), no decurso de um processo judicial, de uma norma nele
aplicável – não cabe o mesmo, em primeira linha, ao Tribunal Constitucional, mas
ao tribunal do processo. Na verdade, não obstante a instituição de uma
jurisdição constitucional autónoma, manteve-se na Constituição de 1976, mesmo
depois de revista, o princípio, vindo das Constituições anteriores (…), segundo
o qual todos os tribunais podem e devem, não só verificar a conformidade
constitucional das normas aplicáveis aos feitos em juízo, como recusar a
aplicação das que considerarem inconstitucionais (…). Este allgemeinen
richterlichen Prüfungs-und Verwerfungsrecht encontra-se consagrado expressamente
(…), e com o reconhecimento dele a Constituição vigente permanece fiel ao
princípio, tradicional e característico do direito constitucional português, do
“acesso” directo dos tribunais à Constituição (…). Quando, porém, se trate de
recurso de decisão de aplicação de uma norma (…) é ainda necessário que a
questão da inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, em
consequência do que o juiz tomou posição sobre ela (…). Compreende-se, na
verdade, que a invocação da inconstitucionalidade unicamente ex post factum
(depois de proferida a decisão) não seja suficiente para abrir o recurso para o
Tribunal Constitucional (sob pena, além do mais, de se converter num mero
expediente processual dilatório)”.
In casu, estes pressupostos do conhecimento do recurso não estão
preenchidos.
Em primeiro lugar, a decisão recorrida individualizada recorrente – o
Acórdão de 7 de Junho de 2006 – não fez aplicação “das normas constantes do
Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro e da Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho”.
De facto, como claramente transparece do teor de tal decisão, o Tribunal da
Relação julgou improcedente a arguição da nulidade por esta não se enquadrar em
nenhuma das hipóteses previstas nos artigos 118.º e seguintes do Código de
Processo Penal, bem como, subsidiariamente, por não ter sido arguida dentro do
prazo legalmente previsto.
Daí decorre, assim, a impossibilidade do conhecimento do recurso.
Ademais, mesmo que se considerasse o presente recurso como interposto do
Acórdão de 21 de Novembro de 2005, a verdade é que o Recorrente não suscitou de
modo processualmente adequado perante o Tribunal da Relação a questão de
constitucionalidade que funda o recurso para este Tribunal, nem tão pouco a
presente fattispecie, em face do teor da decisão que pronunciou o recorrente,
denuncia daquelas situações anómalas ou excepcionais susceptíveis de conduzirem
à dispensa do ónus de suscitar a questão de constitucionalidade perante o
tribunal a quo.
5 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar
conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 (sete) UCs.».
4 – O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional, respondeu
afirmando:
“1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 – Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos
da decisão reclamada, no que toca à inverificação dos pressupostos de
admissibilidade do recurso interposto”.
B – Fundamentação
5 – Como decorre do simples confronto da argumentação que suporta a
reclamação com os fundamentos em que se abonou a decisão sumária impugnada,
constata-se que o reclamante, absolutamente, nada aduz no sentido de infirmar a
bondade do juízo de que as normas constitucionalmente impugnadas não
constituíram ratio decidendi da decisão recorrida, bem como do de que a sua
inconstitucionalidade não foi suscitada de modo adequado no processo e que aqui
se reafirmam.
A asserção transcrita pelo reclamante, como efectuada pela decisão
recorrida, de que “o art. 29.º da CRP em nada foi contrariado” não corresponde a
qualquer julgamento de qualquer questão de inconstitucionalidade, relativa aos
preceitos cuja constitucionalidade pretende agora ver sindicada, mas simples
afirmação de que solução concretamente dada ao recurso não ofende o referido
preceito da Constituição (ou seja, de que a decisão não ofende tal preceito
constitucional).
A reclamação tem, pois, de improceder.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide
indeferir a reclamação, condenando o reclamante nas custas do recurso e fixando
a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 16.11.2006
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos