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Processo nº 659/2006.
3ª Secção.
Relator: Conselheiro Bravo Serra.
1. Tendo, pelo 1º Juízo de competência cível do Tribunal de
comarca de Vila Nova de Famalicão requerido A., ao abrigo do disposto nos
artigos 20º e 39º, nº 7, alínea a), do Código da Insolvência e da Recuperação de
Empresas aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, a declaração de
insolvência de B., Ldª, a qual por sentença proferida em 28 de Junho de 2005,
transitada em julgado, tinha já sido declarada insolvente, foi, em 20 de Março
de 2006 e pelo Juiz daquele Juízo, proferido despacho de harmonia com o qual,
tendo em conta o prescrito na alínea d) do nº 7 do artº 39º daquele Código, se
fixou, ponderando o valor das custas prováveis da publicação de anúncios no
Diário da República e no Jornal de Notícias ou jornal Público, em € 3.000 o
montante a depositar à ordem do tribunal.
Não se conformando com o assim decidido, recorreu a
requerente para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 8 de Junho de
2006, concedeu provimento ao recurso.
Para tanto recusou, por desrespeito “do princípio
constitucional do acesso ao direito ínsito no artigo 20º da Constituição da
República Portuguesa” a aplicação “da norma contida na alínea d) do n.º 7 do
artigo 39º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, quando
interpretada no sentido de que o legitimado para requerer novo processo de
insolvência que não tenha meios económicos para depositar as dívidas previsíveis
da massa insolvente não pode prosseguir com o processo”.
Nesse aresto, na realidade, escreveu-se: –
“(…)
Vejamos, então, como resolver a questão.
Nos termos do disposto na alínea d) do n.º 7 do artigo 39º do Código da
Insolvência e da Recuperação de Empresas não sendo requerido o complemento da
sentença que decretou a insolvência em que, por se presumir a insuficiência do
património do devedor, para a satisfação das custas do processo e das dívidas
previsíveis da massa insolvente e não estando essa satisfação por outra forma
garantida, ‘após o respectivo trânsito em julgado, qualquer legitimado pode
instaurar a todo o tempo novo processo de insolvência, mas o prosseguimento dos
autos depende de que seja depositado à ordem do tribunal o montante que o juiz
razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das custas e das
dividas previsíveis da massa insolvente, aplicando-se o disposto nos nºs 4 e 5’.
Será que em quaisquer circunstâncias e independentemente da situação económica
do requerente, sempre haverá que se proceder àquele depósito?
Cremos que não.
A agravante pretende com o presente processo, através da declaração de
insolvência da requeri da, obter documento comprovativo dos créditos reclamados,
necessário à instrução de requerimento para o Fundo da Garantia Salarial
proceder ao pagamento de créditos garantidos.
Nos termos do disposto no artigo 380º do Código do Trabalho aprovado pela Lei
99/2003, de 27.08 ‘a garantia do pagamento dos créditos emergentes do contrato
de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, que não
possam ser pagos pelo empregador por motivo de insolvência ou de situação
económica difícil é assumida e suportada pelo Fundo de Garantia Salarial, nos
termos previstos em legislação especial’.
No capítulo XXVI – artigos 316º e seguintes – da Lei 35/2004, de 29.07 está
estabelecida a regulamentação do citado artigo 380º
Assim, no artigo 317.º dispõe-se que ‘o Fundo de Garantia Salarial assegura, em
caso de incumprimento pelo empregador, ao trabalhador o pagamento dos créditos
emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação nos termos dos
artigos seguintes.
E no n.º1 do artigo 318º que ‘o Fundo de Garantia Salarial assegura o pagamento
dos créditos a que se refere o artigo anterior, nos casos em que o empregador
seja judicialmente declarado insolvente’.
E no n.º1 do artigo 323.º dispõe-se que ‘o Fundo de Garantia Salarial efectua o
pagamento dos créditos garantidos mediante requerimento do trabalhador, do qual
consta, designadamente, a identificação do requerente e do respectivo
empregador, bem como a discriminação dos créditos objecto do pedido’.
E, finalmente, no artigo 324.º, alínea a), que ‘o requerimento previsto no
número anterior é instruído, consoante as situações, com os seguintes meios de
prova:
a) Certidão ou cópia autenticada comprovativa dos créditos reclamados pelo
trabalhador emitida pelo tribunal competente onde corre o processo de
insolvência ou pelo IAPMEI, no caso de ter sido requerido o procedimento de
conciliação
De tudo isto se conclui que um trabalhador para beneficiar da garantia que
aquele Fundo assegura, invocando a insolvência da entidade empregadora,
necessita, como alega a agravante, que nessa insolvência os seus créditos possam
ser reclamados.
Ora, do estabelecido no artigo 39º do Código da Insolvência e da Recuperação de
Empresas, nomeadamente da transcrita alínea d) do seu n.º7, resulta que o mesmo
trabalhador, para reclamar os seus créditos e obter o documento exigido para
prova dos mesmos para o efeito de beneficiar do Fundo acima referido, teria que
depositar à ordem do tribunal quantias para garantir o pagamento das custas e
das dívidas previsíveis da massa insolvente.
No caso de não possuir meios económicos para o efeito e assim não proceder ao
referido depósito, não poderia aceder aos benefícios a que tinha direito através
daquele Fundo.
Tal situação afrontaria flagrantemente o principio ínsito no artigo 20º da
Constituição da República Portuguesa, de acordo com o qual ‘a todos é assegurado
o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses
legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de méis
económicos’.
Sendo a todos garantido o acesso aos tribunais, qualquer cidadão pode utilizar o
meio que, no campo do processo civil, para tanto é disponibilizado.
O direito de acção é hoje pacificamente entendido como um ‘direito público’
totalmente independente da existência da situação jurídica para a qual se pede a
tutela judiciária, ‘afirmando-se’ como existente: ainda que ela na realidade não
exista, a afirmação basta à existência do processo, com o consequente direito à
emissão da sentença – Lebre de Freitas ‘in’ Introdução ao Processo Civil, 1996,
página 79.
Quer para o autor, quer para o réu, o direito ao acesso aos tribunais engloba a
inexistência de entraves económicos ao seu exercício.
Tal implica, designadamente, a concessão de apoio judiciário a quem dele careça
e a proibição de disposições da lei ordinária que limitem o direito à jurisdição
por não satisfação de obrigações alheias ao objecto do processo – ob. cit.,
página 91.
Pelo exposto, concluímos que a norma contida na alínea d) do n.º7 do artigo 39º
do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, quando interpretada no
sentido de que o legitimado para requerer novo processo de insolvência que não
tenha meios económicos para depositar as dívidas previsíveis da massa insolvente
não pode prosseguir com processo, não respeita o princípio constitucional do
acesso ao direito ínsito no artigo 20 da Constituição da República Portuguesa.
E por isso, quando ocorrer essa falta de meios, não deve o tribunal aplicar essa
norma, no segmento indicado.
No caso concreto em apreço e em relação ao montante para garantir as custas, a
questão não se põe, uma vez que a requerente beneficia de apoio judiciário que a
dispensa desse depósito
Mas em relação ao montante das dívidas previsíveis, já a questão se põe, uma vez
que a requerente alega não ter meios económicos para as depositar.
Ora e na sequência do que acima ficou dito, entendemos não ser de aplicar ao
caso concreto em apreço a exigência do depósito deste montante, caso se venha a
entender que a requerente não tem meios económicos para o efectuar.
(…)”
Do acórdão de que parte se encontra extractada e da parte em
que nele se operou a recusa de aplicação da alínea d) do nº 7 do artº 39º do
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na dimensão interpretativa
citada no mesmo acórdão, recorreu para o Tribunal Constitucional ao abrigo da
alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a
Representante do Ministério Público junta do Tribunal da Relação do Porto,
referindo no requerimento de interposição de recurso que se pretendia que fosse
apreciada “a inconstitucionalidade de tal norma – a da al. d) do n.º 7 do art.º
39.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa –, ‘quando
interpretada no sentido de que o legitimado para requer novo processo de
insolvência que não tenha meios económicos para depositar as dívidas previsíveis
da massa insolvente não pode prosseguir com o processo’”.
2. Determinada a feitura de alegações, a entidade recorrente
finalizou a mesma com as seguintes «conclusões»: –
“1 – A norma constante da alínea d) do n°7 do artigo 39° do Código da
Insolvência e da Recuperação de Empresa — conjugada com o preceituado no artigo
324°, alínea a), da Lei nº 35/04, de 29 de Julho, que regulamentou o artigo 380°
do Código de Trabalho — enquanto impõe ao trabalhador que pretenda instaurar
novo processo de insolvência (num caso em que o anteriormente pendente terminou
com a prolação de mera sentença simplificada’) para nele ver reconhecido o seu
direito ao pagamento de créditos laborais, a efectivar contra o Fundo de
Garantia Salarial, o ónus de depositar ou garantir o montante fixado pelo juiz,
como verdadeira condição do direito de acção (inabarcável pelo regime do apoio
judiciário), mesmo nos casos de comprovada insuficiência económica, colide com o
direito fundamental de acesso à justiça e aos tribunais, sem qualquer
discriminação, afirmado pelo artigo 20º, nº 1, da Constituição da República
Portuguesa.
2 — Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado
pela decisão recorrida.”
De seu lado, a recorrida A. não respondeu à alegação.
Cumpre decidir.
3. A norma recusada aplicar na decisão impugnada, inserida no
preceito constante do artº 39º do Código da Insolvência e da Recuperação de
Empresa, o qual tem a seguinte redacção (sendo que aquela norma ficará
transcrita em negrito): –
Artigo 39.º
Insuficiência da massa insolvente
1 – Concluindo o juiz que o património do devedor não é
presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das
dívidas previsíveis da massa insolvente e não estando essa satisfação por outra
forma garantida, faz menção desse facto na sentença de declaração da insolvência
e dá nela cumprimento apenas ao preceituado nas alíneas a) a d) e h) do artigo
36.º, declarando aberto o incidente de qualificação com carácter limitado.
2 – No caso referido no número anterior:
a) Qualquer interessado pode pedir, no prazo de cinco dias, que a sentença seja
complementada com as restantes menções do artigo 36.º;
b) Aplica-se à citação, notificação, publicidade e registo da sentença o
disposto nos artigos anteriores, com as modificações exigidas, devendo em todas
as comunicações fazer-se adicionalmente referência à publicidade conferida pela
alínea anterior.
3 – O requerente do complemento da sentença deposita à ordem
do tribunal o montante que o juiz especificar segundo o que razoavelmente
entenda necessário para garantir o pagamento das referidas custas e dívidas, ou
cauciona esse pagamento mediante garantia bancária, sendo o depósito movimentado
ou a caução accionada depois de comprovada a efectiva insuficiência da massa, e
na medida dessa insuficiência.
4 – Requerido o complemento nos termos dos n.ºs 2 e 3, deve
o juiz dar cumprimento integral ao artigo 36.º, observando-se em seguida o
disposto nos artigos 37.º e 38.º, e prosseguindo com carácter pleno o incidente
de qualificação da insolvência.
5 – Quem requer o complemento da sentença pode exigir o
reembolso das quantias dispendidas às pessoas que, em violação dos seus deveres
como administradores, se hajam abstido de requerer a declaração de insolvência
do devedor, ou o tenham feito com demora.
6 – O direito estabelecido no número anterior prescreve ao
fim de cinco anos.
7 – Não sendo requerido o complemento da sentença:
a) O devedor não fica privado dos poderes de administração e disposição do seu
património, nem se produzem quaisquer dos efeitos que normalmente correspondem à
declaração de insolvência, ao abrigo das normas deste Código;
b) O processo de insolvência é declarado findo logo que a sentença transite em
julgado, sem prejuízo da tramitação até final do incidente limitado de
qualificação da insolvência;
c) O administrador da insolvência limita a sua actividade à elaboração do
parecer a que se refere o n.º 2 do artigo 188.º;
d) Após o respectivo trânsito em julgado, qualquer legitimado pode instaurar a
todo o tempo novo processo de insolvência, mas o prosseguimento dos autos
depende de que seja depositado à ordem do tribunal o montante que o juiz
razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das custas e das
dívidas previsíveis da massa insolvente, aplicando-se o disposto nos nºs 4 e 5.
8 – O disposto neste artigo não é aplicável quando o devedor,
sendo uma pessoa singular, tenha requerido, anteriormente à sentença de
declaração de insolvência, a exoneração do passivo restante.
Para o que agora importa, releva assinalar que, de harmonia
com o estabelecido no artº 36º do citado Código, a sentença que declarar a
insolvência deve, por entre o mais, identificar o devedor insolvente, nomear o
administrador da insolvência, determinar a entrega imediata pelo devedor ao
administrador da insolvência de determinados documentos que ainda não constem
dos autos, decretar a apreensão, para imediata entrega ao administrador, dos
elementos de contabilidade do devedor e de todos os seus bens, ainda que
arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, declarar
aberto o incidente de qualificação de insolvência, com carácter pleno ou
limitado, designar o prazo, até trinta dias, para a reclamação de créditos,
advertir os credores que devem comunicar prontamente ao administrador da
insolvência as garantias reais de que beneficiem e designa dia e hora, entre os
quarenta e cinco e os setenta a cinco dias subsequentes, para a reunião da
assembleia de credores.
De outra banda, o artº 37º, ainda do mesmo Código, inter
alia, prescreve a citação pessoal dos cinco maiores credores conhecidos, dos
credores conhecidos que tenham residência habitual, domicílio ou sede em outros
Estados membros da União Europeia, do Estado, dos institutos públicos sem a
natureza de empresas públicas, das instituições da segurança social, a citação
edital dos demais credores e outros interessados, e a citação do Ministério
Público e, se o devedor for titular de uma empresa, da comissão de
trabalhadores, caso exista.
3.1. A decisão sub specie recusou a aplicação do transcrito
preceito quando comportasse, por um lado, um sentido interpretativo de acordo
com o qual o “legitimado para requerer novo processo de insolvência que não
tenha meios económicos para depositar as dívidas previsíveis da massa insolvente
não pode prosseguir com processo”, e daí que, na presente aferição da
compatibilidade constitucional, não esteja em causa a dimensão normativa tocante
à garantia do pagamento das custas.
E, de outro lado, conquanto, de modo formal, a recusa de
aplicação tivesse operado sobre aquele sentido, a verdade é que, como resulta da
transcrição acima efectuada do aresto em causa, o caso apreciado não pôde ser
desligado da circunstância de estar em questão um crédito laboral detido por uma
trabalhadora sobre a entidade insolvente, sendo certo que, para que tal
trabalhadora pudesse ver assegurado, em caso de incumprimento pelo empregador –
no caso, a sociedade declarada insolvente e em virtude dessa declaração –, o
pagamento do referido crédito através do Fundo de Garantia Salarial, lhe era
exigida, de acordo com o estabelecido no artº 380º do Código do Trabalho
aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto, e dos artigos 316º, 317º e 324º,
alínea a), estes da Lei nº 35/2004, de 29 de Julho, a obtenção de certidão ou
cópia autenticada emitida pelo tribunal competente comprovativa dos créditos por
si reclamados no processo de insolvência.
Ora, atendendo ao facto de os autos de insolvência em causa
se processarem nos termos do artº 39º do Código da Insolvência e da Recuperação
de Empresas – já que foi entendido não ser presumivelmente suficiente o
património do devedor para a satisfação das respectivas custas e das dívidas
previsíveis da massa insolvente –, não havendo, assim, lugar ao processamento
das «diligências normais» do processo de insolvência (aqui relevando a fase de
reclamação de créditos, sua verificação e graduação), não seria, em princípio,
possível àquela trabalhadora ir solicitar ao Fundo de Garantia Salarial o
asseguramento do pagamento dos créditos detidos sobre a sociedade declarada
insolvente.
Foi, pois, com estes contornos fácticos que ocorreu a
desaplicação normativa operada pela decisão recorrida, compreendendo-se, neste
contexto, a referência, na alegação da entidade recorrente, à norma da alínea d)
do nº 7 do artº 39º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas em
conjugação com o preceituado no artº 324º, alínea a), da Lei nº 35/2004.
Justamente por isso, irá o Tribunal debruçar-se sobre uma
dimensão normativa daquela alínea d) do nº 7 do artº 39º quando se reporte a
casos em que está em causa a necessidade, para efeitos do disposto na alínea a)
do artº 324º da Lei nº 35/2004, de ser apresentada certidão comprovativa de ter
havido reclamação de créditos laborais de um trabalhador, com comprovada
insuficiência económica, detidos sobre o insolvente, tendo, no processo de
insolvência, sido proferida sentença nos termos do nº 1 daquele artigo.
Esta limitação do objecto do recurso, aliás, comparativamente
com a forma como foi recusada a aplicação do preceito da alínea d) do nº 7 do
artº 39º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e com o que
consta do requerimento de interposição de recurso, tem suporte na própria
alegação da entidade recorrente, sendo, pois, permitida, já que, como sabido é,
se bem que o âmbito do recurso não possa ser «alargado» na alegação, poderá,
porém, nesta, ser objecto de limitação.
3.2. A disposição constante do nº 1 do citado artº 39º
insere-se no âmbito de medidas legislativas tendentes a, nos processos de
natureza executiva – e aqui se abarcando, quer os que visam uma execução
singular, quer os que têm por finalidade prosseguir uma execução universal –, em
que, à partida e numa perspectiva presumida, a falta de bens penhoráveis ou
apreensíveis ou a insuficiência dos bens do devedor executado para prover ao
pagamento das quantias executadas ou reclamadas, se não proceder ao dispêndio de
uma actividade processual que, no fundo, se revelaria inútil, uma vez que, em
face daquelas falta ou insuficiência, não era lograda a finalidade do processo,
isto é, a obtenção de valores tanto quanto possíveis adequados à satisfação das
quantias exequenda ou reclamadas.
E é assim que já se surpreendiam na legislação processual
comum disposições tais como as ínsitas nos artigos 864º-A e 868º, nº 5 (do
Código de Processo Civil), mesmo antes das alterações introduzidas em 2003, e as
constantes do Decreto-Lei nº 274/97, de 8 de Outubro.
Com o Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março (que, a par de
profunda revisão no Código de Processo Civil, mormente no processo executivo,
igualmente, por entre outros diplomas, alterou o Código Civil, o então vigente
Código dos Processos de Recuperação da Empresa e da Falência, aprovado pelos
Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril, e alterado pelos Decretos-Leis números
157/97, de 24 de Junho, e 381/2001, de 17 de Dezembro, o Código de Procedimento
e de Processo Tributário, o Código de Processo do Trabalho e o Código das Custas
Judiciais) mais acentuadamente se precludiu a possibilidade de reclamação de
créditos, ainda que suportados por privilégios creditórios.
Com a reforma introduzida por este Decreto-Lei nº 38/2003
que, como se viu, também procedeu a modificações no Código dos Processos de
Recuperação da Empresa e da Falência, veio a ficar consagrada nos seus artigos
186º e 187º a permissão de o juiz julgar extinta a instância falimentar por
inutilidade, quando se mostrasse que no património do falido não havia bens
susceptíveis de apreensão ou dispensar a fase da reclamação de créditos, caso o
valor dos bens fosse manifestamente insuficiente para prover ao pagamento das
custas processuais e demais despesas.
Com o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas
aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, trilhou o legislador, no
particular de que nos ocupamos, idêntica senda, nele se podendo descortinar
preceitos tais como o precipitado no seu artº 232º.
O preceito de onde foi extraída a norma agora em apreço, como
se disse já, não deixa de reflectir a preocupação da simplificação dos actos
processuais, permitindo que o juiz, no momento da prolação da sentença
decretadora da falência, se efectuar um juízo de harmonia com o qual, perante
uma manifesta insuficiência de bens do devedor para assegurar o pagamento das
custas processuais e demais dívidas, decrete essa mesma falência, prosseguindo
os autos de forma «simplificada», com finalização do processo, consequentemente
não havendo lugar à fase da reclamação de créditos.
Ainda assim, abre o legislador aos interessados legítimos a
possibilidade de a sentença que decretou a falência ser complementada por forma
a serem obtidos os efeitos que, normalmente, ocorrem no processo falimentar. E,
se, porém, a sentença proferida naqueles moldes tiver já transitado, ainda é
possível àqueles interessados instaurar novo processo de falência.
Estas possibilidades, todavia, estão sujeitas a um
«pressuposto de acção», qual seja o de o interessado depositar ou garantir o
pagamento de montante considerado pelo juiz como suficiente para assegurar o
pagamento das custas e demais dívidas da massa insolvente.
3.3. Este «pressuposto de acção» (passe a liberdade de
expressão, de todo não ortodoxa) foi entendido na decisão recorrida como não se
encontrando contemplado pelos mecanismos de apoio judiciário.
Simplesmente, já em pleno ano de 2004, ou seja, já depois de
serem introduzidas as novas disposições visando não acarretar dispêndios de
actividade processual quando, «à partida», era manifestamente previsível que o
acervo dos bens do devedor executado ou do devedor cuja insolvência foi
requerida não era suficiente para assegurar as dívidas de custas e ou da massa
insolvente, o que consequenciava que, naquilo que agora interessa, o processo de
insolvência deixava de comportar a fase da reclamação de créditos, o legislador
levou a efeito a regulamentação do artº 380º do Código do Trabalho – com vista a
que o trabalhador viesse a ser ressarcido dos seus salários não pagos pela
entidade patronal pelo Fundo de Garantia Salarial –, o que sucedeu por
intermédio da Lei nº 35/2004.
Ora, nessa regulamentação prescreveu-se, como já se viu, que
o trabalhador interessado instruísse a sua pretensão, por entre o mais, com
certidão ou cópia autenticada emitida pelo tribunal competente comprovativa dos
créditos por si reclamados no processo de insolvência.
Olvidou-se, contudo, a existência de casos em que o processo
de insolvência não comporta a fase de reclamação de créditos. E, perante tais
casos, tendo ou não tendo ainda transitado a sentença «simplificada» declarativa
da insolvência, sempre terá o trabalhador de requerer o «complemento» dessa
sentença ou a instauração de novo processo de insolvência; e, numa ou noutra
dessas situações, sempre sobre ele impenderá o «pressuposto» de depositar ou
garantir um quantitativo julgado suficiente para assegurar o pagamento das
custas e demais dívidas previsíveis da massa insolvente.
Se o trabalhador for considerado – como no caso de onde
emergiu o vertente recurso aconteceu – como detendo uma situação económica de
tal sorte que lhe não permita custear despesas processuais, a exigência daqueles
depósito ou garantia vai, em verdade, actuar como um obstáculo inultrapassável
da realização do «pressuposto de acção» que tais depósito ou garantia
constituem.
Está, constitucionalmente, consagrado o princípio de que a
todos é assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e
interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegado por
insuficiência de meios económicos (cfr. artigo 20º, nº 1, da Lei Fundamental).
Variada tem sido a jurisprudência deste Tribunal emitida a
respeito de um tal princípio.
Assim, e sempre enfrentando problemas em torno de normas (ou
interpretações normativas) de onde resulte uma impossibilidade ou uma acentuada
dificuldade de acesso à justiça motivada pela obrigação de pagamento de
determinadas quantias condicionadoras do exercício do acesso ao direito e aos
tribunais, têm sido múltiplos os juízos formulados a este respeito por este
órgão de administração de justiça.
O fio condutor dessa jurisprudência, que não tem deixado de
sublinhar que a garantia que decorre do nº 1 do artº 20º do Diploma Básico não
pode ser perspectivada como «uma mera ou simples afirmação proclamatória»,
poderá ser condensado nas palavras utilizadas no Acórdão nº 30/88 (in Diário da
República, I Série, de 10 de Fevereiro de 1988), citando o Parecer nº 8/87 da
Comissão Constitucional, e segundo as quais a Constituição deveria ter-se “por
violada sempre que, por insuficiência de tais meios, o cidadão pudesse ver
frustrado o seu direito à justiça, tendo em conta o sistema jurídico-económico
em vigor para o aceso aos tribunais na ordem jurídica portuguesa”, pois que
aquele diploma fundamental “indo além do mero reconhecimento de uma igualdade
formal no acesso aos tribunais”, propõe-se “afastar neste domínio a desigualdade
real nascida da insuficiência de meios económicos, determinando expressamente
que tal insuficiência não pode constituir motivo para denegação da justiça”.
Com alguns pontos de contacto com a questão agora em apreço,
convocar-se-ão os Acórdãos deste Tribunal números 269/87, 345/87, 412/87, 30/88
e 417/89 (os dois primeiros publicados, respectivamente, no Diário da República,
II Série, de 3 de Setembro de 1987 e de 28 de Novembro de 1987, o terceiro
inédito, o quarto já atrás mencionado, o quinto publicados no mesmo jornal
oficial, II Série, de 15 de Setembro de 1989), arestos esses em que se postavam
em apreciação normativos de onde resultava a imposição do depósito prévio da
coima aos recorrentes que, pretendendo impugnar a sua aplicação, não desfrutavam
de meios económicos bastantes para proceder a tal depósito.
Assim, lê-se, a dado passo, no aludido Acórdão nº 30/88 que
“ao arguido, pobre de fortuna, não é possível ultrapassar a obrigação de
depositar previamente a coima(…)” “mediante recurso ao instituto de assistência
judiciária, de todo inaplicável a situações deste tipo”, pelo que não se podia
deixar “de concluir pela inconstitucionalidade da norma em apreço, na parte em
que obsta ao seguimento do recurso judicial, quando o recorrente, por
insuficiência de meios económicos, não procede ao prévio depósito do
quantitativo da coima”. já que “o reconhecimento do direito de recorrer aos
tribunais seria meramente teórico se não se garantisse que o direito à via
judiciária não pode ser prejudicado pela insuficiência de meios económicos ”.
O raciocínio levado a efeito naqueles indicados Acórdãos é
transponível para a questão em análise, não se deixando de vincar que o
«pressuposto de acção», que funciona como um ónus sobre a «parte» que deseja,
quer o «complemento» da sentença «simplificada» decretadora da insolvência (e
esse será o caso a que se refere o nº 3 do artº 39º do Código da Insolvência e
da Recuperação de Empresa), quer requerer novo processo de insolvência [o caso a
que respeita a alínea d) do nº 7 do mesmo artigo, que é o que agora nos
importa], ónus esse que, em face da norma em apreciação, impõe a adopção de
comportamento necessário para o exercício do direito de acção.
Ora, tendo em atenção o direito que resulta do nº 1 do artigo
20º da Lei Fundamental, é patente que o normativo em causa, nos casos em que o
interessado desprovido de condições económicas que lhe permitam efectuar o
depósito garantístico do pagamento das custas e das dívidas previsíveis da massa
insolvente, pretenda levar a cabo o impulso processual com vista à obtenção de
uma decisão judicial comprovativa de que reclamou no processo de insolvência,
para, com essa comprovação, poder garantir o pagamento, pelo Fundo de Garantia
Salarial, dos seus salários, incumpridos pela entidade patronal declarada
insolvente, traduz uma solução excessiva, desadequada e limitadora, não só
daquele direito, como ainda daqueloutro consignado na alínea a) do nº 1 do
artigo 59º da Constituição.
Como tem dito este Tribunal (cfr., verbi gratia, o seu
Acórdão nº 238/97 (In Diário da República, II Série, de 14 de Maio de 1997),
sempre que seja postergada a defesa dos direitos dos particulares e,
nomeadamente, o direito de acção, que se materializa através de um processo, é
violado o direito fundamental de acesso aos tribunais.
É que, a especificidade procedimental imposta pela dita
alínea d) do nº 7 do artº 39º, dada a forma como se encontra concebida – e tendo
em conta que o sistema jurídico exige que o trabalhador, para efeitos de
recebimento pelo Fundo de Garantia Salarial dos seus salários não pagos pela
entidade patronal insolvente, demonstre ter reclamado esses créditos no processo
de insolvência – não permite àquele trabalhador, que seja economicamente
desfavorecido, uma concreta conformação na utilização de um regime processual
que realize o seu direito ou interesse na percepção daqueles salários (cfr.,
sobre a conformação de regimes processuais por sorte a que sejam realizados
direitos fundamentais, o Acórdão deste Tribunal nº 384/98, publicado no Diário
da República, II Série, de 30 de Novembro de 1998, Jorge Miranda e Rui Medeiros,
Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 176, Lebre de Freitas, Introdução ao
Processo Civil, 1996. 91, e Lopes do Rego, O Direito Fundamental de acesso aos
tribunais, in Estudos sobre a jurisprudência do Tribunal Constitucional, pág.
735, Lisboa, 1993).
4. Em face do que se deixa dito, decide-se: –
a) Julgar inconstitucional, por violação do nº 1 do artigo
20º e da alínea a) do nº 1 do artigo 59º, um e outro da Lei Fundamental, a norma
vertida no preceito da alínea d) do nº 7 do artigo 39º do Código da Insolvência
e Recuperação de Empresas aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março,
quando interpretado no sentido de que dele decorre, nos casos em que foi
proferida sentença nos termos do nº 1 daquele artigo, a imposição, ao
trabalhador que não desfrute de condições económicas suficientes e que pretenda
instaurar novo processo de insolvência para efeitos de nele ser reconhecida a
reclamação do seu crédito por salários não pagos pela entidade insolvente, com
vista ao disposto na alínea a) do artº 324º da Lei nº 37/2004, de 29 de Julho,
do depósito de um montante que o juiz razoavelmente entenda necessário para
garantir o pagamento das dívidas previsíveis da massa insolvente, não
contemplando o benefício de apoio judiciário a possibilidade de isenção desse
depósito;
b) e, em consequência, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 14 de Novembro de 2006
Bravo Serra
Gil Galvão
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício