Imprimir acórdão
Processo nº 570/06
1ª Secção
Relator: Conselheiro Rui Moura Ramos
Acordam, em conferência na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de recurso, vindos do Tribunal da relação do Porto, em
que são recorrentes A. e B. e recorrido o Ministério Público, foi interposto
recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº
1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC).
Do requerimento de interposição foi feito constar o seguinte teor:
«A. e B., Recorridos nos autos à margem identificados, notificados do aliás
douto de acórdão de fls. dos autos que confirmou a decisão recorrida e julgou
parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público vêm, nos
termos e ao abrigo do disposto nos arts. 280, alínea b), da Constituição da
República Portuguesa e art.°70°, n.º 1°, alínea b), da Lei do Tribunal
Constitucional, interpor recurso daquela decisão para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL,
nos termos seguintes:
1. Os Recorrentes não se conformam com o
douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto que
considerou conformes com a Constituição da Republica Portuguesa a disposição
normativa do art°. 11, n°. 7, do RJIFNA, condicionando a suspensão da pena de
prisão aplicada aos Arguidos, ora Recorrentes, ao pagamento ao estado, durante o
período da suspensão da prestação tributária e acréscimos legais, pelo que dele
interpõem recurso para o Tribunal Constitucional.
2. Os Recorrentes suscitaram a questão da
(in)constitucionalidade da norma em causa nas contra-alegações de recurso que
apresentaram no âmbito do recurso interposto pelo Ministério Público, pelo que
se encontra preenchido o requisito estabelecido pelo art°. 75°-A, n°. 2, da Lei
do Tribunal Constitucional, para a fiscalização concreta da constitucionalidade.
3. O recurso é tempestivo por ser
interposto dentro do prazo estabelecido no art. n.º 1, da Lei do Tribunal
Constitucional, contando-se o seu início da notificação da decisão recorrida.
[…]
6. A inconstitucionalidade cuja apreciação se requer consiste em violar
aquela disposição legal os princípios fundamentais da igualdade,
proporcionalidade, adequação e proibição da “prisão por dívidas” estabelecidos
nos arts. 13°, 18° e 27° da Constituição, quando interpretada com o sentido de a
pena de prisão cuja suspensão foi decretada dever ser condicionada ao pagamento
dos impostos e acréscimos legais, apesar de declarada e demonstrada a
insolvência/falência do agente e a sua manifesta insuficiência económica para o
pagamento dessas quantias.
7. Requer-se, igualmente, a apreciação da inconstitucionalidade da norma
do art. 11°-7 do RJIFNA no sentido de que a mesma não pode ser interpretada como
condicionante da suspensão da pena de prisão quando está em causa a condenação
de mais do que um arguido/agente uma vez que não esclarece qual a medida do
pagamento que é imputado a cada um, sendo certo que é inconstitucional, por
violação do principio da proporcionalidade constante art°. 18° da Constituição,
quando interpretada no sentido de que cada um dos agentes/arguidos fica obrigado
ao pagamento da totalidade da divida de imposto e acréscimos legais,
independentemente do pagamento que o ou os demais arguidos efectue desses mesmos
impostos com vista a igual suspensão da execução da pena.
8. A decisão recorrida é omissa quanto a esta questão, o mesmo sucedendo
com a previsão normativa do art. 11-7 do RJFINA; acresce que a sua
(in)constitucionalidade não poderia ter sido anteriormente suscitada uma vez que
o Tribunal de 1ª Instância não condicionou a suspensão da pena aplicada ao
pagamento dos impostos e acréscimos legais.
9. Assim, impõe-se agora apreciar a interpretação do sentido da norma,
designadamente declarando a sua inconstitucionalidade quanto interpretada como
dela decorrendo que a obrigação de efectuar o pagamento dos impostos como
condicionante da suspensão da pena de prisão não é uma obrigação solidária.
10. Por último refere-se que não se desconhece existir jurisprudência oriunda
do Tribunal Constitucional que é contrária à perfilhada pelos Recorrentes. Não
obstante, verdade é que o Tribunal Constitucional, na apreciação que fez da
constitucionalidade em concreto da norma em causa não apreciou, porque tais
questões lhe não foram submetidas, a circunstância de o agente estar declarado
falido/insolvente e o modo como, sendo vários os agentes, como deve
interpretar-se o pagamento que condiciona a suspensão da pena de prisão.
[…]»
2. Por se haver entendido que não podia conhecer-se do objecto do recurso, foi
proferida a decisão sumária ora reclamada.
Da fundamentação aí utilizada, são de destacar, com relevo para a decisão a
proferir, as seguintes as passagens:
«O presente recurso foi interposto ao abrigo da al.b) do n.º1 do art.70º da LTC,
preceito que se refere àqueles que tenham por objecto decisões que apliquem
norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Conforme sabido é, tais recursos encontram-se dependentes, quanto à
possibilidade da sua admissão, da verificação cumulativa dos requisitos
enunciados no n.º2 do art.72º do referido diploma, pressupondo, por
consequência, que a questão de inconstitucionalidade pretendida sujeitar aos
poderes de controlo cometidos a este Tribunal haja sido suscitada “durante o
processo”, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu
a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”.
Ora, invocar a questão de inconstitucionalidade “durante o processo” significa
que a mesma deverá ser apresentada, por regra, em momento anterior ao de o
tribunal recorrido proferir a decisão final, em termos de o habilitar a sobre
ela exercer os respectivos poderes cognoscitivos e, portanto, a incluí-la no
âmbito do respectivo pronunciamento.
[...]
O accionamento da jurisdição constitucional prende-se, no presente caso, com o
artigo art.11º, n.º7, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras
aprovado pelo Decreto‑Lei n.° 20‑A/90 (RJIFNA), na redacção introduzida pelo
Decreto-Lei n.º394/93, de 24.11, preceito que, sob a epígrafe “Pena de Prisão.
Suspensão”, estabelece, no segmento destacado pelos recorrentes, o seguinte: «A
suspensão é sempre condicionada ao pagamento ao Estado, em prazo a fixar pelo
juiz nos termos do n.º8, do imposto e acréscimos legais, do montante dos
benefícios indevidamente obtidos (…)»
No âmbito dos presentes autos, mais propriamente através da resposta apresentada
ao recurso interposto pelo Ministério Público da sentença proferida em primeira
instância, os recorrentes suscitaram a questão da inconstitucionalidade da norma
contida no art.11º, n.º7, do RJIFNA, naquilo que consideraram ser a sua «literal
interpretação». Para fundamentar a acusação de inconstitucionalidade nestes
termos formulada, sustentaram, então, que a referida norma consubstanciaria uma
violação do princípio consagrado nos artigos 27º e 28º da Constituição da
República Portuguesa que proíbe a prisão por dívidas, para além de uma manifesta
violação do respectivo art.13º, já que, ainda na formulação empregue, os aí
recorridos seriam prejudicados e privados do seu direito à liberdade única e
exclusivamente devido à sua situação económica.
Confrontado com tal concreta e precisa arguição e na certeza de que não
poderia vir a reformar a decisão proferida em primeira instância nos termos
preconizados pelo Ministério Público sem afastar as objecções de
constitucionalidade colocadas na resposta apresentada pelos arguidos, o Tribunal
da Relação do Porto, louvando-se, entre o mais, em jurisprudência deste
Tribunal, pronunciou-se no sentido de não ser inconstitucional a «suspensão da
execução da pena condicionada ao pagamento ao Estado da prestação tributária
indevidamente apropriada».
Declarando-se inconformados com o Acórdão proferido pelo Tribunal da
Relação do Porto que considerou conforme com a Constituição da Republica
Portuguesa a disposição normativa do art°. 11, n°. 7, do RJIFNA, que condiciona
a suspensão da pena de prisão ao pagamento ao Estado, durante o período da
suspensão, da prestação tributária e acréscimos legais, os arguidos interpuseram
então recurso para este Tribunal, requerendo agora a «declaração de
inconstitucionalidade de tal disposição quando interpretada com o sentido de a
pena de prisão cuja suspensão foi decretada dever ser condicionada ao pagamento
dos impostos e acréscimos legais, apesar de declarada e demonstrada a
insolvência/falência do agente e a sua manifesta insuficiência económica para o
pagamento dessas quantias», bem como a «apreciação da inconstitucionalidade da
norma do art. 11°-7 do RJIFNA no sentido de que a mesma não pode ser
interpretada como condicionante da suspensão da pena de prisão quando está em
causa a condenação de mais do que um arguido/agente por não esclarecer qual a
medida do pagamento que é imputado a cada um».
[...]
Ora, confrontando o vício de inconstitucionalidade invocado perante o
Tribunal da Relação do Porto com as acusações de desconformidade constitucional
pretendidas sujeitar à apreciação deste Tribunal, incontornável parece ser a
ausência da relação de identidade ou equivalência normativa pressuposta pela
exigência da suscitação atempada colocada pelo art.72º, n.º2, da LTC.
Com efeito, se, conforme então expressamente declarado, a acusação de
inconstitucionalidade formulada perante o tribunal a quo se dirigia directamente
à norma do art.11º, n.º7, do RJIFNA, quando literalmente interpretada, e, de
acordo com a enunciação constante do requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade, a desconformidade à Lei Fundamental é imputada agora ao
resultado da sua aplicação em função do contexto situacional em que se alega ter
ocorrido, a conclusão que obviamente se segue é a de que as questões de
inconstitucionalidade em um e outro momento delineadas são tão dissemelhantes
entre si quanto diverso seria um hipotético juízo de inconstitucionalidade sobre
a norma em presença, tomando-a no sentido segundo o qual a suspensão da execução
da pena de prisão é sempre condicionada ao pagamento ao Estado, durante o
período da suspensão, da prestação tributária e acréscimos legais, de um outro
eventual juízo de inconstitucionalidade sobre a mesma norma, mas apenas quando
interpretada no sentido de a suspensão da execução da pena de prisão ser
obrigatoriamente condicionada ao pagamento dos impostos e acréscimos legais
quando declarada e demonstrada se encontrar a insolvência/falência do agente e a
sua manifesta insuficiência económica para o pagamento dessas quantias. Ou ainda
– se assim se puder sintetizar o pensamento dos recorrentes - no sentido de, em
caso de pluralidade de agentes/devedores, a suspensão da execução da pena de
prisão ser obrigatoriamente condicionada ao pagamento dos referidos montantes
sem determinação da medida do pagamento imputado a cada um.
E justamente porque suscitar a questão da inconstitucionalidade de uma
determinada norma não previne a ulterior suscitação da inconstitucionalidade das
suas possíveis dimensões normativas, o presente recurso não pode ser admitido
por inverificado se mostrar o pressuposto da arguição perante o tribunal
recorrido do vício de constitucionalidade pretendido submeter aos poderes de
sindicância cometidos a este Tribunal.
Sustentam, porém, os recorrentes que as questões de inconstitucionalidade agora
enunciadas não poderiam ter sido anteriormente perspectivadas pelo facto de o
Tribunal de primeira instância não haver condicionado a suspensão da execução
das penas de prisão aplicadas ao pagamento dos impostos e acréscimos legais.
Todavia, sem qualquer razão.
Isto porque, se certo é que, conforme vem sendo pacificamente admitido, o ónus
de suscitação atempada cederá inevitavelmente perante interpretações normativas
insólitas ou inesperadas feitas pela decisão recorrida, verdade é também que,
como se escreveu no Acórdão n.º489/94
(www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos), sempre caberá «às partes considerar
antecipadamente as várias hipóteses de interpretação razoáveis das normas em
questão e suscitar antecipadamente as inconstitucionalidades daí decorrentes
antes de ser proferida a decisão».
Esta exigência do prévio juízo de prognose estende-se, portanto, à própria
situação de interpretação da norma pela decisão e não só à sua aplicação, de tal
modo que, se a interpretação de uma norma surgir como perfeitamente lógica,
senão mesmo como a única compatível com o contexto normativo em que se insere, o
interessado não deverá ignorar que essa será muito provavelmente a interpretação
a utilizar na decisão e, caso suspeite da validade constitucional de tal
previsível solução, impõe-se-lhe que reaja em conformidade ainda perante o
tribunal recorrido (Guilherme da Fonseca/Inês Domingos, Breviário de Direito
Processual Constitucional, Coimbra Editora, 2ª ed., pg.47-48).
Ora, considerados os termos em que qualquer uma das duas distintas dimensões
normativas agora pretendidas controverter é enunciada, destituída de fundamento
irremediavelmente se revela a prosseguida tentativa de reconduzir o presente
recurso a um caso de resultado interpretativo imprevisível ou excepcional.
Com efeito, se a pretensão dos recorrentes é, afinal, a de ver sindicada a norma
contida no art.11º, n.º7, do RJIFNA, interpretada no sentido de a suspensão da
execução da pena de prisão ser obrigatoriamente condicionada ao pagamento dos
impostos e acréscimos legais quando declarada e demonstrada se encontrar a
insolvência/falência do agente e a sua manifesta insuficiência económica para o
pagamento dessas quantias, parece evidente que lhes teria sido inteiramente
possível formular em tais precisos e exactos termos a questão de
inconstitucionalidade suscitada perante o Tribunal da Relação do Porto, tanto
mais quanto certo é que os elementos de precariedade económica agora pretendidos
controverter foram igualmente invocados no âmbito da argumentação desenvolvida
na resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público da sentença proferida
em primeira instância.
Na ausência de qualquer preceito que excepcionasse a regra do condicionamento
obrigatório consagrada no art.11º, n.º7, do RJIFNA, aos casos em que o condenado
não revelasse dispor de condições para proceder ao pagamento dos impostos e
acréscimos legais, o modo como a referida norma foi aplicada pelo Tribunal da
Relação do Porto era o único verdadeiramente expectável, o que significa que,
uma vez confrontados com o recurso interposto pelo Ministério Público, poderiam
os arguidos, logo na resposta apresentada, contestar a validade constitucional
da solução ali preconizada nos termos em que agora o fazem perante este
Tribunal.
Quanto à segunda das dimensões normativas pretendidas sindicar impõe-se começar
por fazer notar que a mesma não encontra correspondência expressa no resultado
do pronunciamento do tribunal “a quo” na exacta medida em que este, tendo embora
condicionado a suspensão da execução das penas de prisão aplicadas ao pagamento
ao Estado, durante o período da suspensão, da prestação tributária e acréscimos
legais, do montante dos benefícios indevidamente recebidos, não definiu o
estatuto obrigacional de cada um dos vinculados ao pagamento. E, neste sentido,
inútil se tornaria apreciar a respectiva validade constitucional já que, assim
sendo, um eventual juízo de inconstitucionalidade nos termos preconizados pelos
recorrentes não pareceria poder repercutir-se proveitosamente na decisão
impugnada, o que, conforme sabido é, é contrário ao carácter instrumental dos
recursos de constitucionalidade.
Certo é, porém, que a aplicação da dimensão normativa pretendida controverter
pela via da fiscalização concreta, para além de expressa, pode ser implícita e,
conforme parece resultar das objecções colocadas pelos recorrentes, ao não
afastar da solução a que chegou o regime da solidariedade passiva, o tribunal
recorrido teria aplicado implicitamente a dimensão normativa impugnada.
Mais: o modo como a questão a apreciar é apresentada no requerimento de
interposição de recurso permite mesmo pensar que, com este argumento de
inconstitucionalidade dirigido à segunda das dimensões enunciadas, a pretensão
dos recorrentes é a de que a própria norma do art.11º, n.º7, do RJIFNA, é
inconstitucional por não indicar um sistema de pagamento em caso de pluralidade
de devedores ou, mais concretamente ainda, por não afastar o regime da
solidariedade passiva, preferindo expressamente o da conjunção.
Ora, quer numa hipótese, quer noutra, a verdade é que a questão de
inconstitucionalidade assim pretendida controverter poderia ter sido enunciada
nas contra-alegações ao recurso interposto pelo Ministério Público, já que,
conforme se passará a demonstrar, em quaisquer circunstâncias, o não afastamento
de tal contestado regime pela decisão recorrida não poderia, já então, deixar de
constituir uma solução expectável para os recorrentes.
Dispõe o artigo 11.°, n.ºs 6 e 7, do RJIFNA (aprovado pelo Decreto-Lei n.°
20‑A/90, na redacção dada pelo Decreto‑Lei n.° 394/93, de 24 de Novembro) o
seguinte:
6 – É admissível nos termos do Código Penal a suspensão da pena, com as
particularidades constantes do n.º 7.
7 – A suspensão é sempre condicionada ao pagamento ao Estado, em prazo a fixar
pelo juiz, nos termos do n.º 8 [autorização de pagamento da multa em
prestações], do imposto e acréscimos legais, do montante dos benefícios
indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao
limite máximo estabelecido para a pena de multa, sendo aplicável, em caso de
falta de cumprimento do prazo, apenas o disposto nas alíneas b), c) e d) do
artigo 50.° do Código Penal.
Conforme literalmente resulta até do estatuído no transcrito n.º6, as
consequências jurídicas que, no âmbito das penas de substituição, aqui se
prevêem para os crimes fiscais tipificados no correspondente diploma não
consagram um instituto novo ou verdadeiramente original.
Com efeito, em termos próximos do que se previa já no art.49º, n.º1, al.a) da
versão originária, dispõe o artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na
redacção resultante da revisão operada pelo Decreto Lei n.º48/95, de 15 de
Março, que «a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao
cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do
crime, nomeadamente pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o
tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o
seu pagamento por meio de caução idónea».
As diferenças a assinalar entre o regime consagrado no RJIFNA e o previsto no
Código Penal tem apenas a ver com o facto de, na redacção do art.51º do Código
Penal, se não sujeitar obrigatoriamente a suspensão da execução da pena ao
pagamento da quantia devida à vítima ou ao lesado, para além da circunstância
de, estatuindo-se embora no n.º2 do referido art.51º que “os deveres impostos
não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento
não seja razoavelmente de lhe exigir”, se encontrar tal limite ausente do
regime especial previsto naquele primeiro diploma.
E justamente porque as dissemelhanças a apontar, embora relevantes e
substanciais, não chegam, contudo, a contender com a ideia subjacente ao
instituto, é possível dizer-se, a propósito do art.11º, n.º7, do RJIFNA, que a
sujeição da suspensão da execução da pena de prisão à reparação dos danos
causados se apresenta também aqui como uma medida que «permite cuidar ao mesmo
tempo do delinquente e da vítima» (Manso-Preto, «Algumas considerações sobre a
suspensão condicional da pena», Textos, Centro de Estudos Judiciários, 1990-91,
pág. 173), ainda que neste caso, como é próprio dos delitos de «auto lesão
colectiva» (Augusto Silva Dias, citando K. Dieter Opp, «Wirtschaftskriminalität
als Prozess kollektiver Selbstchädigung?», Monatesschrift fur Kriminologie und
Strafrechtsreform, 1983, n.º1, pg.8 e ss., «O Novo Direito Penal Fiscal Não
Aduaneiro», Fisco, n.º22, Julho 1990, pg.20), a vítima se identifique
necessariamente com uma abstracção.
Daí que, tal como sucede com o art.51º, n,º1, al.a), do CP, também aqui se
retome a ideia do interesse social existente na reparação pelo delinquente do
prejuízo que causou com o crime: o dano ex delicto, substancialmente diferente
do dano ex contracto e subsistente em qualquer infracção penal (neste sentido,
embora a propósito do princípio subjacente à génese do sistema da dependência
processual do pedido civil perante o processo penal, Prof. Figueiredo Dias,
Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, pg. 542).
Assim sendo, se a sujeição da execução da pena de prisão à reparação do dano
originado pela prática do crime supõe necessariamente que tal reparação possa
ser exigida do condenado de forma consentida pelo ordenamento, então há-de poder
esperar-se que o fundamento legitimador dessa exigibilidade se busque no
instituto da responsabilidade civil extracontratual, onde, conforme decorre do
preceituado no art.497º, n.º1, do Código Civil, impera a regra da solidariedade
em caso de co-obrigados (A respeito da relação entre o dever previsto na alínea
a) do art.49º, n.º1, do Código Penal pré-revisto e o pedido de indemnização
civil, pode ver-se ainda Prof. Figueiredo Dias, «Novas e Velhas Questões sobre a
pena de suspensão da execução da prisão», Revista de Legislação e de
Jurisprudência, Ano 124º, n.º3806, pg.131).
Se o facto gerador da obrigação de pagamento a que foi subordinada a suspensão
da execução das penas aplicadas é, conforme visto já, a prática de um crime e
este constitui indubitavelmente um facto ilícito, a conclusão a retirar de tudo
o que dito fica só pode ser, pois, a de que, uma vez confrontados com o recurso
interposto pelo Ministério Público da sentença proferida em primeira instância,
os recorrentes não poderiam deixar de contar com a aplicação do princípio
consagrado no art.497º, n.º1, do Código Civil, segundo a qual, se várias forem
as pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade, nem,
por consequência, com o regime previsto no art.512º, n.º1, do mesmo diploma
legal, de acordo com o qual, em se tratando de obrigação solidária passiva, cada
um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera.
Sendo, portanto, inteiramente previsível que, na eventual procedência do recurso
interposto pelo Ministério Público, não viesse a decisão ora recorrida a
subtrair a obrigação de pagamento dos impostos e legais acréscimos ao regime da
solidariedade passiva consagrado nos arts.497º, n.º1, e 512º, n.º1, ambos do
Código Civil, também a segunda das questões de inconstitucionalidade agora
pretendidas controverter não pode ter-se por atempadamente suscitada, o que,
conforme visto já, compromete insanavelmente a admissibilidade do presente
recurso.
Impõe-se, por isso, a prolação de decisão sumária ao abrigo do disposto no
art.78º-A, n.º1, da LTC e não, conforme em diversas circunstâncias porventura se
justificaria, a formulação, nos termos previstos no art.75º-A, n.º5, do referido
diploma, de um convite ao aperfeiçoamento em ordem a permitir a supressão do
défice de precisão evidenciado pelos termos escolhidos para a enunciação da
dimensão normativa que vimos de considerar.
[…]”
2. De tal decisão sumária vêm agora os recorrentes reclamar para a conferência,
o que fazem ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da LTC e sob invocação
dos argumentos que seguidamente se transcrevem:
« […]
1. Conforme consta do requerimento de interposição
de recurso junto a fis. dos autos, requereram os Recorrentes a apreciação da
(in)constitucionalidade da norma do art°. 11, no. 7, do RJIFNA, nos termos em
que esta foi aplicada pelo Tribunal da Relação do Porto, porquanto aquela
disposição legal, quando interpretada com o sentido de a suspensão da pena de
prisão dever ser condicionada ao pagamento dos impostos e acréscimos legais,
apesar de declarada a insolvência/falência do agente e a sua manifesta
insuficiência económica para o pagamento dessas quantias, viola os princípios
fundamentais da igualdade, adequação e proibição da “prisão por dividas”
estabelecidos nos art°s 13°., 18°. e 27°. da Constituição.
2. Requereram, igualmente, a apreciação da
inconstitucionalidade da norma do art°. 11 .°-7 do RJIFNA no sentido de que a
mesma não pode ser como condicionante da suspensão da pena de prisão quando está
em causa a condenação de mais do que um arguido/agente uma vez que não
estabelece qual a medida do pagamento que é imputada a cada um, sendo certo que
é inconstitucional, por violação do principio da proporcionalidade constante do
art°. 18°. da Constituição, quando interpretada no sentido de que cada um dos
agentes/arguidos fica obrigado ao pagamento da totalidade do imposto e
acréscimos legais, independentemente do pagamento que o ou os demais arguidos
efectue desses mesmos impostos com vista a igual suspensão da execução da pena.
3. Na fundamentação da decisão sumária de que ora
se reclama, considerou o Tribunal que “confrontando o vício de
inconstitucionalidade invocado perante o Tribunal da Relação do Porto com as
acusações de desconformidade constitucional pretendidas sujeitar à apreciação
deste Tribunal, incontornável parece ser a ausência da relação de identidade ou
equivalência normativa pressuposta pela exigência de suscitação atempada
colocada pelo art°. 72°, n.° 2, da LTC”, e isto porque, “se conforme então
expressamente declarado, a acusação de inconstitucionalidade formulada perante o
tribunal a quo se dirigia directamente à norma do art°. 11°, n°. 7, do RJIFNA,
quando literalmente interpretada e, de acordo com a enunciação constante do
requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, a
desconformidade à Lei Fundamental é imputada agora ao resultado da sua aplicação
em função do contexto situacional em que se alega ter ocorrido, a conclusão que
obviamente se segue é a de que as questões de inconstitucionalidade em um e
outro momento delineadas são tão dissemelhantes entre si quanto diverso seria um
hipotético juízo de inconstitucionalidade sobre a norma em presença (...)“
4. Afigura-se aos Recorrentes que tal dissemelhança
não ocorre, pois que a inconstitucionalidade cuja apreciação se pretende —
quanto à primeira das questões suscitadas — foi invocada, nos precisos e exactos
termos com que se requer agora seja conhecida, na resposta apresentada pelos
Recorrentes ao recurso interposto pelo Ministério Público da decisão proferida
em 1ª Instância.
5. Consta da mencionada resposta dos
Recorrentes:
(Porém,) mesmo a entender-se ser o comportamento dos Recorridos passível de
censura penal nos termos da douta decisão recorrida, verdade é que sempre seria
de todo intolerável que a suspensão da pena de prisão aplicável fosse
condicionada ao pagamento dos impostos que se entende estarem em dívida e demais
acréscimos legais.
Pode e deve o Tribunal suspender a execução da pena de prisão quando, não sendo
a mesma, em concreto, superior a três anos, verificar que a personalidade do
agente, as suas condições de vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e
as circunstâncias deste, permitem concluir que a simples censura do facto e a
constante ameaça de poder ter de cumprir a pena de prisão são suficientes para
assegurar as finalidades da punição.
Pode ainda considerar o julgador ser conveniente e adequado subordinar a
suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de deveres ou à
observância de regras de conduta ou fazer acompanhar a suspensão de regime de
prova (Cfr. art°. 50 do Código penal)
Ora estabelece o art°.1 l, n°7, do RJIFNA que “A suspensão é sempre condicionada
ao pagamento ao Estado, em prazo a fixar pelo juiz nos termos do n.º 8, do
imposto e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos
(...)“.
Na primeira versão do RJIFNA, dada pelo Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro,
dispunha o artigo 11°, n° 5 que: “Em caso de suspensão da execução da pena,
entre os deveres a impor ao condenado pode figurar o de pagar previamente a
dívida de imposto e acréscimos legais, dentro de certo prazo.”
A alteração introduzida, quanto a este aspecto, pelo Decreto-Lei 394/93, de 24
de Novembro, que formulou o já referido n° 7 do mesmo artigo 11° parece querer
determinar que o condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão
constitui condição sine qua non da suspensão daquela.
Porém, haverá que atender na aplicação daquele normativo, por um lado à
interpretação da vontade do legislador e, por outro, de modo essencial, às
circunstâncias do caso concreto sob pena de serem injusta e ilegalmente violados
princípios fundamentais da justiça penal e do ordenamento jurídico.
Com efeito, a suspensão da pena de prisão pressupõe um juízo de valor sobre a
personalidade e conduta do agente, do qual se conclui que a simples censura do
facto e a ameaça de pena de prisão são suficientes para assegurar as finalidades
da punição.
É justo exigir daquele que indevidamente se apropriou de quantias que deviam ser
entregues ao Estado que as devolva ainda que num certo período de tempo.
Porém, casos há em que, impor ao Arguido o pagamento de uma quantia avultada,
pode significar, à partida, que ele não poderá satisfazer esse pagamento e,
assim, não lhe restará qualquer alternativa à pena de prisão.
Nos presentes autos, encontra-se em causa a quantia de 282.498.166$00, quantia
esta que constitui um valor muitíssimo elevado, particularmente tendo em análise
a situação económica dos Recorridos. O Recorrido A. é pessoa se idade avançada,
não possui bens ou rendimentos que não os que decorrem da sua reforma.
Acresce referir que o Recorrido foi declarado falido por sentença proferida nos
autos de processo especial de falência que correram termos no 1. Juízo do
Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, sob o n°. 200/01.
O Recorrido A. não possui, atenta por um lado a sua avançada idade e, por outro,
o seu reconhecido estado de insolvência, quaisquer meios que lhe permitam
proceder ao pagamento da avultada quantia que se pretende condicione a suspensão
da pena.
Do mesmo modo, o Recorrido A. está desempregado e não possui quaisquer bens ou
outros rendimentos.
O Recorrido não dispõe, actualmente ou num futuro próximo, de meios que lhe
permitam efectuar o pagamento da quantia de 282.498.166$00.
Exigir tal obrigação significaria, no caso vertente, impor o cumprimento da pena
de prisão, porquanto antecipadamente é manifesto que os Recorridos não terão
possibilidade de cumprir tal obrigação, nem nos próximos cinco anos, nem nunca.
Se assim não se entender, estaremos a pôr em causa todo o regime da suspensão da
execução da pena de prisão efectiva, já que, desde logo, se antevê que os
Recorridos não serão capazes de cumprir a obrigação imposta por motivos
objectivos que não lhe são imputáveis e que, assim, apesar da ameaça de
cumprimento da prisão efectiva se revelar suficiente para o cumprimento das
necessidades de prevenção geral e especial, não lhes restará outra escolha se
não a de a cumprir.
(...)
Por outro lado, a ser feita uma interpretação literal da norma em apreço, a
mesma consubstancia, desde logo, violação do princípio consagrado nos artigos
27° e 28° da Constituição que proibe a prisão por dívidas.
(...)
Acresce ainda referir, que caso fosse condicionada a suspensão da execução da
pena de prisão ao pagamento da quantia de 282.498.166$00, seria manifestamente
violada a norma do artigo 13° da Constituição da Republica Portuguesa, uma vez
que estar-se-ia a tratar de forma desigual um particular economicamente débil e,
ademais, cumpridor de obrigações legais também elas exigíveis e tão ou mais
relevantes.
Os Recorridos seriam prejudicados e privados do seu direito à liberdade, única e
exclusivamente devido à sua situação económica. Permitir-se-ia tratar de modo
desigual os cidadãos, concedendo àquele que possui condições económicas o
direito a ver suspensa a pena, direito esse que seria negado ao cidadão que, não
usufruindo das mesmas capacidades, se encontrasse impossibilitado de proceder
àquele pagamento.
(...)
Entendem, pois os Recorridos que deve ser feita uma interpretação restritiva do
art°. 11°, n.° 7, do RJIFNA, que atenda ao espírito da lei, mas sem abstrair das
excepções que advêm do caso em concreto por forma a não criar a situação
jurídica e socialmente intolerável de aplicar um regime de suspensão da execução
de uma pena de prisão que mais não é do que uma ficção porque impõe obrigações
impossíveis.
6. É, pois, inequívoco que os Recorrentes
suscitaram a questão da inconstitucionalidade da norma defendendo a sua
interpretação restritiva, ou seja, uma interpretação que atendesse às condições
financeiras dos Recorrentes e, particularmente, ao estado de insolvência do
agente, interpretação essa que a não ser efectuada determinaria a violação dos
princípios fundamentais da igualdade, adequação e da proibição da prisão por
dividas.
7. Na referida resposta à motivação apresentada
pelo Ministério Público, aquela questão — a inconstitucionalidade da norma
quando interpretada e aplicada como condição de suspensão da execução da pena
apesar da manifesta insuficiência económica e insolvência do arguido — mostra-se
devidamente retratada, de tal modo que o Tribunal da Relação pronunciou-se sobre
ela.
8. Os Recorrentes invocaram a clara e inequívoca
inconstitucionalidade daquele preceito legal quando interpretado e aplicado nos
termos pretendidos pelo Ministério Público.
9. O que os Recorrentes não fizerem — e não
poderiam ter feito — foi identificar o sentido “inconstitucional” com que o
Tribunal teria interpretado a referida norma, pela simples razão de que não
existia, na decisão proferida pela 1ª Instância, qualquer interpretação cuja
inconstitucionalidade devesse ser sindicada: o Tribunal de 1ª Instância não
aplicou — e bem, no entendimento dos Recorrentes — a norma do art°. 11-7 do
RJFINA.
10. [...]
11. De igual modo, decidiu o Tribunal não tomar
conhecimento do recurso na parte em que se pretende seja apreciada a
inconstitucionalidade do art°. 11-7 do RJIFNA quando interpretado como
condicionante da suspensão da pena de prisão quando está em causa a condenação
de mais do que um arguido/agente uma vez que não esclarece qual a medida do
pagamento que é imputado a cada um, sendo certo que sempre seria
inconstitucional, por violação do principio da proporcionalidade constante do
art°. 18 da Constituição, a interpretação daquele preceito legal no sentido de
que cada um dos agentes/arguidos ficaria obrigado ao pagamento da totalidade da
dívida de imposto e acréscimos legais, independentemente do pagamento que o ou
os demais arguidos efectuasse desses mesmos impostos com vista a igual suspensão
da execução da pena.
12. A referida inconstitucionalidade não foi suscitada
perante a instância de recurso uma vez que, como salientado, Tribunal de 1ª
Instância não condicionou a suspensão da pena aplicada ao pagamento dos impostos
em causa.
13. Não era previsível que tal aplicação
inconstitucional da norma viesse a ocorrer pois que os Recorrentes, tendo já
invocado a sua inconstitucionalidade quando aplicada nos termos pretendidos pelo
Ministério Público, podiam legitimamente contar que o Tribunal da Relação não
efectuasse a aplicação daquele preceito legal.
14. O contrário, seria exigir dos Recorrentes não um
juízo de prognose mas de “adivinhação”, com o qual não se compadece a confiança,
segurança e estabilidade que se exige ao Julgador na aplicação da lei e na
defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos.
15. Por outro lado, dir-se-á que não se vislumbra como a
inconstitucionalidade arguida pelos Recorrentes — não poder ser a suspensão da
pena condicionada ao pagamento do imposto por, estando em causa a condenação de
mais do que um agente, não estabelecer a norma do art°. 11-7 do RJFINA qual a
medida do pagamento que é imputado a cada um — possa ser “ultrapassada” pela a
aplicação das regras da responsabilidade civil extra-contratual e do regime da
solidariedade passiva previsto nos artigos 497°. no. i e 5 12°. n°. 1 do Código
Civil.
16. O artigo 50°. do Código Penal, contendo a cláusula
geral das penas de substituição em sentido próprio, permite que a pena de prisão
concretamente aplicada seja, verificados determinados pressupostos, substituída
por outra pena, podendo o Julgador subordinar a pena de substituição ao
cumprimento dos deveres enumerados no artigo 51º.
17. A pena de substituição, mais concretamente a
suspensão da execução da pena de prisão, configura uma pena que é aplicada em
alternativa à pena principal.
18. A condição de suspensão da pena de prisão —
pagamento do imposto e acréscimos legais não consubstancia uma indemnização que
determine a aplicação ao agente do regime de solidariedade passiva.
19. A obrigação de pagamento do imposto surge como uma
condição da pena de substituição e, essencialmente, como efeito do próprio
crime, com este estritamente conexo e não como um ilícito civil.
20. A indemnização por factos ilícitos e, com esta a
aplicação do instituto da responsabilidade civil extra-contratual, apenas
poderia ter lugar se tivesse sido deduzido pedido de indemnização civil — que
não foi — e os Recorrentes condenados no seu pagamento.
21. Assim, é manifesto que a condenação de diversos
arguidos no pagamento da prestação tributária como condição de suspensão da pena
de prisão não se mostra regulamentada, pelo que sempre teria de admitir-se uma
lacuna da lei (n°. 7 do art. 110. do RJIFNA) que o Tribunal da Relação não
integrou; dessa ausência de regulamentação decorre a inconstitucionalidade da
norma quando interpretada no sentido de que cada um dos agentes/arguidos fica
obrigado ao pagamento da totalidade da dívida, independentemente do pagamento do
imposto que os demais efectuem com igual finalidade!
22. Por outro lado, não poderá aqui deixar de ter- se
presente o princípio da legalidade, previsto no artigo 29°. n°. 1 da
Constituição que, relevando sobretudo a nível da protecção dos direitos do
Homem, prescreve que não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei
prévia, escrita, estrita e certa: “nulium crimen sine lege, nuila poena sine
lege”.
23. O artigo 7º da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem estabelece, igualmente, o princípio “nulium crimen sine lege, nuila poena
sine lege”, reforçando a legalidade dos crimes e das penas.
24. Quer este princípio da legalidade significar que o
comportamento com relevância penal e a pena têm que resultar de forma clara,
precisa, acessível, escrita, previsível da lei, por forma a que a qualquer
cidadão seja perceptível, do texto legal, as consequências sancionatórias da sua
acção ou omissão.
25. Cita-se a propósito Figueiredo Dias, (in “Direito
Penal. Questões Fundamentais. A doutrina geral do crime” Ed. Polic., 1996, pág.
166):
26. “Esquecimentos, lacunas, deficiências de
regulamentação ou de redacção funcionam sempre contra o legislador e a favor da
liberdade — por mais evidente que possa parecer que teria sido intenção daquele
abranger na punibilidade também certos (outros) comportamentos”.
27. É notório que, no caso vertente, a lei é omissa
quanto à determinação do regime de pagamento do imposto quando sejam dois ou
mais os agentes, sendo que esse regime não pode obter-se por aplicação analógica
das regras da responsabilidade civil extra-contratual. [...]».
A esta reclamação respondeu o Ministério Público, aqui recorrido, pugnando pela
confirmação da decisão sumária.
II. Fundamentação.
Conforme resulta da argumentação desenvolvida na decisão sumária cujo teor acima
se transcreveu, aí se concluiu pelo não conhecimento do objecto do recurso de
constitucionalidade pretendido interpor com fundamento na ausência de suscitação
perante o tribunal recorrido em momento anterior ao do respectivo pronunciamento
de ambas as questões de inconstitucionalidade normativa pretendidas controverter
perante este Tribunal.
Com efeito, pressupondo o recurso fundado na alínea b) do n.º1 do art.70º da LTC
que a questão de inconstitucionalidade a debater pela via da fiscalização
concreta haja sido suscitada “durante o processo”, “de modo processualmente
adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de
este estar obrigado a dela conhecer” (artigo 72º, nº2 da LTC; sublinhado
acrescentado), entendeu-se que nenhuma das duas dimensões normativas extraídas
do artigo art.11º, n.º7, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não
Aduaneiras aprovado pelo Decreto‑Lei n.° 20‑A/90, na redacção introduzida pelo
Decreto-Lei n.º394/93, de 24.11, e enunciadas no requerimento de interposição do
recurso havia sido, podendo sê-lo, invocada perante o tribunal “a quo”.
Vejamos, pois, se à infirmação de tal entendimento algum
contributo prestam as objecções colocadas pelos agora reclamantes.
Num esforço argumentativo tendente a convencer de que, no
que concerne à primeira das questões suscitadas no requerimento de interposição
do recurso, a mesma “foi invocada, nos precisos e exactos termos com que se
requer agora seja conhecida, na resposta apresentada (…) ao recurso interposto
pelo Ministério Público da decisão proferida em primeira instância”, começam os
reclamantes por relembrar o teor de diversos excertos das alegações aí
produzidas, assim se propondo demonstrar que, reunidas e combinadas que sejam as
dispersas afirmações destacadas a sublinhado, com naturalidade logo emergirá um
conteúdo normativo idêntico ao acusado de ser inconstitucional no requerimento
de interposição do recurso.
Sucede, porém, que, conforme vem sendo reiteradamente afirmado por este
Tribunal, para além de vincular o recorrente à antecipação da questão de
inconstitucionalidade pretendida controverter, exigindo-lhe que a enuncie antes
de esgotado se mostrar o poder jurisdicional do juiz sobre a temática em que a
mesma se ache inscrita, o requisito da suscitação atempada considerado ausente
pela decisão reclamada coloca ainda exigências de tipo metodológico, impondo que
a enunciação, além de oportuna, seja feita de modo processualmente adequado, ou
seja, com clareza e inteligibilidade suficientes para permitir ao tribunal a quo
aperceber-se de que, sob pena de omissão de pronúncia, deverá incluir no elenco
das questões a resolver o preciso vício de constitucionalidade ulteriormente
suscitado perante o Tribunal Constitucional.
E se o cumprimento do ónus a que se refere o artigo 72º, nº 2, da LTC
impõe ao recorrente que, perante o tribunal recorrido, delimite a questão de
inconstitucionalidade ulteriormente caracterizada no requerimento de
interposição do recurso de constitucionalidade de forma clara e perceptível,
irremediavelmente comprometida parece ficar a possibilidade de, à semelhança do
que se supõe reivindicado pelos ora reclamantes, enxertar avulsamente nas
alegações produzidas perante o tribunal “a quo” as asserções necessárias à
caracterização do sentido interpretativo pretendido sindicar, cometendo ao
tribunal “ad quem” a tarefa de identificar, reunir e conjugar, de entre todas as
produzidas, as afirmações com potencialidade para fazer desapontar o critério
interpretativo reputado de inconstitucional.
Não é, portanto, rememorando determinadas passagens dispersamente
contidas nas alegações produzidas no âmbito da resposta ao recurso interposto
pelo Ministério Público da decisão proferida em primeira instância que os
recorrentes conseguirão abalar o entendimento expresso na decisão reclamada
segundo o qual a dimensão normativa enunciada perante este Tribunal não foi
antecipada perante o Tribunal da Relação do Porto, aí tendo sido arguida, e tão
somente, a inconstitucionalidade da norma do artigo art°11º, n.º 7, do RJIFNA,
quando literalmente interpretada.
Não obstante o que dito fica, um outro argumento contrário ao
entendimento seguido na decisão reclamada parece poder extrair-se ainda da
reclamação apresentada: o de que a questão da inconstitucionalidade da norma
“quando interpretada com o sentido de a pena de prisão cuja suspensão foi
decretada dever ser condicionada ao pagamento dos impostos e acréscimos legais,
apesar de declarada e demonstrada a insolvência/falência do agente e a sua
manifesta insuficiência económica para o pagamento dessas quantias” (ponto 6 do
requerimento de interposição do recurso) foi suscitada através da defesa da sua
interpretação restritiva - ou seja, de uma interpretação que atendesse às
condições financeiras dos Recorrentes e, particularmente, ao estado de
insolvência do agente – interpretação essa que, a não ser efectuada,
determinaria a violação dos princípios fundamentais da igualdade, adequação e da
proibição da prisão por dividas.
Uma vez mais, porém, carece de sentido o reparo feito pelos reclamantes.
Isto porque enunciar a dimensão que se pretende ver sindicada consiste sempre na
definição, pela positiva, do contexto situacional que, na perspectiva seguida,
tornará a sua aplicação inconstitucional e não, conforme facilmente se
concederá, na indicação da única interpretação tida por constitucionalmente
possível, para assim excluir todas as demais.
Com efeito, conforme vem constituindo jurisprudência unânime deste Tribunal,
“quando se pretenda questionar a constitucionalidade de uma dada interpretação
normativa, é indispensável que a parte identifique expressamente essa
interpretação ou dimensão normativa, em termos de o Tribunal, no caso de a vir a
julgar inconstitucional, a poder enunciar na decisão, de modo a que os
respectivos destinatários e os operadores do direito fiquem a saber que essa
norma não pode ser aplicada com tal sentido” (Lopes do Rego, O objecto idóneo
dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade: as interpretações
normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional, Jurisprudência
Constitucional, n.º3, Julho-Setembro 2004, pg.8).
Apesar do que assim reafirmado fica, consideram, porém, os reclamantes que a
única coisa «que não fizerem — e não poderiam ter feito — foi identificar o
sentido “inconstitucional” com que o Tribunal teria interpretado a referida
norma, pela simples razão de que não existia, na decisão proferida pela primeira
instância, qualquer interpretação cuja inconstitucionalidade devesse ser
sindicada: o Tribunal de primeira instância não aplicou (…) a norma do art°.
11-7 do RJFINA».
Esquecem, contudo, os reclamantes que, conforme se crê inequivocamente resultar
da argumentação desenvolvida na decisão reclamada, o ónus a que vincula o
requisito da suscitação prévia aí considerado inobservado é, não necessariamente
o da identificação do sentido, alegadamente inconstitucional, em que determinada
norma foi aplicada em primeira instância, mas sim, e decisivamente, o da
caracterização do sentido em que, sob pena de violação a Lei Fundamental, não
poderá vir a ser aplicada pelo tribunal de recurso.
Quanto à segunda das questões de inconstitucionalidade suscitadas no
requerimento de interposição do recurso.
Á decisão de não conhecimento do objecto do recurso com fundamento na não
antecipação perante o Tribunal recorrido da hipótese interpretativa pretendida
sindicar começam os reclamantes por opor o argumento segundo o qual, não
obstante haver considerado a decisão reclamada que, na eventual procedência do
recurso interposto pelo Ministério Público, era previsível que o acórdão
recorrido não viesse a subtrair a obrigação de pagamento dos impostos e legais
acréscimos ao regime da solidariedade passiva consagrado nos arts.497º, n.º1, e
512º, n.º1, ambos do Código Civil, o certo é que, por terem previamente invocado
a inconstitucionalidade da norma contida no art°11º, n.º 7, do RJIFNA, quando
aplicada nos termos pretendidos pelo Ministério Público, lhes era permitido
legitimamente contar que o Tribunal da Relação não viesse a efectuar a aplicação
daquele preceito legal.
Trata-se, contudo, de uma argumentação uma vez mais difícil de acompanhar.
Com efeito, sabido, como é, que, na senda do juízo formulado já pelo Acórdão
n.º256/2003, decidiu este Tribunal, através do seu Acórdão n.º 376/2003 (ambos
disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos), “não julgar
inconstitucional a norma do n.º 7 do artigo 11.º do Regime Jurídico das
Infracções Fiscais Não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 20‑A/90, de 15
de Janeiro, na redacção dada pelo Decreto‑Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, que
determina que a suspensão da execução da pena de prisão seja condicionada à
imposição do pagamento ao Estado, em prazo a fixar pelo juiz nos termos do
subsequente n.º 8, do imposto e acréscimos legais devidos pelo condenado”,
evidente parece ser que, ao invés de contar com a recusa da aplicação da
referida norma por via do acolhimento da tese da inconstitucionalidade da sua
literal interpretação, aos reclamantes fundadamente se impunha, perante
jurisprudência indicativa de orientação diversa da reivindicada, o dever de
antecipar a probabilidade de o tribunal recorrido vir a sujeitar à previsão do
art.11º, n.º7, do RJIFNA, a redefinição das consequências jurídicas do crime que
se julgou praticado em primeira instância e, nessa perspectiva, prevenir,
através da respectiva enunciação, todas as expectáveis dimensões normativas
pretendidas ulteriormente controverter perante este Tribunal.
Contestam, contudo, os reclamantes que, conforme sustentado na decisão
reclamada, previsível pudesse ser considerada qualquer solução que, em caso de
procedência do recurso interposto pelo Ministério Público, não viesse a subtrair
a obrigação de pagamento dos impostos e legais acréscimos do regime da
solidariedade passiva consagrado nos arts.497º, n.º1, e 512º, n.º1, ambos do
Código Civil.
Mais concretamente ainda, afirmam os reclamantes não vislumbrar «como a
inconstitucionalidade arguida (…) — não poder ser a suspensão da pena
condicionada ao pagamento do imposto por, estando em causa a condenação de mais
do que um agente, não estabelecer a norma do art°. 11-7 do RJFINA qual a medida
do pagamento que é imputado a cada um — possa ser “ultrapassada” pela a
aplicação das regras da responsabilidade civil extra-contratual e do regime da
solidariedade passiva previsto nos artigos 497°. no. i e 5 12°. n°. 1 do Código
Civil», sendo antes «manifesto que a condenação de diversos arguidos no
pagamento da prestação tributária como condição de suspensão da pena de prisão
não se mostra regulamentada, pelo que sempre teria de admitir-se uma lacuna da
lei (n°. 7 do art. 11º do RJIFNA) que o Tribunal da Relação não integrou».
Ora, conforme sabido é, encontra-se excluído do âmbito dos poderes de cognição
deste Tribunal o apuramento, de entre todas as conjecturáveis hipóteses, da
solução mais conforme ao direito infraconstitucional aplicável ao caso concreto.
Quer isto significar que, ao invés do que parece vir suposto, se não dedicou a
decisão reclamada à demonstração da validade do entendimento que, perante uma
pluralidade de condenados, consista em sujeitar à incidência do regime da
solidariedade passiva a obrigação de pagamento ao Estado do imposto e legais
acréscimos a que foi sujeita a suspensão da execução da pena de prisão aplicada
a título principal.
O que este Tribunal aí fez notar – e reafirmá-lo-á no presente Acórdão – foi que
a definição do estatuto obrigacional de cada um dos vinculados ao pagamento sob
possível convocação do regime da solidariedade passiva previsto nos arts.497º,
n.º1, e 512º, n.º1, ambos do Código Civil, se apresentava, no contexto do
ordenamento jurídico, com um grau de previsibilidade suficiente para vincular
razoavelmente os recorrentes ao ónus da sua antecipação. E isto sucede, senão
por efeito bastante dos elementos legais e doutrinários percorridos na decisão
reclamada, ao menos por certo ser que, respondendo criminalmente cada um dos
obrigados pela totalidade do imposto em falta, a definição do perfil civil dessa
obrigação não poderá razoavelmente prescindir da convocação do regime segundo o
qual cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos
libera.
Da argumentação desenvolvida pelos reclamantes nada resulta, portanto, capaz de
abalar o entendimento expresso na decisão sob censura.
III. Decisão.
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do
recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça individualmente devida em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 26 de Setembro de 2006
Rui Manuel Moura Ramos
Maria João Antunes
Artur Maurício