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Processo n.º 994/2013
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 662/2013:
«I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A., Lda e recorrido o Instituto da Vinha e do Vinho, I.P., ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (de ora em diante, LTC), foi interposto recurso, em 02 de setembro de 2013 (fls. 411 a 413) de acórdão proferido pela Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em 26 de junho de 2013 (fls. 388 a 402), para que seja apreciada a constitucionalidade da norma extraída do § 3 do artigo 267º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), quando interpretada no sentido de implicar “a negação da competência exclusiva atribuída ao Tribunal de Justiça da União Europeia para julgar questões prejudiciais relativas à interpretação de normas do direito comunitário, quando as mesmas são suscitadas em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno” (fls. 156).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – Fundamentação
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo”, com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que cumpre apreciar o preenchimento de todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, n.º 2, da LTC.
Sempre que o Relator constate que os mesmos não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Tendo sido interposto um recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, forçoso seria que a recorrente tivesse suscitado, de modo processualmente adequado, a questão que pretende ver agora apreciada; ou seja, a questão da inconstitucionalidade da norma extraída do artigo 267º, § 3, do TFUE. É isso que decorre, expressamente, do n.º 2 do artigo 72º da LTC.
Ora, a recorrente não o fez, perante o tribunal recorrido, como, aliás, a própria reconhece no requerimento de interposição de recurso. Contudo, mais alega que a decisão de recusa de envio de questão prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia – tomada, em primeiro lugar, pelo acórdão proferido em 30 de abril de 2013, que conheceu quanto ao fundo da causa (fls. 338 a 353), e posteriormente confirmado pelo acórdão ora recorrido – constituiu uma verdadeira decisão-surpresa, não podendo ser, por si, objetivamente antecipada:
«O não reenvio prejudicial (…) só se colocou, pela primeira vez, com a prolação do Acórdão recorrido e respetiva interpretação/aplicação que foi feita do referido artigo 267.º do TFUE.
Uma tal interpretação, insista-se, por contrariar frontalmente o disposto nos n.ºs 1 a 4 do artigo 8.º da CRP, bem como o princípio do juiz legal/natural, consagrado nos artigos 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, da CRP, era tudo menos expectável.
E daí que se deva tomar este segmento decisório do Supremo Tribunal Administrativo como uma verdadeira e própria decisão surpresa, motivo pelo qual apenas foi invocada tal inconstitucionalidade no requerimento de arguição de nulidade do Acórdão recorrido.» (fls. 412)
Sucede, porém, que a decisão recorrida não se afigura – à luz de critérios objetivos -, de maneira nenhuma, como surpreendente ou insólita. Como a decisão recorrida bem demonstra, a interpretação por si acolhida corresponde a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo anterior à dedução de arguição deduzida pela recorrente em 16 de maio de 2013 (fls. 359). Com efeito, a própria decisão recorrida invoca a favor do seu entendimento – ainda que a mero título exemplificativo – o acórdão proferido em 21 de novembro de 2012, no âmbito do Proc. n.º 0222/12. Além disso, a interpretação acolhida pela decisão recorrida pode ainda ser justificada pelo próprio entendimento expresso no (também citado) Acórdão “Cilfit”, Proc. n.º C-283/81, proferido pelo Tribunal de Justiça em 06 de outubro de 1982.
Assim sendo, face à pré-existência de jurisprudência consentânea com a decisão de recusa do reenvio jurisdicional, cabia à recorrente ter antecipado a possibilidade de aplicação dessa interpretação normativa, quer no momento em que, deduzindo alegações de recurso perante o Supremo Tribunal Administrativo, solicitou o envio de questão prejudicial, quer quando argui a nulidade do primeiro dos acórdãos proferidos pelo referido tribunal. Ora, nesta última sede, a recorrente limitou-se a invocar o seguinte:
«Ao não proceder ao reenvio oportunamente requerido pela A., verifica-se uma inconstitucionalidade decorrente da omissão do dever de reenvio prevista no parágrafo 3 do artigo 267.º do Tratado de Funcionamento [da] União Europeia.
Com efeito, verifica-se uma violação do artigo 8.º da Constituição da República, assim como do princípio do juiz legal/natural, consagrado nos artigos 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, da Lei Fundamental, uma vez que se negou a competência exclusiva atribuída ao Tribunal de Justiça da União Europeia para julgar questões prejudiciais relativas à interpretação de normas do direito comunitário, quando as mesmas são suscitadas em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões são insuceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno.» (fls. 373)
Daqui decorre que a recorrente, apesar de ter tido oportunidade para o efeito, nunca colocou o tribunal recorrido perante uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa e, em especial, relativa ao artigo 267º, § 3, do TFUE, tendo-se limitado a colocar em crise a própria decisão jurisdicional cuja nulidade arguiu. Na verdade, a recorrente apenas arguiu ser inconstitucional a concreta decisão jurisdicional de não envio de questão prejudicial, mas nunca reputou de inconstitucional a própria norma jurídica extraída daquela convenção internacional. Como tal, fica por demais demonstrado que não só a recorrente podia ter antecipado a possibilidade de aplicação daquela interpretação normativa como, tendo tido oportunidade para o efeito, optou por apenas atacar o ato jurisdicional alvo de arguição de nulidade e não a referida interpretação normativa.
Em suma, resta apenas concluir pela impossibilidade de conhecimento do objeto do presente recurso.
III – Decisão
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, decide-se não conhecer do objeto do recurso.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.»
2. Inconformada com a decisão proferida, a recorrente veio deduzir a seguinte reclamação:
«No modesto entendimento da Recorrente, a questão de inconstitucionalidade colocou-se nos presentes autos em virtude da interpretação que foi feita pelo Supremo Tribunal Administrativo ('STA') no seu aresto, sobre a necessidade de pronúncia do Tribunal de Justiça da União Europeia ('TJUE') quanto ao âmbito da obrigação de notificação prévia prevista no artigo 108.°, n.º 3, do Tratado de Funcionamento da União Europeia ('TFUE').
Relembre-se que, nos termos do disposto no artigo 267.° do TFUE, o reenvio prejudicial só é obrigatório para o Tribunal superior (ou seja, para o Tribunal cuja decisão não é suscetível de recurso judicial previsto no direito interno).
Logo, é perante o respetivo não cumprimento do dever de reenvio, através de uma interpretação/aplicação do disposto no artigo 267.° do TFUE manifestamente inconstitucional, que vem invocada pela Recorrente semelhante inconstitucionalidade,
Que, pela sua própria natureza - por contrariar frontalmente o princípio do juiz legal/natural consagrado nos artigos 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, da Constituição e o disposto nos nºs 1 a 4 do artigo 8.º da Constituição -, era tudo menos expectável, não sendo, na verdade, exigível à Recorrente que levantasse em momento anterior essa questão de inconstitucionalidade.
De todo o modo,
A verdade é que a inconstitucionalidade da interpretação em causa foi suscitada na peça processual de arguição de nulidades do Acórdão proferido pelo STA, a fls .. dos autos,
Requerimento que pela sua própria natureza - relembre-se, arguição de nulidade do Acórdão proferido pela última instância -, só aquele Tribunal dispunha ainda de poder jurisdicional para apreciar e decidir.
Com efeito, ainda era jurisdicionalmente possível ao Tribunal, após a prolação da decisão final, pronunciar-se sobre as nulidades arguidas e, consequentemente, sobre a inconstitucionalidade apontada in casu - aliás, como o STA veio a fazer nos autos, com a prolação do Acórdão de 26 de junho de 2013.
Se, na verdade, o poder jurisdicional do STA quanto a essa questão da inconstitucionalidade da interpretação/aplicação que fez do disposto no artigo 267.º, n.º 3, do TFUE, se tivesse esgotado com a prolação da decisão final, não poderia o mesmo Tribunal ter-se sobre a mesma pronunciado,
O que - repita-se - não sucedeu no caso, tendo o STA apreciado, com efeito, a inconstitucionalidade invocada, reexaminando essa questão e fundamentado a sua interpretação do disposto no artigo 267.°, n.º 3, do TFUE,
Interpretação cuja inconstitucionalidade foi, assim, tempestivamente, suscitada durante o processo pela Recorrente e que motivou, ainda, um reexame dessa questão e uma apreciação por parte do Tribunal Superior que a havia consagrado.
Caso o STA não tivesse sido confrontado com uma questão de inconstitucionalidade normativa, em especial, relativa ao artigo 267.º, n.º 3, do TFUE, nunca sobre a mesma se teria debruçado como o fez no Acórdão proferido em 26 de junho de 2013.
Razão pela qual se encontra cumprido, in casu, no modesto entendimento da Recorrente, o critério de suscitação tempestiva e processualmente adequada da questão de inconstitucionalidade, tendo o Tribunal recorrido sido, na verdade, confrontado com uma verdadeira questão de inconstitucionalidade.
Note-se, por fim, que o alcance da obrigação de notificação prévia previsto no atual artigo 108.°, n.º 3, do TFUE, e não abrangência da medida parafiscal em causa nos autos por essa obrigação, vem a ser o parâmetro da decisão proferida pelo STA nos autos,
Não tendo esse Tribunal, no entanto, procedido à interpretação correta da referida obrigação (inclusivamente perante a decisão da Comissão de iniciar um procedimento de averiguações de auxílio estatal ilegal), nem permitindo que a instância autorizada em último grau a proceder à interpretação do direito da União Europeia o fizesse.
Desta forma, no caso em apreço, é manifesto que a interpretação efetuada do artigo 267.º, n.º 3, do TFUE no sentido de autorizar o Tribunal recorrido a denegar o reenvio prejudicial pela última instância (reenvio tendente a obter a correta interpretação do alcance da obrigação de notificação prévia prevista no n.º 3 do artigo 108.° do TFUE em face da medida parafiscal em causa nos autos), viola o princípio constitucional do juiz natural ou legal,
Na medida em que o juiz comunitário vem a ser o intérprete último do artigo 108.° do TFUE, pois só ele pode garantir a aplicação uniforme do direito da União Europeia, que é acolhido diretamente no nosso ordenamento por força do disposto nos n.ºs 1 a 4 do artigo 8.º da Constituição.
Razão pela qual, no modesto entendimento da Recorrente, a questão de inconstitucionalidade da norma de que o Tribunal a quo fez aplicação nos autos, decorrente da violação do princípio constitucional do juiz legal ou natural, entra nos poderes de cognição deste Alto Tribunal.
Termos em que a presente reclamação deverá ser deferida e, em consequência, ser apreciada pelo Tribunal Constitucional a questão da inconstitucionalidade do disposto no artigo 267.º do TFUE, na interpretação que lhe foi dada pelo Supremo Tribunal Administrativo.» (fls. 432 a 436)
3. Notificado para o efeito, o recorrido Instituto do Vinho e da Vinha deixou esgotar o prazo, sem que tenha vindo aos autos responder à reclamação deduzida.
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Pelo modo como configurou a reclamação ora em apreço, a reclamante limitou-se a confirmar o acerto da decisão reclamada, já que contribuiu para demonstrar que o objeto do recurso por si fixado não incide num específico critério de decisão normativa que tenha sido aplicado pelo tribunal recorrido, mas antes sobre o próprio ato jurisdicional que determinou o não envio de questão prejudicial, nos termos do artigo 267º do TFUE. Conforme já demonstrou a decisão ora reclamada, este Tribunal só pode conhecer da constitucionalidade de normas jurídicas (ou de interpretações normativas delas extraídas), pelo que se impõe a confirmação da decisão reclamada e o consequente indeferimento da reclamação.
III - DECISÃO
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 12 de fevereiro de 2014. – Ana Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro