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Processo nº 690/06
1ª Secção
Relatora: Conselheiro Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é
recorrente A. e são recorridos o Ministério Público e B., foi interposto recurso
para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1,
alíneas b) e g), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC).
2. Em 27 de Julho de 2006, foi proferida decisão sumária, pela qual se entendeu
não tomar conhecimento do objecto do recurso (artigo 78º-A da LTC), com os
seguintes fundamentos:
«Convidado a prestar as indicações constantes dos nºs 1 e 2 do artigo 75º-A da
LTC, o recorrente indicou, entre o mais, que recorria ao abrigo das alíneas b) e
g) do nº 1 do artigo 70º desta Lei.
1. Tratando-se de recurso previsto na alínea b), o recorrente deve indicar, de
acordo com o disposto nos nºs 1 e 2 daquele artigo da LTC, a norma cuja
inconstitucionalidade pretende que o Tribunal aprecie, a norma ou princípio
constitucional que considera violado, bem como a peça processual em que suscitou
a questão da inconstitucionalidade.
Nos presentes autos, o recorrente continua a não indicar as normas cuja
inconstitucionalidade pretende seja apreciada. Este Tribunal tem decidido que,
“quando se pretenda questionar a constitucionalidade de uma dada interpretação
normativa, é indispensável que a parte identifique expressamente essa
interpretação ou dimensão normativa, em termos de o Tribunal, no caso de a vir a
julgar inconstitucional, a poder enunciar na decisão, de modo a que os
respectivos destinatários e os operadores do direito em geral fiquem a saber que
essa norma não pode ser aplicada com tal sentido” (Lopes do Rego, “O objecto
idóneo dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade: as
interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional”,
Jurisprudência Constitucional, nº 3, 2004, p. 8).
Como relativamente aos artigos mencionados na resposta ao convite que lhe foi
dirigido – 40º e 71º do Código Penal e 410º, nº 2, e 412º do Código de Processo
Penal – não há qualquer identificação da interpretação feita pela decisão
recorrida, não pode dar-se como satisfeito um dos requisitos do nº 1 do artigo
75º-A da LTC, o que justifica a prolação da presente decisão (artigo 78-A da
LTC).
2. Tratando-se de recurso previsto na alínea g), o recorrente deve indicar, de
acordo com o disposto nos nºs 1 e 3 do artigo 75º-A da LTC, a norma cuja
inconstitucionalidade pretende que o Tribunal aprecie e identificar a decisão do
Tribunal Constitucional (…) que, com anterioridade, julgou inconstitucional a
norma aplicada pela decisão recorrida.
Ainda que se entenda que o recorrente questionou a constitucionalidade do artigo
412º do Código de Processo Penal, ao abrigo desta alínea g) do nº 1 do artigo
70º, indicando a decisão do Tribunal Constitucional que, com anterioridade, o
julgou inconstitucional, não pode dar-se como satisfeito o outro requisito
mencionado, pelas razões que já foram expostas – o recorrente não identificou a
norma aplicada pelo tribunal recorrido – o que justifica, também nesta parte, a
prolação da presente decisão (artigo 78º-A da LTC). O recorrente limita-se, até,
a referir o artigo 412º, quando se trata de disposição legal da qual se podem
extrair conteúdos normativos distintos».
3. Desta decisão reclamou o recorrente, ao abrigo do consagrado no nº 3 do
artigo 78º-A da LTC, com os seguintes fundamentos:
«1.º
Considerou a Exma. Dra. Juiz Conselheira Relatora que não deveria conhecer do
objecto do recurso porquanto:
- “... Tratando-se de recurso previsto na alínea b), o recorrente deve indicar,
de acordo com o disposto no nºs 1 e 2 daquele artigo da LTC, a norma cuja
inconstitucionalidade pretende que o Tribunal aprecie, a norma ou princípio
constitucional que considera violado, bem como a peça processual em que suscitou
a questão da inconstitucionalidade”.
2.°
E continua dizendo a tal propósito, o mesmo é dizer a propósito da alínea b), do
n.º 1 do art. 70.º da LTC que “… o recorrente continua a não indicar as normas
cuja inconstitucionalidade pretende seja apreciada…”.
3.º
Refere, ainda, desta feita a propósito da alínea g) do artigo atrás referido que
o recorrente apenas deu cumprimento a um dos requisitos exigidos por tal
disposição normativa, não tendo contudo identificado a norma aplicada pelo
tribunal recorrido.
4.º
O ora reclamante não se conforma com a decisão de não admissão do recurso pelas
razões que abaixo se explicitarão.
5.º
Comecemos pelo que à alínea b) do art. 70.° respeita pois, desde logo, entende o
Recorrente que resulta claro da conjunção do que alegou em sede de recurso e das
indicações que fez no seu requerimento datado 07/08/2006 que:
6.°
A norma cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada é a constante do
artigo 410.°, n.º 2 do C.P. Penal, porque permite que a interpretação feita pelo
Supremo Tribunal de Justiça, conclua que embora a violação do Princípio in dubio
pro reo possa ser objecto de revista, “in casu” este não foi violado, por tal
não resultar nem do texto da decisão recorrida, de per si ou conjugado com as
regras da experiência comum, não obstante constar expressamente do Acórdão o
seguinte:
7.º
“... pelo menos a testemunha Maria da Assunção viu-o chegar a casa, só o viu de
costas e a dizer à mulher que se ia entregar à Guarda que tinha matado um
homem”.
8.°
Quanto ao facto de esta ter visto ou não o arguido chegar a casa com sangue, “A
testemunha não o disse, nem depois de o Tribunal lhe ter feito sentir o dever
legal de dizer a verdade. Ficou o Tribunal sem saber se a testemunha viu e não
quis dizer ou se não viu, mas tinha sido previamente pressionada para o dizer. E
o mesmo, embora de modo menos exuberante, com o seu marido, a testemunha C..”
9.º
Ao contrário do que diz o Tribunal Constitucional há identificação da
interpretação feita pela decisão recorrida do n.º 2 do art. 410 do C.P.P..
10.º
O arguido refere tal identificação nos artigos 5.° a 13.° das motivações e
conclusões I e II do recurso interposto para este Tribunal, bem como no
requerimento em que deu cumprimento às indicações constantes dos n°s 1 e 2 do
art. 75-A da LTC, nomeadamente nos artigos 2.° a 6.°.
11.º
O recorrente menciona que se trata de uma interpretação redutora feita pela
decisão recorrida relativamente ao n.° 2 do art. 410 do C.P.P., pois não pode
este concordar com o facto de o Tribunal considerar tratar-se a questão do
princípio in dubio pro reo tão só de matéria de facto pois, o que arguido vem
defendendo, quer já no Tribunal da Relação do Porto, quer no S.T.J. é que a
aplicação deste princípio resulta, inequivocamente, de uma dúvida expressa na
fundamentação da decisão do Tribunal Colectivo, mas não valorada na decisão
final: foi ou não o arguido ferido antes da morte da vítima???
12.°
O arguido não põe em causa a matéria de facto, mas fala somente do que se extrai
do texto do Acórdão quando se diz na motivação que: “Quanto ao facto de esta ter
visto ou não o arguido chegar a casa cm sangue” “Ficou o Tribunal sem saber se a
testemunha viu e não quis dizer ou se não viu, mas tinha sido previamente
pressionada para o dizer. E o mesmo, embora de modo menos exuberante, com o seu
marido, a testemunha C..”
13.°
Assim, resulta claro que a interpretação constitucionalmente correcta do n.°2 do
artigo 410.° do C.P.P, deveria ter levado à aplicação pelo menos das alíneas b)
e c), e não como aconteceu no Acórdão recorrido que fez uma interpretação
restritiva deste, pois apesar do referenciado no artigo anterior, a decisão foi
sem mais condenatória, o que demonstra uma contradição insanável entre a
fundamentação e a decisão e, ainda, um erro notório na apreciação da prova.
14.°
É de grande gravidade o facto do arguido ser condenado por homicídio, simples
que seja, quando persistem dúvidas na motivação, descritas no artigo anterior
acerca de uma legitima defesa, ou um eventual excesso, e em contradição com essa
dúvida a decisão final ter considerado não provada a legitima defesa, fazendo
tábua rasa não só do acima estipulado, mas também do sangue que se encontrava na
viatura do arguido, resultante dos seus ferimentos, e do facto do arguido ter
recebido tratamento hospitalar.
15.°
Será mais correcto na dúvida considerar não provada a legitima defesa? Será mais
correcto na dúvida considerar que o arguido se agrediu a si próprio, apesar dos
evidentes sinais de arrependimento, como o facto do arguido de imediato se ter
dirigido a casa abalado, dizendo à sua mulher que se iria entregar (vidé
motivação da decisão do Tribunal Colectivo)?
16.°
Não nos pudemos esquecer que o princípio in dubio pro reo que decorre da
Constituição e está estreitamente ligado com o princípio da presunção da
inocência, assentando na ideia de que a impunidade de um culpado é mais
tolerável do que a condenação de um inocente, conforme afirma Cavaleiro de
Ferreira.
17.º
Assim, decorre do in dubio pro reo que todos os factos relevantes para a decisão
(quer respeitantes ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova
recolhida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal, também não
possam considerar-se como provados (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal,
1, reimpressão, Coimbra, 1984, pág. 213).
18.°
Por isso, podia e devia o Supremo Tribunal aplicar o princípio in dubio pro reo
uma vez que da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo ficou na dúvida em
relação a certos factos e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido,
(assim se diz no próprio Acórdão daquele Tribunal referido no Acórdão
recorrido).
19.°
Efectivamente, não se trata, nem nunca se tratou, como refere o Acórdão do
S.T.J., de o recorrente pretender que este Tribunal cuidasse de saber se o
Tribunal Colectivo deveria ter ficado em estado de dúvida pois, que no caso em
concreto como já supra se explanou, de facto este Tribunal ficou.
20.°
E ficou a propósito da agressão ao arguido não obstante um passado incólume
deste, 70 anos de vida sem mácula e, ainda, como reconhece o Tribunal atrás
referido, ser até a respectiva versão relativa à sua posição e à da vitima
adequada ao teor do relatório de autópsia. na parte em que este se refere ao
trajecto da bala.
21.°
E perante a igualdade de circunstâncias entre as versões a tal propósito do
arguido e das testemunhas (sobrinho e amigo da vitima), em face do que se vem
explanando é fácil descobrir por qual o tribunal optou.
22.°
Até em igualdade o Tribunal Colectivo uma mais vez mais decidiu contra o Réu!!!!
23.°
No tocante à parte da decisão relativa ao art. 70.°, n.° 1, alínea g) da LTC,
entendeu a Ex.ma Sra. Dra. Juiz Conselheira Relatora ter o Recorrente se
limitado a referir o art. 412.° do C. P. Penal, no que há identificação da norma
aplicada pelo Tribunal recorrido diz respeito;
24.°
Por isso e por se tratar de disposição legal da qual se podem extrair conteúdos
normativos distintos, acabou por decidir não ter o Recorrente cumprido um dos
requisitos exigidos e que foi não ter indicado a norma aplicada.
25.°
Ora, salvo o devido respeito por melhor opinião, a técnica jurídica usada pelo
Recorrente foi igual à constante do ponto III da Decisão que agora se reclama
pois, do art.78.°-A da LTC aí referido também se pode extrair conteúdos
normativos diversos.
26.°
No entanto, o Recorrente compreende tal facto dado ser consequência do exposto
no ponto II da Decisão em questão.
27.°
De igual forma deveria ter procedido a M. Juiz Conselheira Relatora em face do
alegado pelo Recorrente nomeadamente no art. 8.° a 11.º do requerimento datado
de 07/08/2006, assim como já o havia efectuado em sede do requerimento de
Correcção / Aclaração do Acórdão.
28.°
Até porque, como refere o aqui Reclamante indicou, como devia, decisão deste
Tribunal que, com anterioridade, julgou o art. 412.º do C. P. Penal
inconstitucional.
29.º
E aquelas que indicou referiam-se, sem margem para dúvida, a decisões deste
Tribunal que vêm repetidamente afirmando, a propósito do art. 412, n.° 2, do C.
P. Penal, que a deficiência na formulação das conclusões, seja por prolixidade,
seja por omissão ou por outro motivo, não pode levar à rejeição liminar do
recurso, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade de suprir as
deficiências.
30.°
Daí ter este Tribunal ter declarado com força obrigatória geral a
inconstitucionalidade, por violação do art. 32, n.° 1 da CRP, da disposição
legal referida no artigo anterior da presente reclamação, quando interpretada no
sentido de ser possível a rejeição de um recurso, quando faltassem as conclusões
da motivação ou fossem estas em grande número ou, ainda, quando o Recorrente não
desse cumprimento aos respectivos ónus legais, sem prévio convite ao
aperfeiçoamento das mesmas.
31.°
É certo que o recurso do ora Reclamante não foi rejeitado, mas afirmando o STJ
que as conclusões apresentadas pelo Recorrente são “numerosas e prolixas”,
deveria ter convidado o mesmo a suprir tais deficiências, no caso,
sintetizá-las, e não de “per si” fazê-lo, retirando de trinta e três (33)
conclusões por aquele apresentadas, apenas quatro(4).
32.°
Há ainda que ter em conta em atenção que a não admissão do recurso afecta o
direito Constitucional definido artigo 32.° n.°1 da Lei Fundamental que consagra
o direito de defesa do arguido.
33.º
Assim, no seu entender, a limitação deste direito ou dos meios de defesa, porque
constitucionalmente consagrado tem de ser inequívoca, rigorosa e não deixar
qualquer margem para dúvidas.
34.º
Até porque o arguido, conforme jurisprudência uniforme no sentido da
exigibilidade de vários pressupostos de admissibilidade do recurso, deu
cumprimento a todos, destacando-se entre eles, a suscitação da questão da
constitucionalidade do recurso durante o processo, a aplicação da norma
impugnada como o critério da decisão recorrida e a prévia exaustão dos recursos
ordinários previstos no nosso ordenamento jurídico».
4. Notificado da presente reclamação, o representante do Ministério Público
junto deste Tribunal respondeu nos termos seguintes:
«1º
A presente reclamação é manifestamente infundada, apenas podendo explicar-se
pela circunstância de o reclamante não ter na devida conta a natureza normativa
do objecto dos recursos de fiscalização concreta e os ónus que, em consequência,
a lei do processo coloca justificadamente a seu cargo.
2°
Sendo evidente que a dificuldade por ele sentida em identificar a precisa
dimensão normativa cuja constitucionalidade pretendera questionar radica – como
decorre dos termos da reclamação ora apresentada – em pretender, afinal,
controverter a concreta decisão e não qualquer critério normativo aplicado no
acórdão condenatório».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. A decisão de não conhecimento do objecto do recurso interposto ao abrigo da
alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC assentou na não satisfação de um dos
requisitos do nº 1 do artigo 75º-A desta Lei, já que o recorrente não
identificou a interpretação que o tribunal recorrido fez dos artigos 40º e 71º
do Código Penal e 410º, nº 2, e 412º do Código de Processo Penal.
Relativamente ao artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, o reclamante
sustenta que há identificação da interpretação feita pela decisão recorrida “nos
artigos 5º a 13º das motivações e conclusões do recurso interposto para este
Tribunal, bem como no requerimento em que deu cumprimento às indicações
constantes dos nºs 1 e 2 do art. 75-A da LTC, nomeadamente nos artigos 2º a 6º”.
Confrontadas as peças processuais e, especificamente, as partes destacadas pelo
reclamante, é de reafirmar, porém, que o recorrente se limitou a referir a
interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça fez do nº 2 do artigo 410º do
Código de Processo Penal, sem identificar essa mesma interpretação, sendo certo
que, quando “se suscita a inconstitucionalidade de uma determinada interpretação
de certa (ou de certas) normas jurídicas, necessário é que se identifique essa
interpretação em termos de o Tribunal, no caso de a vir a julgar
inconstitucional, a poder enunciar na decisão, de modo a que os destinatários
delas e os operadores do direito em geral fiquem a saber que essa (ou essas)
normas não podem ser aplicadas com um tal sentido” (Acórdão do Tribunal
Constitucional nº 106/99).
A não identificação da interpretação cuja constitucionalidade é questionada
resulta, designadamente, das seguintes passagens:
“A interpretação redutora que o STJ faz da norma prevista no art. 410º, nº 2 do
C. P. Penal é inconstitucional por violação de tais princípios”;
“Verifica-se ‘in casu’ a inconstitucionalidade do artigo 410º, nº 2, do CPP, na
interpretação que lhe é dada pelo Acórdão recorrido, por violação ao princípio
‘in dubio pro reo’, princípio este em estreita ligação com o princípio da
presunção da inocência previsto no art. 32º, nº 2, da Constituição da República
Portuguesa”;
“O Arguido pretende ver apreciada e declarada a inconstitucionalidade (…) do
art. 410º, nº 2, do C. P. Penal na interpretação que lhe foi dada por este
Tribunal recorrido, a qual viola e contende com o preceito constitucional
plasmado no art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, ‘princípio
da presunção da inocência’ com estreita ligação ao ‘princípio in dubio pro
reo’”.
Com efeito, para além do acabado de transcrever, o recorrente explicita apenas
as razões da sua discordância quanto à decisão de não aplicação do princípio in
dubio pro reo:
“7.º
Se bem que o Acórdão do STJ aqui em causa admita que a violação de tal princípio
possa ser objecto de revista acaba por decidir que o mesmo não foi violado,
entendendo não ser bastante para tal o tribunal ficar em dúvida “in casu”, se
testemunhas vizinhas do arguido o viram chegar a casa com sangue antes deste se
entregar à G.N.R.
8.°
De facto, a questão que se levantava era a de saber se o arguido havia ou não
sido agredido pela vítima, no local da ocorrência dos factos, como sempre
afirmou, daí que a testemunha Maria Assunção ao afirmar tê-lo visto chegar a
casa e ouvir dizê-lo à mulher que se ia entregar à G.N.R., não podia, como não
pode ser indiferente ao Tribunal e este não relevar o facto de saber se uma
testemunha viu ou não em tal ocasião sangue no arguido.
9.º
Para uma decisão justa, tanto mais que o que está em causa é a aplicação de uma
pena privativa da liberdade, repete-se, não é, nem pode ser, indiferente o
Tribunal ficar sem saber se a mesma de facto viu e não quis dizer.
10.º
Pois, caso tal tivesse acontecido tal facto não podia como é óbvio, deixar de
relevar quanto à versão dos factos apresentada pelo arguido, que foi sempre a
mesma desde o início do processo”.
Procedimento que é reiterado na presente reclamação, quando afirma que a norma
cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada é a constante do artigo 410º,
nº 2, do C. P. Penal, porque permite que a interpretação feita pelo Supremo
Tribunal de Justiça conclua que embora a violação do princípio in dubio pro reo
possa ser objecto de revista, “in casu” este não foi violado, explicitando
depois, por referência à prova produzida, as razões da sua discordância quanto à
não aplicação deste princípio. De resto, conclui mesmo que o Supremo Tribunal
podia e devia aplicar o princípio in dubio pro reo uma vez que da decisão
recorrida resulta que o Tribunal a quo ficou na dúvida em relação a certos
factos e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido.
No caso concreto, “é, aliás, perceptível que (…) – embora sob a capa formal da
invocação da inconstitucionalidade de certo preceito legal tal como aplicado
pela decisão recorrida –, o que realmente se pretende controverter é a concreta
e casuística valoração pelo julgador das múltiplas e específicas circunstâncias
do caso sub juditio, censurando (…) a adequação e correcção do juízo de
valoração das provas e de fixação da matéria de facto provada na sentença”
(Lopes do Rego, “O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta da
constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal
Constitucional”, Jurisprudência Constitucional, nº 3, 2004, p. 8 e s.).
Justifica-se, assim, nesta parte, confirmar a decisão reclamada.
2. A decisão de não conhecimento do objecto do recurso interposto ao abrigo da
alínea g) do nº 1 do artigo 70º da LTC assentou também na não satisfação de um
dos requisitos do nº 1 do artigo 75º-A desta Lei, uma vez que o recorrente não
indicou a norma cuja inconstitucionalidade pretende que este Tribunal aprecie.
Com efeito, ainda que, formalmente, se possa dar como verificado o requisito da
identificação da decisão do Tribunal Constitucional que, com anterioridade,
julgou inconstitucional a norma aplicada pela decisão recorrida (artigo 75º-A,
nº 3, da LTC), a passagem que, de seguida, se transcreve não permite identificar
a norma cuja constitucionalidade se questiona:
“(…) continua o arguido a defender que os Acórdãos proferidos pelo Tribunal
Constitucional n.°s 43/99, 319/99, 419/99, 288/2000 e 337/2000, este último
publicado no DR de 21/6/2000 e que declarou, que o art. 412.° do C.P. Penal era
contrário à C.R. Portuguesa, não conferem ao STJ, “in casu”, o direito de “per
si” sintetizar as conclusões do Recorrente que definem como sendo “numerosas e
prolixas” na página n.° 1 do Acórdão recorrido”.
Para além de as fórmulas decisórias dos acórdãos referidos se reportarem a
preceitos legais distintos, não é aceitável, enquanto indicação da norma cuja
inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie, a referência genérica
ao artigo 412º do Código de Processo Penal. Como se escreveu no Acórdão do
Tribunal Constitucional nº 116/2002 (Diário da República, II Série, de 8 de Maio
de 2002), a “necessidade de individualização do segmento ou de enunciação do
sentido ou interpretação normativos que o recorrente reputa inconstitucional
torna-se, aliás, particularmente evidente (…) quando o preceito ao qual se
imputa a inconstitucionalidade, logo pela sua redacção, contém vários segmentos
normativos, ou se reveste de várias dimensões ou sentidos interpretativos,
susceptíveis de suscitar questões de constitucionalidade diversas, eventualmente
passíveis, também, de respostas distintas”.
O recorrente não cumpriu, pois, o ónus que lhe é imposto pelo nº 1 do artigo
75º-A da LTC. Incumprimento que não representa simples inobservância do dever de
colaboração das partes com o Tribunal, mas constitui, antes, o não preenchimento
de um requisito formal essencial ao conhecimento do objecto do recurso (cf. o
Acórdão nº 200/97, não publicado, e, entre outros, o Acórdão nº 462/94, Diário
da República, II Série, de 21 de Novembro de 1994, o Acórdão nº 243/97, Acórdãos
do Tribunal Constitucional, vol. 36º, p. 609, e os Acórdãos nºs 137/99, 207/2000
e 382/2000, não publicados).
Importa, pois, nesta parte, confirmar a decisão reclamada.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão sumária proferida.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte ) unidades de
conta.
Lisboa, 26 de Setembro de 2006
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício