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Processo n.º 564/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. instaurou no Tribunal do Trabalho de Almada ação com processo comum, emergente de contrato de trabalho, contra B., S.A., pedindo que, em virtude da declaração de ilicitude do despedimento de que foi alvo, seja a Ré condenada a pagar-lhe a quantia de €164.883,76, acrescida das prestações vincendas, bem como a reintegrá-la ao seu serviço.
Antes da marcação da audiência de julgamento, foi junta aos autos cópia certificada da sentença proferida pelo 3.º Juízo do Tribunal de Comercio de Lisboa, transitada em julgado, na qual foi declarada a insolvência da Ré.
Nessa sequência, foi proferido despacho, em que se declarou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide.
Inconformada, a A. recorreu para a Relação de Lisboa que, por acórdão proferido em 21 de março de 2012, negou provimento ao recurso e manteve a decisão recorrida.
Veio, então, a A. interpor recurso de revista excecional, ao abrigo do artigo 721.ºA, n.º1, al. c), do Código de Processo Civil (doravante CPC), o qual, admitido pela formação prevista no n.º 3 do mesmo preceito, foi julgado por acórdão proferido em 8 de maio de 2013 pelo Plenário das Secções Cíveis e Social do Supremo Tribunal de Justiça. Decidiu-se, então, negar a revista e confirmar o acórdão recorrido, uniformizando a jurisprudência nestes termos:
«Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C..»
2. Irresignada, a A. interpôs recurso desse acórdão uniformizador para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de novembro (doravante LTC), através de requerimento onde se enuncia o seguinte:
«1. Antes de mais, as questões da inconstitucionalidade do art.º 287º, alínea e), do CPC, na interpretação e sentido que lhe são dados pelo douto acórdão do STJ, foi suscitada pela Recorrente no decurso do recurso para o STJ, na resposta ao parecer do M.º Público, sendo que o presente recurso tem por objeto a inconstitucionalidade do art.º 287º, alínea e), do CPC, no sentido e na interpretação que o douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça lhe confere, ao decidir que: transitada em julgado a sentença que declara a insolvência fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a ação declarativa proposta pelo credor contra o devedor, designadamente a ação (emergente do contrato individual de trabalho, proposta em tribunal do trabalho, que é o caso 'sub judice') destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide nos termos do referido preceito legal, acórdão este, proferido em 8/5/2013, com 12 votos de vencido e notificado em 13/5/2013.
2. Na verdade, desde logo, no processo de insolvência surgem outros interessados oponentes ao crédito da Recorrente que desequilibram o litígio laboral contra esta, criando desigualdades e injustiças que não ocorrem no tribunal do trabalho, onde, como contraparte, só existe a entidade empregadora, sendo que, declarar-se a inutilidade superveniente da presente lide e remeter-se o julgamento da questão 'sub judice' para o T. Comércio, interpretando-se 'in casu', neste sentido, o art.º 287º, e), do CPC, viola-se o princípio da igualdade previsto no art.º 13º da CRP.
3. É, aliás, este, o sentido do acórdão que serviu de fundamento ao recurso de revista excecional para o STJ, com o qual não pode a, ora, Recorrente deixar de estar de acordo, não só por razões de interesse particular, mas também por razões de ordem objetiva, quer éticas, quer jurídicas, sendo que estas servirão de fundamento ao acórdão final a proferir com toda a independência por este Venerando Tribunal.
3. Por outro lado, inexiste 'in casu' inutilidade superveniente da lide, pelo que o douto acórdão, na interpretação que faz da al. e), do artigo 287º, do CPC, veda à Recorrente o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, bem como contraria o direito da Recorrente a procedimento judicial célere e com prioridade, por forma a obter a tutela efetiva e em tempo útil contra a ameaça e violação do seu direito, pelo que o artigo 287º, alínea e), do CPC, na interpretação que lhe é dada pelo douto acórdão do STJ, viola o art.º 20º, n.ºs 1 e 5, da CRP, determinando tal interpretação, a sua inconstitucionalidade.»
3. O recurso foi admitido pelo Tribunal a quo.
4. Neste Tribunal, ordenado o prosseguimento do processo para alegações, apenas a recorrente as veio apresentar, extraindo dessa peça as seguintes conclusões:
«1ª. O douto acórdão do STJ, ora, recorrido uniformizou jurisprudência no sentido de que: “transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal, a ação declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e), do Art.º 287º, do CPC', com doze votos de vencido.
2ª. O objeto do presente recurso prende-se com a questão da inconstitucionalidade da alínea e), do Art.º 287º, do CPC, na interpretação e sentido que lhe são dados pelo douto Acórdão Recorrido, na questão concreta dos autos.
3ª. No processo de insolvência surgem outros credores que desequilibram o litígio laboral, criando desigualdades e injustiças que não ocorrem no tribunal do trabalho, onde só existe uma contraparte, sendo que, declarar-se a inutilidade superveniente da presente lide remetendo-se o julgamento da questão 'sub judice' para o T. Comércio, interpretando-se, neste sentido, o art.º 287º, e), do CPC, viola o princípio da igualdade previsto no art.º 13º da CRP.
4ª. É este o sentido do acórdão que serviu de fundamento ao recurso de revista excecional para o STJ, com o qual não pode a, ora, Recorrente deixar de estar de acordo, não só por razões de interesse particular, mas também por razões de ordem objetiva, quer éticas, quer jurídicas, sendo que estas servirão de fundamento ao acórdão final a proferir com toda a independência por este Venerando Tribunal.
5ª. O douto acórdão recorrido, na interpretação que faz da al. e), do artigo 287º, do CPC, veda à Recorrente o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, bem como contraria o direito da Recorrente a procedimento judicial célere e com prioridade, por forma a obter a tuteia efetiva e em tempo útil contra a ameaça e violação do seu direito, pelo que viola o art.º 20º, n.ºs 1 e 5, da CRP, determinando tal interpretação, a sua inconstitucionalidade.
6ª. No sentido defendido no presente recurso, militam os acórdãos da RL, de 17/12/2008 - proc.º n.º 0836085; de 22/09/2009, proc.º n.º 413/08.0TBSTS-F.P1, de 25/01/2010 - proc.º n.º 434/08. 2TISTS.P1; de 2/03/2010 - proc.º n.º 6092/06.TBVFR.Pl, de 2/5/2012, proc.º n.º 5898/10.TBSXL.L1; acórdão da RC, de 01/06/2010, proc.º n.º 6516/07.0TBVNG.P1, in www.dgsi.pt. e Ac. STJ, de 15/3/2012, Proc.º n.º 501/10.2TVLSB.S1 - in Coletânea de Jurisprudência (Acórdãos do STJ) Tomo 1/2012, fls. 132 a 136 e www.dgsi.pt.
7ª. A declaração de insolvência não determina, só por si, a inutilidade de um crédito sobre a insolvente, já que a inutilidade das ações declarativas que têm como objeto o reconhecimento judicial de um crédito sobre a insolvente, apenas deverá ocorrer a partir do momento em que no processo de insolvência é proferida sentença de verificação de créditos, sendo que a ação judicial emergente do contrato individual de trabalho continua idónea à obtenção do efeito jurídico pretendido pela Recorrente, não se verificando a inutilidade superveniente da lide.
8ª. 'in casu', a inutilidade superveniente da lide só ocorrerá depois de no processo de insolvência ser proferida sentença de verificação de créditos, pois é a partir desse momento que a sentença reconhece e define os direitos dos credores (cfr. o Acórdão do STJ de 15/3/2012, proc.º 501/10.2TVLSB.51, in www.dgsi.pt e CJ, STJ, T 1/2012, págs. 132 a 136).
9ª. Após a instauração da presente ação não surgiu qualquer facto novo superveniente que determine que a decisão a proferir no seu âmbito já não possa ter qualquer efeito útil, sendo, ainda, possível dar satisfação à pretensão da Recorrente, quer quanto ao reconhecimento da ilicitude do seu despedimento, quer quanto ao reconhecimento dos créditos daí emergentes e reclamados, não tendo a Recorrente alcançado tal desiderato através de outros meios.
10ª. Acresce que, a inutilidade superveniente da lide só ocorre se na pendência do processo desaparece algum dos sujeitos ou o objeto da causa, ou quando a pretensão visada pelo demandante seja alcançada por outro meio fora do processo, o que não aconteceu 'in casu'.
11ª. Aliás, o douto acórdão recorrido refere que: 'Uma vez reclamados - a subsequente fase da verificação, que tem por objeto, como se disse, todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, fica sujeita ao princípio do contraditório - qualquer interessado pode impugnar a lista dos credores reconhecidos, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos e na incorreção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos, como se prevê no artigo 130º, n.º 1', do CIRE.
12ª. E, refere, ainda, na mesma interpretação do art.º 287º, al. e) do CPC, que: 'Bastará lembrar que, na hipótese em que discorre, mesmo que obtivesse atempadamente o reconhecimento judicial do seu pedido na ação pendente, a respetiva sentença, valendo apenas inter partes, mais não constituiria do que um documento para instruir o requerimento da reclamação/verificação de créditos (art.º 128º, n.º 1), não dispensando a Recorrente de reclamar o seu crédito no processo de insolvência, nem a isentando da probabilidade de o ver impugnado e de ter de aí fazer toda a prova relativa à sua existência e conteúdo'.
13ª. Aliás, também expende a mesma interpretação quanto à reclamação de créditos para o Fundo de Garantia Salarial
14ª. O douto acórdão, na mesma esteira, refere que é igualmente seguro que a existência de uma decisão definitiva que reconheça o crédito laboral não assegura que tal crédito não seja impugnado e que não se vê porque seria imprescindível a sentença proferida pelo Tribunal do Trabalho de Almada.
15ª. Ora, o tribunal do trabalho estava em condições de apreciar e decidir a ação emergente do contrato de trabalho e reconhecer o crédito da Recorrente, em 2010, sendo que ainda nem sequer está reconhecido ou verificado o referido crédito, sabendo-se que a declaração de insolvência foi publicada em DR em finais de Janeiro de 2011.
16ª. O teor e conteúdo de uma sentença proferida pelo tribunal do trabalho, transitada em julgado, não pode ser contraditada com legitimidade e eficácia por quem quer que seja.
17ª. No caso de insolvência, a extinção de uma sociedade só se dá com o registo do encerramento do processo após o rateio final (cfr. art.º 234º/3 do CIRE), pelo que a declaração de insolvência não obsta ao prosseguimento da ação do ponto de vista da personalidade e da capacidade judiciárias dos sujeitos, apenas impondo que o Administrador da Insolvência (AI) substitua o insolvente (cfr. art.º 85º CIRE).
18ª. E, enquanto o crédito reclamado na insolvência não for aí admitido e reconhecido, a simples reclamação é insuficiente para determinar a extinção da acção por inutilidade superveniente da lide.
19ª. Aliás, o art.º 85º, do CIRE prevê a apensação de ações ao processo de insolvência, em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, não prevendo a suspensão ou a extinção dessas ações, pelo que seria irrazoável conceber um regime diferente para as ações em que não estejam em causa os bens compreendidos na massa insolvente.
20ª. A declaração de insolvência não obsta, só por si, ao prosseguimento das ações declarativas pendentes contra o insolvente, já que o CIRE não contém, para as ações declarativas uma norma homóloga à das execuções - art.º 88º - que não é aplicável àquelas (v. AC. STJ, de 15/3/2012, proc.º n.º 501/10.2TVLSB.51, in www.dgsi.pt e CJ STJ, T. I, págs. 132 a 136).
21ª. Por outro lado, o tribunal de insolvência não irá, propriamente, julgar cada uma das ações em que os pedidos respetivos foram ou seriam formulados, como acontecia ou poderia acontecer no (anterior) regime do CPC, o que significa que, decretada a insolvência, as ações autónomas pendentes podem não ser inúteis e podem, até, ser necessárias, como é o presente caso, atenta a complexidade da questão.
22ª. Deste modo, a sentença a proferir na ação declarativa pendente pode servir para fazer prova do crédito, tendo em vista a sua verificação e reconhecimento no processo de insolvência.
23ª. E, a sentença a proferir no processo declarativo também poderá produzir efeitos fora da insolvência (cfr. art.º 230º do CIRE) quando o processo de insolvência é encerrado sem ser proferida sentença de verificação de créditos, tendo a utilidade de fazer valer esse crédito perante o devedor.
24ª. Aliás, se reconhecidos em ação laboral, os créditos tornam-se mais consistentes e insuscetíveis de impugnação no processo de insolvência, sendo que tal circunstância não põe em causa o princípio da igualdade de tratamento dos credores, já que tal possibilidade se mantém para os restantes credores com ações declarativas em curso.
25ª. Acresce a possibilidade de a Recorrente acionar o Fundo de Garantia Salarial (FGS) se já não existir massa insolvente no processo de insolvência na altura em que for proferida sentença, mediante a apresentação da decisão definitiva sobre os créditos peticionados e decisão de insolvência.
26ª. Na questão 'sub judice' foram feitas grandes e complexas diligências probatórias em sede de processo laboral, sendo que acabarão por se perder se for declarada a inutilidade superveniente da lide, já que o processo de insolvência é urgente e, por isso, serão, seguramente, indeferidas novas cartas rogatórias com vista ao depoimento dessas testemunhas, que são extremamente relevantes para a prova e boa decisão da causa.
27ª. Acresce que a ação laboral seria bem mais célere do que o processo de insolvência, evitando-se a perda de meios de prova.
28ª. Refira-se que o Tribunal do Trabalho está muito mais apto e vocacionado a julgar litígios laborais do que o Tribunal do Comércio.
29ª. Acresce que, sem sentença do Tribunal do Trabalho de Almada, a Recorrente fica impossibilitada de reclamar os seus créditos salariais e indemnizatórios aos órgãos sociais da insolvente (cfr. art.ºs 71º a 84º, do CSC).
30ª. E também fica impossibilitada de lhe serem concedidos alimentos nos termos do art.º 84º, n.ºs 1, 2 e 3, do CIRE, já que não tem créditos reconhecidos.
31ª. Igualmente por não ter sentença do Tribunal do Trabalho de Almada que lhe reconhecesse créditos, foi-lhe rejeitado liminarmente o plano de insolvência que recuperaria a empresa.
32ª. Por outro lado, à, ora, Recorrente não foi dado provimento ao requerimento de marcação da Assembleia de Credores para destituição do Administrador de Insolvência e de um elemento da Comissão de Credores, por justa causa, pois por não ter créditos reconhecidos, não tinha quorum para esse efeito, o que aconteceria se contasse com a sentença do Tribunal do Trabalho de Almada e outras sentenças de outros tribunais onde foi decidida a inutilidade superveniente da lide por ter sido decretada a insolvência com trânsito em julgado.
Nestes termos e nos mais de direito, com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência, ser revogado o douto acórdão recorrido, considerando-se o art.º 287º, alínea e) do CPC, inconstitucional, na interpretação que lhe é dada pelo referido aresto à questão concreta dos presentes autos, com o que se fará a costumada e inteira JUSTIÇA!»
5. Por despacho do relator, foi a recorrente notificada para se pronunciar, querendo, quanto à possibilidade do recurso não ser conhecido, por inidoneidade do seu objeto.
Em resposta ao convite formulado, veio a recorrente sustentar que colocou questão normativa de constitucionalidade, na medida em que arguiu a inconstitucionalidade da alínea e) do artigo 287.º do CPC, na interpretação e sentido uniformizado no Acórdão do STJ recorrido.
II. Fundamentação
6. Sabido que a decisão que admitiu o recurso não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional), importa começar por apreciar a questão de admissibilidade do recurso, suscitada pelo relator, sobre a qual tomou posição a recorrente nos termos supra relatados.
No sistema português, os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade comportam necessariamente objeto normativo, devendo incidir sobre a apreciação da constitucionalidade de normas ou interpretações normativas, e não sobre a apreciação de alegadas inconstitucionalidades imputadas pelo recorrente às decisões judiciais, em si mesmas consideradas, atenta a inexistência no nosso ordenamento jurídico-constitucional da figura do recurso de amparo, ou da queixa constitucional, dirigidas contra atos concretos de aplicação do Direito.
Constitui jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional que o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa, tem de incidir sobre o critério ou padrão normativo da decisão, enquanto regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro ato de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria do caso concreto, a isso se reconduzindo as situações em que “embora sob a capa formal da invocação da inconstitucionalidade de certo preceito legal ‘tal como foi aplicado pela decisão recorrida’ - o que realmente se pretende controverter é a concreta e casuística valoração pelo julgador das múltiplas e específicas circunstâncias do caso ‘sub judicio’” (cf. Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, 2010, p. 34-35).
No caso vertente, pese embora a recorrente inscreva no requerimento de interposição de recurso, como em alegações, argumentação dirigida a convencer da bondade do entendimento infraconstitucional sufragado pela linha jurisprudencial em que se inscreveu o Acórdão-fundamento, persiste a invocação de inconstitucionalidade dirigida ao sentido normativo extraído da alínea e) do artigo 287.º do CPC, dotado de grau de abstração elevado, correspondente ao entendimento que consubstancia a vertente da decisão uniformizadora da jurisprudência, nos termos da qual “[t]ransitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C..”.
Assim sendo, o impulso do recorrente tem como objeto questão normativa idónea à fiscalização da constitucionalidade, pelo que, respeitado igualmente o ónus de suscitação prévia, encontram-se preenchidos os pressupostos de que depende o conhecimento do recurso.
7. A decisão do STJ recorrida abordou a questão de saber se subsiste alguma utilidade ou razão juridicamente consistente que justifique a prossecução da presente ação declarativa laboral, uma vez transitada em julgado, na sua pendência, sentença que declarou a insolvência do demandado, em cujo processo (de insolvência), a demandante reclamou os créditos salariais e direitos indemnizatórios que peticionou na mesma ação laboral, e já constantes, ao tempo, da lista provisória de credores.
E, enquanto julgamento de recurso de revista excecional, instaurada pela aqui recorrente ao abrigo da al. c) do n.º 1 do artigo 721.ºA do CPC, teve em atenção as respostas jurisdicionais contraditórias constantes do acórdão recorrido e do acórdão fundamento, “no que tange à determinação do momento a partir do qual se pode seguramente afirmar a inutilidade superveniente da lide declarativa”. Assim, no acórdão da Relação recorrido considerou-se que “transitada em julgado a sentença que declara a insolvência do empregador, verifica-se a inutilidade superveniente da lide (laboral) em acção contra aquele interposta por qualquer dos seus trabalhadores”, enquanto no acórdão fundamento, prevaleceu o entendimento de que “a declaração de insolvência não determina, só por si, a inutilidade das acções declarativas que têm por objecto o reconhecimento de um crédito sobre o insolvente. A sua inutilidade apenas ocorrerá a partir do momento em que, no processo de insolvência, é proferida sentença de verificação de créditos”.
O percurso argumentativo seguido pelo Tribunal a quo, no que aqui interessa, concretiza o significado atribuído à causa de extinção da instância contida na alínea e) do artigo 287.º do CPC, nos seguintes termos:
«A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, enquanto causas determinantes da extinção da instância – alínea e) do art. 287.º do C.P.C. – resultarão de circunstâncias acidentais/anormais que, na sua pendência, precipitam o desinteresse na solução do litígio, induzindo a que a pretensão do autor não possa ou não deva manter-se: seja, naqueles casos, pelo desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, seja, nestes, pela sua alcançada satisfação fora do esquema da providência pretendida.
(A inutilidade do prosseguimento da lide verificar-se-á, pois, quando seja patente, objetivamente, a insubsistência de qualquer interesse, benefício ou vantagem, juridicamente consistentes, dos incluídos na tutela que se visou atingir ou assegurar com a acção judicial intentada.
Por outras palavras (...) ... a inutilidade superveniente da lide verifica-se quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não possa ter qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo, ou porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio)».
Prosseguindo com a enunciação do escopo e desenvolvimento do processo de insolvência e da sua articulação com ações declarativas pendentes:
«(...) a finalidade do processo de insolvência, enquanto execução de vocação universal – art. 1.º/1 do CIRE – postula a observância do princípio ‘par conditio creditorum’, que visa, como é sabido, a salvaguarda da igualdade (de oportunidade) de todos os credores perante a insuficiência do património do devedor, afastando, assim, a possibilidade de conluios ou quaisquer outros expedientes susceptíveis de prejudicar parte (algum/alguns) dos credores concorrentes.
Os efeitos processuais da declaração de falência/insolvência sobre os processos pendentes aquando da sua decretação não foram igualmente prevenidos ao longo dos últimos quarenta anos – primeiro no C.P.C., depois no CPEREF e, atualmente, no CIRE.
Como decorria do art. 1198.º do C.P.C. de 1961, uma vez declarada a falência, com trânsito em julgado, todas as acções pendentes, em que se debatiam genericamente interesses relativos à massa falida, eram apensadas automaticamente, ao processo de falência, por via de regra.
Com o advento do Código dos Processos Especiais de Recuperação (CPEREF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, mantido embora o princípio da plenitude da instancia falimentar, uma vez declarada a falência, a apensação, ao respetivo processo, passou a circunscrever-se às acções em que se apreciassem questões relativas a bens compreendidos na massa falida, ficando a mesma, ainda assim, dependente, na generalidade das situações, da intervenção do administrador judicial, que a requeria (ou não) em função da sua conveniência para a liquidação.
No actual CIRE a disciplina homologa vem prevista nos arts. 81.º e seguintes, dispondo o art. 85.º quanto aos efeitos processuais da declaração de insolvência sobre as acções (declarativas) pendentes e o art. 88.º relativamente às acções executivas (pendentes ou a instaurar).
Assim, “declarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor (...) são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo” – n.º 1 do art. 85.º.
(...)
Isto posto – e concluindo-se que a apensação, sequente à declaração da insolvência do devedor, não só não é oficiosa/automática, como respeita a um conjunto diferente de acções, mais restrito, como sobredito, sendo por isso irrelevante para o caso que o administrador da insolvência tenha ou não requerido a apensação da acção ao respectivo processo -, impõe-se então analisar se, atendo o escopo do processo de insolvência, proclamado no art. 1.º do CIRE (que, relembra-se, sendo um processo de execução universal, tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista no plano de insolvência, baseado na liquidação do património do devedor insolvente e na repartição do produto obtido pelos credores), a declaração judicial da insolvência, por sentença transitada em julgado, é ou não compatível com a prossecução de acção declarativa proposta contra o empregador/devedor com o objectivo de ver reconhecido um crédito a favor do autor.
Na sentença que declarar a insolvência, o Juiz – se não concluir pela presumível insuficiência da massa insolvente, no condicionalismo a que alude o art. 39.º/1 – designará, além do mais, um prazo até, até 30 dias, para a reclamação de créditos, nos termos do art. 36.º/1, j).
(...)
E, dentro do prazo fixado devem os credores da insolvência (...) reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham, com as indicações discriminadas, sendo que a verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e, mesmo que o credor tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva, não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento – 128.º, n.ºs 1 e 3.
O efeito da declaração de insolvência sobre os créditos que se pretendam fazer pagar pelas forças da massa insolvente vem categoricamente proclamado no art. 90.º.
Os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência.
(...)
Uma vez reclamados – a subsequente fase da verificação, que tem por objecto, como se disse, todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, fica sujeita ao princípio do contraditório – qualquer interessado pode impugnar a lista dos credores reconhecidos, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos e na incorreção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos, como se prevê no art. 130.º/1.
Havendo impugnações, segue-se a tramitação delineada nos arts. 131.º e seguintes, com tentativa de conciliação, seguida de elaboração do despacho saneador, diligências instrutórias, audiência e sentença de verificação e graduação de créditos.
A audiência de julgamento – fase seguinte, caso subsistam créditos impugnados, a carecer de prova da sua existência, natureza e conteúdo – observará os termos estabelecidos para o processo declaratório sumario, com as especialidades constantes do art. 139.º, sendo aplicável, no que tange aos meios de prova de que disponha, com apresentação das testemunhas arroladas ... dentro dos limites previstos no art. 789.º do C.P.C.
Tendo a verificação por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento – n.º 3 do art.º 128.º , como antedito – a jurisdição conferida ao Tribunal/decisor, neste conspecto, tem necessariamente implícita uma verdadeira extensão da sua competência material.»
Seguidamente, depois de considerar claudicantes as razões avançadas pela recorrente em defesa do entendimento de que a inutilidade superveniente da lide apenas tem lugar com a prolação no processo de insolvência da sentença de verificação de créditos, concluiu que:
«- Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência;
- A partir daí, os direitos/créditos que a A. pretendeu exercitar com a instauração da acção declarativa só podem ser exercidos durante a pendência do processo de insolvência e em conformidade com os preceitos do CIRE – (...) -, seja por via da reclamação deduzida no prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência (... e, no caso, a A. não deixou de o fazer), seja pela sua inclusão na listagem/relação subsequentemente apresentada pelo administrador da insolvência, não subsistindo qualquer utilidade, efeito ou alcance (dos concretamente peticionados naquela acção), que justifiquem, enquanto fundado suporte do interesse processual, a prossecução da lide, assim tornada supervenientemente inútil.»
Importa ainda esclarecer, face à referência que a recorrente efetua em alegações à pluralidade de votos de vencido, que as posições divergentes não incidem sobre a verificação, no caso, de fundamento para a extinção da lide laboral, por inutilidade superveniente da lide, sendo concordantes quanto à improcedência do recurso de revista, embora em virtude de ratio decidendi distinta. Nos termos da declaração para que todos os votos de vencido remetem (registando-se ainda duas outras declarações de voto quanto à necessidade de se inscrever no segmento uniformizador que o crédito peticionado carece de ser garantido por “bens integrados na respetiva massa insolvente”), entendeu-se que a jurisprudência deveria ser uniformizada no sentido de que, para a verificação da extinção da ação por inutilidade superveniente da lide, era necessária a prévia reclamação do crédito ou o seu relacionamento pelo administrador de insolvência. Condição essa que, no caso em presença, se mostrava preenchida, em virtude da reclamação apresentada na insolvência pela recorrente.
8. A recorrente aponta ao sentido normativo acolhido na decisão recorrida infração do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da Constituição, e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, invocando o disposto no artigo 20.º, n.ºs 1 e 5 da Constituição.
Sem razão, como se passe a demonstrar.
9. Em suporte da violação do princípio da igualdade, a recorrente inscreveu logo no requerimento de interposição de recurso o argumento de que no processo de insolvência surgem outros interessados oponentes ao crédito do recorrente que desequilibram o litígio laboral contra esta, “criando desigualdades e injustiças que não ocorrem no tribunal do trabalho”, na medida em que aí, só a entidade empregadora surge como contraparte. O mesmo argumento, sem desenvolvimentos adicionais, surge em alegações.
Nota-se, em primeiro lugar, que a atribuição de “desigualdades e injustiças” remete para vícios da normação do processo de insolvência, que não encontram inscrição no objeto do presente recurso, cingido aos efeitos extintivos decorrentes da aplicação do disposto na alínea e) do artigo 287.º do CPC.
Mas, principalmente, qualquer que seja o juízo sobre a bondade dessa vertente do regime da insolvência, o efeito jurídico decorrente da interpretação normativa questionada nos presentes autos sempre se mostra indiferente para o seu afastamento.
Com efeito, o prosseguimento e eventual prolação de uma decisão definitiva proferida no foro laboral que viesse a reconhecer os créditos salariais e direitos indemnizatórios e condenar a demandada ao seu pagamento, não dispensava a recorrente, em condições de paridade com os demais credores, e na falta de relacionamento por parte do administrador da insolvência, de os reclamar no processo de insolvência, como, aliás, aconteceu. E, na fase contraditória subsequente, de ver os seus créditos e direitos impugnados por outros credores, do mesmo jeito que lhe é concedido o direito de impugnar outros créditos reclamados, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, “mesmo que reconhecidos por decisão definitiva” (cfr. n.º 3 do artigo 128.º do CIRE).
Assim decorre da natureza da insolvência como processo de execução universal, o que tem como corolário o imperativo do exercício durante a sua pendência dos direitos dos credores, prescrito pelo artigo 90.º do CIRE. Na expressão de Luís Carvalho Fernandes e João Labareda (cfr. Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, anotado, 2009, pág. 364, trecho também citado na decisão recorrida):
«Este preceito regula o exercício dos direitos dos credores contra o devedor no período do processo de insolvência. A solução nele consagrada é a que manifestamente se impõe, pelo que, apesar da novidade formal, não significa, no plano substancial, um regime diferente do que não podia deixar de ser sustentado na vigência da lei anterior.
Na verdade, o art. 90.º limita-se a determinar que, durante a pendência do processo de insolvência, os credores só podem exercer os seus direitos “em conformidade com os preceitos deste Código”.
Daqui resulta que têm de o exercer no processo de insolvência e segundo os meios processuais regulados no CIRE.
É esta a solução que se harmoniza com a natureza e a função do processo de insolvência, como execução universal, tal como a caracteriza o art. 1.º do CIRE.
Um corolário fundamental do que fica determinado é o de que, para poderem beneficiar do processo de insolvência e aí obterem, na medida do possível, a satisfação dos seus interesses, têm de neles exercer os direitos que lhe assistem, procedendo, nomeadamente, à reclamação dos créditos de que sejam titulares, ainda que eles se encontrem já reconhecidos em outro processo (...).»
Nessa medida, não se pode assacar ao entendimento normativo extraído da alínea e) do artigo 287.º do CPC, aplicado na decisão recorrida, a remessa do julgamento do litígio laboral da recorrente para outro foro, pois, por razões que encontram assento na teleologia fundamental do processo de insolvência – de que toma parte essencial precisamente, como emanações do princípio de igualdade, o princípio par conditio creditorum, em conexão com o princípio do contraditório -, a palavra final (a competência material, no plano dos factos e do direito) sobre o litígio, na perspetiva do seu reconhecimento e pagamento pelos bens em liquidação, sempre caberá ao Tribunal onde corra esse processo. Assim acontece com a recorrente, sem diferença de tratamento relativamente a qualquer outro credor reclamante na mesma posição material.
O que significa que a extinção da instância laboral, por decorrência do trânsito em julgado da decisão que declarou a insolvência da sua entidade patronal, não a coloca em posição desigual, por indução de prejuízo, ou de afastamento de posição de vantagem materialmente fundada, relativamente a outros credores com pretensão de satisfação dos seus direitos sobre bens integrados na massa insolvente.
Falece, pois, fundamento à apontada violação do princípio da igualdade pela normação questionada.
10. A mesma ordem de considerações encontra pertinência quando ponderado o recurso na vertente da imputada violação do princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.
O artigo 20.º da Constituição garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), em termos efetivos, o que comporta o direito à decisão da causa em prazo razoável (n.º 4), impondo-se especificamente ao legislador que, para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, assegure procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos (n.º 5).
A jurisprudência do Tribunal Constitucional encontra-se consolidada na consideração de que o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (cfr. Acórdão n.º 440/94).
Sendo estas as dimensões nucleares em que se concretiza o direito fundamental invocado pela recorrente, não se vê que a interpretação normativa questionada o tenha posto em causa e que a recorrente tenha sofrido limitação ou restrição intolerável no seu direito a uma solução jurisdicional do conflito, em prazo razoável.
11. Com efeito, a recorrente considera que com a extinção da instância laboral viu afastado o seu direito à ação ou o direito de agir em juízo, referindo em alegações que “o teor e conteúdo de uma sentença proferida por tribunal de trabalho, transitada em julgado, não pode ser contraditada com legitimidade e eficácia por quem quer que seja”; que, se reconhecidos em ação laboral, os créditos tornam-se insuscetíveis de impugnação no processo de insolvência; que a sentença a proferir na ação declarativa pendente pode servir para fazer prova do crédito, tendo em vista a sua verificação e reconhecimento no processo de insolvência; que o Tribunal de Trabalho será célere e apto a decidir o litígio laboral, havendo diligências probatórias já produzidas na ação laboral que se perderão “já que o processo de insolvência é urgente e, por isso, serão, seguramente, indeferidas novas cartas rogatórias com vista ao depoimento dessas testemunhas”. Refere ainda que lhe foi negada pretensão no processo de insolvência por não ter créditos reconhecidos, “o que aconteceria se contasse com a sentença do Tribunal do Trabalho de Almada”.
A par dessas razões, aduz outras, agora incidentes sobre o que considera constituírem limitações exteriores ao processo de insolvência, como seja, na eventualidade deste processo findar sem ser proferida sentença de verificação de créditos, a impossibilidade de acionamento do Fundo de Garantia Salarial, de reclamar os créditos aos órgãos sociais da insolvente e de obter alimentos.
Perfilam-se em tal motivação três linhas argumentativas distintas: uma primeira, em que se aponta à extinção da lide em foro laboral efeito preclusivo ou impeditivo do exercício de direitos, caso a insolvência seja encerrada antes de proferida sentença de verificação de créditos; uma segunda, em que, prosseguindo a posição assumida quanto à infração do princípio da igualdade, sustenta que passou a suportar ónus e encargos processuais, assim como riscos probatórios, a que não estaria sujeita caso a ação laboral continuasse e viesse a transitar sentença que lhe fosse favorável; por último, aponta ainda à solução acolhida menor celeridade do que aconteceria caso a ação laboral não fosse extinta, face às diligências de prova já desenvolvidas.
Relativamente aos efeitos reportados à eventualidade de não prolação de sentença de verificação de créditos na insolvência, a recorrente limita-se a concluir pela “impossibilidade” de reclamar créditos aos órgãos sociais da insolvente, de lhe serem concedidos alimentos na insolvência ou de acionar o Fundo de Garantia Salarial (FGS). Ora, como se viu, a obrigação de exercício de créditos no processo de insolvência, e não por outra via, maxime perante os órgãos sociais da insolvente, não decorre do entendimento normativo questionado, mas sim do disposto no artigo 90.º do CIRE, não se vislumbrando, por outro lado, no regime do Fundo de Garantia Salarial (FGS), regra que condicione ou limite a pretensão do trabalhador em virtude da ausência de sentença proferida por Tribunal de Trabalho. Como sublinha a decisão recorrida, para além da comunicação ao FGS já ordenada na sentença que declarou a insolvência, o exercício do direito a alimentos (verificados os respetivos pressupostos, para além da titularidade do crédito) não depende mesmo da apresentação de decisão definitiva sobre os créditos peticionados na insolvência, valendo outros meios de prova (artigos 37.º, n.º2 do CIRE e 316.º a 326.º da Lei 35/2004, de 29 de julho; em especial o artigo 324.º). Também não se perfila no artigo 84.º do CIRE, qualquer norma que limite a comprovação da titularidade de créditos sobre a insolvência emergentes de contrato de trabalho. Inexiste, então, em qualquer dos planos referidos, qualquer efeito preclusivo ou impedimento decorrente da indisponibilidade de sentença proferida em foro laboral a reconhecer os créditos e direitos emergentes de contrato individual de trabalho.
No que concerne à suscetibilidade de impugnação dos créditos no processo de insolvência, a recorrente volta a identificar incorretamente os efeitos no processo de insolvência de decisão que viesse a ser proferida pelo foro laboral, reclamando da privação de posição subjetiva (de vantagem) que não tem verdadeiramente lugar. O caso julgado eventualmente formado nesses autos comportaria eficácia inter partes, não a dispensado de reclamar os créditos, como igualmente, ao contrário do que pretende, não teria a virtualidade de impedir a impugnação pelos demais credores, nem de a isentar do ónus de fazer prova quanto à sua existência e conteúdo. O n.º 3 do artigo 128.º do CIRE, vimos já, é claro a esse propósito.
Depois, nem mesmo no plano da celeridade podemos encontrar tutela com efetividade inferior à assegurada pelos tribunais de trabalho, na medida em que o processo de insolvência reveste natureza urgente e prioritária (artigo 9.º, n.º 1 do CIRE), independentemente de, estando aqui em causa direitos dos trabalhadores, e não direitos pessoais, não ser convocável o disposto no n.º 5 do artigo 20.º da Constituição (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 2007, págs. 418 e 419). Como refere Maria Adelaide Domingos, no julgamento de questões laborais em processo de insolvência “não existe diminuição de garantias para as partes já que os meios probatórios são os mesmos que seriam permitidos no processo laboral e a forma do processo a seguir é a do processo declarativo sumário, ou seja, a forma que supletivamente o artigo 49.º, n.º 2, do CPT manda aplicar ao processo laboral comum. Vigora o princípio do inquisitório, permitindo que a decisão judicial seja fundada em factos não alegados pelas partes, em similitude com o disposto no artigo 72.º do CPT, a que acresce o carácter urgente desta fase (artigo 9.º, n.º 1), característica esta, aliás, presente nos processos impugnativos de despedimento colectivo ou de representantes sindicais ou de membros de comissão de trabalhadores (artigo 26.º, n.º 1, do CPT)” (cfr. Efeitos Processuais da Declaração de Insolvência sobre as Acções Laborais Pendentes, in Memórias do IX e X Congressos Nacionais de Direito do Trabalho, 2007, pág. 284).
Cabe acrescentar, tomando a alusão a vicissitudes decisórias verificadas e a outras antecipadas, no âmbito do processo de insolvência, que a recorrente preserva todas as vias impugnatórias comportadas nessa sede, sem qualquer restrição imputável à extinção da lide laboral fundada na alínea e) do artigo 287.º do CPC.
12. Aqui chegados, impõe-se concluir que a normação em questão também não ofende a garantia de acesso ao direito da recorrente, nem a impede de obter tutela judicial efetiva e em tempo útil dos créditos salariais e direitos indemnizatórios que peticionou em ação laboral e reclamou ulteriormente em processo de insolvência.
III. Decisão
13. Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a interpretação normativa de acordo com a qual, transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a ação declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do CPC;
e, em consequência,
b) Julgar improcedente o recurso interposto;
c) Condenar a recorrente nas custas, fixando-se em 25 (vinte e cinco) Ucs a taxa de justiça devida, tendo em atenção os critérios seguidos por este Tribunal e a dimensão do impulso desenvolvido.
Lisboa, 9 de janeiro de 2014. – Fernando Vaz Ventura (vencido quanto ao conhecimento, de acordo com a declaração junta) – Ana Guerra Martins (vencida quanto ao conhecimento, aderindo à declaração de voto do Exmº Senhor Conselheiro Fernando Ventura) – Pedro Machete – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Pronunciei-me no sentido de que o recurso não deveria ser conhecido, por o seu objeto não assumir conteúdo normativo.
Independentemente de, nos casos em que se encontra em causa a densificação de conceitos indeterminado ou de cláusulas gerais, poder haver lugar à concretização e aplicação de uma norma (de grau de abstração inferior) sindicável no âmbito da fiscalização concreta de constitucionalidade, não creio que estejamos perante um desses casos; ao invés, a recorrente mais não faz do que solicitar ao Tribunal Constitucional que se pronuncie sobre o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no que concerne ao preenchimento do conceito de inutilidade superveniente da lide, procurando a reversão das operações de subsunção que nele se formulam em face da hipótese concreta.
São múltiplos os segmentos do requerimento inicial que demonstram que a recorrente questiona, não uma norma, mas o modo como se aplicou o direito infraconstitucional.
Assim acontece quando se alude ao “sentido defendido”, acompanhado de extensa alusão a diversos arestos, como na defesa pela recorrente de que “não se verifica (...) a inutilidade superveniente da lide”, seguida do alinhamento dos mesmos argumentos infraconstitucionais que suportaram o recurso de revista excecional.
Por seu turno, tomando as alegações apresentadas, as conclusões 2ª a 5ª denotam que a desconformidade constitucional é imputada à decisão recorrida e ao sentido decisório a que se chegou quanto à “questão concreta dos autos”, sinalizando que o controlo pelo Tribunal Constitucional que se procura mobilizar incide sobre o momento subsuntivo da decisão, e não sobre a ilegitimidade de critério normativo extraído do artigo 287.º, alínea e) do CPC – e dele apenas -, efetivamente aplicado.
Se dúvidas subsistissem a esse propósito, entendo que a resposta apresentada pela recorrente, quando confrontada com a questão da idoneidade objetiva do recurso, tornou ainda mais evidente o que já decorria das peças processuais antes apresentadas. Quando se diz que a questão de constitucionalidade incide sobre a “interpretação e sentido que (...) são dados [à alínea e) do artigo 287.º, do CPC] pelo acórdão recorrido ao subsumir a questão ‘sub judice’ a essa previsão legal”, interpela-se, em substância, a bondade da interpretação e aplicação do direito ordinário, mesmo que com apelo a argumentos fundados em princípios com consagração constitucional.
Em suma, não é uma interpretação normativa que o recorrente questiona, mas o modo de preenchimento de uma cláusula geral pelo tribunal recorrido.
Não tendo o Tribunal Constitucional poderes para apreciar a conformidade constitucional das decisões judiciais em si mesmas consideradas (nº 1 do artigo 70º da LTC), considero que o recurso não deveria ser conhecido.
2. Ultrapassada tal questão, pronunciei-me pela improcedência do recurso, de acordo com os fundamentos exarados no acórdão.
Fernando Vaz Ventura