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Processo n.º 1000/13
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, A. e B. vieram interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. O recorrente A., no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, identificou a decisão recorrida como correspondendo ao acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 11 de junho de 2012, alusão que deve considerar-se reportada ao acórdão depositado em 11 de junho de 2013.
Delimitou o objeto do recurso, nos seguintes termos:
“(…) A violação das normas constantes no Artigo 32º n.º 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa e no artigo 343º e 345º, ambos do Código de Processo Penal
(…)”
3. Quanto ao recorrente B., depreende-se, da análise do respetivo requerimento de interposição de recurso, que a decisão recorrida corresponde igualmente ao acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, depositado a 11 de junho de 2013.
Relativamente ao objeto do recurso, refere o recorrente o seguinte:
“ (…) a interpretação feita pelo Tribunal do art. 61º f), 71º, 118º e 133 do CP era inconstitucional e consequentemente a sua aplicabilidade era inconstitucional por violar os artigos 13º, 32º, 266º n.º 1 e 2 CRP (…)
Bem como, a imprecisa interpretação e a consequente aplicabilidade do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Tal inconstitucionalidade (…) prende-se com o facto de no decurso do processo, não ter sido assegurada a defesa do aqui recorrente, bem como a interpretação do art. 71º do CP, foi feita de forma contraditória, sem ter em conta a desigualdade de circunstâncias e de antecedentes, o que claramente é violador do disposto nos arts. 13º, 32º e 266º nº 1 e 2 da CRP.
Tendo sido alegadas tais inconstitucionalidades, ocorreu que além de estas não terem sido consideradas, ainda produziram efeitos antagónicos, pois reverteram, no Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra em penalização e agravação de resultados para o arguido recorrente, em desconformidade com os preceitos e princípios constitucionais supra descritos e em discordância com o espírito dos direitos constitucionais assegurados a um arguido (…)”
4. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária, com a seguinte fundamentação:
“(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Vejamos se tais requisitos se encontram presentes, relativamente aos dois recursos interpostos.
(…) O recorrente A. identifica o objeto do recurso como a violação das normas constantes do artigo 32.º, n.os 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, e ainda de dois preceitos do Código de Processo Penal.
Face a tal delimitação, resulta claro que o recorrente não pretende a sindicância da constitucionalidade de um critério normativo – norma ou interpretação normativa – que, em nenhum momento, enuncia, mas a apreciação da decisão jurisdicional concreta, no aspeto da sua alegada desconformidade com preceitos constitucionais e infraconstitucionais.
Tal apreciação encontra-se, porém, subtraída à competência do Tribunal Constitucional, face à inexistência, no nosso sistema jurídico, da figura do recurso constitucional de amparo ou queixa constitucional.
A este propósito, pode ler-se, no Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 633/08 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt ), o seguinte:
“(…) cumpre acentuar que, sendo o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas, que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação direta de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efetuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao ato judicial de “aplicação” a violação (direta) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efetuado in concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida (…)”
Para garantir a admissibilidade de um recurso de constitucionalidade, deveria o recorrente ter autonomizado e enunciado um verdadeiro critério normativo, que tivesse sido utilizado como ratio decidendi pela decisão recorrida, reportando-o a uma determinada disposição ou conjugação de disposições legais.
Tal enunciação teria necessariamente de corresponder a um dos sentidos extraíveis da literalidade do(s) preceito(s) escolhido(s) como suporte da norma ou interpretação normativa colocada em crise, devendo ser apresentada, em termos tais que o Tribunal Constitucional, no caso de concluir pela sua inconstitucionalidade, pudesse reproduzir tal enunciação, de modo a que os respetivos destinatários e operadores do direito em geral ficassem cientes do concreto sentido normativo julgado desconforme com a Lei Fundamental.
O recorrente, porém, não cumpriu o ónus de suscitar a questão de constitucionalidade normativa, que pretenderia ver apreciada em ulterior recurso para o Tribunal Constitucional, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Compulsada a motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra – peça processual em que o recorrente deveria ter suscitado ou renovado a suscitação da questão de constitucionalidade que pretendesse ver apreciada - verifica-se que, em nenhum momento, o recorrente enuncia uma questão de constitucionalidade de natureza verdadeiramente normativa, que pudesse considerar-se traduzida - ainda que imperfeitamente - no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade.
Deste modo, face ao incumprimento do ónus de suscitação prévia de qualquer questão de constitucionalidade normativa, conclui-se que sempre estaria definitivamente prejudicada a admissibilidade de ulterior recurso para o Tribunal Constitucional, ainda que, no respetivo requerimento de interposição, o recorrente tivesse conseguido enunciar um específico critério normativo, suscetível de constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade, o que – como já explicitámos – não ocorreu.
(…) Relativamente ao recurso interposto por B., são aplicáveis considerações idênticas às já expendidas quanto ao recurso do coarguido.
Na verdade, o recorrente não autonomiza e enuncia qualquer critério normativo que, sendo extraído dos preceitos legais que difusamente identifica, tenha sido utilizado como ratio decidendi pela decisão recorrida.
O esforço de definição da dimensão reputada inconstitucional, manifestado no requerimento de interposição de recurso, indicia que o recorrente pretenderá a sindicância da própria decisão jurisdicional, na sua dimensão casuística, elemento que não pode ser apreciado, no âmbito de um recurso de constitucionalidade, como já referimos.
Acresce que o recorrente não cumpriu o ónus de suscitação prévia de qualquer questão de constitucionalidade normativa, que pretendesse ver apreciada em ulterior recurso para o Tribunal Constitucional, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
De facto, analisada a motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra – peça processual em que o recorrente deveria ter suscitado ou renovado a suscitação da questão de constitucionalidade que pretendesse ver apreciada - verifica-se que, em nenhum momento, o recorrente enuncia uma questão de constitucionalidade de natureza verdadeiramente normativa, que pudesse considerar-se extraída dos preceitos identificados no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade.
Deste modo, face ao incumprimento do ónus de suscitação prévia de qualquer questão de constitucionalidade normativa, extraível dos preceitos identificados pelo recorrente, conclui-se que sempre estaria definitivamente prejudicada a admissibilidade de ulterior recurso para o Tribunal Constitucional, ainda que, no respetivo requerimento de interposição, o recorrente tivesse conseguido enunciar um específico critério normativo, suscetível de constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade, o que – como já explicitámos – não ocorreu.”
É esta a Decisão sumária que é alvo das presentes reclamações.
5. O reclamante B. defende que, ao contrário do que refere a decisão reclamada, identificou na motivação do recurso apresentado, nomeadamente nas conclusões com os n.os 16, 41, 45, 87 e 90 a 99, a “violação das normas [c]onstitucionais”.
Argumenta que estão em causa direitos constitucionais como o direito à defesa, o princípio da igualdade, o princípio da segurança jurídica, o princípio da legalidade, o princípio da justiça, o princípio da imparcialidade e ainda o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Conclui, nestes termos, pedindo a apreciação do recurso interposto.
6. O reclamante A. baseia a sua reclamação na afirmação de que, ao contrário do que refere a decisão reclamada, “tanto no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra, como no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, invocou a violação do princípio do contraditório previsto no artigo 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, especificando as circunstâncias em que ocorreu tal violação.”
Nestes termos, conclui pugnando pela admissão do seu recurso de constitucionalidade.
7. O Ministério Público respondeu, pugnando pelo indeferimento das reclamações deduzidas e manutenção da decisão sumária reclamada.
No tocante especificamente à reclamação apresentada por B., refere o Ministério Público que, nas conclusões da motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, o reclamante, embora refira a violação de princípios constitucionais, não enuncia minimamente qualquer questão de constitucionalidade de natureza normativa.
Quanto à reclamação apresentada por A., refere o Ministério Público que a fundamentação aduzida apenas reforça a conclusão a que se chegou na decisão sumária, quanto ao incumprimento do ónus de suscitação prévia de uma questão de constitucionalidade normativa. De facto, a inconstitucionalidade nunca foi imputada a qualquer norma ou interpretação normativa.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
8. A argumentação apresentada, nas reclamações deduzidas, não infirma a correção do juízo plasmado na decisão sumária proferida.
Relativamente à reclamação de B., salienta-se que as conclusões da motivação do recurso interposto da decisão condenatória da 1.ª Instância, a que foram atribuídos os n.os 16, 41, 45, 87 e 90 a 99, não contêm a enunciação de qualquer questão de constitucionalidade normativa, que pudesse constituir objeto idóneo de ulterior recurso de constitucionalidade.
Na verdade, o reclamante limita-se a invocar, nas referidas conclusões, a violação de normas e princípios constitucionais. Tais violações surgem, porém, associadas às concretas circunstâncias casuísticas e às decisões proferidas, não existindo, em nenhum momento, uma autonomização e enunciação de um específico critério normativo – enquanto regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica - extraível dos preceitos legais identificados no requerimento de interposição de recurso, a que o reclamante dedicasse uma reflexão de cariz jurídico-constitucional, de forma a poder dizer-se que suscitou, previamente, perante o tribunal a quo, uma questão de constitucionalidade de natureza normativa, idónea a constituir objeto de ulterior recurso de constitucionalidade.
Quanto à reclamação de A., igualmente se verifica que, na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra – peça processual em que o recorrente deveria ter suscitado ou renovado a suscitação da questão de constitucionalidade que pretendesse ver apreciada – não é enunciada qualquer questão de constitucionalidade de natureza verdadeiramente normativa, que pudesse considerar-se traduzida – ainda que imperfeitamente – no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, tal como já se salientou na decisão sumária proferida.
Pelo exposto e sendo certo que a decisão sumária proferida merece a nossa concordância, damos por reproduzida a sua fundamentação e, em consequência, concluímos pelo indeferimento das reclamações deduzidas.
III - Decisão
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 30 de outubro de 2013, e, em consequência, indeferir as reclamações apresentadas.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 21 de janeiro de 2014. – Catarina Sarmento e Castro – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral.