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Processo n.º 1109/13
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que é recorrente A., Ld.ª e recorrido o Instituto da Vinha e do Vinho, I.P., foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele tribunal, de 29 de maio de 2013.
2. Pela Decisão Sumária n.º 676/2013 decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.ºs 1 e 2, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:
«Constitui requisito do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC a suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade. A questão deve ser suscitada, durante o processo, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida (artigo 72.º, n.º 2, da LTC), ou seja, “a tempo de o tribunal recorrido poder decidir essa questão” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 155/95, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Nos presentes autos, este requisito não se pode dar como verificado, sendo certo que a recorrente não estava dispensado do ónus da suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade.
A recorrente pretende a apreciação de norma que reporta ao § 3 do artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), tendo questionado a sua conformidade constitucional já depois de ter sido proferido o acórdão recorrido – o acórdão de 29 de maio de 2013, mediante o qual foi negado provimento ao recurso interposto da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu.
E não colhe o argumento, tendo em vista a dispensa do ónus da suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade, que «o não reenvio prejudicial pela última instância de recurso de uma questão de interpretação de direito comunitário primário (…) só se colocou, pela primeira vez, com a prolação do Acórdão recorrido e respetiva interpretação/aplicação que foi feita do artigo 267.º do TFUE». No recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, a recorrente requer, «nos termos do art. 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, que a instância seja suspensa e se proceda ao reenvio do processo ao Tribunal de Justiça da União Europeia», pelo que devia então ter previsto a possibilidade de vir a ser feita a interpretação que reputa inconstitucional. Tanto mais quanto se trata de interpretação que reitera jurisprudência anterior (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça [Supremo Tribunal Administrativo] de 3 de julho de 2013, ponto 5.3.).
A não verificação daquele requisito do recurso de constitucionalidade obsta ao conhecimento do objeto do recurso, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC)».
3. Da decisão sumária vem agora a recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, com os seguintes fundamentos:
«No modesto entendimento da Recorrente, a questão de inconstitucionalidade colocou-se nos presentes autos em virtude da interpretação que foi feita pelo Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) no seu aresto, sobre a necessidade de pronúncia do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) quanto ao âmbito da obrigação de notificação prévia prevista no artigo 108.º, n.º 3, do Tratado de Funcionamento da União Europeia (“TFUE”).
Relembre-se que, nos termos do disposto no artigo 267.º do TFUE, o reenvio prejudicial só é obrigatório para o Tribunal superior (ou seja, para o Tribunal cuja decisão não é suscetível de recurso judicial previsto no direito interno).
Logo, é perante o respetivo não cumprimento do dever de reenvio, através de uma interpretação/aplicação do disposto no artigo 267.º do TFUE manifestamente inconstitucional, que vem invocada pela Recorrente semelhante inconstitucionalidade,
Que, pela sua própria natureza – por contrariar frontalmente o princípio do juiz legal/natural consagrado nos artigos 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, da Constituição e o disposto nos n.os 1 a 4 do artigo 8.º da Constituição -, era tudo menos expectável, não sendo exigível à Recorrente que levantasse em momento anterior essa questão de inconstitucionalidade.
De todo o modo,
A verdade é que a inconstitucionalidade da interpretação em causa foi suscitada na peça processual de arguição de nulidades do Acórdão proferido pelo STA, a fls. . dos autos,
Requerimento que pela sua própria natureza – relembre-se, arguição de nulidade do Acórdão proferido pela última instância -, só aquele Tribunal dispunha ainda de poder jurisdicional para apreciar e decidir.
Com efeito, ainda era jurisdicionalmente possível ao Tribunal, após a prolação da decisão final, pronunciar-se sobre as nulidades arguidas e, consequentemente, sobre a inconstitucionalidade apontada in casu – aliás, como o STA veio a fazer nos autos, com a prolação do Acórdão de 3 de Julho de 2013.
Se, na verdade, o poder jurisdicional do STA quanto a essa questão da inconstitucionalidade da interpretação/aplicação que fez do disposto no artigo 267.º, n.º 3, do TFUE, se tivesse esgotado com a prolação da decisão final, não poderia o mesmo Tribunal ter-se sobre a mesma pronunciado,
O que – repita-se - não sucedeu no caso, tendo o STA apreciado, com efeito, a inconstitucionalidade invocada, reexaminando essa questão e fundamentado a sua interpretação do disposto no artigo 267.º, n.º 3, do TFUE,
Interpretação cuja inconstitucionalidade foi, assim, tempestivamente, suscitada durante o processo pela Recorrente e que motivou, ainda, um reexame dessa questão e uma apreciação por parte do Tribunal Superior que a havia consagrado.
Caso o STA não tivesse sido confrontado com uma questão de inconstitucionalidade normativa, em especial, relativa ao artigo 267.º, n.º 3, do TFUE, nunca sobre a mesma se teria debruçado como o fez no Acórdão proferido em 3 de Julho de 2013.
Razão pela qual se encontra cumprido, in casu, no modesto entendimento da Recorrente, o critério de suscitação tempestiva e processualmente adequada da questão de inconstitucionalidade, tendo o Tribunal recorrido sido, na verdade, confrontado com uma verdadeira questão de inconstitucionalidade.
Note-se, por fim, que o alcance da obrigação de notificação prévia previsto no atual artigo 108.º, n.º 3, do TFUE, e não abrangência da medida parafiscal em causa nos autos por essa obrigação, vem a ser o parâmetro da decisão proferida pelo STA nos autos,
Não tendo esse Tribunal, no entanto, procedido à interpretação correta da referida obrigação (inclusivamente perante a decisão da Comissão de iniciar um procedimento de averiguações de auxílio estatal ilegal), nem permitindo que a instância autorizada em último grau a proceder à interpretação do direito da União Europeia o fizesse.
Desta forma, no caso em apreço, é manifesto que a interpretação efetuada do artigo 267.º, n.º 3, do TFUE no sentido de autorizar o Tribunal recorrido a denegar o reenvio prejudicial pela última instância (reenvio tendente a obter a correta interpretação do alcance da obrigação de notificação prévia prevista no n.º 3 do artigo 108.º do TFUE em face da medida parafiscal em causa nos autos), viola o princípio constitucional do juiz natural ou legal,
Na medida em que o juiz comunitário vem a ser o intérprete último do artigo 108.º do TFUE, pois só ele pode garantir a aplicação uniforme do direito da União Europeia, que é acolhido diretamente no nosso ordenamento por força do disposto nos n.os 1 a 4 do artigo 8.º da Constituição.
Razão pela qual, no modesto entendimento da Recorrente, a questão de inconstitucionalidade da norma de que o Tribunal a quo fez aplicação nos autos, decorrente da violação do princípio constitucional do juiz legal ou natural, entra nos poderes de cognição deste Alto Tribunal».
4. Notificado da presente reclamação, o recorrido não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A decisão reclamada concluiu no sentido do não conhecimento do objeto do recurso interposto, por não se poder dar como satisfeito o requisito da suscitação prévia da questão de constitucionalidade que a recorrente reportou ao § 3 do artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC).
A reclamante começa por alegar que só com a prolação do acórdão recorrido é que se colocou nos presentes autos a questão de inconstitucionalidade, em virtude da interpretação que foi feita pelo Supremo Tribunal Administrativo. Este entendimento não é, porém, compatível com a razão de ser do requisito da suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade cuja apreciação se pretende.
A questão deve ser suscitada, durante o processo, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida (artigo 72.º, n.º 2, da LTC), ou seja, “a tempo de o tribunal recorrido poder decidir essa questão” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 155/95, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). E bem se compreende que a questão de inconstitucionalidade tenha de ser suscitada antes de estar esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que tal questão respeita, pois só deste modo se cumpre a exigência, consagrada no artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, no sentido de o Tribunal Constitucional dever reapreciar uma questão já julgada pelo tribunal recorrido e, consequentemente, não dever conhecer dela ex novo.
Não colhe, por isso, a argumentação de que a questão de inconstitucionalidade foi depois suscitada na peça processual de arguição de nulidades do acórdão recorrido. Quando foi conhecida esta arguição de nulidades, em 3 de julho de 2013, já se havia esgotado o poder jurisdicional Supremo Tribunal Administrativo sobre a matéria a que respeita a questão de inconstitucionalidade normativa. Por outro lado, diferentemente do sustentado pela reclamante, o tribunal recorrido não conheceu de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa por referência ao § 3 do artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia. Do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 3 de julho de 2013 decorre que foi apreciada a arguição de nulidade do acórdão de 29 de maio de 2013 por inconstitucionalidade decorrente da omissão do dever de reenvio prevista no parágrafo 3 do artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, concluindo-se que «não procede, pois, a invocada nulidade do acórdão por inconstitucionalidade».
Há que confirmar, pois, a decisão que é objeto de reclamação. Sem prejuízo de se entender que se, por um lado, não compete a este Tribunal apreciar uma eventual violação do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, por outro, uma eventual violação do direito da União, por entidades nacionais, não se traduz, ao nível interno, numa violação da própria Constituição (Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 6/2012, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 12 de fevereiro de 2014. – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral.
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc//tc/acordaos/20140130.html ]