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Processo n.º 695/13
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A A., Lda., recorrida nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, intentou contra os ora recorrentes B., Lda., C. e D., ação declarativa comum sob a forma ordinária, formulando vários pedidos em alternativa relacionados com o direito de preferência cuja titularidade se arrogava, na qualidade de arrendatária, relativamente a diversos prédios. Por sentença de 26 de setembro de 2011, foi a ação julgada improcedente.
Interposto recurso pela ora recorrida, o Tribunal da Relação de Évora negou-lhe provimento. Subsequentemente, foi interposta revista para o Supremo Tribunal de Justiça. Por acórdão de 22 de janeiro de 2013, este último concedeu parcial provimento à revista (fls. 1692 e seguintes).
Inconformados com tal decisão, os ora recorrentes arguiram nulidades da mesma, tendo igualmente requerido a reforma quanto a custas. Estes pedidos foram indeferidos por acórdão de 11 de junho de 2013.
Irresignados, vieram então os recorrentes interpor recurso de constitucionalidade, com fundamento no disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, adiante referida como “LTC”).
A fls. 1866 e seguintes foi proferida a Decisão Sumária n.º 545/2013 de não conhecimento do recurso de constitucionalidade com os seguintes fundamentos:
« 4. O presente recurso diz respeito a decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (cfr. artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, e artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC). No caso em apreço, os recorrentes sustentam que, na medida em que a decisão recorrida configurou uma «decisão-surpresa», não lhes foi possível suscitar a inconstitucionalidade em momento anterior. Sem necessidade de nos debruçarmos sobre a questão de saber se, em termos objetivos, nos encontramos de facto perante uma «decisão surpresa» apta a dispensar o cumprimento deste ónus do recurso de constitucionalidade interposto – o que, no entanto, se afigura bastante duvidoso – é suficiente apurar, para os presentes efeitos, que, mesmo que assim fosse, sempre impenderia sobre os recorrentes o ónus de procederem à suscitação das inconstitucionalidades na primeira oportunidade processual de que dispuseram para o efeito. Tal não sucedeu uma vez que, notificados da alegada «decisão-surpresa», os recorrentes arguíram primeiramente a respetiva nulidade, com diversos fundamentos, tendo a suscitação de inconstitucionalidade ocorrido apenas posteriormente, após a decisão sobre tais requerimentos.
5. Ainda que tal não tivesse ocorrido, sempre o recurso de constitucionalidade estaria votado ao não conhecimento devido à ausência de outro pressuposto. Como se sabe, este recurso pressupõe a suscitação da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado (cfr. artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Constitui jurisprudência uniforme e constante do Tribunal Constitucional que o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa, tem de incidir sobre o critério normativo da decisão, sobre uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a sindicar o puro ato de julgamento, enquanto ponderação casuística das singularidades próprias do caso concreto e autónoma valoração ou subsunção do julgador – não existindo no nosso ordenamento jurídico-constitucional a figura do recurso de amparo ou de queixa constitucional para defesa de direitos fundamentais.
A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a uma interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente à decisão judicial que faz aplicação da mesma radica em que, na primeira hipótese, é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com caráter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto, na segunda hipótese está, em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto (cfr. o Acórdão deste Tribunal n.º 138/2006, disponível, assim como os demais adiante citados, em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
Segundo jurisprudência firme do Tribunal Constitucional, “[s]uscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo claro e percetível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido” (Acórdão n.º 269/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Como se afirma no Acórdão n.º 367/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, “[a]o questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há de ser enunciado de forma a que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição.”
Os recorrentes não lograram identificar, no entanto, relativamente a nenhuma das questões de constitucionalidade suscitadas, o critério normativo que lhes iria subjacente, através da enunciação de um parâmetro de conduta, extraível dos preceitos legais cotejados, e que teria sido aplicado, enquanto ratio decidendi, na pronúncia recorrida. O que os recorrentes se limitaram a fazer foi a questionar a «interpretação perfilhada pelo Acórdão recorrido» e a questionar a constitucionalidade dos preceitos «na interpretação que lhes foi dada pelo Acórdão recorrido» ou «interpretação e aplicação de forma implícita». A utilização destas fórmulas – e de outras similares – não traduz o cumprimento do ónus de suscitação adequada dos problemas de inconstitucionalidade. Com efeito, a mera alusão à interpretação que terá sido feita pelo aresto recorrido equivale a deslocar para este Tribunal Constitucional a delimitação concreta do objeto do recurso – o que é, obviamente, inaceitável.
6. Refira-se, por último, que, relativamente a todas as questões suscitadas, o que transparece, em face da não concretização do objeto do recurso a que se aludiu no ponto anterior, é a imputação da inconstitucionalidade à própria decisão judicial o que traduz um objeto inidóneo do presente recurso uma vez que o mesmo se reporta, em exclusivo, à análise de questões de constitucionalidade normativa, nele não cabendo a fiscalização da eventual inconstitucionalidade da decisão nem de modo como tribunal quo interpretou e aplicou o direito infraconstitucional.
Tanto basta para que se conclua, desde já, pela impossibilidade de conhecimento do objeto do presente recurso.»
2. Notificados desta decisão, os recorrentes deduziram reclamação para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, adiante referida como “LTC”), invocando o seguinte:
« Suscitação prévia de inconstitucionalidade
3. Conforme foi alegado no requerimento de interposição do recurso, pontos 5 e 9, os recorrentes foram surpreendidos com uma decisão inesperada do Tribunal recorrido, em sentido completamente contrário às três decisões unânimes anteriormente proferidas pelas instâncias. (a primeira decisão foi anulada para possibilitar a ampliação da matéria de facto)
4. Entendeu a decisão reclamada que os recorrentes deveriam suscitar as questões de inconstitucionalidade, depois da notificação da decisão surpresa e quando arguiram a nulidade e reforma do Acórdão.
5. A invocação da inconstitucionalidade durante o processo, art. 70 nº 1 b) da LTC até à decisão, destina-se a possibilitar ao Juiz a sua apreciação quando da decisão da causa.
6. Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional, não podendo o Juiz pronunciar-se sobre a questão da inconstitucionalidade em incidente pós decisório, mas tão só proceder à retificação de erros materiais, suprimento de nulidades e reforma da sentença quanto a custas e multas - artigo 613º e segs do CPC.
7. A invocação da inconstitucionalidade efetuada em sede de reclamação da decisão final, vem sendo considerada pela Jurisprudência do TC como não atempada:
- “os incidentes pós-decisórios não são já meios idóneos e atempados para suscitar – em vista de ulterior recurso para este Tribunal – a questão de inconstitucionalidade relativa a matéria sobre a qual o poder jurisdicional do Juiz a quo se esgotou com a decisão e num momento em que já não lhe é possível tomar posição sobre a mesma, apenas se dispensando o recorrente do ónus de invocar a inconstitucionalidade durante o processo nos casos excecionais e anómalos em que este não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em momento subsequente. Acs. do TC 61/92, 366/96 e 100/2011”.
8. Os recorrentes conforme alegado no requerimento de interposição de recurso e conforme está demonstrado nos autos, estavam dispensados do ónus da suscitação prévia das questões da inconstitucionalidade.
Questão de inconstitucionalidade – objeto do recurso
9. Refere o art. 75-A do LTC:
1 . O recurso para o Tribunal Constitucional interpõe-se por meio de requerimento, no qual se indique a alínea nº 1 do artigo 70º ao abrigo da qual o recurso é interposto e a norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie.
2. Sendo o recurso interposto ao abrigo das alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 70º, do requerimento deve ainda constar a indicação da norma ou princípio constitucional ou legal que se considera violado, bem como da peça processual em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade.
10. Conforme se verifica pelo requerimento de recurso, os recorrentes indicaram as normas cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie e a norma ou princípio constitucional ou legal que se encontra violado.
11. Nos termos das referidas disposições legais isto é o suficiente para a admissão do recurso e para dar como verificados os requisitos previstos no art. 75-A n/s 1 e 2 do LTC.
12. Se no requerimento de interposição de recurso não tivessem sido indicados os elementos previstos na citada disposição legal, o Exmº Relator do TC, art. 75-A nº 6 teria de formular o convite aos recorrentes para aperfeiçoarem o requerimento nos termos do art. 75-A nº 5, pois se assim não fosse estaríamos perante uma restrição do direito de acesso à justiça, art. 20 nº 1 da CRP.
13. Como vem referido na decisão proferida:
- “Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o Tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo claro e percetível, indicando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição, e reclama, bem assim, que se aponte o porque dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido. (Acórdão nº 269/94)
14. Os requerentes no seu requerimento de interposição de recurso identificaram de forma rigorosa e precisa as normas aplicáveis pelo Tribunal, que no entender dos recorrentes são inconstitucionais e bem assim as normas e princípios constitucionais violados.
15. Refere ainda a decisão reclamada:
- “Como se afirma no Acórdão 367/94, ao questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do preceito em causa. Mais ainda, esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há de ser enunciado de forma a que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, desde modo, afrontar a Constituição”.
16. Entendemos que a fundamentação da incompatibilidade da interpretação de uma norma legal com a Constituição e do sentido segundo o qual não deve ser aplicada por forma a não a violar, esta reservada para a fase das alegações de recurso e não tem de ser invocada com a sua interposição, art. 75-A nºs 2 e 3 da LTC.
17. Os recorrentes no entanto, com a interposição do recurso, pontos 16, 21, 27, 30, 36, 46, 50, 57 e 60 indicaram desde logo os critérios normativos na interpretação que lhes foi dada pelo Tribunal, como ratio decidendi, e o sentido com que as normas deveriam ser aplicadas para não afrontarem a Constituição:
Ponto 16 – O art. 732--A nº 2 do CPC na interpretação perfilhada pelo Acórdão recorrido, aplicado de forma implícita como ratio decidendi ao não ter assegurado por via do julgamento ampliado de revista a uniformalização da jurisprudência do STJ, é inconstitucional por violação da garantia constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional previsto no art. 20 nº 1 da CRP.
Ponto 21 – Os arts. 268, 272, 273 e 506 nº 3 do CPC na interpretação que lhes foi dada pelo Acórdão recorrido, segundo a qual decidiu sobre uma questão nova, e que nos termos das mesmas disposições legais não se podia pronunciar, uma vez que depende de prova de matéria de facto vedada ao STJ, e que foram o fundamento da ratio decidendi da decisão recorrida, são inconstitucionais por violarem as garantias do direito de acesso dos recorrentes ao direito e tutela jurisdicional previstas no art. 20 nº1 da CRP.
Ponto27 – Os arts. 72º nº 3 e72º nº 2 do CPC na interpretação e aplicação de forma implícita foram a ratio decidendi do Acórdão recorrido para alterar a prova fixada pelas instâncias, que pela aplicação das referidas disposições legais estava impedido de fazer, violam os princípios constitucionais do acesso ao direito e à tutela jurisdicional e da garantia de um processo equitativo e justo previstos no art. 20 nºs 1 e 4 da CRP.
Ponto 30 – O art. 517 do CPC na interpretação que lhe foi dada nos autos e aplicado deforma implícita como ratio decidendi ao não ter sido aplicado de forma a assegurar o princípio do contraditório é inconstitucional por violar o art. 20 nºs 1 e 4 da CRP.
Ponto 36 – Os arts. 660 nº 2, 668 nº 1 d) primeira parte e 715 nº 2 do CPC, na interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal e aplicados pelo Acórdão recorrido de forma implícita como ratio decidendi ao não serem aplicados por forma a conhecer as exceções invocadas são inconstitucionais e violam a garantia constitucional da exigência de um processo equitativo prevista no art. 20 nºs 1 e4 da CRP.
Ponto 46 – Os arts. 661 e 668 nº 1 d) última parte, 726 do CPC e arts. 240 e 241 do CC aplicados pelo Tribunal embora de forma implícita, com o sentido interpretativo segundo o qual conheceu e decidiu sobre a questão que não podia tomar conhecimento, quando nos termos das referidas disposições não o podia fazer, são inconstitucionais por violarem as garantias do art. 20 nºs 1 e 4 da CRP, que não permitem conhecer e decidir para além do pedido e respetiva causa de pedir formulados na sua PI.
Ponto 50 – Os arts. 158 e 668 nº 1 b) do CPC na interpretação que lhe foi dada pelo Acórdão recorrido e aplicados de forma implícita como ratio decidendi e que conduziram à total ausência de motivação de facto, quando por via dessas disposições legais deveria ter fundamentado a decisão, padecem de inconstitucionalidade por violação do art. 205 nº 1 da CRP.
Ponto 57 – Os arts. 671 nº 1 e 673 do CPC, com o sentido interpretativo que lhes foi dado pelo Acórdão recorrido e como ratio decidendi, no pressuposto errado que a exceção da nulidade do arrendamento já tinha sido nos autos objeto de decisão com transito em julgado, ao conduzirem à ausência total de fundamentação da decisão, são inconstitucionais, violando o art. 205 nº1 da CRP.
Ponto 60 – Os arts. 342 nº 2 e 1410 do CC e art. 516 do CPC na interpretação que lhe foi dado pelo Acórdão recorrido como ratio decidendi, na base de pressupostos errados e contra a prova assente nos autos para decidir pela inexistência da caducidade do exercício do direito de preferência, são inconstitucionais por violarem as garantias do art. 205 nº 1 da CRP.
18. Não faz assim qua1quer sentido, salvo o devido respeito, o que vem referido na decisão, nomeadamente que os recorrentes:
- Não lograram identificar, no entanto, relativamente a nenhuma das questões de constitucionalidade suscitadas, o critério normativo que lhes iria subjacente, através da enunciação de um parâmetro de conduta, extraível dos preceitos legais cotejados, e que teria sido aplicado, enquanto ratio decidendi, na pronúncia recorrida.
- o que os recorrentes se limitaram a fazer foi a questionar a interpretação perfilhada pelo acórdão recorrido ou a interpretação e aplicação deforma implícita
19. O objeto do recurso, como é referido no ponto 2 do requerimento, é a inconstitucionalidade das disposições legais referidas, que na interpretação perfilhada pelo Acórdão recorrido e aplicadas como ratio decidendi violaram as garantias consignadas nos arts. 20 n/s 1 e 4 e 205 da CRP.
20. O que está em causa na interposição do recurso, é tão só a interpretação normativa e não uma interpretação da decisão judicia1 em si mesma considerada.
21. O objeto do recurso não é assim a decisão do Tribunal, mas o segmento da decisão judicial re1ativo às normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada, ou seja, tão só as normas a que se reporta a questão da inconstitucionalidade.
22. A apreciação da constitucionalidade normativa não pode ser desligada da dimensão interpretativa do Tribunal ao aplicar as normas, que como ratio decidendi, violam os princípios constitucionais.
23. É assim, que vem sendo entendido pelo TC:
- Trata-se sempre de uma norma interpretativamente mediatizada pela decisão recorrida, porque a norma deve ser apreciada no recurso segundo a interpretação que lhe foi dada nessa decisão, Acórdãos TC 69/87, 75/87, 388/87, 127/88, 235/91, 136/92 e 141/92.
24. A aplicação da norma ou a sua desaplicação por inconstitucionalidade não tem de ser expressa, podendo ser implícita, Acórdãos do TC 406/87, 429/89, 119/90 e 354/91.
Em face do exposto e tendo em consideração, como se comprova pelos autos, que os recorrentes não tiveram a oportunidade e não puderam suscitar atempadamente no processo a questão da constitucionalidade, e constando do requerimento de interposição do recurso todos os elementos previstos no art. 75-A nºs 1 e 2 da LTC, deverá a presente reclamação ser julgada procedente e apreciado o objeto do recurso.»
3. A recorrida Sociedade Agropecuária Cristino e Prates, Lda. pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação (fls. 1906).
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
4. A decisão de não conhecimento do recurso assentou nos seguintes fundamentos: (i) em primeiro lugar, e mesmo que se admitisse a invocada dispensabilidade, em concreto, da suscitação da inconstitucionalidade durante o processo, sempre subsistiria o facto de que os recorrentes não aproveitaram, como lhes competia, a primeira oportunidade processual para efetuarem tal suscitação, a qual, in casu, ocorreu ainda perante o tribunal recorrido; (ii) em segundo lugar, e a título subsidiário face ao primeiro fundamento, o não conhecimento assentou no facto de a inconstitucionalidade não ter sido suscitada de modo processualmente adequado, uma vez que os recorrentes não identificaram – relativamente a nenhuma das questões de constitucionalidade por si identificadas – o critério normativo subjacente a cada uma delas; (iii) por fim, e em decorrência do segundo fundamento, o não conhecimento alicerçou-se na inidoneidade do objeto do recurso o qual surge configurado, na verdade, como o próprio ato decisório recorrido.
Os recorrentes, ora reclamantes, vêm insurgir-se contra o não conhecimento do recurso. Dizem, no essencial, o seguinte:
- Quanto a (i): uma vez que a decisão recorrida revestiu o caráter de decisão-surpresa encontravam-se dispensados de suscitar a inconstitucionalidade em momento prévio à prolação da mesma;
- Quanto a (ii): no seu requerimento de recurso «identificaram de forma rigorosa e concisa as normas aplicáveis pelo Tribunal (…) e bem assim as normas e princípios constitucionais violados», considerando que a fundamentação da incompatibilidade da interpretação de uma norma legal com a Constituição e do sentido segundo o qual não deve ser aplicada por forma a não a violar, está reservada para a fase das alegações de recurso, art. 75.º-A, n.ºs 2 e 3 da LTC»; e
- Quanto a (iii): «os recorrentes (…) com a interposição do recurso (…) indicaram desde logo os critérios normativos na interpretação que lhes foi dada pelo Tribunal, como ratio decidendi, e o sentido com que as normas deveriam ser aplicadas para não afrontarem a Constituição», sendo que «o objeto do recurso (…) é a inconstitucionalidade das disposições legais referidas (…) na interpretação perfilhada pelo acórdão recorrido», pelo que «o objeto do recurso não é assim a decisão do Tribunal, mas o segmento da decisão judicial relativo às normas a que se reporta a questão da inconstitucionalidade».
Analisemos de seguida cada um dos fundamentos assim sintetizados.
5. O que é dito a propósito da inexigibilidade de suscitação da inconstitucionalidade durante o processo não tem a capacidade de produzir qualquer efeito ao nível da pretendida alteração do sentido adotado na decisão ora reclamada. Na verdade, uma leitura atenta desta última deixa claro que a ausência de suscitação da inconstitucionalidade durante o processo anterior à prolação do acórdão recorrido não foi o fundamento do não conhecimento do recurso. Diversamente, entendeu-se na decisão ora reclamada que, mesmo subsistindo dúvidas quanto ao facto de a decisão recorrida ter consubstanciado uma verdadeira surpresa para efeito de dispensa de cumprimento do ónus de suscitação prévia, o certo é os recorrentes não cumpriram esse ónus mesmo num tal quadro em que se deparam com uma decisão-surpresa, e que se traduz na necessidade de suscitar a inconstitucionalidade processual na primeira oportunidade processual disponível para o efeito. O respetivo cumprimento implicaria, assim, que os recorrentes suscitassem as inconstitucionalidades na arguição de nulidade do acórdão de 22 de janeiro de 2013, de modo a confrontar o tribunal recorrido com as mesmas, ainda que após a decisão final por ele proferida.
Quanto a este aspeto – que constitui, na verdade, o primeiro fundamento da decisão reclamada, os recorrentes limitam-se a referir a jurisprudência deste Tribunal referente à inidoneidade dos incidentes pós-decisórios para suscitar questões de constitucionalidade (Acórdãos n.ºs 61/92, 366/96 e 100/2011), considerando-se, por isso, dispensados do ónus de suscitação prévia das questões de constitucionalidade (cfr. os pontos 7 e 8 da reclamação). Contudo, não é esse o problema equacionado na decisão reclamada.
Na verdade, mesmo nos casos em que a parte esteja dispensada da prévia suscitação da questão de constitucionalidade, antes de proferida a decisão recorrida, deve colocá-la na primeira oportunidade processual subsequente, sob pena de extemporaneidade, já que só assim se garante que tal questão é colocada à apreciação jurisdicional no momento mais próximo em que a mesma emergiu e que se esgotaram efetivamente os instrumentos processuais, na disponibilidade do recorrente, para provocar uma primeira apreciação da referida questão no âmbito da ordem jurisdicional competente para a dirimição da causa (cfr. LOPES DO REGO, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, Coimbra, 2010, p. 83 e ss.; e os Acórdãos deste tribunal n.ºs 612/99, 185/2001, 198/2001 e 586/2006). Esta é, na verdade, a solução mais consentânea com a natureza de instância de recurso que o Tribunal Constitucional assume no âmbito dos processos de fiscalização concreta da constitucionalidade.
Ora, sobre esta premissa da decisão de não conhecimento do recurso de constitucionalidade, os recorrentes nada dizem na sua reclamação, pelo que aquela decisão se deve manter inalterada.
6. Em segundo lugar, os recorrentes sustentam que terão identificado no seu requerimento de recurso, de modo conciso e rigoroso, as normas que integram o respetivo objeto. Contudo, tal não se afigura exato.
O que foi identificado e autonomizado no requerimento de recurso, a propósito de cada uma das questões, foi o bloco normativo a que se assacaria a «interpretação perfilhada pelo acórdão recorrido» e o reflexo que a mesma teve em termos decisórios, seja por exemplo, através da invocada alteração da prova fixada pelas instâncias (cfr. questão relativa aos artigos 722.º, n.º 3 e 729.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), do conhecimento de exceções invocadas (cfr. questão relativa aos artigos 600.º, n.º 2, 668.º, n.º 1, d), primeira parte e 715.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), ou do conhecimento e decisão de questões que estariam vedadas à jurisdição do tribunal a quo (cfr. questão relativa aos artigos 661.º, 668.º, n.º 1, alínea d), última parte e 726.º do Código de Processo Civil). Em nenhuma das questões autonomizadas pelos recorrentes se encontra – sequer tentativamente – a enunciação do critério normativo subjacente à decisão recorrida e que seria apto a integrar o objeto de um recurso de constitucionalidade.
E, como se disse na decisão reclamada e agora se reitera, não basta, como é óbvio, identificar tal critério através de referências à interpretação que terá sido acolhida pelo tribunal a quo sem que se tente densificar que interpretação será essa. A conformação do objeto do recurso é tarefa que compete aos recorrentes e que estes não podem deslocar para a esfera do Tribunal Constitucional.
Por aqui falece, também, o argumento dos recorrentes ora reclamantes supra identificado em terceiro lugar, uma vez que, ao contrário do que agora sustentam, o certo é que os mesmos não indicaram os critérios normativos subjacentes a cada uma das questões de inconstitucionalidade. Limitaram-se a propugnar o sentido decisório que não deveria ou poderia ser adotado o que, na verdade, equivale à imputação da inconstitucionalidade à própria decisão judicial, sob a máscara de uma ficcionada inconstitucionalidade normativa – a qual nunca é devidamente concretizada.
7. Por último, ainda quanto ao argumento invocado pelos reclamantes em segundo lugar, convoca-se o acervo consolidado da jurisprudência constitucional que esclarece que a suscitação adequada do problema de constitucionalidade implica que o tribunal a quo seja confrontado com a identificação de uma norma, em termos claros e percetíveis, seguida da enunciação das razões que devem justificar a respetiva recusa de aplicação nos termos do artigo 204.º da Constituição – só assim se considera que ocorreu uma suscitação de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado, nos termos previstos no artigo72.º, n.º 2, da LTC (cfr., a título de exemplo, o Acórdão n.º 367/94).
Os recorrentes ora reclamantes entendem que tal procedimento apenas é devido em sede de alegações, face ao disposto no artigo 75.º-A, n.ºs 1 e 2, da LTC. Parecem, no entanto, olvidar que este preceito se refere a elementos que devem constar do requerimento de interposição do recurso. Tais elementos (do requerimento de recurso) não se confundem com os pressupostos do próprio recurso os quais não podem ser supridos através do despacho previsto no artigo 75.º-A, n.º 5, da LTC – este despacho apenas terá por objeto suprir menções obrigatórias do requerimento do recurso, a que se reportam os tais n.ºs 1 e 2 do mesmo preceito. Em caso de ausência de pressuposto do recurso (designadamente pelo facto de não ter sido observado o ónus de suscitação adequada da questão de constitucionalidade ou de a mesma não revestir um caráter normativo), as consequências serão inelutáveis e a eventual prolação de tal despacho nessas condições consubstanciar-se-ia na prática de ato inútil.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar o reclamante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 4 de janeiro de 2014. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.