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Processo n.º 142/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., S.A., intentou a presente ação declarativa de condenação, na forma ordinária, contra o Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (Infarmed) e o Estado Português, para efetivação de responsabilidade civil extracontratual por atos de gestão pública, pedindo a condenação dos réus no pagamento da quantia de Esc. 954.367.243$00.
Por decisão proferida pela 6.ª Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Lisboa, em 12 de fevereiro de 2007, o réu Estado Português foi julgado parte ilegítima e absolvido da instância, sendo a ação, no mais, julgada improcedente, com a consequente absolvição do réu Infarmed do pedido, por prescrição do direito da autora e, ainda que não procedesse tal exceção perentória, por o direito nunca se ter constituído.
Inconformada, a autora interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo (STA) que, por acórdão de 28 de novembro de 2007, negou provimento ao recurso e, consequentemente, confirmou a decisão recorrida, embora com diferente fundamentação, com a seguinte ordem de considerações:
«(…) A decisão recorrida julgou improcedente a ação dos autos por prescrição do direito da autora ou, caso não se verificasse essa exceção perentória, por o mesmo direito nunca se haver constituído – pois tal constituição dependia de ter havido um ato de indeferimento tácito, a emergência deste ato supunha, por sua vez, que o Infarmed tivesse o dever legal de decidir em certo prazo e, por anomalias havidas no «licenciamento do …», esse dever legal não chegara a existir. Portanto, o saneador-sentença exibe uma fundamentação dupla, convergente para um único resultado. Mas, não havendo dúvida de que, à luz da sua própria economia, o primeiro e principal motivo da pronúncia emitida foi a prescrição, temos que o conhecimento dessa matéria agora se nos apresenta como prioritário.
Na petição inicial, a autora afirmara que o Infarmed, «ex vi» do art. 9º, n.º 1, do DL n.º 72/91, de 8/2 – que fixava em 120 dias, contados «da data de entrada do pedido», o prazo para se autorizar a comercialização de um medicamento – tinha o dever legal de decidir até 30/8/94 o pedido dela, de «autorização de introdução no mercado» do medicamento designado como «B… »; e, como o Infarmed só deferiu esse pedido em 24/6/98, a autora disse-se impedida de comercializar o medicamento durante quase quatro anos e privada, portanto, dos lucros correspondentes – sendo esse o prejuízo de que pretende ser ressarcida.
Para considerar prescrito tal direito da autora, o Mm.º Juiz «a quo» raciocinou assim: a autora fundou o invocado direito de indemnização numa única premissa – o incumprimento, por parte do Infarmed, do dever legal de decidir num certo prazo; ora, e porque ela tomou conhecimento da existência do seu alegado direito mal terminou esse prazo, deve concluir-se que, por via do art. 498º, n.º 1, do Código Civil, a prescrição do direito já ocorrera há muito quando a autora, em 5/6/2001, interpôs a ação dos autos.
Contra isto, a autora e aqui recorrente afirma, no essencial, o seguinte: o direito de ser indemnizada baseia-se no facto de o Infarmed ter deferido tardiamente a sua pretensão; portanto, só com o ato de deferimento, prolatado em 24/6/98, ela tomou conhecimento do direito de indemnização que lhe compete – pelo que a ação foi proposta antes do decurso do prazo prescricional e, ademais, a tempo de o interromper nos termos do art. 323º, n.º 2, do Código Civil.
Contudo, esta construção da recorrente é inadmissível. O direito de indemnização não pode repousar num «deferimento», ainda que qualificado de tardio, pois esse foi, «a se», um ato que trouxe aos interesses da recorrente efeitos necessariamente positivos. Seja qual for o desvalor que os adjetivos lhe emprestem, o substantivo «deferimento» invoca, por si mesmo, algo de vantajoso para a autora – e, nessa exata medida, algo em que ela não pode pretender escorar pretensões indemnizatórias.
E, todavia, também a sentença não detetou com inteiro acerto o fundamento último do direito invocado pela autora. Se deveras existe no plano substantivo, tal direito não poderá advir do mero incumprimento de um dever, a cargo do Infarmed, de decidir num certo prazo. É que esse direito é de indemnização pelos danos resultantes da não comercialização de um medicamento; logo, tais danos nunca ocorreriam se o Infarmed acabasse por justificadamente indeferir a pretensão da autora, mesmo que o fizesse muito depois do termo de algum prazo marcado na lei para o efeito.
Nesta linha de raciocínio, aquilo que realmente subjaz à pretensão indemnizatória dos autos é o alegado incumprimento, imputável ao Infarmed, de um dever jurídico de deferir num certo prazo o pedido da autora. Pois, afinal, os danos cujo ressarcimento ela reclama advêm de uma suposta omissão temporária – uma demora – que precisamente consiste em o Infarmed haver cumprido tarde um dever de deferir que era observável antes.
As partes não estão de acordo quanto à data exata em que o procedimento relativo à introdução do … no mercado estava devidamente instruído e pronto para decisão. Mas, a este propósito, duas únicas posições constam dos autos: a da recorrente, que afirma ter sido possível, e ademais devido, decidir-se a sua pretensão até 30/8/94 – nisso mesmo se filiando a existência e a extensão dos danos invocados como ressarcíveis; e a do Infarmed, que defende que o procedimento só ficou em condições de ser decidido no momento em que deveras o foi. Ora, e nos termos gerais do art. 342º do Código Civil («vide» os seus ns.º 1 e 3), à autora incumbia alegar e provar os factos demonstrativos de que a decisão podia e devia ter surgido numa data anterior à real, pois essa anterioridade era um dos requisitos do «..» e do «…» dos danos que ela crê serem indemnizáveis. E, como essa sua alegação existe e só se reporta àquela data de 30/8/94 – pois a autora, e bem, prescindiu de argumentar com base numa putativa continuação dos danos – é por referência ao direito que ela assim desenha e exerce que temos de apreciar se ocorre a exceção perentória da prescrição. O que vale por dizer que, no juízo acerca da prescrição, partiremos da única hipótese a que a autora arrimou o seu suposto direito de crédito – a de que o prazo de 120 dias, de que o Infarmed dispunha para decidir nos termos do art. 9º do DL n.º 72/91, realmente terminara em 30/8/94.
A ser assim, e ante o que se preceitua no art. 498º, n.º 1, do Código Civil, é sobretudo de questionar se foi nessa mesma data que a autora «teve conhecimento do direito» de indemnização que ela crê competir-lhe em virtude da inação do Infarmed. «Prima facie» dir-se-ia que não, pois a mera passagem do prazo de 120 dias, sem a antecipada certeza de que o pedido merecesse deferimento, continuaria a não revelar a existência de danos (mesmo que numa extensão forçosamente indeterminada). Mas esta tese, que se reconduziria à ideia falaz de que o pedido dos autos radicava num «deferimento tardio», não pode colher – como acima já dissemos.
Na verdade, a questão do «conhecimento do direito» (conhecimento fundador do «dies a quo» do prazo prescricional) põe-se e resolve-se à luz da perspetiva que a autora assumiu no seu relacionamento com a Administração: se ela enunciou o seu pedido com seriedade e boa fé (que é o contrário de o fazer de modo astucioso ou temerário), é porque achava que tinha o direito (ao menos procedimental) de obter o respetivo deferimento; e, aliás, é assim que a autora nos apresenta o seu requerimento inaugurador do procedimento administrativo, pois clama nestes autos que tudo conduzia a que o Infarmed devesse rapidamente satisfazer os seus interesses, deferindo a pretendida comercialização. Deste modo, a perspetiva da autora era, «ab initio», a de que tinha direito, e em prazo curto, ao deferimento pedido, sendo essa a razão por que o pediu. Daí que ela, logo que passou o prazo de 120 dias (ocasião que a autora situa em 30/8/94), pudesse constatar que a inércia do Infarmed violava os seus direitos e interesses e lhe trazia danos – ainda que, nesse momento, a extensão deles não se mostrasse determinável.
Isto significa que a ora recorrente, mal se perfizeram os 120 dias sem que o Infarmed decidisse a sua pretensão (em 30/8/94, como ela diz), tomou conhecimento dos pressupostos em que assentaria a responsabilidade civil daquele ente público – ou seja, teve «conhecimento do direito que lhe compete», embora desconhecesse «a extensão integral dos danos». E esta conclusão, que poderia ainda parecer questionável, torna-se certa pelo uso de um decisivo argumento.
Com efeito, se o problema dos autos estivesse submetido ao regime adjetivo do CPTA, a recorrente, confrontada com o silêncio do Infarmed após aqueles 120 dias, ficaria em condições de propor uma ação administrativa especial em que reclamaria a prática do ato devido. E – pormenor agora notável – poderia cumular com esse pedido o de condenação do Infarmed a indemnizá-la pelos danos (genericamente invocados – art. 471º, n.º 1, al. b), do CPC) provindos do atraso no deferimento e na subsequente comercialização do «B…» (cfr. o art. 4º, n.º 2, al. f), do CPTA). Mas, se o regime processual hoje em vigor permite essa solução, é porque, em termos puramente substantivos, o direito a exercitar se deve ter por constituído e reconhecível desde o preciso momento em que se patenteie alguma conduta omissiva do género, imputável ao Infarmed; pois, não fora assim, teríamos que a lei adjetiva conduzia ao absurdo de permitir o exercício de um direito ainda «in fieri».
Portanto, e embora de maneira indireta, o CPTA lança luz sobre o problema em apreço – ante a evidência de que o direito material que o diploma permite exercer tem de ser do conhecimento do seu titular no exato momento desse exercício. É que o CPTA não criou direitos de crédito – o que, num diploma adjetivo, seria «contra naturam» – limitando-se a inovar quanto à possibilidade ou modo de os exercer. Donde a conclusão necessária de que a recorrente tomou «conhecimento do direito» de indemnização, que invoca nestes autos, na própria ocasião em que terminou o referido prazo de 120 dias – facto que ela diz ter ocorrido em 30/8/94, como «supra» constatámos.
Estes dados parecem imediatamente apontar para a ocorrência da prescrição, tendo em conta que o prazo dela era de três anos (art. 498º, n.º 1, do Código Civil) e que só em 5/6/2001 a autora interpôs a ação dos autos. Contudo, importa reter que o regime processual vigente naquela recuada data não consentia à autora a propositura de uma causa tendente a conseguir do Infarmed uma indemnização reportada à falta de um ato administrativo de deferimento.
Atentemos neste ponto. A LPTA não previa um qualquer meio processual destinado a obter a prática de um ato devido – e, «….», não previa que aí se cumulasse um pedido indemnizatório. Mas há mais: então, a autora não podia interpor a ação dos autos sem que previamente o Infarmed lhe deferisse o seu pedido, pois era-lhe impossível obter, pela via da ação de condenação, a declaração judicial (sucedânea da inércia administrativa) de que tal deferimento era devido em certa data – elemento nuclear para que depois se pudesse dizer que, por falta desse deferimento, tinham sobrevindo quaisquer danos. No regime da LPTA, a recorrente só podia fazer uma de duas coisas: ou aguardava que o Infarmed se pronunciasse; ou assumia o silêncio como um indeferimento tácito, impugnava-o e, obtida a supressão dele (por revogação no prazo da resposta ou por anulação judicial) e a sua substituição por um ato de deferimento, interpunha finalmente a ação de indemnização. Antes da emergência de um ato de deferimento tal ação era inviável – pois era impossível que o juiz da ação ordinária desse corpo a um ato administrativo que o Infarmed não produziria.
Nesta conformidade, tudo parece refluir para a posição que a autora sustenta neste seu recurso jurisdicional: embora tomasse conhecimento do seu direito de indemnização mal passou o prazo de 120 dias de que o Infarmed dispunha para decidir (isto é, em 30/8/94, como vem alegado), ela só podia interpor a ação depois de ser produzido o ato de deferimento; ora, esta derradeira certeza volta a sugerir que o prazo prescricional se conte desde 24/6/98, data da pronúncia efetiva do Infarmed («rectius», o prazo contar-se-ia da notificação da pronúncia, aliás realizada de seguida).
Não é, contudo, assim. Para os efeitos do art. 498º, n.º 1, do Código Civil, a data que constitui o «dies a quo» do prazo de prescrição é aquela «em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete». Portanto, é a partir daí que se conta o prazo prescricional de três anos. Todavia, esse prazo está sujeito às regras gerais de suspensão ou de interrupção e, nos termos do art. 321º, n.º 1, do Código Civil, «a prescrição suspende-se durante o tempo em que o titular estiver impedido de fazer valer o seu direito, por motivo de força maior, no decurso dos últimos três meses do prazo». A noção de «força maior» abrange todas as circunstâncias exteriores, mesmo as provindas «ex lege», que absolutamente impeçam o lesado de exercer o direito. Ora, a impossibilidade legal de a autora, antes da pronúncia favorável do Infarmed, propor contra ele uma ação de indemnização como a presente constituía um motivo de força maior para os fins previstos no citado preceito.
Daqui decorre o seguinte: apesar de, face ao alegado pela autora, devermos ter por certo que ela tomou conhecimento do seu direito de indemnização no fim de agosto de 1994, o prazo de prescrição desse direito só terminou depois de 24/6/98 (data da prolação do ato de deferimento); e, tendo em conta que a prescrição se suspendera «no decurso dos últimos três meses do prazo», é de concluir que ela se perfez três meses depois da notificação do ato, ou seja, ainda em 1998 (cfr. os documentos de fls. 52 e 53, juntos pela autora) – razão por que o direito se achava prescrito há vários anos quando a ação dos autos foi intentada
Mostram-se, assim, improcedentes ou inúteis todas as conclusões da alegação de recurso: a decisão «a quo» merece ser confirmada quanto à decisão da exceção perentória de prescrição – ainda que por motivos algo diferentes dos enunciados na 1.ª instância; e, por via disso, está prejudicado o conhecimento de quaisquer outros assuntos, designadamente o que se prende com a efetiva existência do direito de indemnização invocado pela autora e ora recorrente.».
2. Novamente irresignada, a autora recorreu para o Tribunal Constitucional, através de requerimento com o seguinte teor:
«A., S.A., Recorrente nos autos acima referenciados, notificada que foi do Acórdão que negou provimento ao recurso por si interposto, vem dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz nos termos do disposto nos artigos 70.º e seguintes da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n. º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações introduzidas pelas Leis n. º 143/85, de 26 de novembro, n.º 85/89, de 7 de setembro, e n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro).
Atento o disposto no artigo 75.º-A, número 1, da Lei do Tribunal Constitucional, cumpre referir que o presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do número 1 do artigo 70.º desse diploma e as normas cuja inconstitucionalidade se pretende seja apreciada pelo Tribunal Constitucional são o número 1 do artigo 321.º e o número 1 do artigo 498.º do Código Civil (aplicável ex vi número 2 do artigo 71.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de julho, com as alterações subsequentes), na interpretação seguida pelo Tribunal recorrido.
Concretamente, a interpretação normativa que se questiona é aquela, seguida pelo Tribunal a quo, segundo a qual a impossibilidade - por falta de meio processual adequado - de exercer, nos tribunais administrativos, o direito de indemnização contra uma entidade pública constitui motivo de força maior nos termos e para os efeitos do artigo 321.º, número 1, do Código Civil, e, por conseguinte, apenas implica suspensão do prazo de prescrição de tal direito nos últimos três meses desse prazo.
Atento o disposto no artigo 75.º-A, número 2 da referida Lei do Tribunal Constitucional, cumpre indicar que as normas constitucionais violadas são as constantes do número 1 do artigo 20.º, do artigo 22.º e do número 4 do artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa.
Por último, e para os efeitos do mencionado artigo 75.º-A, número 2, refere-se que a questão de inconstitucionalidade agora suscitada decorre da própria decisão contida no Acórdão recorrido, através do qual a interpretação normativa que se questiona foi pela primeira vez enunciada no processo (como é, aliás, reconhecido no próprio Acórdão), uma vez que não era previsível a aplicação do número 1 do artigo 321.º do Código Civil (ou seja, o regime do 'motivo de força maior' aí previsto) ao caso sub iudice, a questão de inconstitucionalidade agora em apreço não havia ainda sido suscitada em qualquer peça processual anterior, sendo, no entanto, o presente recurso para o Tribunal Constitucional totalmente admissível, tal como é jurisprudência constante desse alto Tribunal quanto às 'decisões-surpresa' que procedam à aplicação ou interpretação de determinada regra em termos inesperados ou imprevisíveis - neste sentido, cfr. JOSÉ MANUEL CARDOSO DA COSTA, 'A jurisdição constitucional em Portugal', 3.ª Edição Revista e Atualizada, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 77 e 78, nota 99, com indicação de abundante jurisprudência a este propósito.»
O recurso foi admitido.
Já neste Tribunal, convidada pelo anterior Relator a enunciar, com clareza, as normas ou as concretas interpretações normativas que pretende ver apreciada, veio a recorrente prestar o seguinte esclarecimento:
«(…) a norma cuja inconstitucionalidade se questiona é apenas a do número 1 do artigo 321.º do Código Civil, na interpretação propugnada pelo Acórdão recorrido, segundo a qual, como se disse no referido requerimento, a impossibilidade - por falta de meio processual adequado - de exercer, nos tribunais administrativos, o direito de indemnização contra uma entidade pública constitui motivo de força maior nos termos e para os efeitos do artigo 321.º, número 1, do Código Civil, e, por conseguinte, apenas implica suspensão do prazo de prescrição de tal direito nos últimos três meses desse prazo.
Nesta medida e face a este esclarecimento, deverá o presente recurso prosseguir tendo por objeto a análise do número 1 do artigo 321.º do Código Civil, na interpretação seguida pelo Acórdão recorrido que se acabou de indicar, sendo as normas constitucionais violadas aquelas que foram referidas no requerimento de interposição do recurso.»
2.1. Determinado o prosseguimento dos autos, veio a recorrente apresentar alegações, com o seguinte remate conclusivo:
«A. Para o Acórdão recorrido, a impossibilidade processual de um lesado (in casu, a A.) exercer, nos tribunais administrativos, o direito a uma indemnização pelos danos sofridos constitui, para efeitos de contagem do respetivo prazo prescricional previsto número 1 do artigo 498.º do Código Civil, um “motivo de força maior”, o qual, por sua, vez, de acordo com o número 1 do artigo 321.º do mesmo Código, apenas implicaria a suspensão desse prazo nos últimos três meses do mesmo;
B. Interpretado e aplicado da forma que foi, o número 1 do artigo 321.º do Código Civil é inconstitucional, por representar uma restrição inadmissível dos direitos fundamentais da A. a uma compensação pelos danos sofridos em virtude da atuação de uma entidade pública (artigo 22.º da Constituição) e à tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos (artigos 20.º, número 1 e 268.º, número 4, da Constituição);
C. Em primeiro lugar, porque a norma em apreço, com a interpretação que lhe foi conferida, se traduziu num encurtamento irrazoável e excessivo do prazo de que a A. dispôs para exercer o seu direito fundamental a uma indemnização;
D. O artigo 321.º, número 1 do Código Civil, se interpretado, como foi pelo Acórdão recorrido, no sentido de abranger a situação sub iudice - isto é, uma situação, como foi qualificada pelo Tribunal a quo, em que o lesado esteve impossibilitado de exercer jurisdicionalmente o seu direito indemnizatório -, viola o artigo 22.º da Constituição, na medida em que impõe ao lesado pela atuação de uma entidade pública (no caso dos autos, a A.) a necessidade de exercer o seu direito fundamental e sob pena de prescrição do mesmo, num prazo máximo de três meses, o que é manifestamente insuficiente, como resulta desde logo da comparação com o prazo geral de prescrição de três anos decorrente do artigo 498.º, número 1, do Código Civil;
E. Apesar de o Acórdão recorrido considerar que a Recorrente dispôs do prazo geral de três anos e que este se suspendeu apenas nos últimos três meses, nos termos do artigo 321.º, número 1, do Código Civil, a verdade é que a consideração de um lesado (como a A., neste caso) que não tenha disposto, antes do deferimento expresso da sua pretensão, ocorrido mais de três anos após o início da contagem daquele prazo, de qualquer meio processual para efetivar o seu direito, evidencia que o início do prazo prescricional a partir do indeferimento tácito é meramente ilusório - uma simples aparência - porque aquele lesado nunca pôde exercer o direito em questão durante esse período, o que torna expressiva a inconstitucionalidade daquela norma, na interpretação seguida pelo Tribunal a quo;
F. De considerar ainda que não existe qualquer motivo constitucionalmente adequado que determine a necessidade ou que permita sustentar a proporcionalidade daquela restrição ao direito fundamental a uma compensação pelos prejuízos provocados por uma entidade pública;
G. Decorrendo do Acórdão recorrido que o lesado (i.e, a A.) esteve impossibilitado de exercer o seu direito fundamental à reparação dos danos sofridos em virtude de não dispor de um meio processual que lhe permitisse deduzir judicialmente essa pretensão indemnizatória, então não se poderia deixar de concluir que, sob pena de violação dos valores constitucionalmente tutelados nesta matéria, da lei deveria decorrer uma solução que respeitasse o conteúdo desse direito fundamental, garantindo a possibilidade de exercício do mesmo num prazo adequado, o que não ocorreu;
H. Tendo ficado assente, nos termos da decisão tomada pelo Acórdão recorrido, que havia nesta matéria uma lacuna legislativa, na medida em que a lei processual não permitia ao lesado, até à produção de um ato de deferimento expresso, exercer judicialmente um direito que substantivamente lhe assistia a partir do momento em que fora ultrapassado o prazo legal de decisão, então a única solução constitucionalmente adequada era a de não prejudicar ou lesar esse interessado (in casu, a A.), garantindo-se que quando tal ato expresso ocorresse, ele poderia exercer o seu direito a exigir uma indemnização pelos danos provocados pela atuação da entidade pública (o INFARMED) num prazo razoável, designadamente no prazo geral legalmente previsto (bastaria, por exemplo, aplicar o disposto no número 1 do artigo 306.º do Código Civil, que estabelece que 'O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido');
I. A interpretação pelo Acórdão recorrido do artigo 321.º, número 1, do Código Civil, é carecida de fundamento, porquanto o conceito de 'motivo de força maior' como justificação para a suspensão do prazo de prescrição nos últimos três meses do decurso do mesmo não é claramente idóneo para abranger situações como a dos autos, de impossibilidade (originária), por falta de meio processual adequado, de exercício do direito fundamental de indemnização contra uma entidade pública;
J. A aplicação do artigo 321.º, número 1, do Código Civil, na interpretação dada pelo Tribunal a quo, ao caso sub iudice representou um verdadeiro 'benefício ao infrator', uma vez que, por motivo única e exclusivamente imputável ao Estado Legislador (a ausência de meio processual adequado para tutela do direito da A.), se beneficiou uma outra entidade pública (o INFARMED), reduzindo-se drástica e infundadamente o prazo de que o lesado - a Recorrente - dispunha para exercer o seu direito fundamental a uma indemnização pelos danos provocados pela demora da atuação administrativa;
K. Em suma, o artigo 321.º, número 1, do Código Civil quando interpretado, como foi pelo Acórdão recorrido, no sentido de que a impossibilidade - por falta de meio processual adequado - de exercer, nos tribunais administrativos, o direito de indemnização contra uma entidade pública, constitui 'motivo de força maior' e, por conseguinte, apenas implica suspensão do prazo de prescrição de tal direito nos últimos três meses do mesmo, é inconstitucional, por violação do artigo 22.º da Constituição;
L. O que ficou acima exposto permite igualmente evidenciar que o artigo 321.º, número 1, do Código Civil, quando interpretado como foi pelo Acórdão recorrido, é também inconstitucional por violação do número 1 do artigo 20.º e do número 4 do artigo 268.º, da Constituição, que consagram o direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva dos direitos dos particulares (no caso concreto, dos direitos da A.);
M. O prazo de três meses que, em decorrência do artigo 321.º, número 1, do Código Civil, se entendeu aplicável não garante uma efetiva tutela jurisdicional do direito da A., na medida em que corresponde a um prazo muito reduzido, drasticamente inferior ao prazo geral de prescrição, e que penaliza a Recorrente - ou qualquer lesado que se encontrasse nas mesmas condições - pela circunstância de o legislador, também aí em desrespeito do comando constitucional, não ter previsto um mecanismo processual que lhe tivesse permitido, anteriormente, obter satisfação processual para um direito que substantivamente lhe assistia.
Nestes termos, e sempre com o mui douto suprimento de v. Exas., deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, declarada a inconstitucionalidade do artigo 321.º, número 1, do Código Civil, na interpretação propugnada pelo Acórdão recorrido, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!»
2.2. Por seu turno, o Ministério Público apresentou contra-alegações, que rematou do seguinte modo:
«É inconstitucional, por violação do direito de acesso a justiça e do princípio da tutela jurisdicional efetiva, a interpretação normativa, extraída do nº 1 do artigo 321º do Código Civil, segundo a qual se inicia e corre um prazo prescrional, referente a uma pretensão indemnizatória, no momento em que são cognoscíveis pelo lesado os pressupostos do seu direito à indemnização, embora nesse momento ele esteja legalmente impedido de efetivá-lo, por inexistência de meio processual idóneo, apenas se suspendendo a prescrição nos últimos três meses do prazo.»
2.3. Também o Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento apresentou contra-alegações, concluindo nos seguintes termos:
«1ª Não deve o presente recurso ser julgado, porquanto não é subsumível à al. b) do n.º 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional (lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações introduzi das pelas Leis n.º 143/85, de 26 de novembro, n.º 85/89, de 7 de setembro e n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro).
2a A prescrição foi discutida ao longo do processo judicial sem que fossem suscitadas quaisquer questões relacionadas com a inconstitucionalidade, pelo que não é admissível o presente recurso.
3a A interpretação e aplicação do art. 321º do C.Civil à situação sub judice é efetuada no sentido favorável da extensão do prazo de prescrição, pelo que por aqui não colhe a argumentação da Recorrente.
4a O entendimento da decisão recorrida foi no sentido de que o direito indemnizatório constituiu-se no termo do prazo para decidir o procedimento, pelo que aqui a aplicação do art. 321º do C.Civil vem até no sentido de dilatar o prazo de prescrição.
5a A Recorrente discorda com o resultado final do raciocínio jurídico prosseguido pelo Tribunal a quo, o que é absolutamente distinto de invocar a inconstitucionalidade da aplicação de uma norma ao caso concreto, pelo que salvo melhor opinião, nada há apreciar sobre este aspeto.
6a A aplicação do art. 321º do C.Civil não é atentatória dos arts. 22º, 20º n.º 4 ou 268º da CRP, não se verificando qualquer fundamento para a procedência do recurso.
Nestes termos,
Deverá o presente recurso não ser julgado por inadmissível, e caso assim não se entenda, então, deverá ser julgado improcedente, por não verificada qualquer inconstitucionalidade.»
3. Os autos foram redistribuídos, em virtude da cessação de funções neste Tribunal do Relator inicial.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A) Delimitação do objeto do recurso
4. Importa começar por precisar o objeto do recurso, com vista a apurar qual a dimensão normativa cuja conformidade constitucional o recorrente questiona. Para tanto, haverá que atentar nos termos do requerimento de interposição de recurso, que fixam os contornos objetivos da impugnação, conjugados com o esclarecimento que a recorrente prestou a convite do Relator inicial.
Assim, a recorrente inscreveu no requerimento de interposição de recurso pretensão de controlo de interpretação normativa, reportada ao preceituado no n.º 1 do artigo 321.º do Código Civil (código a que pertencem os artigos adiante referidos no texto, sem outra indicação), aplicável ex vi do n.º 2 do artigo 71.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA), segundo a qual a impossibilidade, por falta de meio processual adequado, de exercer, nos tribunais administrativos, o direito de indemnização contra uma entidade pública, constitui motivo de força maior, o que apenas implica a suspensão do prazo de prescrição de tal direito nos últimos três meses desse prazo. Como parâmetros constitucionais violados aponta-se o disposto no n.º 1 do artigo 20.º, no n.º 22.º e no n.º 4 do artigo 268.º, da Constituição.
Todavia, ainda que o cerne da ilegitimidade constitucional sustentada pelo recorrente seja apontado à duração do período de suspensão de prazo prescricional em curso, regulada no n.º 1 do artigo 321.º, o plano normativo questionado contempla igualmente a ponderação aplicativa efetuada pelo Tribunal a quo sobre o início e curso de contagem do prazo prescricional, sem que o direito à indemnização pudesse ser exercido. Entendimento cuja correção ou bondade perante o direito infraconstitucional não cabe a este Tribunal apreciar, aceitando-o como um dado.
Com efeito, o Tribunal a quo começou por considerar que o prazo prescricional de três anos previsto no n.º 1 do artigo 498.º era aplicável ao direito indemnizatório invocado pela recorrente e que o seu termo inicial – dies a quo – acontecera em 30 de agosto de 1994, data em que ficara esgotado o prazo de 120 dias que o Infarmed dispunha para decidir. Mas, respondida a questão de saber qual o dies a quo do prazo prescricional – sobre a qual incidiu o cerne da discussão levada ao recurso para o STA, com a recorrente A. a pugnar pela início do prazo prescricional apenas em 24 de junho de 1998, data da pronúncia efetiva do Infarmed – o Tribunal a quo defrontou um segundo problema, agora centrado na articulação da contagem do referido prazo prescricional de três anos com as condições de acionabilidade da atividade administrativa lesiva dos particulares, rectius com o impedimento legal de propositura de uma ação tendente a conseguir do Infarmed uma indemnização cuja causa de pedir assente no retardamento injustificado do ato administrativo (de deferimento) a autorizar a introdução no mercado de medicamento e na lesão patrimonial consistente na perda dos proventos correspondentes à comercialização do medicamento durante o protelamento da decisão (expressa) do ente público, reputado de indevido.
A equação do disposto no n.º 1 do artigo 321.º surge no iter decisório nesse segundo plano de análise, em que se desdobrou a apreciação da questão prescricional, a partir da consideração que “esse prazo está sujeito às regras gerais de suspensão ou de interrupção”. E, subsumida a situação dos autos na noção de força maior contida naquele preceito, o Tribunal a quo concluiu que o prazo prescricional se suspendera pelo período correspondente aos seus últimos três meses, voltando a correr, por igual período, a partir da notificação do ato administrativo de deferimento, extinguindo-se ainda no ano de 1998. Então, interposta a presente ação apenas em 5 de junho de 2001, concluiu o Tribunal a quo que estava verificada a exceção perentória de prescrição.
Sendo diferenciados e autónomos os planos de análise quanto ao dies a quo e à contagem do prazo de prescrição, mormente no que respeita à ocorrência de factos interruptivos e suspensivos, constata-se que a decisão recorrida não os tomou como ponderações estanques, desprovidas de interconexões. Na verdade, a consideração de que até à pronúncia expressa do Infarmed não era possível à autora fazer valer o seu direito à ação, configurou, para o Tribunal a quo, condicionante que, a manter-se, levaria a afastar o entendimento que presidira à resposta à questão sobre o termo inicial do prazo, extraído do n.º 1 do artigo 498.º, e a “refluir para a posição que a autora sustenta neste seu recurso judicial”, ou seja, para tomar como início do prazo a notificação do deferimento do pedido proferido pelo Infarmed e a concluir pela não prescrição do direito indemnizatório.
Justifica-se, então, para maior clareza, aproximar a formulação da questão normativa em apreço à ratio decidendi acolhida pela decisão recorrida, sendo para tanto adequada aquela oferecida pelo Ministério Público em alegações, a saber, ter em atenção questionamento incidente sobre a interpretação normativa, extraída do n.º 1 do artigo 321.º do Código Civil, segundo a qual se inicia e corre um prazo prescricional, referente a uma pretensão indemnizatória, no momento em que são cognoscíveis pelo lesado os pressupostos do seu direito à indemnização, embora nesse momento ele esteja legalmente impedido de efetivá-lo, por inexistência de meio processual idóneo, apenas se suspendendo a prescrição nos últimos três meses do prazo.
B) Ilegitimidade da recorrente
5. Feito este percurso, encontramo-nos melhor habilitados a apreciar a questão prévia colocada pela recorrida quanto à ilegitimidade da recorrente, em virtude de não ter suscitado previamente perante o Tribunal a quo a questão de constitucionalidade colocada à apreciação do Tribunal Constitucional.
Para a recorrida Infarmed, não estamos perante decisão surpresa, pois a questão da prescrição vinha sendo discutida, sendo possível à autora antever a aplicação da norma cuja inconstitucionalidade vem agora invocar. Pelo que, na sua ótica, face ao exigido na al. b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o recurso não deveria ser conhecido.
Recorde-se que a recorrente reconheceu no requerimento de interposição de recurso que não suscitou previamente a questão que pretende ver conhecida pelo Tribunal Constitucional, mas considerou – em defesa antecipada quanto à questão suscitada pela recorrida Infarmed - que não lhe era exigível que antecipasse a aplicação do n.º 1 do artigo 321.º do Código Civil, sendo a interpretação normativa questionada inesperada e imprevisível.
Com efeito, encontra-se consolidado na jurisprudência deste Tribunal o entendimento de que o requisito de suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada, é dispensável nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional não se esgota com a prolação da decisão recorrida, ou nas situações, de todo excecionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida, ou ainda naquelas em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade, por representar concreta aplicação ou interpretação normativa de todo imprevisível e inesperada. A justificação apresentada pela recorrente remete para este último enquadramento e, ao que cremos, mostra-se suficientemente fundada.
Em primeiro lugar, sendo exato que a questão (ampla) da prescrição do direito à indemnização fora discutida nos autos, os termos em que o foi não comportam a normação questionada. A decisão proferida pelo TAF de Lisboa contém dupla fundamentação, em que a exceção perentória de prescrição assume posição cimeira, tendo concluído, por via do n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil, que o lesado tomou conhecimento da existência do seu alegado direito mal terminou o prazo de decisão do Infarmed, ou seja, em 30 de agosto de 1994; nenhum argumento fundado em impedimento legal na efetivação do direito em juízo, ou na articulação do disposto no n.º 1 do artigo 321.º do Código Civil, surge mobilizado nessa decisão. Por seu turno, no recurso interposto para o STA, a autora, aqui recorrente, avançou que o disposto no n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil carecia de ser conjugado com o disposto no artigo 306.º do mesmo Código, de forma que o prazo prescricional começara a correr quando teve conhecimento do seu direito e o pudera exercer em juízo, o que, na sua ótica, só acontecera após 24 de junho de 1998.
Assim, a discussão da questão prescricional cingiu-se à definição do seu dies a quo, a partir de critério normativo fundado na reunião da possibilidade de exercício do direito à indemnização e do conhecimento da sua existência e titularidade pelo credor. Não envolveu a vertente da ocorrência de causa de suspensão nem, em qualquer dimensão, o início e a contagem do prazo de prescrição do direito à indemnizado quando o seu lesado esteja legalmente impedido de o efetivar. Note-se que, na sentença proferida pelo TAF de Lisboa foi considerado que a recorrente estava habilitada a fazer valer o seu direito a indemnização perante o Infarmed e a efetivar a responsabilidade civil da Administração por ato silente logo que decorreu o prazo de 120 dias para a decisão de autorização de introdução no mercado do medicamento “OGASTO”, ainda que, como fundamentação alternativa, tenha entendido que o Infarmed não estava legalmente vinculado a decidir – e a decidir naquele prazo - enquanto subsistissem dúvidas quanto à titularidade do licenciamento invocado pela A., inexistindo, então, ato tácito.
Neste conspecto, afigura-se-nos que o percurso argumentativo e a mobilização do critério normativo questionado não era antecipável, de acordo com padrões de diligência e prudência forenses medianos. Acresce que não se detetou, nem o acórdão recorrido dá notícia, precedente jurisprudencial que acolha ou discuta a aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 321.º do Código Civil, nos termos e com o sentido em que o foi nos presentes autos.
Cumpre, pelo exposto, concluir que a aplicação da interpretação normativa questionada configura decisão surpreendente, tornando inexigível que o recorrente suscitasse previamente a sua desconformidade constitucional perante o Tribunal a quo.
Assegurada a legitimidade da recorrente, e preenchidos todos os pressupostos e requisitos de que depende o conhecimento do recurso, passemos a apreciar o seu mérito.
C) Mérito do recurso
6. A interpretação normativa em análise inscreve-se no regime da prescrição, na vertente das regras da sua contagem, reportado ao direito à indemnização fundada em responsabilidade civil extracontratual por ato de gestão pública, cuja disciplina decorre, por força da n.º 2 do artigo 71.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de julho (regime aplicável aos presentes autos), do artigo 498.º do Código Civil.
Diz esse preceito, no seu n.º 1, que: “O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do facto danoso”. Nesse domínio especial, aclamou o legislador o denominado sistema subjetivo, que privilegia o conhecimento por parte do credor dos elementos essenciais do seu direito como momento relevante para o início da sua contagem, em termos mais exigentes do que decorre da regra geral, objetiva, constante do artigo 306.º, em que se estabelece que o prazo de prescrição começa a correr quando (logo que) o direito puder exercido, independentemente da cognoscibilidade do credor.
A partir da aplicação desse prazo prescricional de três anos e da definição do momento em que ocorreu o conhecimento dos pressupostos do direito à indemnização por ato de gestão pública, correspondendo ao termo inicial da sua contagem, o preceito em que a recorrente radica imediatamente a interpretação normativa cuja conformidade constitucional questiona – n.º 1 do artigo 321.º– dispõe que: “A prescrição suspende-se durante o tempo em que o titular estiver impedido de fazer valer o seu direito, por motivo de força maior, no decurso dos últimos três meses do prazo”.
Importa, então, atentar na teleologia que lhe preside, no contexto normativo geral da prescrição de créditos e da contagem dos respetivos prazos.
7. O instituto da prescrição dos direitos de crédito, vertente basilar da repercussão do tempo nas relações jurídicas, responde, na sua regulação, a uma pluralidade de fundamentos, de que tomam parte a probabilidade da efetivação do pagamento, a presunção de renúncia do credor, a sanção para a sua negligência, a promoção do exercício oportuno dos direitos, ou a necessidade social de certeza e de segurança jurídica. Como logo apontou Vaz Serra nos trabalhos preparatórios que conduziram ao Código Civil vigente, o respetivo regime jurídico obedece, conforme o aspeto encarado, a um ou a outro de tais fundamentos, configurando “instituto complexo, em que confluem razões várias e se debatem interesses contraditórios, cuja conciliação não é sempre fácil” (cfr. Prescrição extintiva e caducidade, BMJ 105, pág. 33; para a resenha das várias visões doutrinais sobre os fundamentos da prescrição, cfr. Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, Coimbra Ed., 2008, págs. 20 a 22).
No seu cerne encontra-se, cabe sublinhar, imperativo de justiça. Nas palavras de Cunha de Sá: “Como meio e modo de cooperação humana, o vínculo obrigacional tem em vista a satisfação do interesse do credor através da conduta que por alguém passa a ser-lhe devida. Se aquele não exerce o crédito durante um espaço de tempo mais ou menos longo isso significa objetivamente que lhe passou a ser indiferente a prossecução do seu interesse e não faria sentido que, contra todas as expectativas criadas pela sua abstenção, o devedor fosse forçado a realizar a prestação. O exercício coativo do crédito revelar-se-ia até, em muitos casos, verdadeiramente chocante para a consciência jurídica” (cfr. Modos de Extinção das Obrigações, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. I, Almedina, 2012, pág. 247).
8. A suspensão da prescrição supõe uma causa, subjetiva ou objetiva, que constitua obstáculo de facto ao exercício do direito, ou que o torne especialmente difícil, com expressão tal que afasta a verificação de negligência do seu titular e, então, torna injusto o curso do prazo prescricional. Sendo esse o racional, escolheu o legislador não estabelecer uma regra geral, conferindo efeito suspensivo a todos os eventos ou motivos que impeçam de facto, ou dificultem significativamente, o exercício do direito pelo seu titular, optando pela consagração de certas causas suspensivas da prescrição.
Assim, encontra-se no ordenamento civil especificação de causas de suspensão que resultam de uma especial relação existente entre as partes ou da especial situação do titular, de alcance bilateral, como seja a relação conjugal (artigo 318.º, al. a)), a relação de poder paternal, tutela ou curatela (artigo 318.º, alínea b)), a relação de administração de bens ou de pessoa coletiva (artigo 318.º, al. c)), a relação de trabalho doméstico (artigo 318.º, al. d)) ou a relação de usufruto do crédito pelo devedor ou de penhor sobre ele (artigo 318.º, al. e)). Também de natureza subjetiva, mas de outra ordem, obedecendo a razões fundamentalmente protetoras e de garantia quanto à ausência ou inércia de representante legal, encontra-se a suspensão da prescrição relativamente a menores, interditos ou inabilitados, prescrita no artigo 320.º. Por seu turno, o impedimento de exercício derivado do serviço militar, durante o tempo de guerra ou de mobilização, encontra acolhimento como causa de suspensão da prescrição no artigo 319.º.
O artigo 322.º, relativo à prescrição dos direitos da herança ou contra ela, assim como o artigo 320.º, que rege a especial condição dos menores, interditos ou inabilitados, contemplam causas de suspensão do termo da prescrição. Nessas situações, o prazo prescricional corre os seus termos, mas só se completa tempo depois de cessado o obstáculo de facto. Os prazos previstos pelo legislador situam-se em seis meses a partir da possibilidade de invocação pelo titular do direito contra à herança ou por esta contra o devedor, em um ano no caso do menor a partir do termo da incapacidade, ou do momento em que passou a ter representante legal ou administrador dos seus bens nos casos de prescrição presuntiva. O regime do menor é aplicável aos interditos e inabilitados, com a diferença de que a incapacidade se considera finda, caso não tenha cessado antes, passados três anos sobre o termo do prazo que seria aplicável se a suspensão se não houvesse verificado (n.º 3 do artigo 320.º).
A especificidade das causas de suspensão do curso do prazo de prescrição, ou do seu termo, que se vêm de referir, não esgotam, porém, as situações de merecimento de proteção neste domínio, como foi salientado por Vaz Serra. A resposta a essa necessidade encontra-se precisamente no disposto no n.º 1 do artigo 321º, completando através da cláusula geral de motivo de força maior , o elenco legal das causas suspensivas de prescrição, que de outro modo ficaria incompleto (cfr. Prescrição extintiva e caducidade, BMJ n.º 106, págs. 175 a 178).
Cabe referir que, nos trabalhos preparatórios, o problema surge equacionado a partir da resposta à questão da determinação de quando deve começar a correr o prazo da prescrição. Tendo em atenção que, na tradição romanística, o início da prescrição ligava-se à ideia da actio nata: actioni nondum natae non praescribitur; mas discutia-se quando deve a ação considerar-se nascida – se no momento da violação do direito alheio (teoria da violação), se naquele em que o direito pode ser exercido (teoria da realização) –, depois de ponderar a doutrina e o direito comparado, concluiu Vaz Serra não ser de aceitar solução que faça correr o prazo de prescrição antes de o credor poder praticamente exercer o seu direito de impugnação, pois “uma vez que a prescrição se funda na inércia do titular do direito, deve ela, logicamente, começar no momento em que o direito pode ser exercido”, não sendo esse curso impedido pela ignorância do titular sobre a existência do direito e sobre a sua titularidade (cfr. BMJ n.º 105, págs. 190 a 198). O que, porém, não afasta preocupações de equidade, atendendo designadamente à natureza do direito e à duração – curta ou longa - do prazo de prescrição em questão.
Referindo-se especificadamente ao direito de indemnização, em causa nos presentes autos, disse Vaz Serra:
«Parece, realmente, que o princípio deve ser que o início da prescrição não é impedido pela ignorância do titular sobre a existência do direito e sobre a sua titularidade. Embora não haja então negligência do titular, ou possa não a haver, sempre há inércia da sua parte e a parte contrária não deve ficar à mercê da ignorância do titular, a qual, de resto, pode prolongar-se por muito tempo: não pode então dizer-se que a prescrição se funda numa presunção de renúncia ao direito, mas, como se viu, a razão de ser da prescrição não é só essa, intervindo também outras considerações e, entre elas, a da vantagem de segurança jurídica.
Mas isto não significa que a lei deva sempre manter-se neste princípio, e não deva, antes, para os casos em que isso se mostre especialmente razoável (e que são sobretudo casos de prescrição de curto prazo), fixar, para início da prescrição, o momento em que o seu titular se acha em situação de facto que lhe permita exercer o seu direito.
(...)
É (...) o que se propõe para a prescrição curta do direito de indemnização (...): este direito prescreveria por três anos contados da data em que o lesado teve conhecimento desse direito e da pessoa do responsável. Funda-se na particular importância do direito de indemnização, que não parece deva prescrever sem que o seu titular tenha a possibilidade prática de o exercer.
Além desta curta prescrição, parece que o direito de indemnização deve ficar sujeito à prescrição ordinária, contada da data em que o direito pode fazer-se valer, isto é, daquela em que se reúnem os requisitos da responsabilidade civil (...).
A circunstância, porém, de se firmar o princípio de que o começo da prescrição não é impedido pela ignorância do titular acerca da existência e titularidade do direito ou por algum outro obstáculo de facto, não parece dever conduzir, sem mais nada, a que o titular deva ser sacrificado sem possibilidade de se defender. Embora se não admita, em termos amplos, a regra contra non valentem agere non currit praescriptio, sempre se afigura razoável que aquele princípio seja temperado de algum modo por esta outra regra.
O problema põe-se em matéria de início da prescrição e em matéria de suspensão do curso desta, pois o impedimento de facto ao exercício do direito pode existir na data em que o prazo deveria começar a correr ou pode surgir só quando esse prazo está já em curso» (ob. cit., págs. 198 e 199).
Nestes termos, a suspensão da prescrição por motivos de força maior visou dar resposta a impedimentos de exercício do direito à ação sobrevindos, aproximando-se, então, de institutos adjetivos, como seja o do justo impedimento, previsto no artigo 146.º do Código de Processo Civil, de 1961, em que se admite a prática do ato para além do prazo respetivo, se o juiz julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou. Regime esse que, na ausência de outras previsões e perante o caráter excecional das causas de suspensão da prescrição, a doutrina admitia no domínio do Código de Seabra como única via de atingir uma solução justa para as situações que inibem o credor de agir contra o devedor, pese embora não a mais apropriada (assim, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Coimbra, 1987 (reimpressão), págs. 457 e 458).
A solução acolhida no n.º 1 do artigo 321.º pelo legislador no Código Civil vigente veio precisamente ultrapassar a dificuldade notada pela doutrina. Contempla a suspensão do prazo de prescrição por causa objetiva derivada de situação jurídica relevante, como seja motivo de força maior (conceito oriundo do Código de Seabra e que corresponde ao de impossibilidade, acolhido em previsões aproximadas, como observa Menezes Cordeiro, in Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, Almedina, 2007, pág. 191) que impeça titular do direito de o fazer valer nos últimos três meses do prazo de prescrição, facultando o seu exercício pelo tempo que durar tal impedimento, ou seja, por período que pode atingir, na sua expressão máxima, três meses.
Recorrendo, mais uma vez, aos trabalhos preparatórios e à palavra de Vaz Serra, neles encontramos igualmente a explicação para a opção legislativa adotada, embora com um traço distintivo: preconizou-se que o campo de atuação da novel causa de suspensão fosse mais alargado, correspondendo aos últimos seis meses do prazo, e não nos últimos três meses, como veio a ser editado pelo legislador. Assim, considerou-se que:
«A mera circunstância de o titular do direito estar impedido de o exercer não é bastante para que tal prescrição se suspenda, uma vez que ele ainda pode ter muito tempo para esse exercício. É certo que, nas hipóteses em que a lei admite ou vier a admitir a suspensão da prescrição, também há impedimentos ao exercício do direito e, todavia, a prescrição suspende-se; mas, se se firmasse o princípio geral de que todo o impedimento de facto constitui uma causa suspensiva da prescrição, poderia conduzir isso a um alargamento frequente dos prazos prescricionais, para mais com as dificuldades inerentes de determinação dos momentos precisos em que começou e cessou o impedimento e, portanto, daquele em que a prescrição se completa.
Tratando-se de impedimentos de caráter jurídico, não de simples impedimento de facto, será mais fácil aceitar a suspensão, não só porque então é da própria lei que resulta a impossibilidade de exercício, mas ainda porque será mais fácil determinar quando começou e cessou o impedimento (...).
Fora daí, os impedimento ao exercício do direito não constituiriam causas suspensivas da prescrição, a não ser que sejam como tais previstos pela lei.
Mas, sendo razoável que, se o impedimento se manifesta quando a prescrição está perto de se completar, o titular não fique desprotegido, por lhe não ficar praticamente tempo suficiente para o exercício do direito, dado poder acontecer que ele tenha reservado para o último período do prazo prescricional o exercício do seu direito, afigura-se dever estabelecer-se, à semelhança do §203.º do Código alemão, que a prescrição se suspende enquanto o titular, dentro dos últimos seis meses do prazo prescricional, estiver impedido, por força maior, de fazer valer o seu direito (...)» (BMJ n.º 105, pág. 206).
Tal solução comparava favoravelmente, como logo se notou, com a disciplina processual do justo impedimento pois, aí, a parte carece de praticar o ato cujo prazo expirou logo que cessar o impedimento, não beneficiando de prolongamento correspondente à duração do mesmo.
Como se vê, a causa objetiva de suspensão consagrada no n.º 1 do artigo 321.º do Código Civil (o n.º 2 do preceito contempla outra causa objetiva de suspensão, que não releva para o presente recurso) obedece essencialmente a considerações de equidade, temperando o funcionamento de outras normas do regime da prescrição, designadamente as que permitem que o prazo de prescrição tenha início e corra sem que o titular do direito saiba da sua existência e da sua titularidade, como que aquelas que estipulam que o prazo de prescrição, mesmo aquele de duração curta, não detenha o seu curso sempre – e em todo o tempo - que o titular do direito esteja impedido de o exercer.
Sendo esse o seu escopo e alcance, Menezes Cordeiro distingue-a de outras figuras, que aponta como limítrofes, como seja o não-início – reconduzido às situações em que, por força do disposto no artigo 306.º, por não poder ser exercido, certo direito não vê, contra ele, correr a prescrição – e a impossibilidade – que aponta, a partir do acórdão do STJ de 6 de julho de 2000, CJ (STJ), VIII, págs. 155 a 158, como “figura jurisprudencialmente referida para retratar casos em que, fora do artigo 306.º, a prescrição não podia iniciar-se, por ausência de direito actuável” – a par da imprescritibilidade e da interrupção da prescrição (ob. cit., pág. 192).
9. Retomando o caso em apreço, o argumentário da recorrente considera que a interpretação normativa questionada traduz um encurtamento irrazoável e excessivo do prazo que a autora, aqui recorrente, dispôs para exercer o seu direito indemnizatório, dispondo, para tanto de um prazo máximo de três meses, o que compara com “o prazo geral de prescrição de três anos decorrente do artigo 498.º, número 1, do Código Civil” (cfr. conclusão D).
Cabe questionar a propriedade dessa comparação, que toma como pressuposto a atribuição de natureza similar e a aplicação dicotómica dos prazos contidos nos dois preceitos. É que, como resulta do exposto, o preceituado no n.º 1 do artigo 321.º não contempla um prazo de prescrição a se, mormente prazo em relação de especialidade com aquele decorrente do n.º 1 do artigo 498.º, de três anos. O prazo de três meses que resulta da ocorrência de impedimento por motivo de força maior em todo o último trimestre do prazo prescricional não afasta o prazo contemplado no n.º 1 do artigo 498.º; toma parte da sua contagem, suplementando o tempo disponível pelo credor – maxime o credor que remete para o fim do prazo a sua decisão ou a respetiva concretização - para exigir em juízo o seu direito.
Porém, mesmo que assim seja, o postulado em que assenta a interpretação normativa em apreço – indisponibilidade legal de meio processual idóneo para o exercício em juízo do direito desde o momento da aquisição do conhecimento subjetivo dos pressupostos do direito até à notificação da decisão administrativa de deferimento – projeta dimensão substancial que coloca em crise a relação entre os dois prazos que se vem de referir.
Com efeito, já não estamos então perante um qualquer evento que importe a impossibilidade de exercício de direito surgido no curso do prazo prescricional, mormente nos seus meses finais. Encontramo-nos perante prazo para o exercício do direito em juízo que se iniciou e correu sem que o respetivo titular, por força da lei, contasse com possibilidade objetiva de exercício do direito. Assim sendo, até que seja adquirida tal possibilidade, mormente através da reunião dos pressupostos exigidos pelo meio processual que lhe era facultado pelo ordenamento adjetivo aplicável, não se pode considerar presente qualquer extensão ou alargamento, em termos de encontrar na suspensão do prazo prescricional contemplada no n.º 1 do artigo 321.º, segundo a interpretação normativa questionada (cuja bondade, repete-se, não cabe aqui apreciar), efetiva suplementação do tempo fixado ao credor para poder exigir em juízo o seu direito.
Na realidade, se o titular do direito não o pôde objetivamente exercitar até à prolação da decisão expressa da entidade pública e, a partir desse momento, só contou com três meses para atuar em juízo o direito à indemnização por danos decorrentes da mesma, o tempo que lhe é outorgado para o exercício do direito à ação corresponde em substância a esse período, funcionando em moldes idênticos ao que aconteceria com a estipulação de que o direito prescrevia se não fosse exercido no prazo de três meses, contados da possibilidade objetiva do seu exercício.
Esta ponderação em nada fica prejudicada pela aquisição em momento anterior, nos termos decididos pelo Tribunal a quo, do conhecimento subjetivo dos pressupostos do direito à indemnização (ainda que condicionado e indefinido quando ao montante dos danos). Como bem afirma o Ministério Público, esse conhecimento pouco releva quando o titular está legalmente privado da faculdade de o exercer em juízo; tanto na sua dimensão objetiva, como na dimensão subjetiva, a tutela efetiva do direito à reparação do particular por danos causados pelo ente público defronta obstáculo intransponível.
Cumpre, então, determinar se o período de três meses para o exercício do direito à indemnização que resulta do funcionamento da causa de suspensão da prescrição nas condições que se vêm de referir, reveste exiguidade tal, face à complexidade das questões subjacentes à ação a interpor, que o torna colidente com o direito de acesso aos tribunais e o princípio de tutela jurisdicional efetiva, por dele resultar restrição excessiva ao direito a ser indemnizado pelos danos decorrentes da atuação de entidade pública.
10. O n.º 4 do artigo 268.º da Constituição garante aos administrados o acesso aos tribunais para defesa de direitos subjetivos ou de interesses jurídicos dignos de tutela, manifestando ou concretizando o princípio geral de acesso dos cidadãos aos tribunais, consagrado no n.º 1 do artigo 20º da Constituição, no âmbito da específica relação dos particulares com a Administração. Valem, neste domínio, os mesmos corolários identificados no que respeita, em geral, ao direito de acesso aos tribunais: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (cfr., entre muitos, o Acórdão n.º 440/94, acessível, como os adiante referidos, em www.tribunalconstitucional.pt ).
O Tribunal Constitucional foi já chamado diversas vezes a apreciar a conformidade constitucional de normas de direito ordinário que estabelecem prazos de prescrição ou de caducidade, concluindo invariavelmente que a simples fixação de tais prazos não importa a violação do direito de acesso ao tribunais e da tutela jurisdicional efetiva. Valores objetivos de certeza e de segurança jurídica, ínsitos no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição, justificam a imposição de um determinado prazo dentro do qual o respetivo direito carece de ser exercido, esgotado o qual fica privado de exigibilidade em juízo (cfr. Acórdãos n.ºs 148/87, 140/94, 70/2000, 411/2010 e 8/2012). O que não significa que tais limitações ao exercício do direito de acesso aos tribunais não encontrem, por seu turno, limites, desde logo pela sua condição jusfundamental: por efeito do disposto no artigo 17.º da Constituição, porque de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, encontra-se sujeito nas suas restrições ao regime do artigo 18.º, n.ºs 2 e 3 da Constituição. Ponto é que estejamos perante restrição ao direito de acesso aos tribunais, e não em face de um simples condicionamento, ou seja, perante normas que encurtem em termos desadequados e desproporcionados o conteúdo e alcance do direito, o que no caso passa por considerar que o prazo aqui em questão inviabiliza ou onera de modo particularmente intenso a posição jurídica subjetiva do credor, em termos de diminuir de forma juridicamente censurável a possibilidade de exercício do direito à indemnização por danos decorrentes da atuação de entidade pública.
Assim, sublinhou-se no Acórdão n.º 411/2010:
«Ínsito na ideia de Estado de direito consagrada no artigo 2.º da CRP, o princípio da proteção da confiança obriga a que, na conformação do ordenamento infraconstitucional, o legislador ordinário não deixe de tutelar a certeza e a segurança do Direito. O instituto da prescrição é, justamente, uma das formas pelas quais se concretiza a tutela desses valores. Por seu intermédio, pretende garantir-se que as pessoas saibam com o que podem contar, particularmente naquelas situações em que a um certo dever jurídico se oponha um direito cujo exercício, se mantenha, no tempo, inerte.
No entanto, ao regular o instituto da prescrição, o legislador ordinário não está apenas vinculado a proteger a condição jurídica do “devedor” em casos de inércia duradoura do “credor”. Para alem disso, o legislador não pode deixar de preservar o núcleo essencial do direito cujo exercício a atuação da prescrição virá inviabiliza. Tal significa, por exemplo – e como se disse no Acórdão n.º 148/87 (...) – que o prazo de prescrição não pode ser de tal modo exíguo que dele resultem, de forma desproporcionada, manifestas e efetivas limitações do direito que dele resultem tutelado. Esta última exigência, para além de poder decorrer do âmbito de proteção normativa de preceitos constitucionais específicos em sede de direitos, liberdades e garantias, emerge seguramente, tanto do princípio consagrado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, quando do próprio princípio do Estado de direito, consagrado no seu artigo 2.º».
Será, a esta luz, o prazo de três meses para o exercício do direito em juízo decorrente da interpretação normativa que se sindica excessivamente curto, em termos de dele decorrer efetiva e desrazoável limitação do direito que se tutela? Ou, ao invés, encontramo-nos perante condicionamento que decorre das exigências de harmonização e de concordância prática entre as exigências constitucionais de sinal contrário que decorrem do direito de acesso aos tribunais e do princípio de tutela jurisdicional efetiva, por um lado, e do princípio da certeza e da segurança jurídica, por outro?
11. O Tribunal confronta-se pela primeira vez com tal questão. O que se compreende, a partir da constatação de que no ordenamento civil não se encontra prazo de prescrição com duração inferior a seis meses, sendo tal prazo prescricional reservado, essencialmente, para o domínio da prescrição presuntiva, com especial relevo para a proteção do consumidor e utente de serviços públicos essenciais. E, mesmo aí, merecendo criticas de radicalidade da solução legislativa, por se entender que “[a]meaçar, por suposto desinteresse, uma pessoa, por não efetivar judicialmente um direito num prazo de seis meses, não parece credível” (Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 204).
É certo que, tendo em atenção o prazo de caducidade de seis meses e questão com alguma proximidade com os contornos do problema sub judicio - prazo de caducidade de seis meses para o acesso à justiça administrativa, contados a partir de ato de deferimento tácito de pedido de licenciamento de um loteamento – entendeu o Tribunal no Acórdão n.º 70/00 que tal duração para o exercício do direito de ação não se mostrava desproporcionado. Valorou-se então especialmente a simplicidade da ação a interpor, limitada ao pedido de reconhecimento dos direitos constituídos com o deferimento tácito, observando-se que “seria de todo irrazoável que o particular, que adquire direitos por virtude da passividade da Administração, pudesse depois prevalecer-se dessa passividade para invocar esses direitos a qualquer momento. Isso seria algo que não condiria com a ideia de Estado de Direito, em que a certeza e a segurança jurídica assumem relevo constitucional”.
O sentido normativo aqui em apreço apresenta, contudo, diferenças valorativas significativas relativamente àquele ponderado no Acórdão n.º 70/00. Não só o prazo em questão é inferior – correspondendo a metade daquele, já de si muito curto – como da tipologia do direito indemnizatório em discussão não resulta aligeiramento ou simplificação das exigências processuais que recaem sobre o credor que o pretenda fazer valer em juízo. Mesmo que se possa encontrar no mecanismo de dedução de pedido ilíquido, nos termos consentidos pelo artigo 471.º, n.º 1, al. b), do CPC (de 1961), fator de mitigação do ónus de apuramento e alegação dos factos integradores da causa de pedir, em função do recurso a raciocínio de probabilidade, sempre permanece o plano probatório, de avaliação pelo credor sobre a comprovabilidade dos factos em juízo, a exigir ponderação. Para tudo isso, que no caso sub judicio encontra inscrição no domínio complexo da comercialização de medicamentos, o prazo de três meses mostra-se particularmente diminuto, significando entrave à proteção jurisdicional que o credor normalmente diligente dificilmente ultrapassa.
Nessa medida, afigura-se-nos que a interpretação normativa em apreço, aplicada no acórdão recorrido, ao atribuir ao recorrente a possibilidade objetiva de exercício do seu direito indemnizatório a apenas três meses, configura efetiva restrição do direito do lesado a ser indemnizado pelos danos decorrentes da atuação de entidade pública.
Restrição essa que não encontra razões de segurança e certeza jurídicas que a justifiquem, face ao disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição. Não se encontra, no sentido normativo extraído do artigo 321.º do Código Civil - maxime na solução que faz correr o prazo prescricional quando à inércia do credor não corresponde ato de vontade ou de qualquer fator impeditivo de índole subjetiva e confina a três meses a possibilidade efetiva de exercer em juízo o direito à indemnização –, interesse público subjacente que credencie a estabilização da posição jurídico subjetiva do devedor com tal celeridade. Em especial quando o facto de que se faz depender o acesso à proteção jurisdicional em matéria administrativa, e correspondentemente o curso do prazo prescricional decorrente do funcionamento da causa de suspensão, constitui potestas do próprio ente público. Recorde-se que, nos termos decididos no acórdão recorrido, “antes da emergência de um ato de deferimento tal ação [de indemnização] era inviável – pois era impossível que o juiz da ação ordinária desse corpo a um ato administrativo que o Infarmed não produzira”.
Cabe, por outro lado, considerar que o prazo especial de três anos prescrito no artigo 498.º do Código Civil para o direito à indemnização representa em si mesmo encurtamento significativo do prazo prescricional ordinário, de vinte anos (artigo 309.º), com vista a permitir que a investigação dos factos e a sua reconstituição probatória em juízo se faça enquanto os seus vestígios não desapareceram e a sua recordação seja viva ou, pelo menos, não muito condicionada pelo distanciamento temporal. Ora, essa via de justificação deixa de ter cabimento quando reportada a não mais de três meses, prazo que claramente não se mostra necessário para remover o risco de excessiva (inequitativa) onerosidade da posição jurídica do devedor, advinda da degradação da prova (vg da prova testemunhal) com o passar do tempo.
Impõe-se, pelo exposto, concluir que a interpretação normativa em apreço comporta restrição excessiva e desproporcionada do direito de acesso a uma tutela jurisdicional efetiva em matéria administrativa, em violação do disposto no n.º 4 do artigo 268.º, articulado com o n.º 2 do artigo 18.º, ambos da Constituição, garantia especial que concretiza a proteção geral conferida pelo n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, também invocada pela recorrente.
12. Assente, nestes termos, a formulação de juízo de inconstitucionalidade, fica prejudicada a apreciação da conformidade constitucional da interpretação normativa objeto do presente recurso perante outros parâmetros, como seja a invocada violação da garantia contida no artigo 22.º da Constituição.
III. Decisão
13. Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do direito a uma tutela jurisdicional efetiva em matéria administrativa, contido no n.º 4 do artigo 268.º, em articulação com o disposto no n.º 2 do artigo 18.º, ambos da Constituição, a interpretação normativa, extraída do n.º 1 do artigo 321.º do Código Civil, segundo a qual se inicia e corre um prazo prescricional, referente a uma pretensão indemnizatória, no momento em que são cognoscíveis pelo lesado os pressupostos do seu direito à indemnização, embora nesse momento ele esteja legalmente impedido de efetivá-lo, por inexistência de meio processual idóneo, apenas se suspendendo a prescrição nos últimos três meses do prazo;
e, em consequência,
b) Julgar procedente o recurso e determinar a reforma da decisão recorrida, em conformidade com o julgamento sobre a questão de inconstitucionalidade;
c) Não são devidas custas.
Lisboa, 12 de fevereiro de 2014. – Fernando Vaz Ventura - João Cura Mariano – Pedro Machete - Ana Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.