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Processo n.º 1152/13
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, A. veio interpor recurso, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No requerimento de interposição de recurso, o recorrente delimita o respetivo objeto, nos seguintes termos:
“(…) interpretação que os doutos acórdãos em referência fazem das normas contidas nos artigos 97 nº 5 e 118 nº 1 do Código do Processo Penal com recurso ao disposto no art. 420 nº 2 do mesmo código e no art. 158 nº 1 e 2 do Código do Processo Civil por remissão do art. 4º do Código do Processo Penal, por violarem ambos o dever constitucional de fundamentação contido no art. 205 nº 1 da Constituição.
(…) interpretação dos arts. 97 nº 5, 118 nº 1 do Código do Processo Penal e ainda do art. 158 nº 1 e 2 do Código do Processo Civil por remissão do art. 4º do Código do Processo Penal, bem como dos art. 4º e 420 do Código do Processo Penal que viola o sentido do dever geral de fundamentação a que os tribunais estão vinculados por força do princípio constitucional contido no art. 205 nº 1 da Constituição, questão que submete à apreciação deste Tribunal.”
3. Por decisão de 27 de setembro de 2013, tal recurso não foi admitido, nos seguintes termos:
“(…) O arguido A., invocando o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional dos acórdãos proferidos por este tribunal em 3 de julho de 2013 e 11 de setembro de 2013.
Indicou as normas cuja inconstitucionalidade pretendia que o tribunal apreciasse (as contidas nos artigos 97.º, n.º 5, e 118.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, com recurso ao disposto no artigo 420.º, n.º 2, do mesmo Código, e no artigo 158.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, por remissão do artigo 4.º do Código de Processo Penal) e a norma constitucional que considerava violada (artigo 205.º, n.º 1, da Constituição).
Embora o recorrente tenha dito, de passagem, que a questão que agora pretende ver apreciada foi suscitada na reclamação que apresentou, não vemos que nesse articulado ou em qualquer outra peça processual ele tenha suscitado a inconstitucionalidade de qualquer norma.
Assim, por não se encontrarem preenchidos os requisitos exigidos pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 75.º - A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, e porque a aplicação das normas cuja inconstitucionalidade o recorrente ora invoca não surgiu de forma imprevisível, não admito o recurso interposto pelo arguido para o Tribunal Constitucional.”
É desta decisão que o recorrente presentemente reclama.
4. Para fundamentar a reclamação apresentada, manifesta o recorrente a sua discordância relativamente à decisão proferida.
Começa por referir as circunstâncias casuísticas em que surgiu o seu recurso de constitucionalidade, afirmando que, logo que confrontado com o teor do acórdão datado de 3 de julho de 2013, invocou a violação do princípio constitucional que obriga os tribunais a fundamentarem as suas decisões. Esclarece que não o fez em momento anterior, por lhe ser impossível.
Mais refere que os acórdãos proferidos – referindo-se aos arestos datados de 3 de julho e de 11 de setembro, ambos de 2013 – “limitando-se a transcrever e a remeter para as peças processuais em causa, sem especificar e justificar analisando o que no teor desses documentos constitui os fundamentos nos quais baseou a rejeição do incidente, faz[em] uma interpretação dos arts. 97 nº 5, 118 nº 1 do Código do Processo Penal e ainda do art. 158 nº 1 e 2 do Código do Processo Civil por remissão do art. 4º do Código do Processo Penal, bem como dos art. 4º e 420 do Código do Processo Penal que viola o sentido do dever geral de fundamentação a que os tribunais estão vinculados por força do princípio constitucional contido no art. 205 nº 1 da Constituição, questão que submete à apreciação deste Tribunal.”
Acrescenta o reclamante que o despacho reclamado padece de contradição porque o “penúltimo parágrafo do despacho diz que não se vê que, na reclamação, seja suscitada qualquer inconstitucionalidade. No seguinte e último reconhece-se que o recorrente invocou a inconstitucionalidade das normas aplicadas (bem entendido, no sentido que lhes foi dado) mas que não houve imprevisibilidade.”
Conclui pedindo que seja admitida a presente reclamação.
5. O Ministério Público, no Tribunal Constitucional, pugna pelo indeferimento da reclamação, uma vez que, quer no requerimento de recusa, quer na arguição de nulidade do acórdão que decidiu tal incidente, “não se vislumbra minimamente a suscitação de qualquer questão de constitucionalidade normativa que pudesse constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade”.
Conclui que, faltando o aludido requisito de admissibilidade do recurso, não poderia o mesmo ser admitido.”
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
6. Refere a decisão reclamada que o recorrente não suscitou na reclamação ou em qualquer outra peça processual a inconstitucionalidade de qualquer norma. Assim, “e porque a aplicação das normas cuja inconstitucionalidade o recorrente ora invoca não surgiu de forma imprevisível”, é inadmissível o recurso de constitucionalidade.
O fundamento da decisão assenta, deste modo, no incumprimento do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, perante o tribunal a quo.
Relativamente a este pressuposto de admissibilidade do recurso, salienta-se que a sua importância é realçada pela circunstância de condicionar a legitimidade para recorrer, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
De facto, nos termos do n.º 2 do artigo 72.º do mesmo diploma, os recursos em análise “só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade (…) de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.”
Ora, o cumprimento do presente pressuposto de admissibilidade do recurso implica que a questão de constitucionalidade normativa seja levantada, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara, exigindo-se, neste âmbito, uma precisa delimitação e enunciação da questão e uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que inclua a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido, de modo a tornar exigível que o tribunal a quo se pronuncie especificamente sobre a questão jurídico-constitucional, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr. v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 708/06 e 630/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
O recorrente apenas se encontrará dispensado do cumprimento do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade nos casos, absolutamente anómalos, em que a parte não podia razoavelmente antecipar a possibilidade de uma dada dimensão normativa – objetivamente surpreendente - ser acolhida na decisão recorrida.
Salienta-se que a inexigibilidade do dever de antecipação em análise deve ser perspetivada à luz de um modelo de litigância diligente e prudente, assente na ideia de que recai sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas, suscetíveis de virem a ser seguidas na decisão, e de formularem um juízo de prognose que antecipe as várias hipóteses, razoavelmente previsíveis, de enquadramento normativo do litígio, de modo a confrontarem atempadamente o tribunal com as inconstitucionalidades que poderão viciar as normas ou interpretações normativas convocadas.
Aplicando as considerações expendidas ao caso concreto, concluímos que, indicando o recorrente, como decisões recorridas, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, datados de 3 de julho e de 11 de setembro, ambos de 2013 – independentemente de qualquer juízo sobre o acerto dessa escolha – recaía sobre o mesmo o ónus de suscitar ou de renovar a suscitação das questões de constitucionalidade, que pretendia ver apreciadas, no requerimento de recusa de juiz, relativamente a critérios normativos utilizados no acórdão de 3 de julho de 2013, e no requerimento de arguição de nulidade de tal aresto, quanto a critérios normativos utilizados no acórdão de 11 de setembro de 2013.
Porém, compulsadas tais peças processuais, resulta manifesto que, em nenhum momento, o reclamante suscitou qualquer questão de constitucionalidade de qualquer critério normativo, de forma a poder garantir a admissibilidade de ulterior recurso de constitucionalidade.
Quanto ao requerimento de recusa, o próprio reclamante reconhece a omissão de suscitação.
No tocante ao requerimento de arguição de nulidade, o reclamante igualmente não autonomiza e enuncia qualquer critério normativo, extraível das disposições legais indicadas no requerimento de interposição de recurso, que pudesse servir de base a uma problematização de constitucionalidade – concordantemente, igualmente omissa – limitando-se a invocar a violação das referidas disposições legais e, concomitantemente, do artigo 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Não tendo os acórdãos recorridos convocado qualquer interpretação normativa, insólita ou surpreendente, não se encontrava o reclamante dispensado do ónus de suscitação prévia que vimos de analisar.
Nestes termos, não tendo o reclamante suscitado, perante o tribunal a quo, de forma adequada – expressa, direta e clara - uma questão de constitucionalidade de uma interpretação extraível dos preceitos identificados no requerimento de interposição de recurso, conclui-se que ficou prejudicada a admissibilidade do recurso.
Acrescenta-se que não se vislumbra que exista, na decisão reclamada, a contradição que o reclamante assinala. De facto, na decisão de 27 de setembro de 2013, não se afirma que o recorrente tenha suscitado previamente qualquer questão de constitucionalidade. Pelo contrário, afirma-se o incumprimento de tal ónus - de que o recorrente não estava dispensado, por não estar em causa qualquer critério normativo de aplicação imprevisível – referindo-se a expressão “aplicação das normas cuja inconstitucionalidade o recorrente ora invoca” à apresentação da questão de constitucionalidade no próprio requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, ou seja, num momento já inelutavelmente tardio em relação ao cumprimento do ónus de suscitação prévia.
Por tudo quanto fica exposto, indefere-se a reclamação.
III – Decisão
7. Nestes termos, decide-se julgar inadmissível o recurso de constitucionalidade interposto e, em consequência, julgar improcedente a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 21 de janeiro de 2014. – Catarina Sarmento e Castro – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral.