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Processo n.º 1134/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em Conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, por sentença proferida em 19 de dezembro de 2011 pelo 4.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, foi o arguido e ora recorrente A. condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de seis meses de prisão, substituída por duzentos e quarenta dias de multa à taxa diária de € 7,00. Não tendo sido paga a multa, por despacho de 3 de julho de 2013 foi determinado o cumprimento pelo arguido da pena de seis meses de prisão.
Posteriormente, tendo o arguido procedido ao pagamento da multa, foi decidido, por despacho de 8 de janeiro de 2013, que os pagamentos efetuados não poderiam evitar a execução da pena de prisão pelas razões que “já foram explanadas nos despachos anteriormente proferidos, que são do conhecimento do condenado”. Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto que, por decisão sumária proferida pelo relator em 15 de maio de 2013, rejeitou o recurso, por manifestamente improcedente. O arguido reclamou para a conferência, que, por acórdão de 26 de junho de 2013, indeferiu a reclamação apresentada, mantendo nos seus precisos termos a decisão sumária proferida.
2. Novamente inconformado, o arguido interpôs recurso desse acórdão para o Tribunal Constitucional, invocando o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), o qual foi admitido pelo Tribunal a quo.
3. Neste Tribunal, foi proferida a decisão sumária n.º 633/2013, concluindo pelo não conhecimento do recurso, no essencial, pela seguinte ordem de razões:
«(...) 6. O recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26 de junho de 2013, que indeferiu a reclamação apresentada, mantendo nos seus precisos termos a decisão sumária proferida e a rejeição do recurso interposto pelo arguido.
Com referência a essa decisão, o recorrente inscreve no recurso a conjugação de preceitos substantivos e processuais, remetendo para sentido normativo delimita como sendo o de que 'o recurso interposto pelo recorrente é manifestamente improcedente, pelo que deve ser rejeitado, por ser inadmissível o pagamento da multa depois de revertida a condenação à pena inicialmente substituída”. Ora, encontra-se nessa formulação dois sentidos normativos distintos: um primeiro, relativo ao sentido decisório proferido – rejeição do recurso – em função do verificação dos respetivos pressupostos, mormente do caráter manifesto da improcedência dos seus fundamentos; um segundo, referido como traduzindo a inadmissibilidade do pagamento da multa depois de “revertida a condenação à pena inicialmente substituída”.
Antecipe-se que nenhum desses sentidos normativos assume idoneidade para a sua apreciação por este Tribunal.
7. Com efeito, não cabe a este Tribunal sindicar a correção do juízo formulado quanto à improcedência do recurso, na aplicação casuística do disposto nos artigos 417.º n.º 6 alínea b) e 420.º n.º 1 alínea a) do CPP. Essa ponderação, procura atingir o controlo da decisão, enquanto ato de julgamento, designadamente na subsunção do caso aos apontados preceitos, o que escapa manifestamente à apreciação estritamente normativa cometida ao Tribunal Constitucional no artigo 70.º, n.º 1, al. b) da LTC.
Assim, nessa dimensão adjetiva, o recurso não comporta objeto idóneo ao seu conhecimento.
8. A segunda dimensão constante da formulação do requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade é reportada a norma do artigo 49.º, n.º 2 do Código Penal, nos termos da qual o pagamento da multa é inadmissível depois de “revertida a condenação à pena inicialmente substituída”. Apesar dessa formulação não ser inteiramente esclarecedora, compreende-se que o recorrente alude ao problema centrado no campo de aplicação do disposto no referido preceito do Código Penal e que conduziu ao recente Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 12/2013, de 18 de setembro, publicado no Diário da República n.º 200, 1ª Série, de 16 de outubro de 2013, de acordo com o qual foi fixada jurisprudência pelo STJ no sentido de que “Transitado em julgado o despacho que ordena o cumprimento da pena de prisão em consequência do não pagamento da multa por que aquela foi substituída, nos termos do artigo 43.º n.ºs 1 e 2, do Código Penal, é irrelevante o pagamento posterior da multa por forma a evitar o cumprimento daquela pena de prisão, por não ser caso de aplicação do preceituado no n.º 2, do artigo 49.º, do Código Penal”.
Na reclamação da decisão sumária, decidida pelo Acórdão recorrido, o recorrente procurou fazer valer a posição interpretativa contrária, apoiado na divergência jurisprudencial que conduziu precisamente à referida fixação de jurisprudência, a que aduziu genericamente considerações de violação da Constituição, consequência que imputou diretamente à decisão reclamada, na sua dimensão interpretativa, e não a sentido normativo comportado em qualquer dos preceitos indicados (cf. Ponto 8 da Reclamação).
Assim sendo, falece em primeira linha legitimidade ao recorrente, face ao imposto nos artigos 70.º, n.º1, al. b) e 72.º, n.º2 da LTC, pois não colocou ao Tribunal a quo qualquer questão normativa, pugnando pela desaplicação de qualquer norma ou interpretação normativa em virtude de desconformidade constitucional. Pugnou, sim, pela aplicação de uma norma, atribuindo a outro sentido decisório – i.e.. ao ato de julgamento, na escolha e definição do direito infraconstitucional aplicável – violação da Constituição.
9. Reagindo ao Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto e ao afastamento que dele consta da tese que defendera, procura o recorrente prosseguir essa mesma discussão neste Tribunal, a partir dos argumentos de constitucionalidade que antes havia avançado, em busca de amparo.
Ora, e como este Tribunal sempre vem alertando, a interpretação do direito infraconstitucional constante da decisão recorrida constitui um dado, pois o controlo da constitucionalidade previsto na via mobilizada pelo recorrente apenas pode recair sobre norma ou interpretação efetivamente aplicada como ratio decidendi pelo Tribunal a quo. No caso, a expressa recusa de aplicação do disposto no artigo 49.º, n.º 2 do Código Penal, de acordo com interpretação cuja bondade não pode ser aqui apreciada, significa que o recurso de constitucionalidade fica desprovido do necessário objeto normativo e, correspondentemente, não pode ser conhecido. E não se procure encontrar na apreciação do Tribunal a quo aplicação implícita, pois, como se diz no Acórdão n.º 49/09 “[n]ão é possível (...) considerar verificada uma interpretação implícita de norma quando o tribunal expressamente afasta a aplicação dessa norma ao caso concreto, por considerar justamente que essa disposição não é convocável para a resolução da questão de direito”.
Face ao exposto, também na sua dimensão substantiva, o recurso de constitucionalidade não pode ser conhecido».
4. Irresignado, o recorrente veio reclamar para a Conferência, através de requerimento com o seguinte teor:
«1. Por douta decisão sumária número 671/2013, foi decidido não conhecer do objeto do recurso interposto pelo Recorrente, ora Reclamante, para o Tribunal Constitucional.
2. (...)
3. Ora, salvo o devido respeito, afigura-se ao recorrente que em sede de reclamação apresentada para a conferência indicou de forma suficiente as questões de inconstitucionalidade que pretende ver apreciadas.
4. O recorrente nos artigos 8, 9, 10 e 11 da reclamação que apresentou, expôs a interpretação do Tribunal a quo que no seu entender foi violadora dos preceitos constitucionais previstos nos artigos 13.º, 18.º número 2 e 32 número 1 da Constituição da República Portuguesa, que expressamente invocou, em conjugação com normas do Código do Processo Penal e do Código Penal aplicáveis ao caso concreto.
5. Pelo exposto, o recurso apresentado para o Tribunal constitucional é admissível devendo prosseguir para apreciação de mérito.
6. Nestes termos, deve ser atendida a presente reclamação e, em consequência ser admitida e julgada procedente em toda a sua extensão.»
5. Em resposta, o Ministério Público pronunciou-se pela improcedência da reclamação, dizendo:
«1º
A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido em conferência na Relação do Porto que indeferiu a reclamação da decisão proferida pelo Senhor Desembargador Relator que, por o considerar manifestamente improcedente, rejeitara o recurso interposto para aquela Relação.
2º
No requerimento o recorrente identifica a seguinte questão de inconstitucionalidade:
“A norma do artigo 49.º n.º 2 do Código Penal conjugada com as normas dos artigos 417.º n.º 6 alínea b) e 420.º n.º 1 alínea a) do C.P.P. interpretadas no sentido de 'o recurso interposto pelo recorrente é manifestamente improcedente, pelo que deve ser rejeitado, por ser inadmissível o pagamento da multa depois de revertida a condenação à pena inicialmente substituída, por diminuir as garantias de defesa do recorrente, violando o direito ao recurso previsto no artigo 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, violação do princípio da Igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, e violação dos princípios da proporcionalidade, da adequação, da necessidade e da razoabilidade consagrados no artigo 18.º número 2 da Constituição da República Portuguesa - A questão da inconstitucionalidade foi suscitada na reclamação para a conferência apresentada pelo recorrente para o Tribunal da Relação do Porto.(…) »
3º
Apesar de o requerimento não ser claro, o Exm.º Senhor Conselheiro Relator no Tribunal Constitucional analisou-o de forma criteriosa nele vislumbrando a enunciação de duas questões: uma de natureza processual – a referida nos artigos 417.º, n.º 6, alínea b) e 420.º, n.º 1, alínea a), do CPP – e outra de natureza substantiva – a relacionada com o artigo 49.º, n.º 1, do Código Penal.
4º
Ora, parece-nos evidente, como se demonstra na douta Decisão Sumária, que quanto à primeira questão “o recurso não comporta objeto idóneo ao seu conhecimento”.
5.º
Aliás, na reclamação agora apresentada, o recorrente, sobre esta parte da decisão, nada diz de concreto.
6.º
Quanto à segunda questão – a referente ao artigo 49.º, n.º 1, do Código Penal – também nos parece que na reclamação da Decisão Sumária proferida na Relação do Porto, não surge enunciada com clareza uma questão de inconstitucionalidade normativa.
7.º
Surgindo duas interpretações, o recorrente pugnou por uma, a contrária àquela que a decisão, então reclamada, sufragara, acabando por imputar a violação das normas constitucionais à própria decisão.
8.º
Elucidativo da ausência de normatividade da questão é o afirmado pelo recorrente nos pontos 8, 9, 10 e 11 da reclamação, precisamente os que agora por ele são indicados para demonstrar que suscitou “adequadamente” a questão:
“8. A douta decisão Sumária proferida pela Digníssima Desembargadora-Relatora na interpretação que faz do artigo 49.º n.º 2 do C.Penal conjugada com os artigos 417.º, n.º 6 b) e 420.º n.º 1 a) do C.P.Penal, salvo o devido respeito por melhor opinião, está a coartar manifestamente os direitos do Recorrente, designadamente os constitucionalmente consagrados,
9. Na medida em que diminui as garantias de defesa do Recorrente, e limitando o seu direito ao recurso, viola o disposto no artigo 32.º n.º 1 da Constituição da República.
10. Violando o princípio da Igualdade conforme disposto no artigo 13.º da Constituição da República,
11. E os princípios constitucionais da proporcionalidade, da adequação, da necessidade e da razoabilidade consagrados no artigo 18.º n.º 2 da Constituição da República”.
9.º
Pelo exposto, e como bem se conclui na douta Decisão Sumária, não tendo sido suscitada, “durante o processo”, uma questão da inconstitucionalidade normativa, falta legitimidade ao recorrente para interpor recurso para o Tribunal Constitucional (artigo 70.º, n.º 1, alínea b) e 72.º, n.º 2, da LTC).
10.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. Vem o recorrente reclamar da decisão sumária proferida nos autos, manifestando discordância quanto à ausência de suscitação prévia adequada da questão de constitucionalidade, nela afirmada como fundamento para o não conhecimento do recurso interposto.
Verifica-se, desde logo, que a circunscrição do argumentário a esse fundamento deixa sem oposição a razão que conduziu ao não conhecimento da questão de constitucionalidade na vertente adjetiva. No que concerne à impugnação da legitimidade constitucional do sentido decisório proferido – rejeição do recurso – em função do verificação dos respetivos pressupostos, mormente do caráter manifesto da improcedência dos seus fundamentos, considerou a decisão sumaria que se tratava de questão inteiramente dirigida ao ato de julgamento e, nessa medida, inidónea a fundar o recurso de constitucionalidade, circunscrito à apreciação de normas, mesmo que atingidas por via interpretativa.
E, de facto, assim acontece, com clareza: o recorrente formulou pretensão de revisão da bondade da decisão de rejeição do recurso, no plano infraconstitucional, o que não cabe a este Tribunal apreciar.
7. Centrada a reclamação na decisão de não conhecimento da questão de constitucionalidade incidente sobre o plano penal substantivo, deparamos com a ausência de outros argumentos para além da remissão para o que consta dos pontos 8 a 11 da reclamação para a conferência do Tribunal da Relação do Porto, em defesa do cumprimento do ónus de suscitação prévia decorrente da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º e do n.º 2 do artigo 72.º, ambos da LTC.
Porém, e como se aponta na decisão sumária, nesse ponto da reclamação, ou em qualquer outro, não foi colocada questão normativa de constitucionalidade, cujo conhecimento se impusesse ao Tribunal recorrido. Encontram-se, sim, esgrimidos argumentos de índole constitucional, com mera alusão a violação de preceitos e princípios constitucionais, sem especificação ou concretização de qualquer critério ou padrão normativo, extraído por interpretação, e a que se atribua desconformidade constitucional.
Novamente, o recorrente não tem em devida atenção que o objeto do recurso de constitucionalidade não comporta a reapreciação de atos judiciais, em si mesmos considerados, mormente na escolha e aplicação da interpretação que têm por correta do direito ordinário, pelo que a simples adução de princípios e preceitos constitucionais ao argumentário votado obter a reversão de anterior julgamento, de que se reclama, não é idónea a habilitar o controlo cometido ao Tribunal Constitucional, nos termos prescritos pelo artigo 280.º, n.º1, alínea b) da Constituição.
Ora, não se mostra exata a indicação do recorrente de que “expôs” problema de constitucionalidade dirigido a interpretação normativa nos aludidos pontos da sua reclamação para a conferência do Tribunal da Relação do Porto, entendendo-se como tal a formulação de sentido ou dimensão de preceito penal dotados de abstração e que não se atenham à estrita operação aplicativa, por subsunção dos conceitos reputados pertinentes. Nesse segmento da reclamação, o recorrente limita-se a imputar à decisão sumária lavrada pelo Desembargador Relator e à interpretação que faz de vários preceitos do ordenamento penal e processual penal, em sentido que não identifica nem caracteriza minimamente, a coartação do seu direito ao recurso e, sem motivação adicional, a violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade. Não se encontra, nem mesmo em termos aproximados, a colocação de questão com a formulação reportada ao n.º 2 do artigo 49.º do Código Penal, como exarado no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
Assim sendo, e como bem se concluiu na decisão sumária reclamada, não assiste ao recorrente legitimidade para o recurso, o que impede o seu conhecimento.
III. Decisão
8. Pelo exposto, decide-se:
a) Indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão sumária reclamada;
b) Condenar o reclamante nas custas, fixando-se em 20 (vinte) Ucs a taxa de justiça, tendo em atenção os critérios seguidos por este Tribunal e a dimensão do impulso desenvolvido e apreciado.
Lisboa, 9 de janeiro de 2014.- Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.