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Processo n.º 1210/2013
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A., foram proferidos decisão sumária de não conhecimento do objeto do recurso com a seguinte fundamentação:
(…) O presente recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo das alíneas b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional: LTC).
Nos termos do disposto pelo artigo 280.º, n.º 1, alínea b) da Constituição, e pelo artigo 70.º n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, cabe recurso para este último das decisões dos tribunais que tenham aplicado norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo.
Decorre do requerimento atrás transcrito, que, in casu, se pretende interpor recurso da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça a 17-09-2013. Aliás, o requerimento de interposição foi apresentado neste tribunal (fls. 3934 dos autos), onde se proferiu o despacho de admissão a que alude ao n.º 1 do artigo 76.º da LTC (fls. 3941 dos autos).
Ora, estando em causa a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça – e atendendo a que, em sede de fiscalização concreta, tratando-se de formular um juízo que tem por objeto uma norma tal como foi aplicada num caso concreto, é um pressuposto de conhecimento do recurso de constitucionalidade que a decisão que o Tribunal Constitucional venha a proferir sobre a questão de constitucionalidade suscitada seja suscetível de produzir algum efeito sobre a decisão de que se recorre – sempre se terá que entender que, no caso sub judicio, este pressuposto nunca se verificaria, uma vez que a dimensão normativa que se recorta do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade não serviu de fundamento à decisão recorrida.
Com efeito, o que o recorrente pretende é que este Tribunal aprecie a constitucionalidade da norma do “art.º 271.º do Código Processo Penal, na interpretação que foi implicitamente acolhida no tribunal Criminal do Porto, [segundo a qual] a inquirição [é] válida e relevante, [isto é, são válidas as declarações para memória futura], mesmo no caso de o inquérito ainda não ocorrer contra um arguido conhecido e constituído, que por isso não pode ser notificado nem obviamente estar presente na inquirição, e sem a presença de um Defensor”, pois entende que uma semelhante interpretação contende com o princípio do contraditório, previsto no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa. No entanto, o Supremo Tribunal de Justiça veio, tão só, rejeitar o recuso interposto do acórdão da Relação do Porto, por força da aplicação conjugada dos artigos 417.º, n.º 6, alínea c) e 420.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal.
Aliás, a inadmissibilidade do presente recurso decorre dos próprios termos formais da sua interposição. Com efeito, no caso, é no próprio texto do requerimento de interposição que se reconhece a inexistência deste pressuposto de admissão do recurso – a aplicação efetiva pela decisão recorrida da norma que se pretende controverter –, uma vez que se afirma que a norma impugnada é aquela “implicitamente acolhida no Tribunal Criminal do Porto”, (aliás, nenhuma outra instância de recurso se poderia ter pronunciado sobre a interpretação controvertida, já que quer o Tribunal da Relação do Porto, quer o Supremo Tribunal de Justiça se limitaram a rejeitar os recursos interpostos).
E, porque assim é, não se encontra verificado o pressuposto processual de efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, pressuposto esse sem a verificação do qual se não pode conhecer de recurso interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Tanto basta para que se não possa admitir o presente recurso de constitucionalidade.
2. Notificado dessa decisão, A. veio reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, com os seguintes fundamentos:
O Tribunal a quo entende que “O Recurso para o Tribunal Constitucional não é admissível pois se reporta à decisão que indeferiu a reclamação e não a qualquer norma em que a mesma decisão se tenha baseado.
Todavia, nesta parte, o arguido alude aos art.s 29º e 32º da CRP, por entender que a que a interpretação e aplicação do disposto no art.º 271º do Código Processo Penal, ao permitir, na interpretação que foi implicitamente acolhida no tribunal Criminal do Porto, a inquirição, válida e relevante, mesmo no caso de o inquérito ainda não correr contra um arguido conhecido e constituído, que por isso não pode ser notificado nem obviamente estar presente na inquirição, e sem a presença de um Defensor, é inconstitucional, inconstitucionalidades essas previamente invocadas no seu recurso da 3ª vara do tribunal Criminal do Porto para o Tribunal da Relação do Porto.
Se o recorrente não pudesse invocar as inconstitucionalidades resultantes da interpretação e aplicação das normas feitas pelos Tribunais Superiores (Relação ou Supremo Tribunal de Justiça) ficaria fora da alçada do Tribunal Constitucional uma grande parte da fiscalização concreta da constitucionalidade que cabe a esse alto tribunal.
É com a prolação da Decisão, e só nessa altura, que se tornam patentes os vícios e manifesta a interpretação inconstitucional dada às normas, afrontando de maneira gritante e inadmissível o Estado de Direito e processo Democrático, pondo em causa princípios que deviam estar mais do que consolidados na ordem jurídica portuguesa:
Assim sendo, o recorrente tem o Direito a ver apreciado o Recurso interposto para o Tribunal Constitucional no sentido de controlar a constitucionalidade:
a) Ora, entendemos salvo melhor opinião que a interpretação e aplicação do disposto no art.º 271º do Código Processo Penal, ao permitir, na interpretação que foi implicitamente acolhida no tribunal Criminal do Porto, a inquirição, válida e relevante, mesmo no caso de o inquérito ainda não correr contra um arguido conhecido e constituído, que por isso não pode ser notificado nem obviamente estar presente na inquirição, e sem a presença de um Defensor, constitui uma violação dos artigos 29º e 32° da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidades essas invocadas previamente no seu recurso do Tribunal Criminal do Porto, para o Tribunal da Relação do Porto.
Desta forma, tem o recorrente o direito a ver apreciado o Recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional veio dizer o seguinte:
1º
Como se vê pelo requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 3943), complementado pelo posteriormente apresentado (fis. 3952), constitui objeto formal do recurso interposto para o Tribunal Constitucional o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 12 de setembro de 2013 (por lapso o recorrente refere 17 de setembro, sendo esta a data do envio da carta para notificação do acórdão – fls. 3930).
2º
A questão de constitucionalidade que o recorrente identifica no requerimento de interposição do recurso tem a ver com o artigo 271.º do CPP e a valoração como prova, de depoimentos para memória futura prestadas pelas vítimas, levada a cabo na decisão condenatória proferida em 1.ª instância.
3º
Ora, o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, rejeitou o recurso que havia sido interposto do acórdão da Relação do Porto, que, por sua vez, indeferira reclamação de decisão sumária proferida nessa Relação que considerara manifestamente improcedente o recurso interposto da decisão da 1.ª instância.
4º
A rejeição do recurso, por parte do Supremo Tribunal de Justiça, fundou-se no disposto nos artigos 417.°, n.º 6, alínea c) e 420.º, n.º 1, alínea b), do CPP, portanto, as normas aplicadas nessa decisão.
5º
Nestas circunstâncias, o acórdão recorrido não aplicou, nem podia aplicar, a norma que vem identificada como devendo constituir objeto do recurso.
6º
Desta forma, uma vez que “não se encontra verificado o pressuposto processual da efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada”, como se concluiu na douta Decisão Sumária, deve a reclamação ser indeferida.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Nos presentes autos decidiu-se sumariamente, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro: LTC), não conhecer do objeto do recurso que se pretendia interpor, por no correspondente requerimento de interposição se impugnar a inconstitucionalidade de uma norma (constante do artigo 271.º do Código de Processo Penal) que não havia sido efetivamente aplicada pela decisão recorrida.
Vem agora o requerente reclamar para a conferência, nos termos do n.º 3 do artigo 78.-ºA da LTC, afirmando essencialmente: em primeiro lugar, que o recurso não foi admitido porque se reportaria à “decisão que indeferiu a reclamação e não a qualquer norma em que a mesma decisão se tenha baseado”; em segundo lugar, que pretende a impugnação da norma constante do artigo 271.º do CPC, “na interpretação que foi implicitamente acolhida pelo Tribunal Criminal do Porto”; em terceiro e último lugar, que “[s]e o recorrente não pudesse invocar as inconstitucionalidades resultantes da interpretação e aplicação das normas feitas pelos Tribunais Superiores (…) ficaria fora da alçada do Tribunal Constitucional uma grande parte da fiscalização concreta da constitucionalidade que cabe a esse alto Tribunal”
Sendo estes os termos da reclamação, torna-se patente que a mesma em nada contraria os fundamentos que sustentaram a decisão sumária de não conhecimento do objeto do recurso.
Com efeito, tais fundamentos não radicaram, como alega agora o reclamante, na natureza não-normativa do objeto do recurso que se pretendia interpor, mas tão somente no facto de, com ele, se pretender impugnar perante o Tribunal Constitucional uma norma (a decorrente de uma certa interpretação do artigo 271.º do CPC) que o tribunal a quo não tinha efetivamente aplicado. Na verdade, tendo-se pretendido interpor recurso para o Tribunal Constitucional da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça a 12 de outubro de 2013, que rejeitou, nos termos do disposto nos artigos 417.º, n.º 6, alínea c) e 420.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal o recurso do Acórdão da Relação, não podia agora vir questionar-se perante o Tribunal Constitucional a alegada inconstitucionalidade do artigo 271.º do CPP, na interpretação que, segundo se diz, dele implicitamente fizera o Tribunal Criminal do Porto.
Nunca será demais recordar que a via de recurso para o Tribunal Constitucional só se encontra aberta naquelas situações em que o Tribunal a quo - neste caso, o Supremo Tribunal de Justiça – tenha efetivamente aplicado norma cuja inconstitucionalidade haja sido arguida durante o processo [artigos 280.º n.º1, alínea b) da CRP; 70.º, n.º1, alínea b) da LTC]. Ora, como já se disse, in casu, a decisão recorrida (proferida no STJ) limitou-se a rejeitar o recurso que o ora reclamante pretendia interpor para aquele tribunal. Assim sendo, as normas do CPP que constituíram a razão de decidir do tribunal a quo foram as constantes dos artigos 417.º, n.º 6, alínea c) e 420.º, n.º 1, alínea b) do CPP, nas quais se fundou a não admissão do recurso, e não a decorrente do artigo 271.º do mesmo Código que o ora reclamante – como se confirma pelo teor da reclamação – pretende impugnar perante o Tribunal Constitucional.
Tanto basta para que se conclua pela não perfeição, no caso, dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade.
III – Decisão
5. Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a reclamação e confirmar a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que o mesmo eventualmente beneficie.
Lisboa, 21 de janeiro de 2014. – Maria Lúcia Amaral – José da Cunha Barbosa – Joaquim de Sousa Ribeiro.