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Processo n.º 1236/13
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A. foi condenado, por sentença do 1.º Juízo Criminal de Lisboa de 6 de abril de 2011 (fls. 150 e seguintes), pela prática de um crime de injúria, na pena de sessenta dias de multa à taxa diária de cinco euros, o que perfaz a quantia de trezentos euros.
Interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo invocado, designadamente, incompetência territorial pelo facto de a causa caber na competência do Juízo de Média Instância Criminal de Sintra – Comarca da Grande Lisboa Noroeste. Invocou ainda a inconstitucionalidade da parte final da alínea e) do artigo 119.º do Código de Processo Penal, conjugada com o n.º 2, do artigo 32.º, do mesmo Código, ao limitar a arguição da incompetência territorial até à fase do início da audiência de julgamento, por violação do princípio do juiz natural consagrado no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição.
Por decisão sumária de 6 de maio de 2013 (fls. 45 e seguinte), a Relação de Lisboa rejeitou o recurso em virtude de o considerar manifestamente improcedente. Quanto à concreta inconstitucionalidade suscitada, disse o Tribunal o seguinte:
«No que concerne à incompetência territorial do Tribunal, os factos ocorreram não só a questão deveria ter sido suscitada até ao início da audiência final, como decorre expressamente do artº 52º, nº 1 do DL 25/2009, de 26 de Janeiro, com o artº 32º, nº 3 do mesmo diploma legal e com o preceituado no artº 25º da nova LOFTJ que os presentes autos não poderiam ter transitado para os novos juízos da área da Grande Comarca de Lisboa-Noroeste-Sintra.» (fl. 45)
Tendo reiterado a motivação do recurso, o recorrente apresentou reclamação dessa decisão sumária, a qual foi indeferida por acórdão de 4 de julho de 2013 (fls. 50 e 51), mantendo a referida decisão.
2. Interpôs então o arguido recurso de constitucionalidade ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (adiante referida como “LTC”), pretendendo ver apreciada «a parte final da alínea e), do artigo 119.º do Código de Processo Penal, conjugada com o n.º 2, do artigo 32.º, do respetivo código, [por] viola[r] o princípio do juiz natural consagrado no n.º 9 do artigo 32.º da Constituição».
O recurso não foi admitido por despacho do Relator de fl. 56 com o seguinte teor:
«Não [tem] o arguido razão.
O que o legislador pretendeu foi exatamente o contrário do que o arguido pretende, ou seja, ao transferir o processo para as novas comarcas, já depois de definido o juiz natural, após distribuição nesta comarca, é que se estaria a violar o disposto no artº 32º, nº 9 da CRP que proíbe o desaforamento de processos. Aliás, foi esse mesmo o sentido do disposto no artº 52º, nº 1 da Lei nº 25/2009, de 26 de Janeiro – dar integral cumprimento ao disposto no nº 9 do artº 32º da CRP.
E este Tribunal de recurso, ao decidir conforme decidiu, fez o mesmo.
Aquilo que o recorrente pretende agora, sem que tenha suscitado a questão antes, é a) violar o disposto no artº 32, nº 9 da CRP; b) interpor um recurso para cuja interposição falta um pressuposto essencial – ter suscitado antes a questão de inconstitucionalidade. Isto para já não mencionar o protelar do trânsito em julgado da decisão.»
3. É deste despacho que vem deduzida a presente reclamação, invocando-se o artigo 405.º do Código de Processo Penal, nos seguinte termos:
«Nos termos da douta decisão, foi decidido não admitir o recurso interposto pelo Arguido com fundamento na análise da questão suscitada, bem como invocando que falta o pressuposto de ter suscitado antes a questão da inconstitucionalidade.
Salvo devido respeito por opinião diversa, considera o arguido que não compete ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa pronunciar-se novamente perante a questão de fundo suscitada, tal competência está atribuída ao Tribunal de Recurso, neste caso ao Venerando Tribunal Constitucional.
Os poderes do Tribunal da Relação de Lisboa, para admitir, ou não, os recursos para o Tribunal Constitucional circunscrevem-se a questões formais, nomeadamente, o prazo de interposição, não podendo não admitir o recurso com outros fundamentos.
Quanto à falta de pressuposto essencial, ter suscitado a questão da inconstitucionalidade, será de analisar a conclusão t) do recurso interposto a fls. dirigido ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa onde se escreve o seguinte:
“No entanto, entende o arguido a parte final da alínea e) do artigo 119º do Código do Processo Penal conjugada com o nº 2 do artigo 32º do respetivo Código viola o princípio do Juiz natural consagrado no nº 9 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.”
Ou seja, a questão da inconstitucionalidade da alínea e) do artigo 119º do Código do Processo Penal encontra-se suscitada anteriormente no processo, tudo nos termos da alínea b) do nº 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional.
Em virtude do supraexposto, resulta claro que o arguido considera que deverá V. Exa. decidir pela admissão do Recurso.
Conclusões:
a) Vem a Reclamação interposta de douto despacho proferido nos presentes autos pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa o qual não admitiu o recurso.
b) Salvo devido respeito por opinião diversa, considera o arguido que não compete ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa pronunciar-se novamente perante a questão de fundo suscitada, tal competência está atribuída ao Tribunal de Recurso, neste caso ao Venerando Tribunal Constitucional.
c) Os poderes do Tribunal da Relação de Lisboa, para admitir, ou não, os recursos para o Tribunal Constitucional circunscrevem-se a questões formais, nomeadamente, o prazo de interposição, não podendo não admitir o recurso com outros fundamentos.
d) Quanto à falta de pressuposto essencial, ter suscitado a questão da inconstitucionalidade, será de analisar a conclusão t) do recurso interposto a fls. dirigido ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.
e) Ou seja, a questão da inconstitucionalidade da alínea e) do artigo 119º do Código do Processo Penal encontra-se suscitada anteriormente no processo, tudo nos termos da alínea b) do nº 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional.
Nestes termos, requer-se a V. Exa. que conceda provimento à Reclamação e ordene a admissão do recurso.
Contudo V. Exas., Venerando Presidente do Tribunal Constitucional apreciará e fará como for de Justiça.» (fls. 2 a 4).
4. O Ministério Público junto do Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido de se dever indeferir a reclamação, porquanto:
«[…]
5. A questão de incompetência territorial do tribunal que procedeu ao julgamento – 1.º Juízo Criminal de Lisboa – foi decidida da seguinte forma na decisão sumária, posterior e integralmente confirmada pelo acórdão, ora recorrido:
“No que concerne à incompetência territorial do Tribunal, os factos ocorreram não só a questão deveria ter sido suscitada até ao início da audiência final, como decorre expressamente do art.º 52.º, n.º 1, do DL 25/2009, de 26 de Janeiro, com o art.º 32.º, n.º 3, do mesmo diploma legal e com o preceituado no art.º 25.º da nova LOFTJ que os presentes autos não poderiam ter transitado para os novos juízos da área da Grande Comarca de Lisboa-Noroeste-Sintra”.
6. Como se vê, a Relação entendeu que a questão de incompetência territorial devia ter sido levantada até ao início da audiência, o que não tinha ocorrido.
7. Porém, mesmo que não houvesse esse obstáculo, a Relação considerou que, no caso, por aplicação do disposto nos outros preceitos referidos, maxime no artigo 52.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 25/2009, os autos nunca poderiam transitar para os novos juízos.
8. Ora, a questão da constitucionalidade que o recorrente suscita, situa-se exclusivamente ao nível da qualificação da nulidade e do momento processual adequado para levantar a questão da incompetência territorial pois é sobre essa matéria - e só - que dispõem os artigos 119.º, n.º 1, alínea e), em conjugação com o n.º 2 do artigo 32.º, ambos do CPP.
9. Assim, ainda que o Tribunal Constitucional apreciasse a questão da constitucionalidade normativa colocada, independentemente do juízo que viesse a proferir, essa decisão não se revestiria de qualquer efeito útil, pois a decisão recorrida sempre se manteria com base no outro fundamento.
10. Pelo exposto, tendo os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade carácter instrumental, deverá indeferir-se a reclamação.
11. Acresce que, mesmo que a questão da constitucionalidade viesse adequadamente suscitada, e abrangesse o artigo 52.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 25/2009, ela seria manifestamente infundada.
12. Com efeito, aquele preceito, ao dispor que “não transitam para os novos juízos quaisquer processos pendentes”, visa precisamente obstar a que seja violado o princípio do juiz natural (artigo 32.º, n.º 9, da Constituição)..»
5. Notificado o reclamante para, querendo, se pronunciar sobre o fundamento adicional de não conhecimento do recurso aduzido pelo Ministério Público, o mesmo nada disse.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. O reclamante apresentou a sua reclamação com fundamento no artigo 405.º do Código de Processo Penal. No entanto, a impugnação de despachos de não admissão do recurso de constitucionalidade obedece a um disciplina processual específica que decorre da LTC.
Em sede de reclamações deduzidas com fundamento no artigo 76.º, n.º 4, da LTC, compete ao Tribunal Constitucional controlar a validade da decisão de não admissão do recurso, independentemente dos respetivos fundamentos. Assim, caso considere que o recurso não deve ser admitido, ainda que por outro fundamento que não o que esteve subjacente na decisão reclamada, a reclamação não pode proceder.
7. No caso concreto, o recurso não foi admitido pelo facto de o recorrente «não ter suscitado antes a questão de inconstitucionalidade». No entanto, e como bem assinalou o Procurador-Geral-Adjunto no seu visto, a decisão sobre a qual versou o recurso de constitucionalidade continha, quanto à questão que integra o objeto do mesmo, um fundamento alternativo, o que coloca em causa a utilidade daquele mesmo recurso.
Na verdade, o despacho de não admissão do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa de fls. 45 e seguinte começou por referir, é certo, que a questão da incompetência territorial deveria ter sido suscitada até ao início da audiência final. Mas disse também que in casu os autos nunca poderiam ter transitado para os novos juízos da área da Grande Comarca de Lisboa-Noroeste-Sintra (cfr. o excerto da fl. 45 transcrito supra no n.º 1).
Sucede que a questão de constitucionalidade suscitada respeita apenas ao regime da qualificação da nulidade correspondente à incompetência territorial e do momento processual adequado para a respetiva arguição – a matéria atinente à parte final da alínea e) do artigo 119.º do Código de Processo Penal, conjugada com o n.º 2, do artigo 32.º, do mesmo Código. Já a determinação da competência territorial, nos termos do preceituado no Decreto-Lei n.º 25/2009, de 26 de Janeiro (artigo 52.º, n.º 1, conjugado com o artigo 32.º, n.º 3) e na Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (artigo 25.º) – o fundamento alternativo expressamente invocado na decisão confirmada pelo acórdão objeto do recurso de constitucionalidade – de harmonia com a qual, segundo o entendimento do tribunal recorrido, o processo-base de que emerge o referido recurso e a presente reclamação nunca poderia ter transitado para os novos juízos da área da Grande Comarca de Lisboa-Noroeste-Sintra não foi nem vem questionada.
Deste modo, uma qualquer apreciação do problema de constitucionalidade – no estrito recorte que é feito pelo reclamante – não teria a virtualidade de afastar o teor decisório respeitante à incompetência in casu dos citados novos juízos. Ou seja, e como bem refere o Ministério Público, ainda que o Tribunal Constitucional apreciasse a questão da constitucionalidade normativa colocada, independentemente do juízo que viesse a proferir, essa decisão não se revestiria de qualquer efeito útil, pois a decisão objeto do recurso de constitucionalidade sempre se manteria com base no fundamento que não vem questionado.
E, assim sendo, verifica-se que inexiste coincidência total entre a ratio decidendi do acórdão de que o ora reclamante pretende recorrer para este Tribunal e o critério normativo objeto do recurso de constitucionalidade identificado no requerimento de interposição de tal recurso.
Considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada. É necessário, pois, que esse critério normativo tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão. No caso de a decisão recorrida se fundar em razões alternativas, tal implica que todas essas razões – correspondentes a outros tantos critérios normativos – sejam sindicadas perante o Tribunal Constitucional.
No caso sub iudicio o ora reclamante no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade apenas impugnou a constitucionalidade de um dos critérios determinantes da decisão recorrida. Todavia, e conforme referido, subsiste o outro, pelo que um eventual juízo positivo de inconstitucionalidade quanto à norma sindicada não determinaria a reformulação da decisão recorrida.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar o reclamante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 9 de janeiro de 2014. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.