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Processo n.º 980/13
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A., recorrente nos presentes autos em que é recorrido o Ministério Público, foi condenado, por sentença do Tribunal Judicial de Vieira do Minho de 3 de outubro de 2012 (fls. 154 e seguintes), na pena de cinquenta dias de multa, à razão diária de sete euros, num total de trezentos e cinquenta euros, bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de quatro meses, tudo pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, conjugado com o artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma legal.
Interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, tendo, na sua motivação, invocado diversas inconstitucionalidades orgânicas e materiais imputadas aos artigos 152.º, n.º 3, 156.º, n.º 2, e 153.º, n.º 8, todos do Código da Estrada (cfr. fls. 170 e seguintes).
Por decisão sumária de 11 de julho de 2013 (fls. 225 e seguintes), o relator rejeitou o recurso.
Interpôs recurso de constitucionalidade desta decisão, com fundamento no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional – “LTC”).
Na sequência de resposta a convite formulado pelo ora relator no sentido de vir completar o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, foi proferida a Decisão Sumária n.º 748/2013, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC por, em parte, não poder haver conhecimento do objeto do recurso e, na parte restante, o mesmo integrar problema que foi já objeto de jurisprudência constitucional, inexistindo in casu motivos justificativos do seu afastamento.
A decisão assentou na seguinte fundamentação:
« 3. Importa começar por delimitar o objeto do presente recurso. Com efeito, e independentemente do modo como o recorrente procede à conformação concreta desse objeto, o mesmo só pode integrar, por um lado, problemas de inconstitucionalidade normativa e, por outro lado, questões relativas a normas ou dimensões normativas que tenham efetivamente sido aplicadas pela decisão recorrida.
3.1. Assim, e tratando-se, no âmbito do recurso de constitucionalidade, de problemas de conformidade, com a lei fundamental, de normas ou interpretações normativas, compete afastar desde logo do respetivo objeto quaisquer outras questões relativas à interpretação e aplicação do direito infraconstitucional. O que significa que a invocada “nulidade por violação dos artigos 152.º, 153.º e 156.º do Código da Estrada e 1.º, 2.º, 3.da Lei 18/2007, de 17 de maio”, referente a matéria conexionada com a eventual violação do direito ordinário, não é cognoscível no âmbito de um recurso de constitucionalidade.
3.2. Acresce que o Tribunal Constitucional não pode apreciar questões que não contendam com a ratio decidendi da pronúncia recorrida. Com efeito, atenta a função instrumental do recurso de constitucionalidade, importa afastar do objeto do recurso todas as questões que não contendam com os fundamentos determinantes da decisão recorrida – in casu, a decisão sumária de fls. 225 e seguintes.
Tais fundamentos assentam na consideração de dois argumentos principais: quanto à invocada inconstitucionalidade orgânica, o tribunal a quo resolve-a por recurso e aplicação de jurisprudência constitucional sobre essa questão (concretamente, os Acórdãos n.ºs 479/2010 e 487/2010, publicados, respetivamente, no Diário da República, II série, de 26 de janeiro de 2011 e de 27 de janeiro de 2011); quanto às invocadas inconstitucionalidades materiais, entendeu o mesmo tribunal o seguinte: «[n]o mais, nem o próprio arguido afirma que não haja sido previamente informado, nem que não haja prestado consentimento, ou mesmo recusado, a colheita de sangue no hospital, sendo que apenas se auto-questiona sobre possibilidades, especulando e como bem apreciado nos Ac.s TRP de 2/5/12, TRC de 20/12/11 e TRG de 23/1/12 in www.dgsi.pt, a norma até estabelece ao médico um dever de proceder à colheita, sem impor qualquer dever de prévia informação ou de opção ou se formule um pedido expresso de consentimento para a colheita de sangue. Não se tendo assente que a colheita haja sido forçada, feita contra a vontade do arguido e porque até classificada de “exame banal” por Decisão de 4/12/78 da Comissão Europeia dos Direitos do Homem, atento o escopo de tutelar a vida e a integridade física das outras pessoas que circulam na via pública, manifestamente não se mostra ilícita, violadora dos princípios de necessidade, adequação e proporcionalidade.»
Desta transcrição resulta que o tribunal a quo, na esteira da matéria dada como provada pela primeira instância, entendeu que nada do que o recorrente especula a propósito das diversas questões de inconstitucionalidade material que, em jeito de alternativa, formula, tenha sido dado como provado: nem se provou que a colheita tenha sido forçada, nem que tenha sido feita contra a vontade do arguido, nem que o mesmo não haja sido previamente informado nem que não tenha prestado consentimento ou que tenha recusado, expressamente, a colheita de sangue no hospital. Nenhuma destas factualidades foi dada como provada. E isto é desde já suficiente para se adiantar que o Tribunal Constitucional não pode ser confrontado com questões de hipotética inconstitucionalidade, relativas à mera conjetura argumentativa do recorrente. Com efeito, como salienta a decisão recorrida, o recorrente limita-se a especular, a “auto-questionar-se sobre possibilidades”, sendo esta a estratégia mantida posteriormente, ao nível do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade e da resposta que ofereceu ao convite para vir concretizar o objeto do presente recurso.
Assim, e perante uma primeira suscitação da inconstitucionalidade dos artigos 153.º, n.º 8 e 156.º, n.º 2, do Código da Estrada, interpretados no sentido de que o “condutor pode ser submetido a colheita de amostra de sangue sem o seu consentimento”, o recorrente invoca ainda, a título eventualmente subsidiário, a inconstitucionalidade de outras interpretações do mesmo bloco normativo: no sentido de que “não se cuida de apurar se o condutor está ou não em condições de conceder ou negar o consentimento”; “no sentido [de] que estando o condutor inconsciente se pode realizar o exame por colheita de sangue sem se apurar se o mesmo possui as condições físicas e psicológicas para prestar ou recusar consentimento”; e, ainda, concretamente quanto ao artigo 153.º, n.º 8 do Código da Estrada, no sentido de que “nem sequer é necessário apurar se a pessoa está, ou não, em condições de dar o seu consentimento à realização do exame”.
Todos estes problemas de inconstitucionalidade material suscitados – em qualquer uma das suas modalidades alternativas – assentam na consideração de determinados pressupostos factuais que, pura e simplesmente, não foram dados como assentes pelas instâncias (ausência ou recusa de consentimento, impossibilidade de realização do teste de alcoolemia pelo facto de o arguido não estar em condições de o fazer e, portanto, de prestar o seu consentimento à recolha de sangue).
Conclui-se, por conseguinte, que não se encontra, devidamente acautelada a eventual utilidade de uma pronúncia do Tribunal Constitucional uma vez que a mesma não poderia provocar uma qualquer modificação, quanto a esta matéria, da decisão recorrida.
3.3. Saliente-se ainda que as considerações que o tribunal a quo formula, a propósito da inexistência de um qualquer «dever [médico] de prévia informação ou de opção ou que se formule um pedido expresso de consentimento para a colheita de sangue», bem como de que esta colheita se trata de «exame banal», afastando, portanto, qualquer juízo de inconstitucionalidade em concreto, surgem, na argumentação da decisão, como fundamentos coadjuvantes, não impondo conclusão diversa quanto ao facto de a questão de inconstitucionalidade material suscitada – em qualquer uma das suas modalidades – colher adesão, quanto aos respetivos pressupostos factuais, na decisão recorrida.
O que leva a concluir, ainda em termos de delimitação do objeto do recurso, que o problema de inconstitucionalidade material suscitado não pode integrar o mesmo, porquanto não coincide com a ratio decidendi da pronúncia recorrida.
4. Resta, por conseguinte, a questão da inconstitucionalidade orgânica dos artigos 152.º, n.º 3, e 156.º, n.º 2, do Código da Estrada. Este problema foi já apreciado pelo Tribunal Constitucional nos seus Acórdãos n.ºs 479/2010 e 487/2010, tendo o Tribunal entendido que, na medida em que se trata de legislação de conteúdo não inovatório, e limitando-se a mesma a reproduzir normação anterior dotada da devida credencial legislativa, não ocorreria qualquer violação das regras de competência legislativa.»
2. É desta decisão que o recorrente vem agora reclamar nos termos seguintes:
« No douto relatório do despacho revidendo diz-se ser proferida decisão sumária por, em parte, não poder haver conhecimento do objeto do recurso.
“Inter alia” fez-se consignar que “conclui-se, por conseguinte, que não se encontra, devidamente acautelada a eventual utilidade de uma pronúncia do Tribunal Constitucional uma vez que a mesma não poderia provocar uma qualquer modificação, quanto a esta matéria [a invocada questão da inconstitucionalidade material], da decisão recorrida”
Ora, não pode o recorrente conformar-se com a recusa do conhecimento compulsada no douto despacho em apreço pois o apresentado argumento que serve de suporte àquela não apreciação não pode, manifestamente, colher.
Com efeito, o reconhecimento da inconstitucionalidade arguida conduziria inelutavelmente à invalidade da prova na qual se estribou o Tribunal “a quo” para condenar o arguido.
Torna-se, assim, concludentemente objectivo que a requerida declaração de inconstitucionalidade tem a virtualidade de ferir de morte o pressuposto único de uma decisão condenatória, pelo que esta forçosamente se teria de converter em decisão absolutória.
Afigurando-se-nos, assim, veemente o decaimento do argumento invocado para o não conhecimento do objecto do recurso, evidente se torna que a decisão ora reclamada se mostra nula por violação do disposto na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do N.C.P.C. ex vi do preceituado no art.º 69.º da L.T.C., pelo que se impõe a presente reclamação e o consequente conhecimento pelo Tribunal Constitucional do objecto do recurso.»
3. O Procurador-Geral-Adjunto junto do Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
4. Na presente reclamação apenas é questionada a parte da Decisão Sumária n.º 748/2013 que determinou o não conhecimento do objeto do recurso de constitucionalidade; quanto à parte que conheceu do seu mérito, remetendo para jurisprudência constitucional anterior, o reclamante não a impugna. Por isso, tal parte da decisão reclamada não integra o objeto da presente reclamação.
5. Quanto à reclamação propriamente dita – e que respeita, portanto, ao não conhecimento das inconstitucionalidades materiais dos artigos 153.º, n.º 8 e 156.º, n.º 2, do Código da Estrada – nas várias modalidades interpretativas enunciadas –, limita-se o reclamante a defender a utilidade de uma decisão de mérito do recurso em virtude da possibilidade de a mesma, sendo favorável, ter efeitos para si favoráveis nos autos. Contudo, além de não justificar a sua pretensão, o reclamante também não contradiz nem infirma o fundamento do não conhecimento do recurso, e que residiu no facto de a decisão recorrida não ter aplicado qualquer critério normativo com qualquer um dos sentidos por si enunciados.
Assim, como bem refere o Ministério Público junto deste Tribunal, “a «inconstitucionalidade arguida» é uma «inconstitucionalidade ficcionada», porque não tem suporte na matéria que, na decisão recorrida, foi dada como assente”, remetendo para as transcrições daquela decisão feitas na Decisão Sumária, ora reclamada.
Resta, assim, confirmar esta última.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar o reclamante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 12 de fevereiro de 2014. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.