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Processo n.º 1263/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 24 de outubro de 2013, foi negado provimento ao recurso interposto pelo arguido e ora recorrente A., confirmando-se o acórdão proferido pela 1.ª Secção do Juízo de Grande Instância Criminal da Comarca da Grande Lisboa-Noroeste, que, inter alia, havia condenado o arguido pela prática de um crime de burla qualificada previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, acompanhada de regime de prova e do pagamento integral ao assistente da quantia de €82.299,52, acrescida de juros à taxa de juros civis desde a data de notificação do pedido de indemnização, em que também foi condenado a título de indemnização, sendo pelo menos €20.000,00 por ano.
2. Irresignado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, invocando o disposto no artigo 70.º, n.º 1, als. b) e g) da LTC.
Como norma impugnada enunciou “a do artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, entendido no sentido de que a fundamentação dos motivos de facto que serviram de base à decisão se basta com o elenco de factos provados e não provados com indicação de algumas passagens do depoimento de algumas testemunhas e do assistente, sem que haja “explicitação do processo de formação da convicção do tribunal”, remetendo para a “suscitação da questão de inconstitucionalidade nas alegações de recurso para o TRLx e consideração da questão na decisão ora recorrida (p. 23)” e para “anterior decisão do Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 680/98 e jurisprudência aí citada) sobre a mesma norma”. Aponta a essa norma a violação do n.º 1 do artigo 205.º e do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição.
3. O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido.
4. Neste Tribunal, o Relator proferiu a decisão sumária n.º 771/2013, pela qual decidiu não conhecer do recurso, no essencial, pela seguinte ordem de razões:
«6. No caso em apreço, e com relevância para ambas as vias de recurso em causa, resulta da leitura do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que a norma do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, na sua conjugação com o artigo 379º, nº 1, alínea a), do mesmo Código, não foi efetivamente aplicada pela decisão recorrida com a dimensão normativa questionada.
De facto, não se encontra na decisão recorrida qualquer referência ao acolhimento da interpretação do artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, segundo a qual a fundamentação da decisão em matéria de facto possa ser feita sem explicitação do processo de formação da convicção do Tribunal. Pelo contrário, nessa decisão afirma e aplica ao caso - bem ou mal, não cabe a este Tribunal sindicar - critério normativo precisamente com o sentido oposto, ou seja, de que a fundamentação de facto impõe, para além da indicação dos meios de prova, a explicitação do “processo de formação da convicção do tribunal, a partir desses meios de prova, com apelo às regras de experiência e aos critérios lógicos e racionais que conduziram a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido.”
Assim, inverificado o pressuposto de efetiva aplicação da interpretação normativa enunciada pelo recorrente, impõe-se concluir pela inadmissibilidade do recurso, por inútil, quer pela via prevista na alínea b), quer pela via da alínea g), ambas do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
7. Acresce que, ao invés do referido pelo recorrente, não foi colocada perante o Tribunal a quo questão de inconstitucionalidade relativa a norma alojada no preceituado no artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. De facto, atentando nas conclusões da motivação do recurso, verifica-se que o recorrente se limitou a fazer menção ao Acórdão deste Tribunal n.º 680/98, o que claramente não consubstancia suscitação de uma questão normativa de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, em termos de o vincular ao seu conhecimento.
Nessa medida, o recorrente não dispõe igualmente de legitimidade para recorrer ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, face ao estipulado no n.º 2 do artigo 72.º, ambos da LTC.»
5. Veio o recorrente reclamar dessa decisão para a Conferência, com o seguinte remate conclusivo:
«I. Irreleva que a decisão recorrida tenha formulado a norma impugnada pelo ora reclamante de modo constitucionalmente exemplar: o recurso de constitucionalidade não é dirigido a formulações de normas, mas à sua aplicação.
II. Cabe ao Tribunal Constitucional, não em recurso de amparo, mas em fiscalização concreta, avaliar a interpretação da norma efetivamente aplicada pela decisão recorrida.
III. Essa averiguação é delicadíssima e não pode ser cabalmente feita sem atender às razões dos recorrentes.
IV. Qualquer insuficiência na suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo ficou sanada pela pronúncia do Tribunal a quo sobre tal questão.
V. A existência de uma anterior decisão de inconstitucionalidade proferida sobre o sentido e extensão de uma norma obriga o Tribunal Constitucional a reconsiderar subsequentemente, ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC a impugnação do sentido e extensão dessa norma.»
6. Em resposta, o Ministério Público tomou posição no sentido do indeferimento da reclamação, considerando que no acórdão recorrido não foi adotada a interpretação reputada de inconstitucional pelo recorrente e que saber se, concretamente, pela análise das circunstâncias, o grau da fundamentação foi o suficiente, é tarefa que não cabe na competência do Tribunal Constitucional.
7. Também o recorrido respondeu, exprimindo concordância com o juízo de não conhecimento do recurso e pugnando pelo indeferimento da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
8. Vem o recorrente reclamar da decisão sumária que concluiu que o recurso não pode ser conhecido, por duas razões: inverificação dos pressupostos objetivos de admissibilidade do recurso, em ambas as vias mobilizadas pelo recorrente – alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC; ilegitimidade do recorrente, por ausência de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, no que respeita ao recurso fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Adiante-se que nenhum dos argumentos esgrimidos pelo recorrente constitui fundamento para afastar tal sentido decisório, com o qual se concorda.
Na verdade, os termos da reclamação apresentada revelam que recorrente não configura corretamente o âmbito do recurso de constitucionalidade de decisões judiciais.
8.1. Enquanto recurso estritamente normativo, a apreciação do Tribunal Constitucional não pode incidir, sobre a definição da norma de direito ordinário aplicável ao caso ou sobre o mérito da subsunção do caso ao critério ou padrão normativo decorrente do direito infraconstitucional que se considerou aplicável. Essas vertentes da decisão recorrida constituem para o Tribunal Constitucional um dado, ou seja, o ponto de partida objetivo para a verificação da conformidade constitucional da norma efetivamente aplicada, extraída de um enunciado textual constante de um preceito ou da conjugação de vários preceitos, incluindo quanto tal acontece por via interpretativa.
Assim, contrariamente ao que sustenta o recorrente, não se encontra em questão no recurso de constitucionalidade o processo interpretativo que conduziu à norma aplicada, mas sim o critério ou padrão normativo assumido e aplicado pela decisão recorrida como ratio decidendi.
8.2. Revertendo estas consideração ao caso concreto, verificamos que o recorrente, a partir da sua própria leitura da bondade da decisão recorrida, atribui-lhe sentido que manifestamente não lhe assenta. Como se disse na decisão reclamada, em substância – e não apenas em forma – o Tribunal a quo aplicou critério normativo inteiramente distinto daquele enunciado pelo recorrente.
Se o aplicou correta ou incorretamente releva já da apreciação do mérito da decisão, na valoração das circunstâncias concretas do caso – na espécie, se a fundamentação da primeira instância respeitou o devido -, o que não cabe na competência do Tribunal Constitucional, restrita à questão normativa de constitucionalidade (ou legalidade), de acordo com o n.º 6 do artigo 280.º do Constituição. Ao invés do pretendido pelo recorrente, o Tribunal Constitucional não constitui uma “superinstância” de recurso, a que esteja cometida a “sindicância da atuação dos tribunais comuns na aplicação das normas que enunciam”. O ato de julgamento, em si mesmo considerado, não constitui objeto do recurso de constitucionalidade.
8.3. Cabe acrescentar, para dilucidar outro equívoco em que incorre o recorrente, que não há que confundir a identificação da norma, ou interpretação normativa, efetivamente aplicada pela decisão recorrida como determinante do julgado, com a questão de verificação de recusa implícita de aplicação de certa norma ou interpretação normativa, relevante para dirimir o caso, por razões de constitucionalidade. Mesmo nesse campo problemático, sempre haverá que confrontar o percurso racional que modelou a decisão impugnada, tal como esta foi formulada e exteriorizada na sua fundamentação, e não com aquela que o recorrente ficciona a partir da norma ou interpretação normativa que, no seu entender, deveria ser aplicada, ou com o sentido decisório que tem como correto.
8.4. Diga-se, por fim, que a decisão reclamada foi proferida nos termos da primeira parte do n.º 1 do artigo 78.ºA, da LTC, e não em virtude da questão a decidir ser simples, o que retira propriedade à invocação de complexidade.
Deste modo, inverificado o pressuposto de efetiva aplicação da interpretação normativa enunciada pelo recorrente, impõe-se concluir pela inadmissibilidade do recurso, por inútil, quer pela via prevista na alínea b), quer pela via da alínea g), ambas do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Tanto basta para concluir pelo acerto da decisão sumária de não conhecimento do recurso e pelo indeferimento da reclamação, ficando prejudicada a apreciação da reclamação no que se refere à questão de ilegitimidade.
III. Decisão
9. Pelo exposto, decide-se:
a) Indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão sumária reclamada;
b) Condenar o reclamante nas custas, fixando-se em 20 (vinte) Ucs a taxa de justiça devida, tendo em atenção os critérios seguidos por este Tribunal e a dimensão do impulso desenvolvido pelo reclamante.
Lisboa, 12 de fevereiro de 2014. – Fernando Vaz Ventura - Pedro Machete - Joaquim de Sousa Ribeiro.