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Processo n.º 911/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., Limitada, intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, contra a Agência Portuguesa do Ambiente, ação administrativa especial para anulação do ato administrativo, consubstanciado no despacho proferido em 20 de setembro de 2007 pelo Diretor Geral da Agência Portuguesa do Ambiente, que determinou converter em definitiva a proposta de decisão no sentido de, ao abrigo do disposto no artigo 25.º, n.º 1 e 2, do Decreto-lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, aplicar à Autora uma penalização por 1778 toneladas de dióxido de carbono de emissões excedentárias relativas ao ano de 2006, no valor total de €71.120,00 (setenta e um mil e cento e vinte euros), correspondente a €40,00 euros por tonelada de dióxido de carbono.
O Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, por acórdão de 27 de abril de 2011, decidiu julgar a ação improcedente e, em consequência, absolveu a entidade demandada do pedido de anulação da aplicação da referida “penalização”.
A Autora recorreu desta decisão para o Tribunal Central Administrativo Norte que, por acórdão de 9 de novembro de 2012, concedeu provimento ao recurso, revogando o acórdão do TAF de Viseu e, nessa conformidade, anulou a decisão administrativa de 20 de setembro de 2007, do Diretor Geral da Agência Portuguesa do Ambiente, tendo decidido “declarar organicamente inconstitucionais as normas dos arts. 25.º, 25.º A e 26.º do Dec. Lei 233/2004, de 14/12, com as alterações introduzidas pelos Dec. Leis 243-A/2004, de 31/12, 230/2005, de 29/12 e 72/2006, de 24/3”.
O Ministério Público interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:
«O Mº Pº junto deste Tribunal vem, nos termos das disposições combinadas dos arts. 69º, 70º, nº 1, al. a), 75º, nº 1, 75º-A, nº 1 e 78º, nº 3, da Lei nº 28/82, de 15/11 (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional), na redação dada pelas Lei nº 143/85, de 26/11, Lei nº 85/89, de 07/09, Lei nº 88/95, de 01/09, e Lei nº 13-A/98, de 26/02, interpor recurso (obrigatório) para o Tribunal Constitucional do Acórdão proferido nos autos supra epigrafados.
Com a interposição do presente recurso, pretende-se a apreciação da constitucionalidade:
Das normas do arts. 25.º, 25.º A e 26.º do Dec. Lei 233/2004, de 14/12, com as alterações introduzidas pelos Dec. Leis 243- A/2004, de 31/12, 230/2005, de 29/12 e 72/2006, de 24/3.
A aplicação destas normas foi recusada pelo Acórdão recorrido por as considerar organicamente inconstitucionais, resultante de invasão da reserva da função legislativa da Assembleia da República (artº 165º da CRP).»
O Ministério Público apresentou alegações, tendo concluído da seguinte forma:
«66. O Ministério Público interpôs, em 15 de novembro de 2012, recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor do acórdão de fls. 166 a 186, proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte, “nos termos das disposições combinadas dos arts. 69.º, 70.º, n.º 1, al. a), 75.º, n.º 1, 75.º-A, n.º 1 e 78.º, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15/11 (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional), na redação dada pelas Lei n.º 143/85, de 26/11, Lei n.º 85/89, de 07/09, Lei n.º 88/95, de 01/09, e Lei n.º 13-A/98, de 26/02 (…)”, para apreciação da constitucionalidade “[d]as normas do[s] arts. 25.º, 25.º-A e 26.º do Dec. Lei 233/2004, de 14/12, com as alterações introduzidas pelos Dec. Leis 243-A/2004, de 31/12, 230/2005, de 29/12 e 72/2006, de 24/3”
67. As normas destes artigos 25.º, 25.º-A e 26.º foram, por acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte, em 9 de novembro de 2012, declaradas “organicamente inconstitucionais”, muito embora devamos entender que foram, isso sim, desaplicadas em razão da sua inconstitucionalidade orgânica.
68. A douta decisão recorrida considerou que, “nos termos do art.º 165.º da CRP, com a epígrafe “Reserva relativa e competência legislativa”, é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar, salvo autorização ao Governo, acerca do regime geral de punição das infrações disciplinares, bem como dos atos ilícitos de mera ordenação social e do respetivo processo – n.º 1, al. d) – sendo que apenas competiria ao Governo, no exercício de funções legislativas, elaborar decretos leis em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta (…)”, resultando, no caso dos autos, ter o Governo legislado sem qualquer autorização da Assembleia da República.
69. A douta decisão recorrida baseou-se num equívoco com duas faces, a saber, o de que as normas desaplicadas se reconduziam ao domínio do regime geral de punição dos atos ilícitos de mera ordenação social e do respetivo processo, e o de que toda a matéria da regulação dos ilícitos de mera ordenação social se encontraria, por aplicação do disposto na alínea d), do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), incluída no âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
70. O Tribunal Constitucional, contudo, já teve ocasião de se pronunciar sobre esta matéria, contrariando aquelas conclusões, nomeadamente no seu Acórdão n.º 175/97, declarando que,
“Conforme exposto, o Tribunal reafirma que o Governo tem competência - concorrente com a da Assembleia da República -, para definir, alterar e eliminar contraordenações, e bem assim para modificar a sua punição; mas só mediante autorização legislativa parlamentar pode estabelecer coimas com valores mínimos inferiores aos limites mínimos previstos na lei-quadro, ou com valores máximos superiores aos limites máximos nela fixados. Já pode, contudo, sem necessitar de autorização parlamentar, estabelecer valores mínimos superiores aos limites mínimos da lei-quadro, desde que inferiores aos correspondentes limites máximos”.
71. Ora, tendo o Governo uma competência concorrente com a da Assembleia da República para legislar, e existindo um regime geral das contraordenações anterior às publicação e entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, a saber o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, com as várias alterações introduzidas até às da Lei n.º 109/2001, de 24 de dezembro; era no quadro e no respeito deste regime legal genérico que o Governo tinha a liberdade de exercer a sua competência legislativa.
72. Ou seja, tinha o Governo a competência própria, concorrente com a da Assembleia da República, para criar tipos de ilícito de mera ordenação social e estabelecer as respetivas coimas, desde que obedecendo ao quadro geral definido pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, nomeadamente ao disposto no seu artigo 17.º quanto aos limites dos montantes das coimas.
73. Dito isto, cabe apreciar se as normas, cuja aplicação foi recusada, se podem classificar como normas criadoras de tipos de ilícito de mera ordenação social e estabelecedoras de sanções pela sua prática.
74. Sendo certo que as normas incluídas no artigo 26.º respeitam, indubitavelmente, ao domínio do ilícito de mera ordenação social, ao menos por aplicação de um critério meramente formal, a saber, o da punição dos ilícitos com a aplicação de uma coima, já no que concerne às normas impressas nos artigos 25.º e 25.º-A, o critério meramente formal não nos esclarece sobre a natureza do ilícito neles previsto e punido.
75. Apesar disso, há que concluir que também elas se reportam, materialmente, ao domínio do ilícito de mera ordenação social, uma vez que o critério da distinção pela mera cominação de uma coima tem uma natureza formal e não tem sede constitucional.
76. Ora, sobre esta matéria, o Tribunal Constitucional já teve ocasião, no seu Acórdão n.º 308/94, citando J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, de se pronunciar sobre a questão, afirmando que,
“Ao referir o ilícito de mera ordenação social, omitindo toda a referência à figura das contravenções (que era tradicional no direito português até ao Código Penal de 1982), a Constituição deixa entender claramente que ela desapareceu como tipo sancionatório autónomo, pelo que as contravenções que subsistirem (ou que forem ex novo criadas) têm de ser tratadas de acordo com a natureza que no caso tiverem (criminal ou de mera ordenação social).
Ora, dúvidas não restam que, no caso vertente, não deparamos com uma infração com a ressonância ética suficiente para poder ser qualificada como de natureza criminal. E, assim sendo, e também porque lhe não corresponde qualquer sanção privativa ou restritiva da liberdade, o tratamento que lhe deve ser conferido há de ser o correspondente às contra-ordenações, para as quais a Constituição não exige a prévia definição do tipo e da punição concreta em lei parlamentar”.
77. Ou seja, admitiu o Tribunal Constitucional, que certas infrações não sancionadas com coimas pudessem, do ponto de vista da relevância constitucional específica, ser tratadas como contraordenações.
78. Atente-se, contudo, que ainda que se entendesse que a infração não é uma contraordenação nem deve ser tratada como tal, isso não retiraria à Assembleia da República a competência exclusiva relativa para, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, legislar sobre o regime geral sancionatório no qual se integrasse aquela infração.
79. Aceitando-se que as infrações previstas e punidas pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 25.º do Dec. Lei 233/2004, de 14/12, com as alterações introduzidas pelos Dec. Leis 243-A/2004, de 31/12, 230/2005, de 29/12 e 72/2006, de 24/3, são contraordenações ou, no mínimo, devem ser consideradas como tais, cabe apurar se poderia o Governo, sem autorização da Assembleia da República, legislar sobre os seus conteúdos.
80. É que, ao contrário do julgado no douto acórdão recorrido, a Constituição da República Portuguesa não impede o Governo de legislar, mesmo sem autorização da Assembleia da República, sobre matéria sancionatória pública, nomeadamente sobre atos ilícitos de mera ordenação social; apenas não lhe permite que legisle, sem autorização da Assembleia da República, sobre o regime geral de punição dos atos ilícitos de mera ordenação social e sobre o respetivo processo.
81. De acordo com a jurisprudência constitucional, não se encontra vedada ao Governo, ainda que sem autorização da Assembleia da República, a criação de tipos de ilícito, nomeadamente de mera ordenação social, nem o estabelecimento de sanções. Todavia, não podem tais sanções, estipuladas, abstratamente, pelo Governo, derrogar os limites das coimas prescritos no artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, que funciona, aqui, como regime geral.
82. Olhando, agora, para o teor do artigo 25.º do Dec. Lei n.º 233/2004, de 14/12, com as alterações introduzidas pelos Dec. Leis n.ºs 243-A/2004, de 31/12, 230/2005, de 29/12 e 72/2006, de 24/3, e atendendo à configuração das penalizações, considerando que os seus montantes resultam da multiplicação do valor de “€ 100 por cada tonelada de dióxido de carbono equivalente emitida pela instalação relativamente à qual não devolveu licenças”, no que respeita ao n.º 1, e resultam da multiplicação do valor de “€ 40 por cada tonelada de dióxido de carbono equivalente emitida pela instalação relativamente à qual não devolveu licenças”, no que toca ao n.º 2, apura-se que as mesmas penalizações foram concebidas com limite mínimo – o valor correspondente a uma tonelada de dióxido de carbono equivalente emitida pela instalação relativamente à qual não devolveu licenças - mas sem qualquer limite máximo.
83. Assim sendo, não se conformando as molduras sancionatórias abstratas aplicáveis aos ilícitos previstos, com os limites previamente definidos pelo artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro - o regime geral do ilícito de mera ordenação social -, somos forçados a concluir que as normas constantes dos n.º s 1 e 2 do artigo 25.º do Dec. Lei 233/2004, de 14/12, com as alterações introduzidas pelos Dec. Leis 243-A/2004, de 31/12, 230/2005, de 29/12 e 72/2006, de 24/3, preveem sanções que excedem tais limites máximos previstos no artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, sendo, assim, organicamente inconstitucionais, ao menos na parte em que excedem tais limites, e à data da entrada em vigor do Dec. Lei 233/2004, de 14/12, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 72/2006, de 24/3.
84. Todavia, mesmo que não nos reportemos a esta data, mas sim à data da prática dos factos ilícitos sancionados nos autos, o dia 1 de maio de 2007, na esteira do decidido no Acórdão n.º 175/97, do Tribunal Constitucional, ainda aí, deveremos entender que as molduras sancionatórias abstratas aplicáveis aos ilícitos previstos nas normas constantes dos n.º s 1 e 2 do artigo 25.º do Dec. Lei 233/2004, de 14/12, com as alterações introduzidas pelos Dec. Leis 243-A/2004, de 31/12, 230/2005, de 29/12 e 72/2006, de 24/3, excedem os limites máximos previstos nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006, de 29/8 – novo parâmetro legal de referência -, sendo, assim, organicamente inconstitucionais, ao menos na parte em que excedem tais limites.
85. Quanto às normas constantes dos restantes números do referido artigo 25.º do Dec. Lei 233/2004, de 14/12, com as alterações introduzidas pelos Dec. Leis 243-A/2004, de 31/12, 230/2005, de 29/12 e 72/2006, de 24/3, os n.º s 3 e 4, não regulando matérias específicas respeitantes ao regime geral de punição dos atos ilícitos de mera ordenação social ou do respetivo processo, não se vislumbram razões para a declaração da sua inconstitucionalidade orgânica, uma vez que não são matérias das reserva absoluta ou relativa de competência da Assembleia da República, integrando-se, outrossim, na competência do Governo no exercício de funções legislativas, do artigo 198.º da CRP.
86.Também no que toca às normas do artigo 25.º-A do Dec. Lei 233/2004, de 14/12, com as alterações introduzidas pelos Dec. Leis 243-A/2004, de 31/12, 230/2005, de 29/12 e 72/2006, de 24/3, apesar de regularem matéria que respeita ao regime do cumprimento da sanção e da sua execução, não se nos afigura que coincidam, objetivamente, com as normas da alínea d) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, não regulando sobre punição dos atos ilícitos de mera ordenação social e não dispondo, na sua vertente adjetiva, em divergência com normas imperativas do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro.
87. Por fim, no que respeita ao disposto no artigo 26.º do Dec. Lei n.º 233/2004, de 14/12, com as alterações introduzidas pelos Dec. Leis n.º s 243-A/2004, de 31/12, 230/2005, de 29/12 e 72/2006, de 24/3, que, esse sim, prevê, indubitavelmente, tipos de ilícito de mera ordenação social, apercebemo-nos de que as normas dele constantes não tiveram aplicação efetiva na douta decisão recorrida, havendo, ainda assim que salientar que, uma vez que os limites, mínimos e máximos, das coimas nele previstas para as infrações dolosas, obedecem aos limites pré-estabelecidos no artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, não se vislumbra motivo para a declaração da sua inconstitucionalidade.
88. Em face do acabado de expor, afigura-se-nos dever ser negado provimento ao presente recurso, no que concerne à inconstitucionalidade das normas sancionatórias plasmadas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 25.º do Dec. Lei n.º 233/2004, de 14/12, com as alterações introduzidas pelos Dec. Leis n.º s 243-A/2004, de 31/12, 230/2005, de 29/12 e 72/2006, de 24/3, embora com diferente fundamento do apresentado no Acórdão recorrido, devendo, por outro lado, ser-lhe concedido provimento no tocante às restantes normas do artigo 25.º e às dos artigos 25.º-A e 26.º do mesmo diploma.
Nestes termos, deverá ser concedido provimento parcial ao presente recurso, nos termos acabados de expor.»
A Recorrida não apresentou contra-alegações.
As partes foram notificadas para se pronunciarem quanto à possibilidade de não se conhecer do recurso na parte que respeita a outras normas para além das dos n.ºs 1 e 2 do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, tendo o Ministério Público sustentado que o Tribunal Constitucional não deverá tomar conhecimento do recurso relativamente às normas contidas nos n.ºs 3 e 4 do artigo 25.º, no artigo 25.º-A e no artigo 26.º do referido Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14/12, pronunciando-se exclusivamente quanto às normas ínsitas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 25.º do mencionado Decreto-Lei.
*
Fundamentação
1. Do não conhecimento do recurso de constitucionalidade na parte respeitante às normas contidas nos n.ºs 3 e 4 do artigo 25.º, no artigo 25.º-A e no artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro
O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, estando a sua admissibilidade dependente da verificação de dois pressupostos:
- que a decisão recorrida tenha recusado efetivamente a aplicação de certa norma ou interpretação normativa, relevante para a resolução do caso;
- que tal desaplicação normativa se funde num juízo de inconstitucionalidade do regime jurídico nela estabelecido.
Tem sido entendido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional que, neste tipo de recurso, só são passíveis de recurso as decisões em que o tribunal a quo tenha recusado efetivamente a aplicação de uma norma com fundamento na respetiva inconstitucionalidade, não o sendo aquelas em que o juízo efetuado pela decisão impugnada se consubstancia num simples obiter dictum em matéria de constitucionalidade ou quando a norma cuja aplicação foi recusada com fundamento na sua inconstitucionalidade acaba por não relevar, em termos decisivos, como ratio decidendi da pronúncia do tribunal quanto ao caso concreto.
No caso dos autos, o tribunal recorrido recusou a aplicação das normas constantes dos artigos 25.º, 25.º-A e 26.º do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica [embora, na decisão recorrida se refira que tais normas são declaradas “organicamente inconstitucionais”, tal afirmação deverá ser entendida como uma recusa de aplicação das normas em questão].
Nos autos está em causa a decisão do Diretor Geral da Agência Portuguesa do Ambiente que determinou a aplicação de uma penalização nos termos previstos no artigo 25.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, sendo que a ação administrativa proposta pela Recorrida teve em vista impugnar a aplicação desta penalização, sem que se tenha colocado qualquer questão quanto à matéria regulada nos números 3 e 4 deste artigo 25.º, ou relativa à entidade competente para assegurar o cumprimento do previsto no referido artigo 25.º (matéria regulada no artigo 25.º-A, do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro), não estando também em causa a aplicação de qualquer das contraordenações previstas na norma do artigo 26.º do mencionado Decreto-Lei e enumeradas no número 1 deste último artigo.
Assim, embora a decisão recorrida tenha, genericamente, recusado a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, dos artigos 25.º, 25.º-A e 26.º do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, na verdade apenas as normas contidas nos n.ºs 1 e 2, do artigo 25.º, deste Decreto-Lei, foram tidas como aplicáveis ao caso concreto, integrando a ratio decidendi do aresto proferido pelo tribunal recorrido.
Ora, face ao caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que a norma cuja aplicação tenha sido recusada com fundamento em inconstitucionalidade constitua ratio decidendi do acórdão recorrido, pois só assim um eventual juízo de não inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão.
Face ao exposto, importa concluir que, relativamente às normas dos n.ºs 3 e 4 do artigo 25.º e dos artigos 25.º-A e 26.º do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, não está preenchido este requisito de admissibilidade do recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70.º, n.º 1, a), da LTC, pelo que, nesta parte, o Tribunal não deverá tomar conhecimento do recurso.
2. Do mérito do recurso
A decisão recorrida recusou a aplicação dos n.ºs 1 e 2, do artigo 25.º, do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica. De acordo com a referida decisão, tendo este diploma procedido à transposição da Diretiva n.º 2003/87/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia, de 13 de outubro, para a ordem jurídica interna, e porque nalgumas das suas normas (onde se inclui o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 25.º) se estabelece um regime sancionatório – aplicação de coimas –, cuja competência legislativa constitui reserva da Assembleia da República, não tendo o Governo obtido a pertinente autorização legislativa, tais normas são organicamente inconstitucionais, por violação do artigo 165.º, n.º 1, al. d) da Constituição.
Ou seja, e em síntese, a decisão recorrida entendeu que as normas desaplicadas integravam matéria incluída no âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, por respeitarem ao regime geral de punição dos atos ilícitos de mera ordenação social e do respetivo processo, nos temos previstos na referida alínea d), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição, pelo que, não dispondo o Governo de autorização legislativa por parte da Assembleia da República para legislar sobre a matéria, concluiu que as normas em causa são organicamente inconstitucionais.
Antes de mais, importa atentar no teor das normas objeto dos presentes autos, ou seja, das normas dos n.ºs 1 e 2, do artigo 25.º, do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro (na redação em vigor após as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 72/2006, de 24 de março, aplicável aos presentes autos), nas quais se dispõe o seguinte:
«Artigo 25.o
Penalizações por emissões excedentárias
1 — O operador que não devolva, até 30 de abril de cada ano civil, licenças de emissão suficientes para cobrir as suas emissões no ano anterior fica sujeito ao pagamento, pelas emissões excedentárias, de € 100 por cada tonelada de dióxido de carbono equivalente emitida pela instalação relativamente à qual não devolveu licenças.
2 — Sem prejuízo do disposto no número anterior, durante o período de três anos com início em 1 de janeiro de 2005, o valor a pagar por emissões excedentárias é de € 40 por cada tonelada de dióxido de carbono equivalente emitida pela instalação relativamente à qual não devolveu licenças.
[…]»
Para a abordagem da questão de constitucionalidade em causa nos autos revela-se necessário proceder a uma prévia análise do regime legal onde se enquadram as referidas normas, de modo a determinar qual a natureza jurídica das “penalizações” nelas previstas, mais concretamente, se a mesmas deverão ser consideradas verdadeiras contraordenações, como as qualificou a decisão recorrida, ou se terão diferente natureza jurídica.
O regime legal instituído Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro (alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 243-A/2004, de 31 de dezembro, 230/2005, de 29 dezembro, 72/2006, de 24 de março, 154/2009, de 6 de julho, 30/2010, de 8 de abril, 93/2010, de 27 de julho, e 252/2012, de 26 de novembro, e entretanto revogado pelo artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 38/2013, de 15 de março), resulta da transposição da Diretiva n.º 2003/87/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de outubro (alterada pela Diretiva 2004/101/CE).
Esta Diretiva surgiu na sequência dos compromissos assumidos pela Comunidade Europeia e pelos seus Estados-Membros no sentido da redução das emissões antropogénicas de gases com efeito de estufa abrangidas pelo Protocolo de Quioto, em conformidade com a Decisão 2002/358/CE, destinando-se a contribuir para o cumprimento mais eficaz desses compromissos «através da implementação de um mercado europeu de licenças de emissão de gases com efeito de estufa que seja eficiente e apresente a menor redução possível do desenvolvimento económico e do emprego» (cfr. considerando 5 da Diretiva), visando-se, assim, a implementação do Comércio Europeu de Licenças de Emissão (CELE).
O instrumento destinado à redução dos gases com efeito de estufa resultante desta diretiva, embora seja um mecanismo que implique a implementação de um mercado de direitos transacionáveis, não é, no entanto, um mecanismo voluntário de proteção do ambiente, mas antes um regime obrigatório ou vinculativo, que tem como particularidade a circunstância de, em alternativa aos mecanismos tradicionais (v.g., a fixação administrativa autoritária de standards ambientais ou valores-limite de emissões), conferir aos operadores económicos a possibilidade de autorregularem as suas emissões poluentes, tendo por referência um valor-limite: se emitirem menos que esse limite, poderão vender algumas das suas licenças de emissão e, por essa via, obter uma contrapartida; se, pelo contrário, emitirem mais do que esse limite, terão de adquirir as licenças de emissão necessárias a cobrir as emissões excedentárias, suportando os respetivos custos de aquisição no mercado.
Ou seja, com a instituição do Comércio Europeu de Licenças de Emissão visa-se prosseguir, em simultâneo, dois objetivos: um de natureza ambiental, traduzido na fixação prévia de um limite máximo da poluição que pode ser globalmente emitida; e outro, de natureza económica, conseguido através da livre circulação das licenças de emissão, o que, por um lado, permite que os agentes económicos, ao negociarem entre si, possam maximizar os respetivos proveitos e, por outro lado, permite atenuar os custos globais do combate à poluição.
A aludida natureza vinculativa deste instrumento é evidenciada pelo considerando (11) da diretiva, no qual se estabelece que «os Estados-Membros deverão garantir que os operadores de determinadas atividades sejam detentores de um título de emissão de gases com efeitos de estufa e que aqueles monitorizam e comunicam as suas emissões de gases com efeito de estufa relativamente a essas atividades», o que é reforçado no considerando (12), onde se refere que «os Estados-Membros deverão estabelecer regras relativas às sanções aplicáveis em caso de infração ao disposto na presente diretiva e garantir a sua aplicação», acrescentando-se ainda que «essas sanções deverão ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas».
Daí que, no artigo 16.º da Diretiva, sob a epígrafe «Sanções», se disponha no n.º 1 que «os Estados-Membros devem estabelecer as regras relativas às sanções aplicáveis em caso de infração às disposições nacionais aprovadas por força da presente diretiva e tomar todas as medidas necessárias para garantir a sua aplicação. As sanções impostas devem ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas. […]», estabelecendo o n.º 3 que «os Estados-Membros devem assegurar que os operadores de instalações que não devolvam, até 30 de abril de cada ano, licenças de emissão suficientes para cobrir as suas emissões no ano anterior sejam obrigados a pagar uma multa pelas emissões excedentárias. A multa por emissões excedentárias será igual a 100 euros por cada tonelada de equivalente dióxido de carbono emitida pela instalação relativamente à qual o operador não tenha devolvido licenças. O pagamento da multa por emissões excedentárias não dispensa o operador da obrigação de devolver uma quantidade de licenças de emissão equivalente às emissões excedentárias aquando da devolução das licenças de emissão relativas ao ano civil subsequente.» Por fim, o n.º 4 deste artigo estabelece que «durante o período de três anos com início em 1 de janeiro de 2005, os Estados-Membros devem aplicar uma multa por emissões excedentárias mais baixa, igual a 40 euros por cada tonelada de equivalente dióxido de carbono emitida pela instalação relativamente à qual o operador não tenha devolvido licenças. O pagamento da multa por emissões excedentárias não dispensa o operador da obrigação de devolver uma quantidade de licenças de emissão equivalente às emissões excedentárias aquando da devolução das licenças de emissão relativas ao ano civil subsequente.»
No plano do direito interno português, é possível, tendo em conta o regime instituído pelo Decreto-lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 72/2006, de 24 de março (ou seja, na redação aplicável aos presentes autos), traçar, em termos gerais, os principais aspetos do regime de Comércio Europeu de Licenças de Emissão, que resultou da transposição da Diretiva n.º 2003/87/CE.
A regulamentação em causa abrange as emissões com efeito de estufa, impondo aos operadores de instalações que desenvolvam atividade constante do anexo I do Decreto-Lei, de que resulte a emissão de gases com efeito de estufa, a obrigatoriedade de possuírem título de emissão de tais gases (cfr. artigo 7.º). A atribuição de tais títulos de emissão implica para os referidos operadores a obrigatoriedade de monitorizar e comunicar as informações relativas a emissões, nos termos constantes do anexo IV do Decreto-Lei (cfr. artigos 10.º, n.º 1, 22.º e 23.º), bem como a obrigação de devolver ao Instituto do Ambiente (atualmente, à Agência Portuguesa do Ambiente – APA), anualmente, um número de licenças de emissão equivalente ao total de emissões por si efetuadas no ano civil anterior.
De acordo com o artigo 2.º, alínea f), cada licença permite a emissão de uma tonelada de dióxido de carbono (CO2) durante um determinado período e, a partir do momento em que seja atribuída, é livremente transferível pelos seus titulares, razão pela qual se fala da implementação de um mercado ou de um sistema de comércio de licenças de emissão (CELE), que circulam livremente no espaço comunitário (cfr. artigo 17.º).
Sendo este um mercado regulado, sujeito ao controlo administrativo, para além de outras obrigações, os operadores das instalações abrangidas devem enviar à APA um relatório que contabilize as emissões de CO2 libertadas no ano civil anterior (artigo 22.º, n.º 3) e, em função das emissões verificadas, deverão devolver à APA, até 30 de abril de cada ano, tantas licenças de emissão quantas as toneladas de CO2 que tenham emitido no ano civil anterior (artigo 17.º, n.º 4).
O incumprimento desta obrigação que incide sobre cada operador fá-lo incorrer nas “penalizações” previstas no artigo 25.º, n.ºs 1 e 2 – o pagamento de uma quantia pecuniária (de €100 ou de €40, na hipótese do n.º 2) por cada tonelada de CO2 em excesso, ou seja, para a qual não tenha sido devolvida a correspondente licença de emissão. Acresce que o pagamento das referidas quantias pecuniárias não dispensa os operadores da obrigação de devolver uma quantidade de licenças de emissão equivalente às emissões excedentárias no momento da devolução das licenças de emissão relativas ao ano civil subsequente (cfr. artigo 25.º, n.º 3).
Assim, e no que para o caso particularmente importa, o artigo 16.º da Diretiva foi transposto, na redação inicial do Decreto-Lei n.º 233/244, de 14 de dezembro, para o artigo 25.º, o qual tinha o seguinte teor:
«Artigo 25.º
Penalizações por emissões excedentárias
1 — O operador que não devolva, até 30 de abril de cada ano civil, licenças de emissão suficientes para cobrir as suas emissões no ano anterior é obrigado a pagar uma multa pelas emissões excedentárias no valor de € 99 por cada tonelada de dióxido de carbono equivalente emitida pela instalação relativamente à qual não devolveu licenças, com o limite de € 35 640.
2 — Sem prejuízo do disposto no número anterior, durante o período de três anos com início em 1 de janeiro de 2005, a multa por emissões excedentárias é de € 40 por cada tonelada de dióxido de carbono equivalente emitida pela instalação relativamente à qual não devolveu licenças, com o limite de € 14 400.
3 — O pagamento de multa por emissões excedentárias não dispensa o operador da obrigação de devolver uma quantidade de licenças de emissão equivalente às emissões excedentárias no momento da devolução das licenças de emissão relativas ao ano civil subsequente.
4 — O Instituto do Ambiente publicita, na respetiva página da Internet, uma lista com os nomes dos operadores que não devolvam licenças de emissão suficientes nos termos do n.º 4 do artigo 17.º»
Passado pouco tempo, o Decreto-Lei n.º 243-A/2004, de 31 de dezembro, veio a conferir nova redação ao referido artigo 25.º, justificando da seguinte forma, no seu preâmbulo, as alterações introduzidas:
«[…]
No quadro deste regime, as empresas devem deter, no final de cada ano, licenças de emissão de gases com efeito de estufa equivalentes às suas emissões reais. Para tal, podem comprar e vender licenças de emissão. Todavia, caso não sejam detentoras de licenças suficientes para cobrir as emissões reais, devem pagar um determinado montante por cada tonelada excedentária.
O equilíbrio do sistema supõe, assim, a possibilidade de emissões excedentárias associando-lhes um sobrecusto que pretende ser dissuasor da opção de não proceder à compra de licença de emissões equivalentes às reais emissões das instalações envolvidas. Ora, tal efeito dissuasor, para ser eficaz, exige que o referido sobrecusto — assumido como penalidade — seja tendencialmente ilimitado, sendo determinado por soma aritmética do valor devido por cada tonelada excedentária adicional.
Está em causa a criação de um sistema que permita a livre comercialização de licenças de CO2 entre as 12 000 instalações dos Estados membros — objetivo que ficaria prejudicado pela fixação de valores máximos a pagar pelos operadores, em resultado da penalização por tonelada de CO2 excedentária, por cada Estado membro, com o que tal encerraria de grave distorção da concorrência e de violação das regras do mercado interno.
[…]»
Assim, após as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 243-A/2004, de 31 de dezembro, o artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, passou a ter a seguinte redação:
«Artigo 25.o
Penalizações por emissões excedentárias
1 — O operador que não devolva, até 30 de abril de cada ano civil, licenças de emissão suficientes para cobrir as suas emissões no ano anterior fica sujeito ao pagamento, pelas emissões excedentárias, de € 100 por cada tonelada de dióxido de carbono equivalente emitida pela instalação relativamente à qual não devolveu licenças.
2 — Sem prejuízo do disposto no número anterior, durante o período de três anos com início em 1 de janeiro de 2005, o valor a pagar por emissões excedentárias é de € 40 por cada tonelada de dióxido de carbono equivalente emitida pela instalação relativamente à qual não devolveu licenças.
3 — O pagamento por emissões excedentárias, previsto nos n.os 1 e 2, não dispensa o operador da obrigação de devolver uma quantidade de licenças de emissão equivalente às emissões excedentárias no momento da devolução das licenças de emissão relativas ao ano civil subsequente.
4 — O Instituto do Ambiente publicita, na respetiva página da Internet, uma lista com os nomes dos operadores que não devolvam licenças de emissão suficientes nos termos do n.º 4 do artigo 17.º»
Analisadas as alterações efetuadas, constata-se que enquanto na redação inicial deste artigo se designava como “multa” o valor pecuniário a pagar por cada tonelada de emissões excedentárias (usando, aliás, a designação constante da diretiva) e se estabelecia um limite máximo para os valores a pagar a esse título, após as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 243-A/2004, de 31 de dezembro, o quantitativo em causa deixou de ser designado como “multa”, deixando também de existir uma fixação de valores máximos a pagar pelos operadores por emissões excedentárias.
O Decreto-Lei n.º 230/2005, de 29 dezembro, manteve inalteradas as normas que relevam para o caso em apreciação nos autos e o Decreto-Lei n.º 72/2006, de 24 de março, aditou o artigo 25.º-A, que veio estabelecer o seguinte:
«Artigo 25.º-A
Entidade competente
1 — Cabe ao Instituto do Ambiente assegurar o cumprimento do previsto no artigo anterior, enviando para tal a competente nota de liquidação ao operador.
2 — O operador sujeito ao pagamento em causa tem 90 dias para o efetuar, sob pena de incorrer no pagamento de juros de mora à taxa legal aplicável.
3 — Caso o pagamento não seja efetuado até ao prazo previsto no número anterior, a cobrança da mesma é efetuada nos termos do regime jurídico das execuções fiscais.
4 — As quantias resultantes da aplicação das penalidades previstas no artigo anterior constituem receita própria do Instituto do Ambiente.»
Assim, à data dos factos em causa nos autos, estava em vigor o artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 243-A/2004, de 31 de dezembro, e o artigo 25.º-A, aditado pelo Decreto-Lei n.º 72/2006, de 24 de março, que manteve inalterada a redação do artigo 25.º
Face ao regime legal acima descrito, e independentemente da conclusão a que se venha a chegar quanto à natureza das “penalizações” previstas nos n.ºs 1 e 2, do artigo 25.º, do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, a primeira conclusão que se poderá retirar, desde já, é a de que o regime legal instituído por este diploma se enquadra entre os instrumentos de proteção do ambiente, tratando-se de um instrumento de fomento, na medida em que, ao associar um preço à emissão de gases poluentes, cria um estímulo ou um incentivo económico à redução da poluição (para uma panorâmica geral sobre esta matéria, em que são identificadas e analisadas quatro categorias de instrumentos de proteção do ambiente: preventivos, reparatórios, repressivos e de fomento, cfr. Carla Amado Gomes, Direito Administrativo do Ambiente, in Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. I, coord. Paulo Otero e Pedro Gonçalves, págs. 194-243, ed. Almedina, 2009).
A decisão recorrida entendeu que as “penalizações por emissões excedentárias”, previstas nos n.ºs 1 e 2, do artigo 25.º, do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, configuravam uma contraordenação ambiental.
No entanto, se procedermos à análise do conteúdo das respetivas normas, pelo menos com base num critério estritamente formal, retirado do conceito de contraordenação previsto no artigo 1.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, segundo o qual «só será punido como contraordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática», e do artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto (que aprova a lei quadro das contraordenações ambientais), onde se estabelece que «constitui contraordenação ambiental todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal correspondente à violação de disposições legais e regulamentares relativas ao ambiente que consagrem direitos ou imponham deveres, para o qual se comine uma coima», não é possível concluir que o legislador tenha pretendido criar uma verdadeira contraordenação.
Também de um ponto de vista sistemático, se o artigo 25.º tem como epígrafe «Penalizações por emissões excedentárias», o artigo 26.º já se refere, também na epígrafe, a “Contraordenações”, descrevendo nas alíneas do seu n.º 1 diversos comportamentos puníveis com uma coima, o que revela que o legislador não terá pretendido reconduzir as “penalizações” previstas no artigo 25.º à categoria de contraordenações.
E em termos substanciais constata-se que a própria previsão legal das referidas “penalizações” não contém os elementos de um tipo contraordenacional. Desde logo, no que respeita à fixação do valor da “penalização” em causa, o mesmo não tem por base numa moldura contraordenacional, entre um mínimo e um máximo, de modo a que a determinação da medida concreta da coima seja efetuada em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da sua prática, sendo certo ainda que não há qualquer exigência no sentido da imputação dos factos do agente a título de dolo ou negligência.
Como vimos, o Decreto-Lei n.º 243-A/2004, de 31 de dezembro, veio a conferir nova redação ao referido artigo 25.º, justificando da seguinte forma, no seu preâmbulo, as alterações introduzidas:
«[…]
No quadro deste regime, as empresas devem deter, no final de cada ano, licenças de emissão de gases com efeito de estufa equivalentes às suas emissões reais. Para tal, podem comprar e vender licenças de emissão. Todavia, caso não sejam detentoras de licenças suficientes para cobrir as emissões reais, devem pagar um determinado montante por cada tonelada excedentária.
O equilíbrio do sistema supõe, assim, a possibilidade de emissões excedentárias associando-lhes um sobrecusto que pretende ser dissuasor da opção de não proceder à compra de licença de emissões equivalentes às reais emissões das instalações envolvidas. Ora, tal efeito dissuasor, para ser eficaz, exige que o referido sobrecusto — assumido como penalidade — seja tendencialmente ilimitado, sendo determinado por soma aritmética do valor devido por cada tonelada excedentária adicional.
[…]»
Ou seja, admite-se a possibilidade de emissões excedentárias, depreendendo-se, do que consta deste preâmbulo, que o facto de se emitir gases com efeito de estufa, excedendo o limite de licenças que se possui para o efeito, não é um comportamento tido por ilícito, não sendo também ilícita a opção de, até ao dia 30 de abril do ano subsequente, não se apresentar um número de licenças de emissão equivalente às emissões excedentárias. Contudo, tal opção implica, na expressão do preâmbulo acima citado, um «sobrecusto — assumido como penalidade». Este “sobrecusto” não tem, porém, a finalidade de juridicamente punir tal comportamento, pretendendo apenas ser «dissuasor da opção de não proceder à compra de licença de emissões equivalentes às reais emissões das instalações envolvidas», por forma a favorecer «a criação de um sistema que permita a livre comercialização de licenças de CO2 entre as 12 000 instalações dos Estados membros».
Acresce, ainda, que o regime previsto no artigo 25.º-A, aditado pelo Decreto-Lei n.º 72/2006, de 24 de março, onde se regulam alguns aspetos procedimentais relativos à aplicação das “penalizações” previstas no artigo 25.º, também se afasta do procedimento previsto no regime geral relativo à aplicação de coimas (cfr. artigo 33.º e ss. do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, e, quanto às contraordenações ambientais, o artigo 45.º e ss. da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto).
Finalmente, também no que respeita ao próprio destino das receitas resultantes das referidas “penalizações” o regime legal em análise afasta-se da solução prevista no caso das contraordenações. Com efeito, o n.º 4, do artigo 25.º-A, estabelece que as quantias resultantes da aplicação das penalidades previstas no artigo anterior constituem receita própria do Instituto do Ambiente (atualmente, da APA), diversamente do regime previsto relativamente ao montante das receitas das coimas: o artigo 30.º, na redação em vigor após as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 72/2006, estabelecia que a receita das coimas previstas no artigo 26.º é afetada da seguinte forma: a) 10% para o Instituto do Ambiente; b) 10% para a DGGE; c) 20% para a entidade que aplica a coima; d) 60% para o Estado. Este artigo 30.º foi, entretanto, alterado pelo Decreto-Lei n.º 154/2009, de 6 de julho, passando a remeter para o disposto no artigo 73.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto (lei quadro das contraordenações ambientais), no qual, por sua vez, se estabelece que o produto das coimas é repartido da seguinte forma: a) 50% para o Fundo de Intervenção Ambiental; b) 25% para a autoridade que a aplique; c) 15% para a entidade autuante; d) 10% para o Estado.
Por estas razões, conclui-se que a “penalização” em análise, quer em termos formais, quer substancialmente, é avessa à sua qualificação como contraordenação, não podendo o valor pecuniário previsto na norma em causa ser considerado uma coima. Note-se, aliás, como vimos, que o legislador, na segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, teve o cuidado de deixar de designar a “penalização” em questão como “multa”, afastando-se do termo utilizado pela Diretiva n.º 2003/87/CE.
Face ao exposto, não se podendo considerar que a norma em questão prevê um determinado comportamento como sendo uma contraordenação, punível com uma coima, é forçoso concluir, ao contrário do que entendeu a decisão recorrida, que a matéria em causa não integra o âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, consagrada no artigo 165.º, n.º 1, al. d) da Constituição.
Afastada a qualificação da “penalização” prevista nessa norma como contraordenação, importa, ainda assim, determinar qual a sua natureza jurídica, uma vez que só dessa forma se poderá saber se o Governo poderia intervir legislativamente nessa matéria.
Outra possibilidade de enquadramento desta “penalização” será no âmbito dos tributos ambientais.
Como é hoje consensualmente entendido, este tipo de tributos, no que respeita às suas finalidades, podem ser divididos em duas espécies ou categorias: uma delas, constituída pelos chamados tributos ambientais em sentido estrito, técnico ou próprio, que prosseguem uma finalidade extrafiscal incentivante, os quais visam diretamente promover uma alteração de comportamentos (reine Lenkungssteuern); sendo a outra categoria constituída pelos tributos ambientais em sentido amplo ou impróprio, com uma finalidade reditícia, recaudatória ou redistributiva, e que têm como objetivo principal a obtenção de receitas a aplicar em projetos de defesa ecológica (reine Umweltfinanzierungsabgaben) [sobre estas duas modalidades de impostos ambientais e, em geral, sobre as finalidades destes, cfr. Casalta Nabais, “Por um Estado Fiscal Suportável – Estudos de Direito Fiscal, Direito Fiscal e Tutela do Ambiente em Portugal”, pág. 343 e seg., ed. da Almedina, 2005, e Cláudia Dias Soares, em “O imposto ambiental – Direito Fiscal do Ambiente”, pág. 12-16, Cadernos CEDOUA, ed. da Almedina, 2002, em “A inevitabilidade da tributação ambiental”, in “Estudos de Direito do Ambiente”, pág. 26-33, Publicações Universidade Católica, 2003, e em “O imposto ecológico – contributo para o estudo dos instrumentos económicos de defesa do ambiente”, pág. 290 e seg., ed. da Coimbra Editora, 2001].
No caso concreto, está-se perante a combinação de um instrumento de mercado (criação de um mercado de direitos de emissão transacionáveis), com a aplicação de uma “penalização” ou “sobrecusto” às emissões quantificadas acima de um determinado valor, para o qual o operador que as tenha emitido não possua as necessárias licenças (como vimos, deverá possuir uma licença por cada tonelada de CO2 emitida). Assim, quem emita este tipo de gases com efeito de estufa para além do número de licenças que lhe foram atribuídas, deverá ir ao mercado adquirir, a preços resultantes do funcionamento desse mercado, as licenças necessárias para cobrir as emissões em excesso. Não o fazendo, fica sujeito a esta “penalização”, correspondente a um determinado valor, por cada tonelada de CO2 emitida em excesso, para a qual não dispunha de licença, não a tendo também adquirido no mercado.
Ora, apesar de o artigo 16.º da Diretiva n.º 2003/87/CE ter como epígrafe “sanções” e o artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, onde se encontra transposto aquele artigo 16.º se referir, também na epígrafe, a “penalizações por emissões excedentárias”, tendo em conta as finalidades pretendidas pelo legislador com esta medida, não se poderá dizer que a mesma seja primacialmente sancionatória, visando, antes de mais, modelar comportamentos.
Ou seja, não se pretende penalizar uma atividade considerada ilícita, concretamente a emissão de gases com efeito de estufa para além das licenças que se possui para o efeito, nem se pretende punir como facto ilícito a não apresentação, em cada ano subsequente ao das emissões, do número de licenças suficientes para abranger as emissões excedentárias. O que se pretende é fixar um sobrecusto associado a essa opção, estabelecendo um “preço” para cada tonelada de CO2 excedentária superior ao que seria o custo da aquisição da correspondente licença no mercado, por forma a incentivar os operadores a adquirir nesse mercado as licenças necessárias para cobrir essas emissões.
Afastado o caráter sancionatório destas penalizações, revela-se adequado o seu enquadramento nos tributos ambientais, importando para apreciação da questão sub judice, determinar ainda qual a natureza jurídica específica de tal tributo, o que pressupõe relembrar a distinção entre os conceitos dos diferentes tipos de tributo, tendo presente que a Constituição não indica qualquer critério distintivo.
No plano do direito infraconstitucional, a Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro, no seu artigo 4.º aponta os principais distintivos entre os impostos e as taxas. Assim, de acordo com o n.º 1 deste artigo, os impostos «assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património», enquanto as taxas, por sua vez, segundo dispõe o n.º 2, «assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares».
Estas definições legais limitaram-se a recolher os ensinamentos dominantes da doutrina fiscal, os quais foram, aliás, adotados pela jurisprudência do Tribunal Constitucional (uma resenha desta jurisprudência foi efetuada por Casalta Nabais, em “Jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria fiscal”, no B.F.D.U.C. n.º 69 (1993), págs. 387 e seg., e por Cardoso da Costa, em “O enquadramento constitucional dos impostos em Portugal: a jurisprudência do Tribunal Constitucional”, em “Perspetivas Constitucionais – Nos 20 anos da Constituição de 1976”, vol. II, pág. 397 e seg.).
Assim, pode dizer-se que o imposto consiste numa contribuição imposta pelo poder público a todos ou a uma certa categoria de pessoas, destinada a financiar o Estado e as funções públicas em geral. Trata-se de uma prestação pecuniária unilateral, uma vez que não tem como contrapartida uma qualquer contraprestação específica atribuída ao contribuinte por parte do Estado, mas apenas a contrapartida genérica do funcionamento dos serviços estaduais.
Ao caráter unilateral do imposto contrapõe-se a natureza bilateral ou sinalagmática da taxa. Esta traduz-se na contrapartida de um serviço específico prestado pelo Estado (ou por outra pessoa coletiva pública ou dotada de poderes públicos) ou da vantagem decorrente da utilização individual de um bem público ou do prejuízo causado a um bem coletivo (vide J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Volume I, pág. 1093, da 4.ª Edição, da Coimbra Editora). A sinalagmaticidade que caracteriza as quantias pagas a título de taxa só existirá quando se verifique uma contrapartida resultante da relação concreta com um bem semipúblico, que, por seu turno, se pode definir como um bem público que satisfaz, além de necessidades coletivas, necessidades individuais (vide Teixeira Ribeiro, em “Noção jurídica de taxa”, na “Revista de Legislação e de Jurisprudência”, ano 117.º, pág. 291). A taxa “pressupõe, ou dá origem, a uma contraprestação específica resultante de uma relação concreta (que pode ser ou não de benefício) entre o contribuinte e um bem ou serviço público”, sendo “grande a variabilidade do conteúdo jurídico do conceito, resultante da diversidade das situações que geram as obrigações de taxa e das múltiplas delimitações formais da respetiva noção financeira” (Sousa Franco, em “Finanças Públicas e Direito Financeiro”, volume II, pág. 63-64, da 4.ª Edição, da Almedina). Atualmente, podemos encontrar no artigo 4.º, n.º 2, da LGT, acima transcrito, a previsão dos factos que poderão dar lugar à cobrança de taxas, as quais assentam “na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo ao comportamento dos particulares”.
No entanto, o sistema fiscal português conhece uma grande variedade de outras figuras tributárias que não se acomodam facilmente às categorias de taxa ou de imposto. Daí que, fugindo a esta divisão dicotómica, alguma doutrina tenha começado a apontar a existência de uma categoria intermédia de tributos, na qual se enquadram outras figuras marginais designadas como tributos parafiscais (cfr. artigo 3.º, n.º 1, alínea a), da Lei Geral Tributária).
Não obstante a existência destas figuras tributárias no sistema fiscal português, o próprio texto constitucional anterior à revisão operada em 1997, ao estabelecer a reserva de lei parlamentar em matéria fiscal, consagrava no artigo 168.º (atual artigo 165.º) uma marcada distinção entre os impostos e as demais categorias tributárias, convidando a uma representação dicotómica dos tributos.
Assim, para efeitos de reserva de lei parlamentar, a doutrina e a jurisprudência distinguiam entre impostos (abrangidos pela reserva de lei parlamentar) e taxas (não sujeitas a tal reserva) e procuravam equiparar os apelidados tributos parafiscais à categoria dos impostos ou à das taxas, para concluírem se a sua criação estava ou não sujeita ao princípio da reserva de lei formal (vide Nuno de Sá Gomes, em “Manual de Direito Fiscal”, vol. I, pág. 315 e seg., da 12ª ed., do Rei dos Livros, Sousa Franco, na ob. cit., pág. 74-76, e Casalta Nabais, em “O dever fundamental de pagar impostos”, pág. 256-257, da ed. de 1998, da Almedina).
A jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre esta matéria, por seu turno, foi firmando, aliás, o entendimento no sentido de alargar a noção constitucional de imposto e da reserva de lei parlamentar a todos os tributos que não possam rigorosamente dizer-se taxas, por forma a prevenir que o legislador subvertesse a distribuição constitucional de competências, lançando mão de tributos que, não sendo verdadeiramente unilaterais, não chegam no entanto a ser taxas. Podemos encontrar exemplos desse entendimento em diversos acórdãos sobre as antigas taxas de regulação económica, em que o Tribunal Constitucional admite a sua equiparação aos impostos, pelo menos, para efeitos da reserva de lei parlamentar. É o caso, entre outros, dos Acórdãos n.ºs 261/86 (taxas sobre produtos oleaginosos), 387/91 (taxas sobre as vendas de pastas químicas), 369/99, 370/99 e 96/00 (taxas da peste suína).
Contudo, com a revisão constitucional de 1997, a alteração introduzida na redação da alínea i), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição (anterior alínea i), do n.º 1, do artigo 168.º), veio obrigar a uma reformulação dos pressupostos da discussão sobre esta matéria.
Onde anteriormente o artigo 168.º, n.º 1, alínea i), da Constituição dizia que “é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: (…) i) Criação de impostos e sistema fiscal (…)” passou a constar que “é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: (…) i) Criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas (…)”.
Conforme resulta da consulta dos trabalhos parlamentares da Revisão Constitucional de 1997, a referência às contribuições financeiras constante da alínea i), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição, procurou abranger precisamente o mencionado tertium genus.
Assim, para efeitos de submissão dos diversos tipos de tributo ao princípio da reserva de lei formal, a nova redação do artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição, passou a fazer referência a três espécies tributárias, autonomizando a categoria das “contribuições financeiras” a par das taxas e dos impostos, continuando estes sujeitos à reserva da lei formal, enquanto, relativamente às taxas e às contribuições financeiras, apenas a definição do seu regime geral terá que respeitar a reserva de lei parlamentar.
Com esta alteração deixou de fazer qualquer sentido equiparar a figura das contribuições financeiras aos impostos para efeitos de considerá-las sujeitas à reserva da lei formal.
Tecidas estas considerações gerais, importa agora apreciar qual a natureza da “penalização” sobre as emissões excedentárias, no sentido de saber a qual destas categorias a mesma deverá ser reconduzida, sendo que, para tanto, apenas relevará o regime jurídico concreto da referida “penalização”, sendo indiferente o nomen juris atribuído na lei.
No caso, sendo de reconhecer algumas dificuldades na qualificação deste tributo, não se podendo falar da existência de uma verdadeira relação comutativa, a não ser de forma difusa, afigura-se-nos que o mesmo não é reconduzível, atento o seu regime, quer à categoria unilateral do imposto, quer à categoria bilateral da taxa, aproximando-se antes de outras figuras acima referidas, designadas genericamente no texto constitucional por “demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (sobre a natureza jurídica das receitas arrecadadas pelo Estado pela atribuição de licenças de emissão, cfr. Carlos Costa Pina, em “Mercado de Direitos de Emissão de CO2”, in “Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco”, Vol. I, pp. 493-502) .
Segundo Sérgio Vasques estes tributos situam-se no terreno intermédio que vai das taxas aos impostos, incluindo-se nesta categoria «não apenas as taxas de regulação económica, mas toda a parafiscalidade associativa, as contribuições para a segurança social, as contribuições especiais de melhoria, assim como o universo crescente dos tributos ambientais, todos eles com estrutura paracomutativa, dirigidos à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários» (em “As Taxas de Regulação Económica em Portugal: Uma Introdução”, In “As Taxas de Regulação Económica em Portugal”, pág. 38, da ed. da Almedina, 2008),
E de acordo com Suzana Tavares da Silva estes tributos podem «agrupar-se em três tipos fundamentais: 1) como instrumento de financiamento de novos serviços de interesse geral que ocasionam um benefício concreto imputável a alguns destinatários diferenciados (ex. prevenção de riscos naturais) – contribuições especiais financeiras; 2) como instrumento de financiamento de novas entidades administrativas cuja atividade beneficia um grupo homogéneo de destinatários (ex. taxas de financiamento das entidades reguladoras) – contribuições especiais parafiscais; e 3) como instrumentos de orientação de comportamentos (finalidades extrafiscais) – contribuições orientadoras de comportamentos ou (…) contribuições especiais extrafiscais» (Em “As Taxas e a Coerência do Sistema Tributário”, in “Estudos Regionais e Locais”, 2008, pp. 48 e ss.).
Atento o caráter híbrido da “penalização” prevista no artigo 25.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, e uma vez que a mesma tem em vista, em primeira linha, uma finalidade extrafiscal de “orientação de comportamentos”, em termos jurídico-constitucionais, tal aponta para que a mesma deva ser enquadrada na categoria das contribuições financeiras constante da alínea i), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição, importando, pois, apreciar se o Governo poderia intervir legislativamente nesta matéria.
Conforme já acima se mencionou, após a revisão constitucional de 1997, o texto constitucional passou a referir-se a três categorias de tributos, continuando os impostos sujeitos à reserva da lei formal, enquanto, relativamente às taxas e às contribuições financeiras, apenas a definição do seu regime geral tem que respeitar essa reserva de competência, podendo a concreta criação deste tipo de tributos, ao contrário dos impostos, ser efetuada por diploma legislativo governamental, sem necessidade de autorização parlamentar.
O legislador constitucional entendeu que a melhor maneira de enquadrar juridicamente as “contribuições financeiras a favor de entidades públicas”, sem perder agilidade na sua criação, era a de exigir a aprovação apenas de um regime geral pelo parlamento, não sendo necessária a intervenção deste na criação individual de tais tributos e na definição do seu regime em concreto. A legitimidade na introdução na ordem jurídica deste tipo de tributos, passou a bastar-se com a definição do seu regime geral pela Assembleia da República.
O princípio da legalidade, relativamente àquelas, apenas exige que o parlamento legisle ou autorize o governo a legislar sobre as regras e princípios gerais, comuns às diferentes contribuições financeiras, os quais devem estar presentes na criação específica de cada uma delas, o que já não necessita duma intervenção ou autorização parlamentar.
Aquele regime geral das contribuições financeiras, cuja definição compete à Assembleia da República, deve conter os seus princípios estruturantes, bem como as regras elementares respeitantes aos seus elementos essenciais comuns, sendo certo que é difícil imaginar que se consigam subordinar a um mesmo quadro normativo figuras tão diferentes quanto aquelas que se podem abrigar neste novo conceito intermédio. Daí que se preveja a necessidade de elaborar diferentes regimes gerais para cada um dos tipos destas figuras tributárias (vide, neste sentido, SÉRGIO VASQUES, na ob. cit., pág. 38).
Sucede, porém, que apesar do longo tempo já decorrido após esta alteração do texto constitucional, ainda não foi aprovado qualquer regime geral das contribuições financeiras, omissão a que não serão alheias as mencionadas dificuldades de estabelecer um regime unificado e a crescente intervenção do direito comunitário neste domínio (vide, neste sentido, SÉRGIO VASQUES, na ob. cit., pág. 39-40).
Esta inércia legislativa lança algumas dúvidas sobre a licitude das contribuições financeiras entretanto criadas sem a existência do enquadramento geral previsto no artigo 165.º, n.º 1, i), da Constituição.
Enquanto Gomes Canotilho e Vital Moreira, se limitam a qualificar essas dúvidas como “sérias” (na ob. cit., pág. 1096), Sérgio Vasques considera que “até à edição de um regime geral que enquadre estas figuras tributárias, quando quer que ela suceda, dever-se-á continuar a subordinar a criação e disciplina das taxas de regulação económica a intervenção parlamentar e a censurar como organicamente inconstitucionais aquelas que o sejam por decreto-lei simples” (na ob.cit., pág. 40), entendendo Cardoso da Costa que “seria de todo inaceitável atribuir à introdução da reserva parlamentar em apreço (…) seja o efeito, seja o propósito, de paralisar ou bloquear a autonomia da ação governamental num domínio que afinal lhe é próprio, tornando-a dependente em toda a medida de uma intervenção parlamentar prévia: tal não seria compatível com a dinâmica e as necessidades da vida do Estado.” (em “Sobre o princípio da legalidade das “taxas” (e das “demais contribuições financeiras”)”, em Estudos em homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano no centenário do seu nascimento”pág. 803).
Num quadro de ausência de um regime geral das contribuições financeiras, o Tribunal Constitucional já tem admitido que atos legislativos do Governo criem este tipo de tributos, nas situações cobertas por legislação parlamentar que previamente define os seus elementos essenciais (v.g. Acórdãos n.º 365/08, 613/08, e 152/2013, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt), considerando-se que isso é suficiente para se considerarem atingidos os objetivos constitucionais visados com a exigência de um regime geral das contribuições financeiras a favor de entidades públicas, uma vez que não deixa de existir uma intervenção dos representantes diretos do povo na definição dos princípios e das regras elementares respeitantes aos elementos essenciais do novo tributo.
Relativamente às “penalizações” previstas no artigo 25.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, não se verifica que os seus elementos essenciais tenham sido previamente definidos pela Assembleia da República.
Contudo, há que ter presente que, na nossa ordem jurídica, a exigência de proteção do ambiente encontra assento na própria Constituição, a qual, para além de incluir entre as tarefas fundamentais do Estado, a defesa da natureza e do ambiente e a preservação dos recursos naturais (art. 9.º, al. e)), garante ainda aos cidadãos o direito fundamental “a um ambiente de vida humano sadio e ecologicamente equilibrado” (artigo 66.º, n.º 1), e estabelece que, no domínio da política do ambiente, incumbe ao Estado, designadamente, prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão, promover o aproveitamento racional dos recursos naturais e assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com proteção do ambiente e qualidade de vida (cfr. artigo 66.º, n.º 2, als. a), d) e h), da Constituição).
Assim, para além de outros mecanismos, as normas tributárias poderão ser instrumentalizadas para a prossecução de objetivos ambientais, por via direta, através da sobretributação, procurando-se desincentivar práticas ambientais adversas, utilizando tributos pesados e condicionando a liberdade de escolha dos sujeitos.
No seguimento da referida imposição constitucional, no plano infraconstitucional, a Lei n.º 11/87, de 07 de abril (Lei de Bases do Ambiente - LBA) prevê a utilização de normas tributárias no campo ambiental, uma vez que impõe, por um lado, que o combate à poluição derivada do uso de compostos químicos, no âmbito da defesa do ambiente, se processe, designadamente, através «da aplicação de instrumentos fiscais e financeiros que incentivem a reciclagem e utilização de resíduos» (artigo 23.º, n.º 1, al. e) da LBA) e, por outro lado, reconhece como «instrumentos da política de ambiente e do ordenamento do território», entre outros, «a fixação de taxas a aplicar pela utilização de recursos naturais e componentes ambientais, bem como pela rejeição de efluentes» (cfr. artigo 27.º, alínea r), da LBA).
Desta forma, quer por força da imposição constitucional, quer por via da Lei de Bases do Ambiente, o legislador fiscal está habilitado a consagrar medidas tributárias com incidência ambiental, atribuindo este último diploma ao Governo, nos termos do artigo 37.º, n.º 1, a competência para «a condução de uma política global nos domínios do ambiente, da qualidade de vida e do ordenamento do território, bem como a coordenação das políticas de ordenamento regional do território e desenvolvimento económico e progresso social e ainda a adoção das medidas adequadas à aplicação dos instrumentos previstos na presente lei».
Ora, apesar da referência a “taxas”, há que considerar que a previsão do referido artigo 27.º, alínea r), da LBA, tem um sentido amplo e genérico, sendo apta também a abranger tributos que possam ser qualificados como contribuições financeiras, uma vez que a distinção legal entre as duas figuras não é sempre rigorosa e precisa, para além de, muitas vezes, pela análise do tributo em causa, a distinção poder revelar-se difícil, não sendo inequívoca.
Deste modo, a Assembleia da República, além de identificar, entre os instrumentos de política ambiental, o recurso a tributos a «aplicar pela utilização de recursos naturais e componentes ambientais, bem como pela rejeição de efluentes», atribuiu ao Governo competência para intervir nessa matéria.
Assim, embora a Assembleia da República não tenha, relativamente a este tributo, procedido a uma prévia definição dos princípios e das regras elementares respeitantes aos seus elementos essenciais, como ocorreu nas situações paralelas anteriormente objeto de análise pelo Tribunal Constitucional, incumbiu expressamente o Governo de recorrer a instrumentos de política ambiental onde se inclui a possibilidade de criar tributos com as características da presente “penalização”.
Esta atribuição de competência, na ausência de um regime geral das contribuições financeiras, pode ser considerada como habilitante de uma intervenção legislativa do Governo na matéria que desenvolva as diretrizes constantes do texto constitucional e da referida Lei de Bases, designadamente fixando tributos concretos a «aplicar pela utilização de recursos naturais e componentes ambientais» sem que exista uma prévia definição dos seus elementos essenciais pela Assembleia da República.
De qualquer modo a norma em apreço resulta da transposição da Diretiva n.º 2003/87/CE, a qual, no artigo 16.º, estabelece o seguinte:
“1. Os Estados-Membros devem estabelecer as regras relativas às sanções aplicáveis em caso de infração às disposições nacionais aprovadas por força da presente diretiva e tomar todas as medidas necessárias para garantir a sua aplicação. As sanções impostas devem ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas. Os Estados-Membros devem notificar as referidas disposições à Comissão até 31 de dezembro de 2003, devendo notificá-la o mais rapidamente possível de qualquer alteração posterior que lhes diga respeito.
…
3. Os Estados-Membros devem assegurar que os operadores de instalações que não devolvam, até 30 de abril de cada ano, licenças de emissão suficientes para cobrir as suas emissões no ano anterior sejam obrigados a pagar uma multa pelas emissões excedentárias. A multa por emissões excedentárias será igual a 100 euros por cada tonelada de equivalente dióxido de carbono emitida pela instalação relativamente à qual o operador não tenha devolvido licenças. O pagamento da multa por emissões excedentárias não dispensa o operador da obrigação de devolver uma quantidade de licenças de emissão equivalente às emissões excedentárias aquando da devolução das licenças de emissão relativas ao ano civil subsequente.
…”
Note-se que o termo “multa”, utilizado na versão em língua portuguesa desta Diretiva, não pode ser lido estritamente no sentido jurídico-penal, devendo antes ser encarado com um significado amplo de aplicação de uma penalização, sem que dele resulte uma indicação sobre a natureza da obrigação de pagamento das quantias devidas pelas emissões excedentárias.
O artigo 288.º, par. 3.º, do Tratado de Funcionamento da União Europeia, dispõe que “a diretiva vincula o Estado-membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios”. Contudo, na prática, as instituições e os órgãos da União têm vindo a elaborar diretivas, como é o caso da presente, de modo cada vez mais preciso, determinando cada vez mais pormenorizadamente as modalidades da matéria que tratam. Nestes casos, a escolha dos meios pelos Estados-membros acaba por ser bastante reduzida ou nem sequer existir, restando-lhes a transposição pura e simples da diretiva para o seu Direito interno.
No caso dos presentes autos, verifica-se que a norma da diretiva é de tal modo precisa, clara e incondicional quanto às “penalizações” que devem recair sobre as emissões excedentárias, fixando o seu quantitativo exato, que não deixa ao Estado Português qualquer margem de apreciação, pelo que a eventual existência de um regime geral aprovado pela Assembleia da República não seria suscetível de interferir nas opções do legislador. Aliás, de acordo com o artigo 8.º, n.º 4, da Constituição, as normas da diretiva sempre prevaleceriam sobre eventuais normas legais que lhe fossem contrárias.
Assim, também por esta razão a inexistência de um regime geral das contribuições financeiras não justifica que, relativamente à norma em apreciação, seja exigível a intervenção da Assembleia da República na definição dos seus elementos essenciais, atenta a quase ausência de liberdade do legislador nacional naquela matéria. Note-se que, do ponto de vista do Direito da União Europeia, é indiferente a forma do ato de transposição. Compete ao direito constitucional de cada Estado-Membro defini-la, podendo assumir entre nós a forma de lei, de decreto-lei ou até de decreto legislativo regional (artigo 112.º, n.º 8, da Constituição).
Por estas razões deve considerar-se que o Governo tinha competência para prever a existência do tributo previsto no artigo 25.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, perante a ausência de um regime geral das contribuições financeiras, não se mostrando ofendida, com tal previsão, a exigência de reserva de lei formal imposta no artigo 165.º, n.º 1, i), da Constituição.
Deste modo, deve ser julgado procedente o recurso interposto.
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Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Não conhecer do recurso de constitucionalidade na parte respeitante à questão da inconstitucionalidade orgânica das normas dos artigos 25.º, n.ºs 3 e 4, 25.º-A e 26.º do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 243-A/2004, de 31 de dezembro;
b) Não julgar inconstitucionais as normas constantes do artigo 25.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de dezembro, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 243-A/2004, de 31 de dezembro;
e, consequentemente,
c) julgar procedente o recurso;
d) e determinar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de constitucionalidade.
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Sem custas.
Lisboa, 22 de janeiro de 2014 – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura - Ana Guerra Martins – Pedro Machete - Joaquim de Sousa Ribeiro.