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Processo n.º 912/13
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A. recorreu, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, doravante “LTC”), do despacho do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa que indeferiu anterior reclamação apresentada naquele tribunal ao abrigo do artigo 405.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Tal despacho fundamentou-se no referido artigo 405.º, n.º 1, tendo o juiz a quo entendido que se impunha o indeferimento, uma vez que a reclamação não tinha por objeto um despacho expresso de não admissão ou de rejeição de recurso (cfr. fls. 38). No mencionado recurso de constitucionalidade, pretende o recorrente ver apreciada “a inconstitucionalidade interpretativa das normas dos art.ºs 399.º e 414.º, do Código de Processo Penal, (…) e da norma do art.º 405.º, n.º 1, do mesmo códice, convocada complementarmente na decisão recorrida de modo inesperado, por violação do imperativo do art.º 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa” (cfr. fls. 42 e 43).
Pela Decisão Sumária n.º 530/2013 foi decidido não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade com os seguintes fundamentos (fls. 52 e seguintes):
« 3. O meio processual utilizado pelo recorrente respeita a decisões judiciais que tenham aplicado norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Ora, da fundamentação expendida na decisão recorrida resulta, desde logo, que a mesma assentou exclusivamente no disposto no artigo 405.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, rejeitando o requerimento uma vez que o mesmo não tinha por objeto uma qualquer decisão de rejeição de recurso.
Torna-se evidente, por conseguinte, que a decisão recorrida não aplicou os artigos 399.º e 414.º, do Código de Processo Penal, pelo que, quanto à questão de constitucionalidade a eles referente, cumpre, desde já, salientar a impossibilidade do respetivo conhecimento.
4. Quanto à questão respeitante ao artigo 405.º, n.º 1, do Código de Processo Penal – norma que, efetivamente, constitui a ratio decidendi da decisão ora recorrida –, impõe-se igualmente o seu não conhecimento por ausência de diversos pressupostos. Desde logo, o recorrente não suscita, a propósito deste preceito, uma qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, tendo-se limitado a invocar o seguinte:
“4 - Já no que concerne à norma agora inusitadamente invocada no tribunal superior, a do art.º 405.º, n.º 1, CPP, a conformidade do texto decisório transcrito supra a uma rejeição do recurso interposto em tempo e formalmente adequado é inequívoca e insofismável, configurando, pois, uma inadmissão da parte do recurso que não foi desagravado nos parágrafos que antecedem nesse despacho.”
O recorrente não se conforma com o entendimento patente na decisão recorrida que entendeu indeferir a reclamação apresentada, considerando não estar perante uma qualquer rejeição de recurso. Esta questão traduz, no entanto, um dissídio face ao próprio conteúdo da decisão e não, como impunha a construção de um objeto idóneo do recurso de constitucionalidade, um desacordo face a determinada interpretação normativa que se tem por violadora de comandos constitucionais.
Por outro lado, o recorrente também não suscitou qualquer inconstitucionalidade a este propósito durante o processo – e não pode agora vir invocar que tal norma foi “inusitadamente invocada no tribunal superior”, uma vez que este se limitou a apreciar um requerimento que por aquele lhe tinha sido dirigido e que, precisamente, invocava como fundamento o artigo 405.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (cfr. o requerimento de fls. 27 e seguintes).
Pelo que, sem necessidade de ulteriores considerações, cumpre concluir pela impossibilidade de conhecimento do objeto do presente recurso.»
2. Notificado desta Decisão, o recorrente deduziu reclamação para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, invocando o seguinte (fls. 57 e seguintes):
« […]
1. A vexata quaestio carreada ante este Tribunal prende-se com a interpretação que as instâncias percorridas no antecedente processado fizeram de normas adjetivas penais que, inexpressas nos textos decisórios, se retiram do sentido formulado na decisão, num dos casos inopinadamente.
2. De facto, o recorrente, na sua qualidade de arguido condenado interpôs recurso para este Tribunal –não admitido e, por isso, reclamado - da decisão proferida em 1.ª instância tirada sobre pedido de reformulação em baixa das prestações para pagamento da multa de condenação se – e apenas se – não obtivesse mérito a suspensão da execução até trânsito em julgado da decisão superior que ordenava a descida do processo para imediata execução da sentença, a fortiori porque também a esse recurso havia sido fixado efeito suspensivo, como se alcança dos autos.
3. Ora, como bem se entende da simples leitura das considerações conclusivas do recurso rejeitado, que origina a questão ora controvertida perante a primária decisão que fixava o valor das prestações da condenação em execução, o recorrente suscitou duas questões diferentes para julgamento de amparo, a saber:
A inexequibilidade da decisão do TRL que ordenava a imediata execução por ter sido objeto de sindicância recursiva; e
A errada interpretação jurídica da taxa de esforço exigível ao condenado dependente de auxílio familiar que fazia pender sobre terceiros a efetiva penalização que só ao arguido fora aplicada.
4. Como é manifesto a segunda das matérias supra sumariadas sempre ficaria prejudicada pelo provimento da primeira delas tendo, no entanto, o Tribunal decidido sobre o valor das prestações – que o arguido, ad cautelam, vem cumprindo – sem cuidar de tomar posição sobre a questão primordial da pendência de recurso da decisão superior que ali se cumpria, a de executar de imediato a condenação.
5. Esforçadamente o aqui reclamante fez saber dessa nulidade de omissão de pronúncia reforçando a cautelar arguição da inconstitucionalidade da tese interpretativa que se dava às normas que, sem consignação textual, sustentaram a decisão criticada.
6. E tendo sido decidido rejeitar o recurso, na parte não desagravada, sem menção expressa de norma legal, usou o reclamante o instituto de reclamação para a Presidência do Tribunal ad quem suscitando desde logo a inconstitucionalidade de duas normas que, à míngua de expresso textual, se afiguravam - e afiguram – as passíveis de sustentar o despacho ferido de ausência de fundamentação de Direito.
7. De facto o dispositivo do invocado art.º 399.º do C.P.P. é o que tem aplicação às causas genéricas de recorribilidade de decisões proferidas em processo criminal.
8. Outrossim, o art.º 414.º da mesma lei adjetiva regula as condições gerais de admissibilidade de recursos penais e sua tramitação.
9. Sendo exigência do princípio da adequação formal nesta sede constitucional que se invoquem as normas violadas, a omissão absoluta de indicação das normas fundantes da decisão impediria o abstrato cidadão inconformado de a sindicar superiormente nesta sede, sabendo-se que as nulidades são arguidas em sede de recurso, quando couber [art.º 374.º, n.º 2, 379.º, n,º 1, alíneas a) e c). e n.º 2), C.P.P.],
10. Restou ao reclamante retirar segundo regras básicas de ciência jurídica e do bom senso as normas processuais que poderiam sustentar a decisão que atacava.
11. Daqui se extrai que a solução conclusiva tirada na doutíssima decisão sumária em apreço não pode colher na justa medida em que na reclamação objeto do presente recurso constitucional estavam cautelar e expressamente convocadas essas normas, bem como o princípio fundamental violado e a interpretação havida como correta, na humilde opinião do reclamante (cf. n.ºs 5a7).
12. E já não só as regras constitucionais como também se convocou ali preceito de Convenção Internacional que o Estado Português ratificou e está obrigado a cumprir.
13. Só se podendo concluir pela adequação formal da suscitação da inconstitucionalidade interpretativa de normas processuais aplicadas, ainda que não expressas no texto decisório, carecendo do cuidado estudo e correta aplicação jurídica por este Subido Tribunal, na insubstituível defesa dos direitos, liberdades e garantias deste concreto cidadão.
14. Pois que mal se entende como é possível pretender aplicar uma decisão judicial que não passou em julgado como é o caso submetido a juízo, situação amplamente violadora de todos os princípios penais internacionais vigentes no mundo civilizado,
15. Já no que concerne ao preceito do art.º 405.º, n.º 1, do citado codice o recurso apresentado traduz uma muito clara e evidente sindicância de um determinado entendimento daquela regra adjetiva, expressa de modo inusitado e imprevisto como: “Pressupõe(...)a reclamação e existência de despacho expresso em que se não admita o recurso ou se retenha o mesmo(...)” e ainda que “No caso dos autos os despachos(...)não se pronunciaram sobre a admissibilidade ou não do recurso(...)”.
16. Este entendimento de que a decisão que rejeita uma parte de um recurso, depois de desagravar a outra, não é formalmente inadmissão nem retenção quando, na realidade, o efeito prático equivale in totum à não subida desse recurso na parte não corrigida, é profundamente errada, salvo melhor e mais douta opinião.
17. E a formulação processual de um tal erro judiciário nesta sede constitucional em face do pouco usual e errado sentido dado, de todo inesperado e imprevisível, dispensa a cautelar formulação de desconformidade à Lei Fundamental e aos Direitos Humanos – também invocados – podendo ser suscitada imediatamente a seguir à sua imprevisível aparição, como tem sido jurisprudência deste Tribunal que nos dispensamos de elencar vista a sapiência de V. Ex.cias e o são princípio jura novit curia.
18. Donde defenda aqui o reclamante, com o devido e merecido respeito, que muito é, que carece o recurso de apreciação plena garantindo ao cidadão a defesa dos seus legítimos interesses e direitos, onde se inclui os da liberdade e do bom nome, honra e consideração.»
3. O Ministério Público pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação (fls. 61 e 62).
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
4. A decisão de não conhecimento do recurso teve dois fundamentos: por um lado, quanto às questões de constitucionalidade relativas aos artigos 399.º e 414.º do Código de Processo Penal, assentou no facto de estes preceitos não terem sequer sido aplicados pela decisão recorrida; por outro, quanto ao artigo 405.º do Código de Processo Penal, o não conhecimento foi determinado pela ausência de suscitação de uma questão de constitucionalidade normativa, tanto no requerimento de interposição do recurso como anteriormente, durante o processo.
5. O reclamante invoca, em primeiro lugar, que o cerne do presente recurso se prende com a «interpretação que as instâncias percorridas no antecedente processado fizeram de normas adjetivas penais que, inexpressas nos textos decisórios, se retiram do sentido formulado na decisão.»
Seguro é, no entanto, que apenas interpôs recurso de constitucionalidade da decisão proferida a fls. 38 pelo Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, a qual apreciou requerimento formulado com fundamento no artigo 405.º do Código de Processo Penal. Daqui se retira, por conseguinte, a conclusão irremediável de que o objeto do presente recurso apenas pode incluir preceitos ou normas que tenham sido aplicadas por aquela decisão – todas as outras questões, designadamente as que o reclamante vinha discutindo nas «instâncias percorridas», não podem ser consideradas. Como se lê no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, o recurso de constitucionalidade cabe de decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Torna-se, portanto, irrelevante, tudo o que o reclamante invoca a propósito de «nulidade de omissão de pronúncia», ausência de «menção expressa de norma legal» e «omissão absoluta de indicação das normas fundantes da decisão [a qual] impediria o abstrato cidadão inconformado de a sindicar superiormente em sede de recurso». Todas estas questões se consolidaram no momento em que, perante a inadmissão do recurso decidida pelo tribunal a quo, o reclamante optou por interpor recurso de constitucionalidade desta decisão – e não da decisão anterior (recorde-se que essa possibilidade existia face ao disposto no artigo 75.º, n.º 2, da LTC).
Irrelevante é também o facto de, perante o tribunal recorrido, terem sido colocadas outras questões a título cautelar na reclamação deduzida com fundamento no artigo 405.º do Código de Processo Penal. O que importa é apenas o que o mesmo tribunal decidiu, isto é, as normas que foram efetivamente convocadas e aplicadas. Ao Tribunal Constitucional não compete sindicar as decisões dos outros tribunais, designadamente quanto a alegadas omissões de pronúncia ou erros de julgamento – a sua competência deriva expressamente da Constituição e da lei e restringe-se, em matéria de fiscalização da constitucionalidade, à apreciação da conformidade de normas jurídicas com as regras e princípios fundamentais.
6. O reclamante sustenta ainda que, relativamente ao artigo 405.º do Código de Processo Penal, «o recurso apresentado traduz uma muito clara e evidente sindicância de um determinado entendimento daquela regra adjetiva, expressa de modo inusitado e imprevisto como: “Pressupõe (…) a reclamação e existência de despacho expresso em que não se admita recurso ou se retenha o mesmo (…)” e ainda que “no caso dos autos os despachos (…) não se pronunciaram sobre a admissibilidade ou não do recurso (…)”. E acrescenta que este entendimento «de que a decisão que rejeita uma parte de um recurso, depois de desagravar a outra, não é formalmente inadmissão nem retenção (…) é profundamente erradas», sendo «a formulação processual de um tal erro judiciário nesta sede constitucional em face do pouco usual e errado sentido dado, de todo inesperado e imprevisível», assim se justificando a suscitação apenas no momento da interposição do recurso.
Não assiste remota razão ao que o reclamante invoca. Desde logo, quanto à dispensa do ónus de invocação da inconstitucionalidade durante o processo, ainda que a mesma pudesse ter sucesso nesta sede, não seria a mesma suficiente para determinar o conhecimento do recurso, uma vez que sempre subsistiria o facto de não ter sido colocada perante este Tribunal qualquer questão de inconstitucionalidade normativa respeitante a certa interpretação do artigo 405.º do Código de Processo Penal. Por mais generosa que pudesse ser a interpretação do que o reclamante plasmou no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade não se alcança, em tal conteúdo, a indicação, em moldes mínimos, de um parâmetro normativo assacável ao artigo 405.º do Código de Processo Penal e que, em caso de decisão no sentido da inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional pudesse vir a enunciar, na parte decisória, de modo a tornar público, perante a comunidade, o entendimento desta instância de que tal critério padeceria de desconformidade com a Constituição.
A decisão ora reclamada deve, por isso, ser confirmada.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar o reclamante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 9 de janeiro de 2014. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.