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Processo n.º 1122/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., Limitada, recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, que julgou improcedente a impugnação judicial por si deduzida contra o indeferimento do pedido de revisão oficiosa do ato de liquidação da taxa de promoção devida ao Instituto da Vinha e do Vinho, referente ao mês de setembro de 2003, no montante de € 100.428,90.
Neste recurso a Recorrente subsidiariamente, para a hipótese de não serem atendidos os seus argumentos e se suscitarem dúvidas relativamente ao alcance da obrigação de notificação prévia e efeito suspensivo no caso da taxa em causa nos presentes autos, requereu, nos termos do artigo 267.º, do Tratado de Funcionamento da União Europeia, que a instância fosse suspensa e se procedesse ao reenvio do processo ao Tribunal de Justiça da União Europeia para que este tribunal se pronunciasse sobre determinadas questões que enunciou.
Por acórdão proferido em 5 de junho de 2013 o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, tendo decidido previamente, por se revelar desnecessário, não utilizar o mecanismo de reenvio previsto no artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia.
A impugnante após arguir a nulidade desta decisão, o que foi indeferido por novo acórdão proferido em 10 de julho de 2013, recorreu para o Tribunal Constitucional nos seguintes termos:
“Pelo presente, a recorrente A., LDA, vem, com fundamento no artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, interpor recurso para o Tribunal Constitucional do douto Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de fls. e seguintes, que julgou improcedente o recurso da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu no processo n.º 373/09.0BEVIS.
A norma cuja inconstitucionalidade se pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional encontra-se consagrada no parágrafo 3 do artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia ('TFUE') na interpretação que dela fez o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão recorrido.
Com efeito, tal interpretação viola, no entender da recorrente, os n.ºs 1 a 4 do artigo 8.º da Constituição da República, bem como o princípio do juiz legal/natural, consagrado nos artigos 216.º, n.º 1, e 217.º, n.º 3, da CRP, uma vez que implica a negação da competência exclusiva atribuída ao Tribunal de Justiça da União Europeia para julgar questões prejudiciais relativas à interpretação de normas do direito comunitário, quando as mesmas são suscitadas em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno.
O não reenvio prejudicial pela última instância de recurso de uma questão de interpretação de direito comunitário primário - em concreto, do artigo 88.º, n.º 3, do TCE (atual artigo 108.º, n.º 3, do TFUE) -, só se colocou, pela primeira vez, com a prolação do Acórdão recorrido e respetiva interpretação/aplicação que foi feita do referido artigo 267.º do TFUE.
Uma tal interpretação, insista-se, por contrariar frontalmente o disposto nos n.ºs 1 a 4 do artigo 8.º da CRP, bem como o princípio do juiz legal/natural, consagrado nos artigos 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, da CRP, era tudo menos expectável,
E daí que se deva tomar este segmento decisório do Supremo Tribunal Administrativo como uma verdadeira e própria decisão surpresa, motivo pelo qual apenas foi invocada tal inconstitucionalidade no requerimento de arguição de nulidade do Acórdão recorrido.
Sendo certo que a interpretação/aplicação do artigo 267.º do TFUE que o Supremo Tribunal Administrativo reiterou na apreciação da referida nulidade, conservou-se contrária ao disposto nos n.ºs 1 a 4 do artigo 8.º da CRP, bem como ao princípio do juiz legal/natural, consagrado nos artigos 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, da CRP.”
Notificada para esclarecer qual o conteúdo da interpretação do artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, sustentada na decisão recorrida, cuja constitucionalidade pretendia ver apreciada, a Recorrente apresentou novo requerimento esclarecendo o seguinte:
“A questão de inconstitucionalidade coloca-se nos presentes autos em virtude da interpretação que foi feita pelo Supremo Tribunal Administrativo no seu aresto, sobre a desnecessidade de pronúncia do Tribunal de Justiça da União Europeia quanto ao âmbito da obrigação de notificação prévia prevista no artigo 108.º, n.º 3, do Tratado de Funcionamento da União Europeia ('TFUE').
Relembre-se que, nos termos do disposto no artigo 267.º do TFUE, o reenvio prejudicial só é obrigatório para o Tribunal superior (ou seja, para o Tribunal cuja decisão não é suscetível de recurso judicial previsto no direito interno).
Logo, é perante o respetivo não cumprimento do dever de reenvio, através de uma interpretação/aplicação do disposto no artigo 267.º do TFUE manifestamente inconstitucional - por contrariar frontalmente o princípio do juiz legal/natural consagrado nos artigos 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, da Constituição e o disposto nos n.ºs 1 a 4 do artigo 8.º da Constituição -, que vem invocada pela Recorrente semelhante inconstitucionalidade.
Não se trata, pois, de este Alto Tribunal apreciar se o Tribunal a quo decidiu erradamente ao não proceder ao reenvio, face à realidade processual e ao direito da União Europeia. Trata-se, já, de apreciar a inconstitucionalidade da norma de que aquele Tribunal fez aplicação para assim decidir.
Note-se que o alcance da obrigação de notificação prévia previsto no atual artigo 108.º, n.º 3, do TFUE, e a não abrangência da medida parafiscal em causa nos autos por essa obrigação, vem a ser o parâmetro da decisão proferida pelo STA nos autos.
Não tendo esse Tribunal, no entanto, procedido à interpretação correta da referida obrigação (inclusivamente perante a decisão da Comissão de iniciar um procedimento de averiguações de auxílio estatal ilegal), nem permitindo que a instância autorizada em último grau a proceder à interpretação do direito da União Europeia o fizesse.
Desta forma, no caso em apreço, é manifesto que a denegação do reenvio prejudicial pela última instância (reenvio tendente a obter a correta interpretação do alcance da obrigação de notificação prévia prevista no n.º 3 do artigo 108.º do TFUE em face da medida parafiscal em causa nos autos), viola o princípio constitucional do juiz natural ou legal.
Na medida em que o juiz comunitário vem a ser o intérprete último do artigo 108.º do TFUE, pois só ele pode garantir a aplicação uniforme do direito da União Europeia, que é acolhido diretamente no nosso ordenamento por força do disposto nos n.ºs 1 a 4 do artigo 8.º da Constituição.
Esta vem a ser, portanto, a específica dimensão normativa que, extraída do artigo 267.º do TFUE na interpretação/aplicação que foi feita nos autos pelo STA, se encontra em desconformidade com a Constituição, no modesto entendimento da Recorrente.
Termos em que deverá o presente recurso ser admitido e, em consequência, ser apreciada pelo Tribunal Constitucional a questão da inconstitucionalidade do disposto no artigo 267.º do TFUE, na interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal a quo.”
Foi proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso, com a seguinte fundamentação:
“No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo, ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço, com carácter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
A Recorrente apesar de no requerimento de interposição de recurso dizer que “a norma cuja inconstitucionalidade se pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional encontra-se consagrada no parágrafo 3 do artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia ('TFUE') na interpretação que dela fez o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão recorrido”, quando notificada para enunciar essa interpretação, cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, limitou-se a repetir que “a questão de inconstitucionalidade coloca-se nos presentes autos em virtude da interpretação que foi feita pelo Supremo Tribunal Administrativo no seu aresto, sobre a desnecessidade de pronúncia do Tribunal de Justiça da União Europeia quanto ao âmbito da obrigação de notificação prévia prevista no artigo 108.º, n.º 3, do Tratado de Funcionamento da União Europeia ('TFUE')”, voltando a não enunciar o conteúdo da referida interpretação”.
Da leitura integral dos dois requerimentos apresentados resulta, aliás, que o objeto do recurso não é qualquer critério normativo que a decisão recorrida tenha utilizado para indeferir o pedido de reenvio, mas sim essa mesma decisão.
Assim, por não falta de conteúdo normativo não pode ser conhecido o presente recurso, devendo ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.”
A Recorrente reclamou desta decisão, com os seguintes argumentos:
Na decisão sumária ora notificada, este Alto Tribunal decidiu não tomar conhecimento do objeto do recurso, porquanto, em suma, o recurso interposto não revelava um cariz normativo, não sendo, por isso, possível conhecer do objeto do mesmo.
Como não é esquecido, o objeto de fiscalização de inconstitucionalidade no nosso ordenamento jurídico são as normas e apenas as normas, não já as decisões judiciais.
Com efeito, este Alto Tribunal é um órgão de controlo da constitucionalidade de normas.
Em consequência, no recurso de constitucionalidade é relevante, desde logo, a invocação da inconstitucionalidade de normas numa determinada interpretação, precisamente a interpretação que lhes tenha sido dada nas decisões recorridas.
Sucede que, no modesto entendimento da Recorrente, o Acórdão recorrido plasmou uma interpretação do disposto no artigo 267.º do TFUE confessadamente inconstitucional, por contrariar frontalmente o princípio do juiz legal/natural consagrado nos artigos 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, da Constituição e o disposto nos nºs 1 a 4 do artigo 8.º da Constituição.
Na verdade, o STA apreciou nos autos a questão de inconstitucionalidade normativa invocada (questão relativa a considerar se a denegação do reenvio prejudicial pela última instância viola, em especial, o princípio constitucional do juiz natural).
Reexaminando essa questão e fundamentado a sua interpretação do disposto no artigo 267.º do TFUE que lhe permitia negar o direito ao reenvio prejudicial, o que fez no Acórdão proferido em 10 de julho de 2013 nos presentes autos.
O Tribunal recorrido foi, pois, confrontado com uma questão de inconstitucionalidade de normas (em concreto, do artigo 267.º do TFUE), na interpretação que da mesma norma havia feito.
Sendo que, no entendimento da Recorrente, a interpretação efetuada do artigo 267.º do TFUE no sentido de autorizar o Tribunal recorrido, apesar de ser a última instância de recurso, a denegar o reenvio prejudicial (reenvio tendente a obter a correta interpretação do alcance da obrigação de notificação prévia prevista no n.º 3 do artigo 108.º do TFUE em face da medida parafiscal em causa nos autos), viola o princípio constitucional do juiz natural ou legal,
Na medida em que o juiz comunitário vem a ser o intérprete último do artigo 108.º do TFUE, pois só ele pode garantir a aplicação uniforme do direito da União Europeia, que é acolhido diretamente no nosso ordenamento por força do disposto nos n.ºs 1 a 4 do artigo 8.º da Constituição.
Razão pela qual, no modesto entendimento da Recorrente, a questão de inconstitucionalidade da norma de que o Tribunal a quo fez aplicação nos autos (artigo 267.º do TFUE), decorrente da violação do princípio constitucional do juiz legal ou natural, entra nos poderes de cognição deste Alto Tribunal.
Termos em que a presente reclamação deverá ser deferida e, em consequência, ser apreciada pelo Tribunal Constitucional a questão da inconstitucionalidade do disposto no artigo 267.º do TFUE, na interpretação que lhe foi dada pelo Supremo Tribunal Administrativo.
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Fundamentação
Na reclamação apresentada, a Recorrente revela o acerto da decisão reclamada, uma vez que evidencia que o objeto do seu recurso não é qualquer critério normativo utilizado no acórdão recorrido como seu fundamento, mas sim a própria decisão do Supremo Tribunal Administrativo de não determinar o reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º do TFUE, pelo que deve ser indeferida a reclamação apresentada.
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Decisão
Pelo exposto indefere-se a reclamação apresentada por A., Limitada.
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Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 22 de janeiro de 2014 – João Cura Mariano – Ana Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.