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Processo n.º 1385/13
Plenário
Relatora: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. O Representante da República para a Região Autónoma dos Açores, por requerimento entrado no Tribunal Constitucional em 30 de dezembro de 2013, vem, ao abrigo do n.º 2 do artigo 278.º da Constituição da República Portuguesa, bem como do artigo 57.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC), submeter ao Tribunal Constitucional, em processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, a apreciação da conformidade, com a Lei Fundamental, das disposições normativas conjugadas dos n.os 1 e 2 do artigo 43.º do Decreto n.º 24/2013, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, que aprova o Orçamento da Região Autónoma dos Açores para o Ano de 2014 e que foi recebido, no dia 20 de dezembro de 2013, para efeito de assinatura como decreto legislativo regional, nos termos dos n. os 1 e 2 do artigo 233.º da Constituição.
As normas cuja apreciação de constitucionalidade vem solicitada são do seguinte teor:
“Artigo 43.º
Quinta alteração ao Decreto Legislativo Regional nº 8/2002/A, de 10 de abril, alterado pelos Decretos Legislativos Regionais nºs 22/2007/A, de 23 de outubro, 6/2010/A, 23 de fevereiro, 3/2012/A, de 13 de janeiro e 3/2013/A, de 23 de maio, que estabelece o regime jurídico da atribuição do acréscimo regional à retribuição mínima mensal garantida, do complemento regional de pensão e da remuneração complementar regional
1- Os artigos 9.º, 10.º, 11.º e 13.º do Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, de 10 de abril (…) passam a ter a seguinte redação:
“Artigo 9.º
(...)
A remuneração complementar regional é abonada nas situações em que a remuneração é paga de uma só vez, sendo-lhe aplicável o regime da remuneração base quanto a faltas e processo de pagamento, sobre ela incidindo os descontos obrigatórios previstos na Lei.
Artigo 10.º
(…)
1 - Beneficiam da remuneração complementar os trabalhadores que exercem funções públicas na administração pública regional e local da Região Autónoma dos Açores, nos termos do artigo seguinte.
2 - A atribuição da remuneração complementar aos trabalhadores do setor público empresarial regional e respetiva tabela faz-se nos termos de resolução do Governo Regional.
3 - A decisão de atribuição da remuneração complementar aos trabalhadores das autarquias e do setor empresarial municipal compete aos respetivos órgãos decisórios, constando a respetiva tabela da resolução a que se refere o número anterior.
Artigo 11.º
(…)
1 - A remuneração complementar regional é atribuída aos trabalhadores que aufiram remuneração base até € 3 050,00 inclusive, conforme tabela anexa ao presente diploma, do qual faz parte integrante.
2 - Para o cálculo da remuneração complementar é tido como valor de referência o montante de € 100.
3 - Ao valor da remuneração complementar são deduzidos os suplementos remuneratórios derivados de trabalho suplementar, extraordinário, ou em dias de descanso e feriados, ou outros de idêntica natureza.
4 - Sempre que da atribuição da remuneração complementar resulte uma inversão relativa da remuneração dos trabalhadores, a remuneração complementar será reduzida na diferença desse montante.
Artigo 13.º
(…)
1 - (...)
2 - A atualização do valor de referência da remuneração complementar será feita através de resolução do Conselho do Governo Regional.
3 – (Anterior n.º 2)”
2- Ao Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, de 10 de abril, é aditado o seguinte Anexo:
1.1. O requerente fundamenta o seu pedido, em síntese, na seguinte ordem de considerações:
O n.º 1 do referido artigo 43.º altera os artigos 9.º, 10.º, 11.º e 13.º do Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, de 10 de abril, diploma este que condensa o regime jurídico relativo à atribuição, na Região Autónoma dos Açores, do acréscimo regional ao salário mínimo, do complemento regional de pensão e da remuneração complementar regional.
Por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo 43.º adita ao referido Decreto Legislativo Regional uma tabela que fixa escalões remuneratórios, situados entre os valores de 500,49 e 3050,00 €, fazendo-lhes corresponder coeficientes de atribuição da remuneração complementar regional.
Por força das alterações introduzidas, os trabalhadores, que exercem funções públicas na administração pública regional (n.º 1 do artigo 10.º alterado) e que aufiram remuneração base até 3050,00 € inclusive (n.º 1 do artigo 11.º), beneficiam de uma remuneração complementar, que é prestada – não em 14 mensalidades, como no regime ainda vigente, mas tantas vezes quantas as situações em que a remuneração é paga de uma só vez (artigo 9.º), excluindo, por isso, as situações em que a remuneração é paga em regime de duodécimos.
O valor da remuneração complementar a auferir por cada trabalhador é calculado pela simples multiplicação do valor de referência – o montante de 100 € (n.º 2 do artigo 11.º) – pelo coeficiente de atribuição correspondente a cada escalão de remuneração base, constantes um e outro, respetivamente, das colunas direita e esquerda da tabela aprovada pelo n.º 2 do referido artigo 43.º.
Nestes termos, e a título exemplificativo, a uma remuneração base de 500 € corresponde uma remuneração complementar de 62 €; a uma remuneração base de 1000 € corresponde uma remuneração complementar de 94,60 €; a uma remuneração base de 2000 € cabe uma remuneração complementar de 239,20 € e a uma remuneração base de 3000 € corresponde uma remuneração complementar de 13,50 €.
Beneficiam, igualmente, de uma remuneração complementar os trabalhadores do setor público empresarial regional, bem como das autarquias e do setor empresarial municipal, em termos a definir por Resolução do Governo Regional (n.º 2 do artigo 10.º) e por decisão formal dos órgãos próprios do poder local (n.º 3 do artigo 10.º), respetivamente.
As restantes normas do Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, de 10 de abril, alteradas pelo aludido artigo 43.º – nomeadamente os n.os 3 e 4 do artigo 11.º e o n.º 2 do artigo 13.º – são instrumentais em relação às já analisadas, que pretendem fixar um novo regime da remuneração complementar regional, pelo que o juízo resultante da sindicância de constitucionalidade destas últimas decidirá o destino das primeiras.
A disciplina jurídica introduzida pelo aludido artigo 43.º transforma a finalidade e o conteúdo do regime vigente relativo à remuneração complementar regional – que, assente numa ideia de compensação de sobrecustos da insularidade, tributária de um contexto económico e financeiro diferente do atual, constituía uma forma de apoio social, sendo aplicável degressivamente apenas às remunerações mais baixas dos trabalhadores das administrações públicas regional e local açorianas – operando a sua evolução para um instituto, cujo objetivo principal é anular ou neutralizar significativamente os efeitos das reduções salariais, previstas no Orçamento do Estado para 2014, para os trabalhadores do setor público com remunerações totais ilíquidas superiores a 675 €.
Nessa medida, a alteração, determinada pelo referido artigo 43.º, visa subtrair uma categoria delimitada de servidores públicos aos sacrifícios impostos, de forma abrangente, aos trabalhadores que recebem a sua remuneração de verbas públicas, contrariando o esforço de reequilíbrio das contas públicas, que os órgãos de soberania têm vindo a efetuar, desde o Orçamento do Estado para 2011, e acarretando o aumento das despesas com pessoal.
As respetivas consequências financeiras são expressivas: segundo o mapa IV anexo ao Orçamento da Região Autónoma dos Açores para 2014, as despesas com pessoal da Região sobem cerca de 13,62 milhões de euros relativamente a 2013; e em conformidade com o mapa VIII, relativo às despesas dos Fundos e Serviços Autónomos, as despesas com pessoal aumentam em 2014 cerca de 9,05 milhões de euros em relação ao orçamentado na mesma rubrica no ano de 2013.
Acresce que as referidas alterações representam uma violação do Memorando de Entendimento entre o Governo da República e o Governo da Região Autónoma dos Açores, que se comprometeu, nomeadamente, a aplicar, na referida região, todas as medidas previstas na Lei do Orçamento do Estado, respeitantes a remunerações dos trabalhadores em funções públicas e dos trabalhadores do setor público empresarial regional, bem como a não aplicar medidas compensatórias que visem aumentar os níveis de despesa projetada em resultado daquelas medidas.
1.2 Depois da análise das alterações introduzidas pelas normas em apreciação, o requerente desenvolve do seguinte modo os argumentos relativos à violação da reserva de competência legislativa da República:
As alterações introduzidas pelo aludido artigo 43.º invadem a reserva de competência legislativa da República, ínsita no princípio da unidade do Estado (artigos 6.º e 225.º, n. os 2 e 3, ambos da Constituição) e no princípio da solidariedade nacional (artigo 225.º, n.º 2, da Constituição), assim como violam ainda o princípio da igualdade (artigos 13.º e 229.º, n.º 1, da Constituição).
Com efeito, o conteúdo normativo dos n. os 1 e 2 do artigo 43.º infringe a redução remuneratória imposta pelo artigo 33.º, nomeadamente o n.º 15, do Decreto n.º 191/XII da Assembleia da República, que aprova o Orçamento do Estado para 2014, bem como a proibição de valorizações remuneratórias, resultante do artigo 39.º, nomeadamente o n.º 23, do mesmo diploma.
Por um lado, ao estabelecer um regime legal que visa anular – imediata ou mediatamente – uma parte significativa dos efeitos da redução remuneratória, decorrentes do artigo 33.º do Orçamento do Estado para 2014, no universo dos trabalhadores da administração pública regional, do setor empresarial regional e da administração local insular – apesar de todos estes trabalhadores se encontrarem claramente abrangidos pelo elenco do n.º 9 daquele artigo –, a Assembleia Legislativa Regional dos Açores contraria uma opção legislativa soberana tomada pela Assembleia da República e cuja índole imperativa está expressamente plasmada no já mencionado n.º 15 daquele mesmo preceito.
O objetivo de neutralizar, consideravelmente, os efeitos da redução remuneratória é revelado pela curva progressiva do “coeficiente de atribuição”, que sobe notoriamente até ao valor de 2000 € de remuneração base – em conformidade com a progressividade dos cortes salariais entre 2,5% e 12% decorrentes do n.º 1 do referido artigo 33.º para as remunerações (totais ilíquidas) superiores a 675 € e inferiores a 2000 € – apenas descendo paulatinamente a partir desse montante até às remunerações base que ascendem a 3050 €.
Não releva que a Assembleia Legislativa Regional não tenha afastado formalmente a vigência do artigo 33.º da Lei do Orçamento do Estado, para o âmbito regional, porquanto, em termos substantivos, os efeitos de tal normativo não se produzirão insularmente, no que respeita aos trabalhadores destinatários do Decreto n.º 24/2013, nos termos definidos uniformemente pelo legislador nacional.
Por outro lado, a abrangência da atribuição dos acréscimos em apreço, abarcando todas as remunerações do universo público regional e autárquico insular desde os 500,49 até aos 3050,00 €, torna óbvia a violação do princípio da proibição das valorizações remuneratórias, que apenas admite derrogações pontuais e devidamente justificadas por razões materiais, requisitos que não se verificam na presente situação. De facto, não existe, no novo regime agora definido, qualquer distinção de carreiras, categorias, postos, conteúdos funcionais ou outros critérios justificantes para a atribuição dos acréscimos em apreço.
O desrespeito das disposições analisadas, fixadas imperativamente pela Assembleia da República, implica a violação da reserva de competência soberana de tal órgão, implícita nos princípios da unidade do Estado e da solidariedade entre todos os portugueses.
Acentua o requerente que o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 613/2011, pronunciando-se sobre normas do Orçamento do Estado para 2011 que, para o problema agora em análise, tinham um conteúdo similar ao do artigo 33.º do Orçamento do Estado para 2014, sustentou estarmos perante uma «medida legislativa que almeja dar uma resposta institucionalmente abrangente a um problema de emergência orçamental e financeira de amplitude nacional e que no entender do legislador parlamentar “enquanto órgão democrático representativo do Estado unitário” só é suscetível de ser combatido com base em medidas de âmbito nacional. Posição esta perfeitamente compreensível, porquanto o comportamento dos mercados financeiros, no que respeita à concessão de crédito e à fixação das taxas de juros, depende da confiança que estes depositam na capacidade dos Estados e das entidades públicas com ele financeiramente relacionadas pagarem pontualmente as suas dívidas no momento do seu vencimento. Ora tal confiança assenta, desde logo, na credibilidade financeira que os Estados demonstram não apenas indiretamente por via da competitividade das suas economias, mas também, diretamente, por via da redução do seu défice público».
Retornando à doutrina expendida no Acórdão n.º 567/2004, o Tribunal Constitucional afirmou, depois, que «as medidas de redução remuneratória se contam no quadro de um conjunto mais vasto de medidas de redução da despesa e do défice públicos que visam fazer face à existência de “sérios riscos com projeção na economia e nas finanças do todo nacional, como ser[á] o caso de aumento das taxas de juro do mercado ou de elevada repercussão nos compromissos internacionais assumidos pelo Estado no sentido de diminuir os défices orçamentais e o peso da dívida pública face ao PIB”».
O Tribunal salienta ainda que «a sustentabilidade das contas públicas, com a correspondente redução do défice e o controlo da dívida, é algo que, no entender justificável do legislador parlamentar, só poderá ser eficazmente garantido se for feito, não apenas ao nível do Estado, mas também, articuladamente, ao nível das entidades públicas que estão, de uma forma ou de outra, financeiramente relacionadas com esse mesmo Estado. É algo que só pode ser eficazmente levado a cabo num quadro de 'unidade nacional' e de 'solidariedade entre todos os portugueses' e através de medidas universalmente assumidas enquanto atos de 'soberania do Estado' legitimados pela sua própria subsistência financeira bem como da de toda a economia nacional (cfr. artigo 225.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição). Deste modo, será de considerar constitucionalmente legítimo que o poder legislativo soberano do Estado assuma que as medidas exigidas por uma urgente consolidação das contas públicas não devam ser tomadas isolada e descontextualizadamente apenas em partes do território nacional ou valendo apenas para parte dos cidadãos.”
Face às eventuais objeções que esta jurisprudência poderia desencadear – em especial devido ao desaparecimento, com a revisão de 2004, da categoria das leis gerais da República como parâmetro de validade da legislação regional – o Tribunal afirma que «não é sustentável “à luz dos fundamentos, finalidades e limites da autonomia regional enunciados nomeadamente no artigo 225.º da atual Constituição” a ideia de que nunca, e em circunstância alguma, possa haver medidas legislativas que muito embora não estejam textualmente no domínio da reserva de competência da Assembleia da República sejam, por motivos de relevante interesse nacional, tomadas imperativamente para todo o território nacional. É nesta linha que o Tribunal tem admitido a existência de matérias que por sua natureza devem ficar reservadas aos órgãos de soberania, isto é, que constituem uma reserva de competência legislativa do Estado ou, se se preferir, da República».
De seguida, o Tribunal lembra que:
«Como ainda atualmente afirmam Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, Coimbra 2010, p. 661: 'Matérias reservadas à competência própria dos órgãos de soberania são, afinal, a reserva de competência legislativa do Estado, compreensivelmente furtada à intervenção regional. Integram-na desde logo, explicitamente, as que constituem a competência própria da AR, recortada nos arts. 161.º,164.º e 165.º […] . Mas esta reserva da República não pode limitar-se a estas matérias devendo abranger por inerência outras matérias que não podem, pela sua natureza eminentemente nacional, ser reguladas senão por órgãos legislativos do Estado'.
E «mesmo quem tenha entendimento menos consonante, com o citado, não deixa, todavia, de reconhecer a possibilidade de 'limites implícitos à competência legislativa regional' e a possibilidade de uma 'violação autónoma dos princípios da soberania e da unidade política do Estado' (Rui Medeiros, Anotação ao artigo 228.º, in Constituição Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo III, Coimbra, 2007, p. 359, na linha de Maria Lúcia Amaral, 'Questões Regionais', in Estudos de Direito Regional, Lisboa 1997, p. 290-291)».
Finalizando, o Tribunal Constitucional dá por «assente que não se pode excluir, dadas as circunstâncias financeiras e macroeconómicas anteriormente descritas, que a Assembleia da República, enquanto órgão de soberania democraticamente representativo do Estado no seu todo, tome imperativamente medidas, de âmbito nacional, com vista à contenção global da despesa orçamental dos diversos subsetores. Poderá certamente fazê-lo por força da sua competência legislativa genérica (artigo 161.º, alínea c), da Constituição). E poderá ainda fazer prevalecer imperativamente as suas medidas em todo o território nacional, em particular quando se possa considerar que tais medidas consubstanciam parte relevante de um desígnio nacional global, nomeadamente quando se possa dizer que as medidas tomadas pelo legislador parlamentar visam, em conjunto articulado com outras, provocar efeitos de escala nacional e de repercussão internacional prevenindo assim os prejuízos (ou o aumento dos prejuízos) associados ao défice e à dívida pública excessivos. Nesse sentido, o legislador poderá estabelecer medidas orçamentais a vigorar imperativa e soberanamente para todo o território nacional, em vista da sua mais lograda eficácia, segundo princípios de 'solidariedade' e de 'unidade' (artigo 225.º, n.ºs 2 e 3, e artigo 6.º, ambos da Constituição)».
O entendimento jurisprudencial exposto é o único capaz de impedir que o objetivo de redução da despesa pública, levado a cabo pelos órgãos de soberania, seja esvaziado pelo exercício da competência legislativa das Regiões Autónomas.
De facto, por um lado, impõe-se garantir que medidas legislativas adotadas pela Assembleia da República, ao abrigo da sua competência legislativa genérica (artigo 161.º da Constituição), e, por isso, aplicáveis a todo o território nacional, não sejam comprometidas por regimes especiais emanados pelos legisladores regionais, em nome de interesses políticos conjunturais ou parcelares. Por outro lado, impõe-se salvaguardar o respeito por uma lei geral, restritiva do direito à retribuição do trabalho (previsto no artigo 59.º, n.º 1, alínea a) da Constituição), e, nessa medida, abarcada pela reserva relativa da Assembleia da República, por respeitar a direitos fundamentais de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias (artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição).
Em síntese, não se interferindo positivamente com o exercício de poderes legislativos regionais, impondo-se-lhes qualquer obrigação de facere, confrontam-se esses poderes com uma obrigação negativa de respeito por opções legislativas fundamentais do legislador nacional, que incorporam a defesa de valores constitucionais tão importantes como a independência do País e a recuperação dos poderes normais de governação por parte dos órgãos nacionais democraticamente eleitos, em face dos credores internacionais.
Acentua-se que a unidade do Estado é constitucionalmente configurada, no artigo 6.º da Constituição, como um princípio jurídico fundamental, não se esgotando nas regras que fixam reservas expressas de competência legislativa da Assembleia da República e do Governo.
Acresce que a jurisprudência analisada, constante do Acórdão n.º 613/2011, é a única que faz jus à ideia de que quanto mais pesados são os sacrifícios exigidos aos cidadãos, no combate à crise financeira, maiores têm que ser também as exigências de equidade na repartição desses sacrifícios. Nesse contexto, todas as diferenciações de tratamento têm de ser rigorosamente escrutinadas, de acordo com a procura de um fundamento material justificante. Haverá que considerar, no caso vertente, como adverte o Tribunal Constitucional, no seu recente Acórdão n.º 793/2013, “a exigência de unidade axiológico-normativa do regime jurídico aplicável a todos os trabalhadores em funções públicas, independentemente da concreta Administração a que os mesmos se encontrem vinculados (cf. o artigo 269º da Constituição). Tal unidade é, de resto, simétrica da comunidade de fins e de princípios constitucionalmente previstos para a Administração Pública (cf. o artigo 266º da Constituição)”.
A reserva de competência soberana da Assembleia da República é indissociável do princípio da solidariedade nacional, que se manifesta de forma recíproca nas relações entre o Estado e as Regiões Autónomas, de modo a reforçar os “laços de solidariedade entre todos os portugueses” (n.º 2 do artigo 225.º da Constituição).
Este princípio de solidariedade nacional tem um conteúdo mínimo constitucionalmente determinável, devendo ser convocado como princípio valorativo de aferição da justiça das soluções político-legislativas e político-financeiras tomadas pelo Estado e pelas Regiões Autónomas. Assim, em situações extremas, tal princípio pode ser utilizado para decidir sobre a invalidade de soluções legislativas flagrantemente contrárias aos critérios de justiça e de equidade que devem nortear as relações entre os cidadãos residentes em todo o território nacional ou, numa perspetiva institucional, entre as Autonomias Regionais e a República. Neste princípio está inclusive contida uma importante dimensão simbólica, assente na ideia de que todos os portugueses se encontram empenhados na construção de um destino comum e que, portanto, devem partilhar equitativamente tanto os benefícios quanto as dificuldades desse percurso.
Como o Tribunal Constitucional já referiu, no seu Acórdão n.º 11/2007, a respeito do regime da Lei das Finanças Regionais, «o princípio, dito da solidariedade nacional, não pode ser perspetivado por forma a dele se extrair uma só direccionalidade, qual seja a da solidariedade representar unicamente a imposição de obrigações do Estado para com as Regiões Autónomas, pois que, sendo uma das tarefas fundamentais do Estado a de promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em conta, inter alia, o caráter ultraperiférico dos Açores e da Madeira [cfr. alínea g) do artigo 9º da Constituição], visando a autonomia das Regiões, a par da participação democrática dos cidadãos, do desenvolvimento económico-social e da promoção e defesa dos interesses regionais, o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade de todos os portugueses (n.º 2 do artigo 225º), torna-se inequívoco que, neste ponto, não poderão deixar de ser ponderados também os interesses das populações do território nacional no seu todo, consequentemente aqui se incluindo as próprias populações do território “historicamente definido no continente europeu”».
Nestes termos, não se mostra decisiva a circunstância de as alterações introduzidas pelo artigo 43.º do Decreto-Lei n.º 24/2013 não implicarem um acréscimo de transferências financeiras do Orçamento do Estado para o da Região Autónoma dos Açores, no ano de 2014, nem o facto de a eventual pronúncia pela sua inconstitucionalidade, com a consequente eliminação de tal norma, não alterar a disponibilidade das verbas respetivas pelos órgãos de governo regionais, não beneficiando os contribuintes do Continente. Decisivo é, sim, que o esforço de solidariedade, no contexto de crise económica e financeira, seja partilhado por todos, nomeadamente os que recebem as suas remunerações de verbas públicas, em todo o território nacional.
Pelo exposto, o regime privilegiador introduzido pelo referido artigo 43.º fere o conteúdo mínimo do princípio de solidariedade nacional, colocando em perigo um dos objetivos da autonomia político-administrativa: o já referido reforço dos laços que unem todos os portugueses.
A última revisão do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (Lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro, doravante EPARAA) procurou blindar o regime constante do Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, conferindo expressamente à respetiva Assembleia Legislativa competência para definir regimes legais em matéria de complemento regional de pensão; complemento à retribuição mínima mensal garantida e remuneração complementar aos funcionários, agentes e demais trabalhadores da administração regional autónoma.
Ora, cumpre acentuar que, no que se refere à remuneração complementar regional, a jurisprudência acima transcrita não coloca diretamente em causa a possibilidade de a Assembleia Legislativa manter em vigor o regime jurídico do Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A. Aliás, uma pronúncia do Tribunal Constitucional pela inconstitucionalidade do artigo 43.º do Decreto n.º 24/2013 da Assembleia Legislativa Regional em nada afetará a vigência do regime que atualmente disciplina tal figura. Nem tão-pouco se pode legitimamente questionar a capacidade legislativa da Assembleia parlamentar açoriana para rever ou atualizar o regime substantivo da remuneração complementar regional, em conformidade com o espírito que presidiu à sua aprovação e à sua inclusão, aquando da revisão de 2009 do Estatuto Político-Administrativo, entre as matérias da competência legislativa regional.
Porém, encontra-se vedado à Assembleia Legislativa Regional subverter o instituto de “remuneração complementar regional”, ao abrigo da alínea f) do artigo 67.º do Estatuto referido, esvaziando, dessa forma, uma medida legislativa da Assembleia da República, cuja eficácia depende da extensão e uniformidade da sua aplicação a todo o território nacional.
A este propósito, refere o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 613/2011, que não é tanto «a matéria em si mesma que “não pode, pela sua natureza eminentemente nacional, ser regulada senão por órgãos legislativos do Estado”, mas são antes circunstâncias macroeconómicas de âmbito nacional e internacional que determinam, sob pena de total ineficácia, que as medidas concretamente tomadas pelo Estado possam adquirir imperatividade a nível de todo o território nacional, tendo, até, em vista, como se afirmou já, “o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses” e, bem assim, “a integridade da soberania do Estado” (cfr. artigo 225º, n.os 2 e 3 da Constituição)».
1.3 Em especial, acerca da violação do princípio da igualdade, sustenta o requerente o seguinte:
Como já foi aflorado, a alteração introduzida pelo artigo 43.º do Decreto n.º 24/2012 viola o princípio da igualdade, por acarretar o tratamento mais favorável de determinadas categorias de trabalhadores em funções públicas – comparativamente com o regime geral que resulta do Orçamento do Estado – sem fundamento material suficiente para essa diferenciação.
Na verdade, o princípio da autonomia político-administrativa das Regiões Autónomas não pode ser considerado suporte bastante para tal diferenciação, não legitimando, por isso, o afastamento da sujeição das medidas legislativas adotadas pelos órgãos do governo próprio ao princípio geral da igualdade.
Saliente-se que se, na generalidade dos casos, os regimes emanados dos órgãos legislativos das Regiões Autónomas não suscitam questões relevantes do ponto de vista da sua conformidade com o princípio da igualdade, não é porque estes não possam ser confrontados, nessa perspetiva, com a legislação emanada dos órgãos de soberania, mas sim porque a própria realidade autonómica assenta sobre pressupostos de facto diferentes dos existentes no Continente, ou seja, nas peculiares “características geográficas, económicas, sociais e culturais” dos arquipélagos (artigo 225.º, n.º 1, da Lei Fundamental).
Igualmente o princípio da autonomia orçamental, consagrado na alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição, concedendo aos órgãos de governo das Regiões Autónomas uma ampla margem de discricionariedade, não pode legitimar que a validade jurídica das opções de afetação de recursos não seja controlável, nomeadamente na perspetiva do respeito pelo princípio constitucional da igualdade.
Na verdade, tal princípio dota as Regiões Autónomas do poder de disporem de um conjunto vasto de receitas, afetando-as às suas despesas, de acordo com os seus próprios juízos de oportunidade, cujo mérito político é insindicável pelos órgãos de soberania. Porém, este mesmo princípio não pode ser invocado para eximir, do controlo da constitucionalidade, as opções político-legislativas com direto impacto financeiro, quanto à validade jurídica dos critérios que lhes estão subjacentes.
Pelo exposto, impõe-se avaliar a constitucionalidade das soluções normativas decorrentes do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 43.º do Decreto n.º 24/2013, numa dupla perspetiva:
a) Por um lado, fazendo o confronto entre os “trabalhadores que exercem funções na administração pública regional e local” açoriana (n.º 1 do artigo 10.º do Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A) e todos os demais trabalhadores em funções públicas que, sendo também destinatários dos artigos 33.º e 39.º da Lei do Orçamento do Estado para 2014 (por força do elenco abrangente do n.º 9 daquele artigo), no Continente e na Região Autónoma da Madeira, auferindo o mesmo nível de rendimentos daqueles primeiros – entre 675 e 3050 € – sofrerão, na íntegra e sem qualquer compensação ou suplemento, os cortes remuneratórios previstos pelo referido artigo 33.º;
b) Por outro lado, efetuando o confronto entre os “trabalhadores que exercem funções na administração pública regional e local” açoriana (n.º 1 do artigo 10.º do Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A) e todos os destinatários dos artigos 33.º e 39.º da Lei do Orçamento do Estado para 2014 e que, no próprio espaço territorial da Região Autónoma dos Açores, apesar de auferirem exatamente o mesmo nível de rendimentos daqueles, não beneficiarão do tratamento mais favorável decorrente do dito artigo 43.º do Decreto n.º 24/2013, simplesmente por integrarem a administração estadual (desconcentrada).
Quanto à primeira perspetiva, a violação do princípio da igualdade resulta da ausência de um critério material que justifique o tratamento diferenciado de trabalhadores que, exercendo funções públicas e tendo a mesma remuneração base, pertencem a aparelhos administrativos diferentes: de um lado, a administração regional autónoma (direta e indireta) e em certa medida a administração local açoriana; do outro, a administração estadual, a administração local continental e a administração pública da Região Autónoma da Madeira.
O modelo de cálculo da remuneração complementar regional e a sua atribuição aos trabalhadores em funções públicas, em função do aparelho administrativo a que pertencem, revelam que a medida legislativa posta em crise não se funda num critério material objetivo, não apresentando qualquer conexão com uma ideia de “correção de desigualdades derivadas da insularidade”, nos termos do n.º 1 do artigo 229.º da Constituição.
Na verdade, ainda que possam existir, no contexto regional açoriano, desigualdades factuais relativamente ao território nacional, – hipoteticamente espelhadas nos indicadores estatísticos do rendimento líquido disponível das pessoas ou nos índices de preços ao consumidor – tais assimetrias deverão ser corrigidas através de medidas de natureza fiscal, que, por definição, abrangem todos os residentes. Tal é o caso da redução de 20% de todas as “taxas nacionais do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares” e da redução, também de 20%, das diferentes taxas nacionais do IVA, ambas previstas pelo artigo 31.º do Decreto n.º 24/2013 da Assembleia Legislativa Regional (na nova redação que confere aos artigos 4.º e 7.º do Decreto Legislativo Regional n.º 2/99/A, de 20 de janeiro).
Relativamente aos grupos de pessoas agora em confronto, não existe nenhuma desigualdade de facto que possa ser corrigida através da atribuição de uma remuneração complementar distribuída em conformidade com uma tabela como a aprovada pelo n.º 2 do artigo 43.º. Desde logo, a ideia de que as desigualdades decorrentes da insularidade poderiam ser mais intensas sensivelmente a meio da tabela, nos escalões remuneratórios entre os 1500 e os 2200 €, não tem qualquer verosimilhança.
Assim sendo, tal medida apenas pode ser explicada como forma de diminuir o impacto das reduções remuneratórias, previstas no artigo 33.º do Orçamento do Estado para 2014, sobre os trabalhadores da administração autónoma e da administração autárquica açorianas.
No tocante à segunda perspetiva, de cariz intrarregional, a violação do princípio da igualdade resulta da circunstância de as alterações introduzidas pelo artigo 43.º do Decreto n.º 24/2013 não abrangerem todos os trabalhadores públicos do universo regional açoriano afetados pelos cortes remuneratórios previstos no Orçamento do Estado para 2014. De facto, o complemento remuneratório, decorrente das referidas alterações, incide diferentemente sobre os trabalhadores públicos, já que:
se aplica imediatamente aos trabalhadores da administração regional autónoma;
mediatamente aos trabalhadores do setor público empresarial regional;
e apenas condicionalmente aos trabalhadores da administração local insular;
não se aplica aos trabalhadores da administração pública estadual, que desempenham a sua função no território açoriano.
É certo que a Assembleia Legislativa dos Açores apenas pode legislar sobre a administração autonómica propriamente dita, sob pena de extravasar o parâmetro da sua competência legislativa que é definido pelo conceito institucional de “âmbito regional”, resultante da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição (Acórdãos n. os 258/2007 e 304/2011). Por isso, aquela Assembleia não pode dispor legislativamente para o Estado e tem de respeitar o estatuto e a autonomia financeiras das autarquias locais (artigo 165.º, n.º 1, alínea q), da Constituição). Porém, em nenhum caso, deverá produzir um regime jurídico desconforme com o princípio da igualdade, de modo a forçar outros órgãos legislativos a corrigir as desigualdades de tratamento advenientes de tal regime.
A circunstância de a Assembleia Legislativa açoriana não ter a possibilidade de emanar uma solução legislativa compatível com o princípio da igualdade, no próprio plano regional, apenas vem demonstrar que a competência para legislar, na matéria em questão, tem necessariamente de ser reservada aos órgãos de soberania e, em particular, à Assembleia da República.
Com base em tais fundamentos, solicita o requerente a fiscalização preventiva e consequente pronúncia pela inconstitucionalidade das normas resultantes da conjugação do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 43.º do Decreto n.º 24/2013 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores – que aprova o Orçamento da Região Autónoma dos Açores para o Ano de 2014 – na medida em que aquele preceito dá nova redação aos artigos 9.º, 10.º, 11.º e 13.º e aprova a tabela anexa ao Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A.
2. O Presidente do Tribunal, por despacho datado de 30 de dezembro de 2013, admitiu o pedido formulado e ordenou a notificação do órgão autor das normas impugnadas. Na mesma data, foi o processo distribuído e, subsequentemente, concluso à relatora para elaboração de memorando (artigo 59.º da LTC).
3. A Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, na sequência da notificação ordenada, nos termos do artigo 54.º da LTC, veio pronunciar-se, contrapondo, aos argumentos utilizados pelo requerente, os seguintes:
3.1. Relativamente à pretensa alteração da finalidade e do conteúdo da remuneração complementar regional, refere que, ao contrário do que é alegado no pedido, as alterações introduzidas procedem, tão só, ao alargamento do universo de beneficiários mantendo-se, assim, inalterados quer o espírito quer os objetivos do instituto.
Mantém-se, assim, a ideia de compensar alguns sobrecustos da insularidade, desta vez acrescidos dos efeitos resultantes da aplicação da alteração introduzida à Lei de Finanças das Regiões Autónomas, aprovada pela Lei Orgânica n.º 2/2013, de 2 de setembro, que impõe, no n.º 2 do artigo 59.º, um limite de 20% à diminuição das taxas nacionais do IRS, do IRC e do IVA, em vez do limite de 30% anteriormente previsto. Salienta-se que esta alteração se traduz num aumento das taxas de IVA, na Região Autónoma dos Açores, de 4% para 5%, de 9% para 10% e de 16 para 18%; bem como num aumento de 17,5% para 20%, quanto à taxa de IRC, e, finalmente, num aumento da taxa de IRS, no primeiro escalão.
Igualmente não procede o argumento de que as alterações introduzidas pretenderam “anular ou neutralizar” as reduções remuneratórias nacionais imperativas para a função pública. De facto, por um lado, a configuração da tabela introduzida ilustra o objetivo de não favorecer as remunerações mais elevadas, começando o índice de atribuição a descer a partir dos 2000 € e cessando a sua aplicação no valor de 3050 € de remuneração. Por outro lado, a alteração do regime não impede a diminuição efetiva do rendimento dos trabalhadores relativamente ao ano anterior, por força dos cortes orçamentais decorrentes da Lei do Orçamento do Estado para 2014.
A diminuição do diferencial fiscal entre a Região Autónoma dos Açores e o Continente transforma, por via da acumulação do já referido aumento de impostos com as reduções remuneratórias impostas pelo Orçamento do Estado para 2014, os residentes na Região Autónoma dos Açores nos únicos contribuintes portugueses alvo de aumento de carga fiscal no ano de 2014, com o consequente aumento de custos de insularidade.
No tocante ao contributo da Região Autónoma dos Açores para a consolidação das contas nacionais, constata-se que, ao contrário do alegado no pedido, as normas em apreciação não consubstanciam uma “medida legislativa ao arrepio do enorme esforço de contenção da despesa pública e de reequilíbrio das contas públicas que os órgãos de soberania têm vindo a efetuar, ano após ano, desde o Orçamento do Estado para 2011, procurando honrar compromissos internacionais a que o Estado português está vinculado”.
Na verdade, o esforço da Administração Pública Regional cifrou-se numa progressiva redução do défice respetivo, que passou de 82,1 milhões de euros em 2009 para 50,1 milhões de euros em 2010; 38,5 milhões de euros em 2011; 15,8 milhões de euros em 2012.
Acresce que a entrada em vigor das normas em apreço não acarretará qualquer aumento do défice do Estado Português dado que, através do Orçamento Regional, a Região assegura que continua a não registar qualquer contributo para o défice do Estado. Note-se que, em 2012, o défice dos Açores representava 0,00001 do PIB nacional, não tendo portanto impacto nas Contas Nacionais e, consequentemente, nenhuma influência no cumprimento das metas orçamentais a que o país se comprometeu ao nível externo.
Mais se diga que o Orçamento da Região para 2014 assegura, face ao PIB regional, um saldo orçamental 14 vezes superior ao que o Orçamento do Estado apresenta para este ano, sendo que, por esta razão, todas as medidas inscritas no Orçamento da Região não têm, no seu conjunto, efeitos nas Contas do Estado.
As normas em apreciação não têm, igualmente, quaisquer consequências financeiras.
Com efeito, segundo o Mapa IV anexo ao Orçamento da Região Autónoma dos Açores para 2014, o valor das despesas com pessoal da Região é de 305.513.293 €.
O Orçamento Regional para 2013, aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 2/2013/A, de 22 de abril, previa, no seu Mapa IV, para despesas com pessoal, o valor de 291.883.621 €. Porém, tendo sido aprovado, pelo Decreto Legislativo Regional n.º 15/2013/A, de 4 de outubro, um Orçamento Retificativo, para fazer face ao pagamento dos subsídios de férias, em resultado da decisão do Tribunal Constitucional constante do Acórdão n.º 187/2013, de abril, o valor das despesas com pessoal da Região em 2013, e constante do respetivo Mapa IV, cifrou-se em 314.283.034 €.
Assim, em sede de despesas com pessoal da região, verifica-se, no Orçamento Regional de 2014, em relação ao de 2013, uma diminuição de 8.769.741 € e não um aumento, como alegado erradamente no pedido.
Segundo o Mapa VIII anexo ao Orçamento da Região Autónoma dos Açores para 2014, o valor das despesas com pessoal dos fundos e serviços autónomos da Região é de 72.541.451 €.
O Orçamento Regional para 2013 aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 2/2013/A, de 22 de abril, prevê, no seu Mapa VIII, referente a despesas globais dos fundos e serviços autónomos, e para despesas com pessoal um montante de 63.489.973 €. Porém, para cumprimento da decisão constante do citado Acórdão n.º 187/2013, foi publicada a declaração n.º 2/2013, de 23 de outubro, da Vice-Presidência do Governo Regional dos Açores, passando a constar do Mapa VIII, para despesas com pessoal, o montante de 67.720.209 €.
Conforme se constata, em sede de despesas com pessoal dos fundos e serviços autónomos, verifica-se, no Orçamento Regional para 2014, em relação ao de 2013, um aumento de 4.821.242 € e não um aumento de mais de 9 milhões de euros, como alegado no pedido. Este aumento deve-se, tão só, à inclusão, no perímetro das administrações públicas, de acordo com o Regulamento Europeu SEC95, de duas entidades: a Azorina, S.A. e a Sociedade para o Desenvolvimento Económico dos Açores – SDEA, S.A.
Deste modo, considerando o somatório das despesas com pessoal da Administração Pública Regional e dos fundos e serviços autónomos, verifica-se, no Orçamento para 2014, face ao ano anterior, nas rubricas supracitadas, uma redução total de 3.948.499 €.
No tocante ao Memorando de Entendimento entre o Governo da República e o Governo da Região Autónoma dos Açores, assinado a 2 de agosto de 2012 – não obstante, pela sua natureza, se encontrar fora do âmbito de apreciação do pedido de fiscalização de constitucionalidade – acentua o órgão autor das normas que o mesmo não foi violado.
Na verdade, não é afastada a aplicação das medidas previstas na Lei do Orçamento do Estado que respeitem, direta ou indiretamente, a quaisquer remunerações dos trabalhadores em funções públicas e aos demais trabalhadores do Setor Público Empresarial Regional.
Analisando os documentos orçamentais de 2013 e 2014, constata-se que não existe qualquer valorização remuneratória ou aumento da despesa com pessoal, existindo, sim, uma diminuição da remuneração auferida pelos beneficiários da remuneração complementar regional, por força dos cortes decorrentes da Lei do Orçamento do Estado para 2014.
No que concerne à alegada infração ao disposto nos artigos 33.º e 39.º da Lei do Orçamento do Estado, cumpre referir que a natureza da remuneração complementar regional afasta a possibilidade de a mesma se enquadrar no âmbito das remunerações, cuja valorização é proibida nos termos da aludida Lei.
Sempre se dirá, porém, que, da aplicação das alterações introduzidas pelas normas em apreciação, não resulta qualquer acréscimo da remuneração auferida no ano anterior, como já foi explicitado.
Relativamente ao princípio do Estado Unitário, acentua-se que da configuração concreta desse princípio, na Constituição Portuguesa, resulta, como corolário, a autonomia orçamental das Regiões Autónomas.
Como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros, os “orçamentos próprios, aprovados pelas Assembleias Legislativas Regionais (…) apenas se relacionam com o Orçamento do Estado na medida em que este fixa o montante de transferências para cada região e também os limites de endividamento regional” (J. Miranda e R. Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, p. 330).
Ora, as normas, cuja fiscalização é suscitada, não só não concorrem para o montante das transferências do Orçamento do Estado para a Região, como não alteram o limite fixado para o endividamento regional, não colidindo com o cumprimento dos objetivos macroeconómicos do país, em que a Região Autónoma dos Açores igualmente tem estado empenhada.
Não existe violação de nenhuma norma da Constituição referente à reserva de competência dos órgãos de soberania.
Na verdade, por um lado, do texto da Lei Fundamental apenas resulta uma reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República no que concerne às “bases do regime e âmbito da função pública” (artigo 165.º, n.º 1, alínea t)), matéria na qual não se enquadra o regime da remuneração complementar regional. Por outro lado, ainda que se admita uma interpretação favorável à existência de “limites implícitos à competência legislativa regional”, como alegado no pedido, verifica-se que o interesse nacional de contenção e equilíbrio das contas públicas é respeitado pelo Orçamento da Região Autónoma dos Açores para 2014.
Deste modo, conclui-se que as normas, colocadas em crise, não acarretam qualquer violação do princípio da unidade do Estado.
No que concerne ao “interesse nacional”, subjacente ao Acórdão n.º 613/2011, igualmente não se verifica qualquer desrespeito, por força das normas em análise, uma vez que tal interesse nacional deverá entender-se reportado à prossecução do equilíbrio das contas públicas – objetivo em que o Orçamento da Região Autónoma dos Açores para 2014 participa – e não ao corte das remunerações.
Mais se salienta que, de acordo com o ordenamento constitucional vigente, a competência legislativa das Regiões Autónomas encontra-se condicionada à verificação, cumulativa, de três requisitos: o âmbito regional da legislação; a enunciação das matérias plasmadas nos Estatutos político-administrativos; e o cumprimento do princípio da reserva de competência dos órgãos de soberania.
Ora, o regime da remuneração complementar regional corresponde a matéria expressamente incluída na competência legislativa regional, nos termos da alínea f), do artigo 67.º, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores; tem âmbito regional e não viola nenhuma das normas que definem a reserva de competência dos órgãos de soberania, porquanto não se encontra nas mesmas prevista.
Não procede, pelo exposto, a interpretação constitucional defendida no pedido, que extravasa o corpo da Lei Fundamental, no que concerne quer à reserva soberana da Assembleia da República, quer na tentativa de limitar, sem fundamentação, as competências e atribuições que estão plasmadas, neste âmbito, no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.
Salienta-se, a este propósito, que, no elenco dos direitos da Região, consagrados no artigo 7.º do Estatuto Político-Administrativo, é expressamente reconhecido, na alínea b), do n.º 1, o “direito à justa compensação e à discriminação positiva com vista à atenuação dos custos da insularidade e do caráter ultraperiférico da Região”.
Quanto ao princípio da solidariedade, nomeadamente ao seu corolário plasmado no n.º 7 do artigo 8.º, da Lei de Finanças das Regiões Autónomas – que vincula as Regiões Autónomas à prossecução dos objetivos orçamentais definidos no quadro da Lei de Enquadramento Orçamental – igualmente não é o mesmo afetado pelas normas em apreciação.
Aliás, conforme resulta de tudo quanto foi exposto, os residentes nos Açores farão, neste ano de 2014, um esforço maior do que aquele que será realizado pelos demais cidadãos nacionais, em virtude do já referido agravamento fiscal resultante da alteração à Lei das Finanças das Regiões Autónomas.
Assim, não se verifica qualquer infração dos critérios de justiça ou de equidade, não sendo colocado em perigo o reforço dos laços que unem todos os portugueses.
Acrescenta-se que a Região Autónoma dos Açores tem vindo, não apenas a cumprir os objetivos da política económica e os objetivos orçamentais a que está obrigada pelo princípio da solidariedade nacional, como igualmente a suprir insuficiências do Estado no exercício das suas funções na Região, ultrapassando, assim, a reciprocidade daquele princípio, num esforço que não lhe é exigível. Deste modo, em substituição do Estado, tem prestado apoios à aquisição de equipamentos para as forças de segurança, nomeadamente, PSP e GNR, bem como à Universidade dos Açores, ao Serviço Público de Rádio e Televisão nos Açores, assim como tem ainda intervindo na prestação de serviços essenciais às populações, anteriormente assegurados pelos CTT.
Além disso, sublinha-se que a Sobretaxa de Solidariedade de 3,5%, em sede de IRS, cobrada também na Região, reverte na íntegra para os cofres do Estado, ao contrário dos restantes impostos, taxas, multas, coimas e adicionais cobrados na Região Autónoma.
No tocante ao princípio da igualdade, acentua-se que a remuneração complementar regional se conforma com o mesmo, atribuindo-lhe um sentido útil.
Como refere o Acórdão n.º 423/2008, o princípio da igualdade “não atua como parâmetro de soluções normativas consagradas em diferentes sistemas legislativos, de base regional e de base nacional. Na verdade, ele vincula o legislador regional, no exercício das suas competências próprias, mas não o subordina, no exercício destas competências, às soluções consagradas no plano nacional. Diferente entendimento corresponderia, aliás, à negação da própria ideia de autonomia constitucionalmente garantida”.
A mesma ideia já resultava do Acórdão n.º 57/95, em que se diz que “não se pode ver nessa pluralidade de normas jurídicas, provenientes de sujeitos diversos uma violação do princípio da igualdade já que este tem um caracter relativo, não só sob o ponto de vista temporal como territorial”.
Acresce que o legislador nacional criou exceções favoráveis para os trabalhadores da administração central residentes na Região, em relação aos restantes trabalhadores da administração regional aí residentes e que não beneficiam dessas medidas. Exemplo destas exceções é o subsídio de fixação previsto no Estatuto do Ministério Público (Lei n.º 47/86 de 15 de outubro) ou o suplemento especial para os funcionários das Regiões Autónomas da Direção Geral de Impostos, previsto no Decreto-Lei n.º 557/99, de 17 de dezembro.
As normas, cuja fiscalização de constitucionalidade é requerida, justificam-se pela necessidade de correção das desigualdades derivadas da insularidade, objetivo este enunciado no artigo 229, n.º 1 da Constituição.
Os argumentos invocados no pedido, relativamente a uma alegada violação do princípio da igualdade, correspondem, afinal, aos motivos justificantes para a manutenção do normativo vigente desde o ano 2000.
Assim, conclui-se que a discordância, em que se funda o pedido, prende-se com um juízo de mérito sobre uma opção política democrática dos órgãos de Governo próprio da Região, concretizada por uma norma aprovada por unanimidade dos deputados das seis forças políticas com assento na Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores.
Nestes termos, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores finaliza, afirmando que as normas constantes do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 43.º do Decreto n.º 24/2013 não estão feridas de qualquer inconstitucionalidade, pelo que deve ser negado provimento ao pedido.
3.2. Junta, ainda, três pareceres jurídicos, suportando o juízo de não inconstitucionalidade defendido.
4. Foi discutido em Plenário o memorando apresentado pela relatora e fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 59.º da LTC, cumprindo agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.
II. Fundamentação
A. Delimitação do objeto do pedido
5. Vêm impugnadas as disposições normativas conjugadas dos n. os 1 e 2 do artigo 43.º do Decreto n.º 24/2013 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, que aprova o Orçamento da Região Autónoma dos Açores para o Ano de 2014, disposições que dão nova redação aos artigos 9.º, 10.º, 11.º e 13.º do Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, de 10 de abril, que instituiu a remuneração complementar regional, modificado pelos Decretos Legislativos Regionais n.º 22/2007/A, de 23 de outubro, n.º 6/2010/A, de 23 de fevereiro, n.º 3/2012/A, de 13 de janeiro e n.º 3/2013/A, de 23 de maio, e que aprovam a tabela anexa ao mesmo diploma (que fixa o coeficiente de atribuição relativo a cada escalão de remuneração base).
6. Não está em causa a conformidade constitucional das normas do Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A que instituíram o regime da remuneração complementar regional. A questão cinge-se às alterações introduzidas pelos referidos n. os 1 e 2 do artigo 43.º do Decreto n.º 24/2013, que o modificam.
7. De acordo com aquelas normas, e nos termos dos critérios nelas definidos, beneficiarão da remuneração complementar os trabalhadores que exercem funções públicas na administração pública regional, os trabalhadores do setor público empresarial regional, estes em termos a definir por resolução do Governo Regional, bem como os trabalhadores das autarquias locais e os trabalhadores do setor empresarial municipal. Nestes dois últimos casos, a atribuição da remuneração complementar não resultará de decisão da Região, mas ficará na dependência de decisão dos órgãos próprios das autarquias locais.
Assim sendo, nestas duas situações, as normas limitam-se a admitir como possível a atribuição da remuneração complementar pelos municípios, mas esta opção sempre dependerá de decisão dos órgãos autárquicos. A estas normas não pode, consequentemente, ser assacado o efeito prático de atribuição ou modelação da remuneração complementar relativamente aos trabalhadores das autarquias e do setor empresarial municipal.
B. Conhecimento do pedido e seus fundamentos
8. O Representante da República para a Região Autónoma dos Açores vem pedir a fiscalização preventiva da constitucionalidade das normas do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 43.º, do Decreto n.º 24/2013, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, que procedem à modificação dos artigos 9.º, 10.º, 11.º e 13.º do Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, já que, em seu entender, «invadem de forma clara a reserva de competência legislativa da República, ínsita no princípio da unidade do Estado (artigo 6.º e artigo 225.º, n.os 2 e 3) e no próprio princípio da solidariedade nacional (artigo 225.º, n.º 2)», violando, ainda, o princípio da igualdade (artigo 13.º e artigo 229.º, n.º 1).
9. Refere, igualmente, o requerente, que uma pronúncia de inconstitucionalidade que afete o artigo 43.º, n.º 1, se deverá repercutir nos n. os 3 e 4 do artigo 11.º e no n.º 2 do artigo 13.º do Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, visto que estas normas são puramente instrumentais em relação àquelas outras que fixam um novo regime da remuneração complementar regional.
De facto, o eventual expurgo, por inconstitucionalidade, das normas que estabelecem o regime mencionado, destitui de sentido a manutenção destas.
10. O requerente sustenta, ainda, que as normas questionadas contrariam normas do Orçamento do Estado para 2014, aprovado pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, que fixam reduções remuneratórias (artigo 33.º) e proíbem revalorizações remuneratórias (artigo 39.º), a que esta Lei deu caráter imperativo (n.º 15 do artigo 33.º e n.º 23 do artigo 39.º).
Refere, igualmente, que o regime jurídico em análise viola o Memorando de Entendimento entre o Governo da República e o Governo da Região Autónoma dos Açores, assinado a 2 de agosto de 2012.
Na sua perspetiva, em virtude das normas agora aprovadas, medidas legislativas, adotadas pela Assembleia da República ao abrigo da sua competência genérica (161.º) e, por isso, aplicáveis a todo o território nacional, que manifestamente incorporam «a defesa de valores constitucionais de primeira grandeza», teriam «a sua eficácia comprometida em virtude de regimes especiais emanados pelo legislador regional, em nome de interesses políticos conjunturais ou parcelares».
Começa-se por notar que mesmo que se admitisse – é essa a linha argumentativa do requerente – uma eventual contradição entre o disposto nas normas introduzidas pelo artigo 43.º do Decreto n.º 24/2013 e as normas do Orçamento do Estado para 2014, a infração de normas de direito infraconstitucional não configuraria um vício de inconstitucionalidade. Também não integraria tal classificação a hipotética contradição das normas impugnadas com o mencionado Memorando de Entendimento. E o requerente não formulou, naturalmente, outro pedido para além da apreciação preventiva da constitucionalidade, já que, em processo de fiscalização preventiva, nenhum dos atos mencionados poderia servir de parâmetro de controlo ao Tribunal Constitucional, estando este processo de fiscalização reservado ao conhecimento das contradições com a Constituição (artigo 278.º, n.º 2).
11. Pelo exposto, a invocada contradição das normas impugnadas com o Orçamento ou com o Memorando só poderá ser levada em linha de conta enquanto argumento através do qual o requerente pretende demonstrar que, com a emissão das normas questionadas, o legislador regional põe em causa a reserva de competência legislativa dos órgãos de soberania ínsita nos princípios da unidade do Estado e da solidariedade entre todos os portugueses, uma vez que estes obrigariam a que todos devessem estar sujeitos a sacrifícios.
C. Enquadramento do Decreto n.º 24/2013 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores
Para enquadrarmos o regime jurídico da remuneração complementar regional, com o objetivo de apreciarmos a questão da sua conformidade com os parâmetros constitucionais, impõe-se que procedamos a uma análise prévia do contexto do surgimento e evolução de tal instituto.
12. A Lei de Finanças Regionais aprovada em 1998 (Lei n.º 13/98, de 24 de fevereiro) permitia (artigo 37.º, n.º 4) que as assembleias legislativas regionais diminuíssem as taxas nacionais dos impostos sobre o rendimento (IRS e IRC) e do imposto sobre o valor acrescentado até ao limite de 30%, bem como dos impostos especiais de consumo, de acordo com a legislação em vigor.
Na sequência desta viabilização da adaptação do sistema fiscal nacional, a Assembleia Legislativa Regional dos Açores aprovou o Decreto Legislativo Regional n.º 2/99/A, de 20 de janeiro, abrangendo medidas relativas a impostos sobre o rendimento (IRS e IRC), deduções à coleta, imposto sobre o valor acrescentado (IVA), impostos especiais sobre o consumo e benefícios fiscais, com o objetivo de atenuar a carga fiscal sobre as pessoas singulares e coletivas, de modo a “garantir a melhoria das condições de vida dos que residem nos Açores e a competitividade e criação de emprego das empresas com atividade no arquipélago, que suportam os custos incontornáveis da insularidade”.
Quanto ao IRS, o artigo 4.º do referido diploma definiu que, às taxas nacionais do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, em vigor em cada ano, seria aplicada uma redução de 15%. Posteriormente, o valor da redução foi alterado para 20%, por força do Decreto Legislativo Regional n.º 33/99/A, de 30 de dezembro. Para o IRC e o IVA aquele diploma fixou a taxa de redução em 30%.
Porém, o desagravamento fiscal instituído pelo referido Decreto n.º 2/99/A não corrigiu todas as assimetrias existentes, não abrangendo, desde logo, uma importante faixa de residentes nos Açores, cujos rendimentos se fixavam aquém dos montantes estabelecidos como valor de incidência do IRS.
Para corrigir tal desvantagem, no ano de 2000, foram criados, na Região Autónoma dos Açores, os regimes jurídicos da atribuição do acréscimo regional ao salário mínimo, do complemento regional de pensão e da remuneração complementar regional.
Tais regimes jurídicos foram instituídos por três Decretos Legislativos Regionais com os n.os 1/2000/A, 2/2000/A e 3/2000/A, todos publicados em 12 de janeiro.
Através do Decreto Legislativo Regional n.º 1/2000/A, a Assembleia Legislativa Regional determinou, na Região Autónoma dos Açores, um acréscimo de 5% aos valores do salário mínimo (hoje: retribuição mínima mensal garantida), estabelecidos por lei geral da República.
Do preâmbulo de tal diploma, consta que o regime introduzido se liga sobretudo a imperativos de justiça remuneratória, porquanto o custo de vida nos Açores é superior ao do continente, circunstância que penaliza profundamente os trabalhadores que auferem menores salários.
Por sua vez, o Decreto Legislativo Regional n.º 2/2000/A determinou a criação de um complemento mensal de pensão para os pensionistas e reformados, com residência permanente na Região Autónoma dos Açores. Tal complemento seria pago, pelos serviços regionais da segurança social, em catorze mensalidades, sendo atribuído em proporção variável, de acordo com o valor da pensão auferida.
Do respetivo preâmbulo, consta que, na Região Autónoma dos Açores, os cidadãos que auferem menores rendimentos e são mais penalizados pelas desigualdades provenientes da diferença do nível do custo de vida em relação ao continente são os reformados, os pensionistas e os idosos. Pelo exposto, tornou-se imperioso garantir a realização de justiça social, para aqueles que não foram beneficiados pelo desagravamento fiscal institucionalizado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 2/99/A, de 20 de janeiro, criando um complemento de pensão destinado a compensar o baixo rendimento.
Por fim, assumindo igualmente pretender corrigir a restrição de abrangência do desagravamento fiscal do referido diploma de 99, o Decreto Legislativo Regional n.º 3/2000/A criou uma remuneração complementar, “abonável em catorze mensalidades e atualizável anualmente em percentagem idêntica à estipulada para o índice 100 da escala das carreiras de regime geral” (artigo 1.º, n.º 1).
Nos termos do artigo 2.º de tal diploma, beneficiariam da remuneração complementar os funcionários, os agentes e os contratados a prazo da administração pública regional e local da Região Autónoma dos Açores, cuja retribuição fosse igual ou inferior à do índice 380.
O montante respetivo seria atribuído em percentagem variável, decrescendo na razão inversa do valor da remuneração.
O Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, de 10 de abril, condensou a disciplina jurídica do acréscimo regional ao salário mínimo, do complemento regional de pensão e da remuneração complementar regional num único diploma, em conformidade com a sua “comum natureza de compensação dos custos da insularidade” (cfr. preâmbulo do mesmo diploma).
Entretanto, fora aprovada a Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro, Lei de Finanças das Regiões Autónomas, que revogou a Lei n.º 13/98, de 24 de fevereiro.
O seu artigo 49.º, n.º 2, definiu, nomeadamente, o limite máximo de 30% para a redução das taxas nacionais dos impostos sobre os rendimentos (IRS e IRC).
Posteriormente, foi publicado o Decreto Legislativo Regional n.º 42/2008/A, de 7 de outubro, que alterou o artigo 4.º do Decreto Legislativo Regional n.º 2/99/A, de 20 de janeiro, definindo que às taxas nacionais do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, em vigor em cada ano, é aplicada uma redução de 30%, para os rendimentos coletáveis correspondentes ao 1.º escalão, 25% para o 2.º escalão e 20% para os restantes escalões.
O referido artigo 4.º voltaria a ser alterado, por força do Decreto Legislativo Regional n.º 25/2009/A, de 30 de dezembro, que definiu que às taxas nacionais do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, em vigor em cada ano, são aplicadas reduções de 30%, para os rendimentos coletáveis correspondentes ao primeiro escalão, 25% para o 2.º escalão e 20% para os restantes escalões (alínea a)) e 20%, nas restantes taxas de retenção e taxas de tributação autónoma (alínea b)).
Em 2010, o Decreto Legislativo Regional n.º 6/2010/A, de 23 de fevereiro pretendeu ajustar as regras relativas à atribuição da remuneração complementar, em face da alteração da relação jurídica de emprego público operada pela Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, nomeadamente ao nível da estrutura remuneratória, que deixou de se aferir em função de índices. Igualmente teve como objetivo estabelecer uma norma de equidade social, garantindo que qualquer trabalhador, que tenha direito à remuneração complementar e que, em resultado da aplicação das respetivas regras, aufira uma remuneração global inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida com o respetivo acréscimo regional, passe a receber um montante idêntico a esse valor.
Assim, nos termos do artigo 1.º do Decreto Legislativo Regional em análise, foi alterado o artigo 10.º do Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, de 10 de abril, definindo-se, como beneficiários da remuneração complementar “os trabalhadores que exercem funções públicas na administração pública regional e local da Região Autónoma dos Açores e cuja remuneração seja igual ou inferior a 1304 €”.
Igualmente foi alterado, por força do referido normativo, o artigo 11.º do aludido decreto legislativo regional de 2002, mantendo-se, porém, a lógica da atribuição do montante da remuneração complementar regional em percentagem variável, decrescendo na razão inversa do valor da remuneração. No n.º 4 do mesmo artigo 11.º, definiu-se que os montantes de remuneração, que servem de referência à percentagem do montante complementar regional a abonar, serão atualizados “anualmente em percentagem idêntica à que vier a ser fixada na tabela remuneratória única para o aumento dos trabalhadores que exercem funções públicas”. Foi ainda alterado o artigo 13.º, definindo-se que os montantes da remuneração complementar regional serão “fixados e atualizados anualmente mediante resolução do Conselho do Governo, com efeitos a partir de 1 de janeiro de cada ano, tendo em conta, designadamente, os valores previstos para a inflação, não podendo tais atualizações ser inferiores ao aumento percentual que vier a ser fixado pela tabela remuneratória única dos trabalhadores que exercem funções públicas”. O Decreto Legislativo Regional n.º 6/2010/A introduziu a primeira alteração à remuneração complementar regional, mas antes dele, já o Decreto Legislativo Regional n.º 22/2007/A modificara o Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, em aspetos relacionados com o complemento regional de pensão. Outros diplomas vieram, depois, alterar este último diploma: o Decreto Legislativo Regional n.º 3/2012/A, de 13 de janeiro, que, estabeleceu um aumento à remuneração complementar regional para 2012; e o Decreto Legislativo Regional n.º 3/2013/A, de 23 de maio, que introduz alterações ao complemento regional de pensão.
Ainda em 2010, o Decreto Legislativo Regional n.º 34/2010/A, de 29 de dezembro, que aprovou o Orçamento da Região Autónoma dos Açores para o ano de 2011, atualizou o valor da remuneração complementar regional, para o ano de 2011, aumentando o respetivo montante em 2,1% e definindo que os encargos decorrentes de tal aumento seriam suportados pela dotação provisional (artigo 31.º).
E o artigo 7.º do mesmo diploma definiu, sob a epígrafe remuneração compensatória, que o Governo Regional tomaria as medidas necessárias para garantir uma “remuneração compensatória igual ao montante da redução remuneratória total ilíquida efetuada, por via do diploma do Orçamento do Estado, em relação aos trabalhadores da administração regional e dos hospitais E.P.E., cujas remunerações totais ilíquidas mensais, nos termos previstos naquele diploma orçamental, se situem entre 1500 e 2000 €” (n.º 1). Mais definiu que o Governo Regional igualmente tomaria as medidas necessárias para garantir uma remuneração compensatória aos “trabalhadores da administração regional e dos hospitais E.P.E., cuja remuneração ilíquida se situe acima dos 2000 € e que, por força da aplicação da redução remuneratória efetuada por via do Orçamento do Estado, resulte uma remuneração total ilíquida inferior a 2000 €”, por forma a assegurar a perceção daquele valor, em termos totais ilíquidos (n.º 2). Por fim, no n.º 3 do mesmo artigo, ficou consignado que os encargos decorrentes da implementação da remuneração compensatória seriam suportados pela dotação provisional.
Tal medida destinou-se, expressamente, a compensar, relativamente aos seus beneficiários, por um lado, as perdas de 3,5% do valor total das remunerações superiores a 1500 e inferiores a 2000 € e, por outro lado, as perdas de 3,5% sobre o valor de 2000 € acrescido de 16% sobre o valor da remuneração total que exceda os 2000 €, decorrentes da aplicação do artigo 19.º, n.os 1, alíneas a) e b), e 9, da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2011. A tais reduções remuneratórias, incidentes sobre trabalhadores do setor público, fora conferida natureza imperativa, nos termos do n.º 11 do artigo 19.º, “prevalecendo sobre quaisquer outras normas, especiais ou excecionais, em contrário e sobre instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho”, não podendo ser afastadas ou modificadas pelos mesmos. No artigo 24.º, a mesma Lei do Orçamento do Estado impôs uma proibição de valorizações remuneratórias, sendo que a tal regime foi, igualmente, atribuída natureza imperativa (n.º 16 do mesmo preceito).
Os Orçamentos do Estado que se seguiram ao Orçamento aprovado pela Lei n.º 55-A/2010 mantiveram em vigor reduções remuneratórias e proibições de revalorização remuneratórias, com natureza imperativa. O último Orçamento do Estado, para 2014, aprovado pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, prevê o agravamento das reduções remuneratórias. No artigo 33.º, estabelece a redução das remunerações totais ilíquidas mensais das pessoas a que se refere o n.º 9, de valor superior a 675 €, nos seguintes termos: mediante a aplicação de uma taxa progressiva que varia entre os 2,5% e os 12% sobre o valor total das remunerações, no caso de valores superiores a 675 € e inferiores a 2000 €; 12% sobre o valor total das remunerações superiores a 2000 €. No n.º 15 deste normativo, reiterou-se a natureza imperativa do presente regime – em termos análogos aos já fixados na norma congénere da Lei que aprovara o Orçamento do Estado do ano anterior – com a exceção definida no n.º 11, relativo a contratos de docência e de investigação, que não relevam, no presente âmbito.
No artigo 39.º da mesma Lei n.º 83-C/2013, foi mantida, relativamente aos titulares de cargos e demais pessoal do setor público identificado no n.º 9 do artigo 33.º, igualmente uma proibição de valorizações remuneratórias, sendo que a tal regime foi atribuída natureza imperativa (n.º 23 do mesmo preceito).
Entretanto, para 2014, o Orçamento da Região Autónoma, constante do Decreto n.º 24/2013, prevê, no artigo 31.º, uma redução de apenas 20% das taxas nacionais do IRS, IRC e IVA.
Tal valor corresponde ao limite máximo permitido pela nova Lei das Finanças Regionais, a Lei Orgânica n.º 2/2013, de 2 de setembro, que, no artigo 59.º, estabelece que as Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas podem diminuir as taxas nacionais do IRS, do IRC e do IVA, até ao limite de 20%, e dos impostos especiais de consumo, de acordo com a legislação em vigor.
As taxas previstas para 2014 representam uma diminuição da redução das taxas nacionais de imposto, relativamente ao que estava previsto no Decreto Legislativo Regional n.º 2/2013/A que aprovara o Orçamento da Região Autónoma dos Açores para o ano de 2013. No capítulo relativo à “adaptação ao sistema fiscal”, o Orçamento da Região Autónoma dos Açores instituíra uma redução de 30% às taxas nacionais do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, em vigor em cada ano, aplicável aos rendimentos coletáveis correspondentes ao primeiro escalão e 20% para os restantes escalões.
O Orçamento da Região Autónoma dos Açores para 2014 prevê, também, no artigo 7.º, revogar as disposições que, no Orçamento da Região Autónoma aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 34/2010/A, de 29 de dezembro, permitiram a fixação da remuneração compensatória.
D. O sentido das normas a apreciar
13. O requerente sustenta que «a disciplina jurídica estabelecida pelo artigo 43.º do Decreto n.º 24/2013 da Assembleia Legislativa Regional transforma radicalmente a finalidade e o conteúdo do regime até agora vigente da “remuneração complementar regional”, havendo este evoluído «para um instituto cujo objetivo precípuo é o de anular ou neutralizar significativamente os efeitos das reduções salariais decorrentes do Orçamento para 2014».
No entender do requerente, «o conteúdo normativo dos n.os 1 e 2 do artigo 43.º do Decreto n.º 24/2013 da Assembleia Legislativa Regional põe em causa legislação emanada imperativamente pelo Parlamento nacional, ao abrigo da sua competência legislativa soberana. Em particular, infringe o disposto no artigo 33.º (redução remuneratória) – cuja imperatividade é estabelecida no n.º 15 deste preceito – e no artigo 39.º (proibição de valorizações remuneratórias) – cuja natureza imperativa resulta do seu n.º 23».
Assim sendo, a questão que cumpre começar por resolver será a de saber se a alteração em apreciação veio, realmente, desfigurar a remuneração complementar regional, afastando-se da sua natureza original, tendo como objetivo fundamental a neutralização dos efeitos do Orçamento do Estado em matéria de redução remuneratória.
Saliente-se, desde já, que a configuração da medida que as presentes modificações desenham permite que dela se faça outra leitura não coincidente com a que é sustentada pelo requerente.
14. Como é hoje concebida, a medida alarga o âmbito subjetivo de aplicação da remuneração complementar, quer em virtude de se prever a sua aplicação para além do quadro restrito da administração regional, quer, também, em virtude da elevação do limiar máximo da base salarial ainda abrangida. As normas impugnadas alteram, ainda, o método de cálculo da remuneração complementar.
Mas isso não desvirtua a ratio original da sua atribuição, intimamente ligada ao intuito de atenuar os custos derivados da insularidade.
Nas palavras do preâmbulo do Decreto Legislativo Regional que, em 2002, regulou a medida, a criação deste regime (juntamente com o acréscimo regional ao salário mínimo e o complemento regional de pensão) visa «atenuar a diferença de custo de vida nos Açores em relação ao continente, designadamente os derivados dos custos da insularidade».
E as alterações agora introduzidas, no sentido do alargamento dos beneficiários abrangidos, do método de cálculo e do aumento do limiar máximo da base salarial de aplicação, não lhe retiram esse sentido.
Foi, ainda, dentro do espírito de correção das desigualdades económico-sociais, provocadas pela localização insular da Região Autónoma dos Açores, que a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores procedeu à revisão da remuneração complementar regional, adequando-a à conjuntura económica atual, entretanto agravada.
Tanto mais que, a par das medidas gerais que conduziram à diminuição do rendimento disponível dos ilhéus (como dos continentais), estes foram também afetados pela imposição da redução do diferencial fiscal (designadamente em matéria de IRS, IRC e IVA), de que beneficiam as ilhas, para compensar os custos da insularidade, o que resultou num agravamento especial dos impostos nas Regiões Autónomas. Por força deste agravamento, o esforço sacrificial que será pedido aos residentes nos Açores, em 2014, será superior ao suportado no ano anterior. Aumento da carga fiscal que não deixa de se juntar, por exemplo, à imposição da sobretaxa extraordinária de 3,5% sobre os rendimentos sujeitos a IRS.
Ora, com esta alteração, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores limitou-se, no âmbito do Decreto n.º 24/2013, a reformular as providências de cariz social instituídas pelos regimes jurídicos da atribuição do acréscimo regional à retribuição mínima garantida, do complemento regional de pensão e, por fim, da remuneração complementar regional, sem desvirtuar o objetivo de compensar os trabalhadores da administração pública regional e local pelos especiais custos de vida no arquipélago dos Açores, custos, agora, particularmente agravados – e subjetivamente alargados – em virtude da redução do diferencial fiscal.
Repare-se, aliás, que para o mesmo objetivo de minorar a diminuição do rendimento disponível das famílias, provocada, designadamente, pela diminuição do diferencial fiscal, assim minimizando os custos da insularidade, o legislador regional, no mesmo diploma, reforça o valor do Complemento Regional de Pensão (artigo 38.º).
Com o intuito de demonstrar que, mais do que combater os custos da insularidade, o legislador regional pretendeu «neutralizar, consideravelmente, os efeitos da redução remuneratória», o requerente aponta para «a curva progressiva do “coeficiente de atribuição”, que sobe notoriamente até ao valor de 2000 € de remuneração base – em conformidade com a progressividade dos cortes salariais entre 2,5% e 12% decorrentes do n.º 1 do referido artigo 33.º para as remunerações (totais ilíquidas) superiores a 675 € e inferiores a 2000 € – apenas descendo paulatinamente a partir desse montante até às remunerações base que ascendem a 3050 €.»
Não se crê, contudo, que seja essa a leitura mais certeira das normas em questão. Pelo contrário, delas resultam elementos indiciadores de que a vontade expressa do legislador – de compensar os custos da insularidade – tem correspondência com a solução legislativa encontrada.
Atente-se no seguinte: o Orçamento do Estado para 2014, determinou, no artigo 33.º, a redução das remunerações totais ilíquidas mensais de valor superior a 675 €, mediante a aplicação de uma taxa progressiva que varia entre os 2,5% e os 12% sobre o valor total das remunerações, no caso de valores superiores a 675 € e inferiores a 2000 €; e uma taxa de 12% sobre o valor total das remunerações superiores a 2000 €.
Note-se, todavia, que o presente diploma regional situa o “coeficiente de atribuição” nos valores remuneratórios que variam entre 500,49 € e 3050,00 €, alterando a fórmula de cálculo.
Na génese da reformulação do instituto da remuneração complementar regional é notória a preocupação social do legislador em apoiar os trabalhadores que auferem remunerações mais baixas: enquanto as reduções remuneratórias se iniciam nos 675 €, a atribuição da remuneração compensatória começa nas remunerações no valor de 500,49 €.
Por outro lado, o legislador não se limita a seguir uma curva progressiva na definição do “coeficiente de atribuição”. Essa curva não decalca a evolução das reduções salariais, que vão progressivamente aumentando com o valor da remuneração.
Pelo contrário, o valor da prestação complementar é degressivo nas remunerações mais baixas.
E embora progressivo nos escalões intermédios até aos 2000 € – sendo-o, até, em proporção que suplanta abundantemente a perda remuneratória –, é, de novo, degressivo a partir das remunerações superiores a esse valor. Dali em diante, o valor dos cortes salariais nesta faixa remuneratória não é acompanhado pelo crescimento da remuneração complementar, justamente porque nestas remunerações o impacto dos desequilíbrios ecónomicos decorrentes do isolamento e da insularidade são sentidos com menor intensidade.
De todo o modo, a inclusão deste último universo entre os beneficiários da prestação encontra, ainda, também ela, explicação razoável no quadro da instituição de uma compensação pelos custos da insularidade: estes beneficiários são, agora, afetados pelo agravamento da carga fiscal.
Atente-se, ainda, que em virtude de haver sido fixado um teto máximo de 3050 € para a atribuição da remuneração complementar, existem remunerações que, embora sujeitas a reduções salariais, não são já objeto de reforço através de uma remuneração complementar.
Ora, se as reduções remuneratórias encetadas pelo Estado incidem somente nas remunerações a partir dos 675 €, e aumentam progressivamente para as remunerações mais elevadas, não estabelecendo qualquer limite remuneratório máximo, e se, inversamente, o complemento remuneratório não apenas beneficia (regressivamente) escalões de rendimento não atingidos por reduções remuneratórias, como diminui nas remunerações mais elevadas (acima de 2000 €), havendo mesmo sido fixado um teto para a base salarial que justifica a sua atribuição (3050 €), não se vê como se pode sustentar que a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, com a modificação introduzida no regime de remuneração complementar regional, tenha pretendido apenas prosseguir um objetivo inibidor das reduções remuneratórias previstas no Orçamento do Estado para 2014.
Pelo contrário, a atribuição da remuneração complementar a escalões mais baixos, a progressividade da sua atribuição nos escalões intermédios até aos 2000 €, e a sua regressividade daí em diante, até ao limiar máximo de 3050 €, são nota de um cunho redistributivo da medida.
Pelo exposto, conclui-se que as alterações introduzidas permitem leitura distinta daquela que delas faz o requerente. Tais alterações não desfiguraram a remuneração complementar regional, não havendo provocado uma rutura com o seu sentido matricial.
15. Por outro lado, as normas regionais que, modificando o Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, alargam a atribuição da remuneração complementar regional, não contrariam, no plano jurídico, a redução remuneratória ou a proibição de revalorização salarial previstas no Orçamento do Estado para 2014, que se aplicam, também, às pessoas que exercem funções na administração pública regional, incluindo o setor empresarial regional.
Aliás, a norma regional que anteriormente previa, de modo expresso e temporalmente limitado, uma remuneração compensatória com essa finalidade (era o artigo 7.º do Decreto Legislativo Regional n.º 34/2010/A, que aprovou o Orçamento da Região Autónoma dos Açores para 2011) – e que coexistiu com as reduções remuneratórias do Orçamento do Estado e com a própria remuneração complementar regional – foi, no Orçamento regional para 2014 (artigo 7.º), revogada, (sobre a medida: RUI MEDEIROS/JOÃO LAMY FONTOURA, «”Remuneração compensatória Regional”, no quadro das restrições remuneratórias impostas na Lei do Orçamento do Estado para 2011, p. 69 e ss.», Açores: uma reflexão jurídica, Coimbra Editora).
Diferentemente, não se considera que a definição da remuneração complementar regional revogue ou, sequer, modifique, em si mesmas, as medidas de redução remuneratória e de proibição da revalorização remuneratória impostas pelo Orçamento do Estado para 2014. As normas em causa não prejudicam a aplicação das normas orçamentais estaduais, que mantêm a sua plena vigência, nem condicionaram o montante a atribuir a título de remuneração do trabalho em si mesmo considerado. Isto é, a redução da remuneração devida como salário ao trabalhador e a proibição de revalorizações remuneratórias mantêm-se.
Na verdade, a Região Autónoma não está, no caso, a legislar em matéria de retribuição, matéria que está tratada noutros lugares do sistema jurídico. As normas regionais em apreciação limitam-se a definir os termos da concessão de um benefício predominantemente económico-social, autónomo, cuja origem remonta ao ano 2000 (Decreto Legislativo Regional n.º 3/2000/A) – muito antes da imposição de reduções remuneratórias -, e que é atribuído como complemento remuneratório, criado, em simultâneo, com outros instrumentos de apoio social destinados a minorar os custos da insularidade, aos quais não foi atribuído, na sua génese, um especial caráter de transitoriedade relacionado com quaisquer circunstâncias excecionais e passageiras.
As normas questionadas apenas dão corpo a uma opção legislativa diferenciada, que não define a remuneração pelo trabalho, nem contraria a redução a que esta possa estar sujeita, antes fixa uma prestação complementar, distinta relativamente a essa remuneração, na qual ainda é possível descobrir um cariz predominantemente económico-social.
Pelo exposto, não pode afirmar-se que as alterações ao regime da remuneração complementar regional hajam radicalmente transformado a finalidade ou a natureza da medida original.
Acresce que, como o requerente reconhece, o legislador regional reconfigura a medida com recurso a verbas que se encontram na sua disponibilidade, sem provocar um aumento de transferências financeiras do Orçamento do Estado para o das Regiões. Sublinhe-se, igualmente, que a atenuação de sacrifícios a que se chega será conseguida por opção da Região, em detrimento da distribuição de outras vantagens, já que as verbas a utilizar para reforçar este apoio serão desafetadas de outros fins públicos.
16. Evidentemente, a este Tribunal está vedado, ao contrário do que parece ser pretensão do requerente, sancionar uma medida ancorada na circunstância de se poder entender, como o requerente, que a Região deveria, em alternativa ao pagamento desta prestação, canalizar as verbas a ela destinadas para “satisfação de necessidades básicas da população ou de outros fins constitucionalmente legítimos (v.g., amortização da dívida pública) ”.
O Tribunal Constitucional não pode sindicar as opções políticas (designadamente em matéria orçamental) assumidas pela Região, apreciando a maior ou menor bondade das medidas legislativas que as concretizam, sem prejuízo das competências de que dispõe para apurar da conformidade das normas que a modelam com os princípios constitucionais que as devem basilar.
Com estes pressupostos, apreciemos se com a adoção das normas inscritas nos n. os 1 e 2 do Artigo 43.º do Decreto n.º 24/2013 o legislador regional viola a reserva de competência legislativa dos órgãos de soberania ínsita nos princípios da unidade do Estado e da solidariedade nacional, ou o princípio da igualdade, conforme pretende o requerente.
E. Análise das questões de constitucionalidade suscitadas
a) A violação da reserva de competência legislativa da República, ínsita nos princípios da unidade do Estado (artigos 6.º e 225.º, n.os 2 e 3 da Constituição) e da solidariedade nacional (artigo 225.º, n.º 2 da Constituição)
17. O requerente fundamenta o seu pedido de inconstitucionalidade invocando que as normas dos n.os 1 e 2 do artigo 43.º do Decreto n.º 24/2013 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores «invadem de forma clara a reserva de competência legislativa da República ínsita no princípio da unidade do Estado (artigo 6.º e artigo 225.º, n.os 2 e 3) e no próprio princípio da solidariedade nacional (artigo 225.º, n.º 2).
Vejamos se a Região Autónoma é competente para a emissão das normas que vêm questionadas.
18. O poder legislativo das Regiões Autónomas é genericamente definido nos artigos 227.º, n.º 1, alínea a) e 228.º, n.º 1, da Constituição. Em consonância, a Constituição refere-se aos decretos legislativos regionais no n.º 4 do artigo 112.º.
O Tribunal Constitucional já em variadas ocasiões teve oportunidade de se referir ao quadro definidor da competência legislativa regional.
No Acórdão n.º 246/2005, começou por assinalar o alargamento dos poderes legislativos das Regiões Autónomas, na sequência da 6.ª Revisão da Constituição, em 2004, em virtude do desaparecimento da categoria de leis gerais da República a cujos princípios fundamentais os diplomas regionais se encontravam subordinados, e da eliminação da necessidade de existência de interesse específico regional na matéria regulada pelas regiões no exercício da competência legislativa.
Até 2004, o exercício da atividade legislativa do Estado, sob a forma de lei geral da República, condicionava a intervenção legislativa das Regiões Autónomas. No quadro atual, a Constituição dá prevalência – por força do artigo 228.º, n.º 2 – ao ato legislativo regional relativamente à lei nacional, sempre que aquele seja emitido em matéria de Estatuto, se cinja ao âmbito regional e respeite os limites da reserva dos órgãos de soberania.
Não há hoje, com o desaparecimento da obrigação de não dispor contra os princípios fundamentais das leis gerais da República, uma relação de hierarquia que submeta o decreto legislativo regional aos parâmetros fixados em lei nacional.
No Acórdão n.º 258/2006 (seguido de muitos outros, entre os quais o Acórdão n.º 304/2011) o Tribunal sintetizou os requisitos de verificação cumulativa para o exercício da competência legislativa regional: (i) conter-se a legislação sindicada no âmbito regional; (ii) estarem as matérias em causa enunciadas no respetivo estatuto político-administrativo; e (iii) não estarem reservadas aos órgãos de soberania.
19. O Tribunal tem entendido (por exemplo nos Acórdãos n.os 258/2007 e 304/2011) que o âmbito regional é um requisito ao qual é essencial a componente territorial inerente à Região Autónoma. A Região só poderá legislar para dentro dos limites territoriais da respetiva pessoa coletiva, circunscrevendo o território os limites dos seus poderes (ANA GUERRA MARTINS, A Participação das Regiões Autónomas nos Assuntos da República, Almedina, Coimbra, 2012, p. 28), e, além disso, só poderá fazê-lo quando não puser em causa a natureza da relação básica de cidadania que o cidadão estabelece com o Estado (ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, in ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO/PEDRO LOMBA, Comentário à Constituição Portuguesa, III, Tomo I, Almedina, Coimbra, 2008, p. 173-175). Isto é, o fator territorial, que dá suporte ao âmbito regional de atuação da Região Autónoma, está intimamente imbricado com a delimitação da área geográfica e institucional de influência das assembleias legislativas insulares.
Vem sendo entendimento do Tribunal que para compreensão da referência ao âmbito regional é, também, imprescindível atender a uma componente material. Não basta que a Região se limite a legislar no seu espaço geográfico, também a matéria sobre a qual versa a normação regional (entre muitos: Acórdão n.º 258/2007; Acórdão n.º 119/2010; mais recentemente, Acórdão n.º 613/2011) assume relevância (e, como se verá, também em certa medida, as circunstâncias atinentes à normação). Como se escreveu no Acórdão n.º 258/2007, «Há, na verdade, que atender aos fundamentos, aos fins e aos limites que a Constituição assinala à autonomia regional, no seu artigo 225.º: os fundamentos dessa autonomia assentam nas características regionais geográficas, económicas, sociais e culturais dos arquipélagos dos Açores e da Madeira e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares; os fins consistem na participação democrática dos cidadãos, no desenvolvimento económico-social, na promoção e defesa dos interesses regionais, mas também no reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses; os limites derivam da não afetação da integridade da soberania do Estado e do respeito do quadro constitucional.»
20. Com a redação dada pela Lei Constitucional n.º 1/2004 ao artigo 227.º, n.º 1, alínea a), a Constituição passou a atribuir ao estatuto político-administrativo a capacidade de enunciar as matérias ou setores de atividade em relação aos quais se exerce a autonomia regional. Com tal alteração, que aprofundou a autonomia regional em termos de competência legislativa, as normas estatutárias passaram a completar ou integrar o modelo constitucional de repartição de competências entre o legislador nacional e o legislador regional. A competência do legislador regional é agora fixada pela Constituição, que enuncia os poderes regionais, com a intermediação complementar dos Estatutos, enquanto lei básica da região, que passam a ter um papel central na delimitação material da legislação regional (ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, in ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO/PEDRO LOMBA, Comentário à Constituição Portuguesa, III, Tomo I, Coimbra, Almedina, 2008, p. 178; Acórdão n.º 187/2012, mas igualmente, entre outros, Acórdão n.º 258/2007, Acórdão n.º 402/2008, Acórdão n.º 304/2011).
Assim, os Estatutos enunciam as matérias ou «domínios substanciais da vida coletiva que requerem solução». Eles enumeram «os tipos de atividades concretas, identificadas tendo em conta os fins sociais que com elas se pretende prosseguir» em diferentes domínios (MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, Coimbra Editora, 2005, p. 374 e 375.)
A necessidade de cada ato legislativo regional encontrar fundamento no Estatuto Político-Administrativo da respetiva Região Autónoma poderá conduzir a uma diferente distribuição da competência legislativa nas diferentes Regiões, o que terá, como consequência natural, a existência de concretas opções legislativas distintas em cada uma das Regiões. Tal realidade é facilmente explicada pela razão de caber a cada uma das Assembleias Legislativas da Região Autónoma a iniciativa legislativa para a aprovação dos seus próprios Estatutos pela Assembleia da República, sendo esta a norma básica em que se funda cada decreto legislativo regional.
21. Ao exercício de competências legislativas regionais a Constituição traça um importante limite excludente: os decretos legislativos regionais não podem versar sobre matéria da reserva de competência dos órgãos de soberania.
Alguns acórdãos do Tribunal Constitucional vieram, entretanto, explicitar que as matérias reservadas à competência legislativa própria dos órgãos de soberania, e que excluem a intervenção legislativa das Regiões Autónomas, são, não apenas aquelas que a Constituição reserva à Assembleia da República e ao Governo [incluindo as que, fora do elenco dos artigos respeitantes às competências legislativas destes, a Constituição reserva ao Estado, noutros lugares do texto, por exemplo no artigo 63.º, n.º 2 (Acórdão n.º 304/2011); ou 59.º, n.º 2 (Acórdão n.º 268/88;)], mas que tal reserva abarca, também, aquelas matérias relativamente às quais a Constituição, ainda que implicitamente, exige a intervenção do legislador nacional, por extravasarem o âmbito regional (Acórdão n.º 258/2006; Acórdão n.º 258/2007; Acórdão n.º 402/2008; Acórdão n.º 793/2013).
O Tribunal tem vindo a sufragar, na linha do Acórdão n.º 258/2007, uma interpretação extensiva do conceito de matérias reservadas, admitindo-se que existem matérias que, mesmo não estando incluídas nas reservas legislativas dos órgãos de soberania reclamariam a intervenção do legislador nacional, já que extravasam o âmbito regional (outros exemplos são o Acórdão n.º 402/2008 ou o Acórdão n.º 613/2011). Considera-se que «esta reserva da República não pode limitar-se a estas matérias (as explicitamente previstas) devendo abranger por inerência outras matérias que não podem, pela sua natureza eminentemente nacional, ser reguladas senão por órgãos legislativos do Estado» (GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, Coimbra, 2010, p. 661).
É pacífico que o recurso, pelo Tribunal Constitucional, a uma interpretação extensiva da reserva dos órgãos de soberania – tantas vezes operada pela invocação do caráter unitário do Estado e dos laços de soberania nacional – não pode ser vulgarizado de tal modo que faça renascer a necessidade de fazer intervir a noção de «interesse específico da região» abandonada pelo texto constitucional na revisão de 2004. Eram consideradas matérias de «interesse específico da região» «aquelas matérias que lhes respeitem exclusivamente ou que nelas exijam um especial tratamento por aí assumirem particular configuração» (Acórdão n.º 42/85). Relembre-se que a Revisão Constitucional de 2004 pretendeu alargar as competências legislativas regionais, e atribuir aos Estatutos o papel determinante na fixação das matérias da competência regional.
Essa necessária contenção veio a ser relembrada no Acórdão n.º 613/2011. No aresto, relativizou-se a importância da matéria sobre que versam as medidas legislativas. Apesar de relevante para aferir das condicionantes à competência legislativa insular, não foi a consideração da matéria em si que conduziu à solução encontrada. Determinantes seriam as circunstâncias de emergência económico-financeira do País em que eram adotadas as medidas e o contributo que para a solução desta dariam as normas aí questionadas.
No Acórdão vinha impugnada, entre outras, a medida de redução remuneratória imposta pela Lei do Orçamento do Estado para 2011. O então requerente – o Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira – contestava que, pelo seu caráter imperativo, tal norma prevalecesse sobre quaisquer normas em sentido contrário, aplicando-se, consequentemente, aos deputados das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas, aos membros dos Governos Regionais, bem como aos trabalhadores de órgãos e serviços da administração pública regional, incluindo o setor empresarial regional, já que ficaria vedada às Regiões Autónomas a emissão de legislação em sentido contrário.
Discutiu-se, no aresto, se a medida incidiria sobre uma matéria de «âmbito regional».
O Acórdão veio a concluir que «não é, portanto, a matéria em si mesma que “não pode, pela sua natureza eminentemente nacional, ser regulada senão por órgãos legislativos do Estado”, mas são antes circunstâncias macroeconómicas de âmbito nacional e internacional que determinam, sob pena de total ineficácia, que as medidas concretamente tomadas pelo Estado possam adquirir imperatividade a nível de todo o território nacional, tendo, até, em vista, como se afirmou já, “… o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses” e, bem assim, “… a integridade da soberania do Estado…” (cfr. artigo 225.º, n.ºs 2 e 3 da Constituição)».
Ou seja, decidiu-se que «Não é sustentável …a ideia de que nunca, e em circunstância alguma, possa haver medidas legislativas que muito embora não estejam textualmente no domínio da reserva de competência da Assembleia da República sejam, por motivos de relevante interesse nacional, tomadas imperativamente para todo o território nacional».
No caso, o Acórdão descrevia a medida de redução remuneratória aplicável às Regiões Autónomas como consubstanciando «parte relevante de um desígnio nacional global, nomeadamente quando se possa dizer que as medidas tomadas pelo legislador parlamentar visam, em conjunto articulado com outras, provocar efeitos de escala nacional e de repercussão internacional prevenindo assim os prejuízos (ou o aumento dos prejuízos) associados ao défice e à dívida pública excessivos».
Em suma, concluiu-se que a medida de redução remuneratória, a nível nacional ou regional, tinha um objetivo que o referido Acórdão expressamente enunciava: no contexto macroeconómico da crise financeira, pretendia operar uma redução do excesso da dívida pública, mediante contenção das despesas com pessoal.
Tendo por referência o quadro traçado, vejamos, então, se a Região Autónoma dos Açores podia, neste caso, exercer o seu poder legislativo.
22. Como se assinalou, para que a Região Autónoma possa exercer a sua competência legislativa, a Constituição exige que a matéria a que respeite o decreto legislativo regional esteja enunciada no respetivo Estatuto Político-Administrativo.
Ora, as normas em questão versam matéria enunciada no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (aprovado pela Lei n.º 39/80, de 5 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 9/87, de 26 de março, pela Lei n.º 61/98, de 27 de agosto, e pela Lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro). O Estatuto, pelo disposto no artigo 67.º, alínea f) – norma que possui valor reforçado, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 112.º, n.º 3, 280.º, n.º 2, alíneas b) e c), e 281.º, n.º 1, alíneas c) e d) da Constituição – atribui à Assembleia Legislativa poder para legislar em matéria de «instituição de remuneração complementar aos funcionários, agentes e demais trabalhadores da administração regional autónoma».
Desta forma, é conferido à Região o poder de instituir uma remuneração complementar e de a conformar.
O requerente também reconhece que o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (Lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro) concede à Assembleia Legislativa da Região Autónoma competência para definir o regime legal em matéria de remuneração complementar dos funcionários, agentes e demais trabalhadores da administração regional autónoma, e que não «se pode legitimamente questionar a capacidade legislativa da Assembleia parlamentar açoriana para rever ou atualizar o regime substantivo da remuneração complementar regional».
E mesmo com a reconfiguração do seu regime jurídico, não se pode afirmar que não tenha sido (ainda) a competência legislativa atribuída à Região Autónoma para criar e modelar um complemento de remuneração aquela que a Região exerceu.
23. A matéria enunciada no artigo 67.º, alínea f), do Estatuto Político Administrativo da Região Autónoma dos Açores não está abrangida pelas reservas legislativas expressamente delimitadas a favor da República.
A norma estatutária credencia a Região para instituir e modelar uma prestação como a que as normas em análise modelam: uma prestação meramente complementar à remuneração, mas com ela não confundível, que assume um cariz ainda predominantemente económico-social. O que não se estranha: as normas estatutárias, na delimitação que realizam, traduzem a preocupação da correção das desigualdades derivadas da insularidade (artigo 229.º, n.º 1, da Constituição), já que «a vida nas ilhas, mormente nas menores e mais afastadas, arrasta carências e obstáculos ao pleno fruir de direitos económicos, sociais e culturais» (JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo III, Coimbra Editora, 4.ª Edição, p. 305).
As normas em causa estabelecem um benefício adicional que não pode confundir-se com a remuneração percebida, ainda que se repercuta no rendimento disponível de quem dela beneficie. Também por isso, não contendem com matérias reservadas aos órgãos de soberania (pode ver-se, sobre uma outra medida que institui uma prestação deste cariz, o Acórdão n.º 304/2011).
Não procede, por isso, a invocação do requerente segundo a qual, em virtude de a solução em apreciação consistir, em sua opinião, numa medida relativa à retribuição do trabalho (artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição), tal medida caberia na reserva relativa da Assembleia da República, por respeitar a direitos fundamentais de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias (artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição).
24. Já atrás se sublinhou que o Tribunal vem entendendo ter a Constituição erigido, igualmente, como parâmetro delimitador da competência legislativa das Regiões, o «âmbito regional» da sua intervenção. Tal implica não somente o respeito pela componente territorial que tal requisito pressupõe, mas ainda a verificação da sua componente material.
Ora, no raciocínio do requerente, é o âmbito nacional e não o regional – já que seriam nacionais as medidas imperativas contrariadas -, que definiria esta iniciativa legislativa. O requerente invoca, dissemo-lo já, que as medidas em causa afrontam uma opção legislativa soberana tomada pela Assembleia da República de índole imperativa e de âmbito nacional, já que «anulam ou neutralizam significativamente os efeitos das reduções salariais decorrentes do Orçamento do Estado para 2014, previstas para todo o universo dos trabalhadores do setor público estadual, regional e local com remunerações totais ilíquidas superiores a 675 euros». A ser assim, não seria possível reconduzi-las a medidas de âmbito regional. A unidade do Estado e a solidariedade entre todos os portugueses imporiam uma solução uniforme.
A essa invocação respondemos já (no ponto D14): a atribuição do complemento de remuneração é uma prestação que jurídica e formalmente não se confunde com qualquer iniciativa que derrogue o regime de redução remuneratória ou de proibição de revalorizações remuneratórias.
Resta verificar se a medida de atribuição de uma remuneração complementar, em si mesma considerada, se circunscreve ao «âmbito regional» ou se, pelo contrário, corresponde a solução à qual os princípios da unidade do Estado e da solidariedade nacional devam impor um desenho forçosamente nacional.
25. As normas cuja apreciação foi pedida ao Tribunal, que fixaram a referida remuneração complementar ao abrigo da norma estatutária correspondente, têm «âmbito regional», quer na sua componente territorial, por instituírem e regularem uma medida exclusivamente aplicada no espaço geográfico da Região Autónoma, quer na sua componente material.
No entendimento que fazemos da solução legislativa introduzida pelos n.os 1 e 2 do artigo 43.º do Decreto n.º 24/2013, a matéria não requer um tratamento à escala nacional, encontrando justificação, fundada nas características geográficas, económicas e sociais da Região, para proceder à sua diferenciação a nível regional. E é à Região Autónoma que caberá avaliar se o contexto económico e financeiro atual justifica que, fazendo uso das verbas de que dispõe, se mantenha ou alargue a prestação em causa. A remuneração complementar é um apoio suportado exclusivamente pela Região Autónoma, que ainda pode ser considerado como sendo atribuído para compensar os custos da insularidade. Com este objetivo, são as razões da insularidade e do isolamento que a justificam.
Também as circunstâncias em que a sua regulação se realiza não obrigam a que o seu tratamento seja deixado à Assembleia da República.
Do ponto de vista orçamental a medida assume, como reconhece o requerente, um âmbito exclusivamente regional: afinal, a concessão dos referidos benefícios sociais pela Região não implica um acréscimo de transferências financeiras do Orçamento do Estado para o Orçamento da Região Autónoma, do mesmo modo que a sua não implementação não fará reverter para o Orçamento do Estado as verbas destinadas ao seu pagamento. Ou seja, as despesas que as normas respeitantes à remuneração complementar regional implicam oneram exclusivamente o Orçamento regional, já que são suportadas pela Região e não acarretam um aumento da despesa de pessoal para 2014 que, pelo contrário, diminuiu, como, à frente, melhor se explanará. Na perspetiva orçamental, as medidas apenas relevam no que se refere à redistribuição interna de recursos de nível regional, tarefa que se situa na margem de liberdade conformadora da Assembleia Legislativa, que tem o poder, dentro dos limites legais, de destinar as verbas orçamentais de acordo com as suas opções político-económicas.
26. Por outro lado, como vimos, ao legislar nesta matéria, o legislador regional procura atenuar os custos derivados da insularidade, potenciados pelo isolamento das populações insulares e agravados pela atual conjuntura.
Retrocedendo à ratio das disposições jurídicas em causa, resulta claro que o legislador regional, no estrito enquadramento da sua competência legislativa, procedeu à conformação normativa do regime jurídico da remuneração complementar regional, presidido pelos objetivos fundamentais da autonomia regional: “atenuação dos efeitos desfavoráveis da localização ultraperiférica da região, da insularidade e do isolamento;” (artigo 5.º, f) do EPARAA). As normas em questão, quer na formulação originária, quer na atual, respeitam à atribuição de um apoio que, atendendo ao peso da insularidade nas condições económicas e sociais dos ilhéus, visa mitigar o aumento dos custos da insularidade (agravados, agora, pela redução do diferencial fiscal), apresentando a natureza de solução para a compensação dos custos das desigualdades resultantes da insularidade.
Já em ocasiões anteriores o Tribunal Constitucional reconheceu a particular situação dos trabalhadores do espaço insular em face dos trabalhadores do continente. Uma das razões justificadoras das especificidades regionais apontadas foi o diferente custo de vida nas ilhas e no continente. O Tribunal afirmou que, no caso das ilhas, o custo de vida é agravado, quer em virtude do agravamento do custo dos produtos, quer pelo maior custo dos serviços. Assim, no Acórdão n.º 268/88, para verificação da existência de «interesse específico da Região», que, à data, era ainda requisito positivo de verificação obrigatória para que à Região Autónoma fosse reconhecida competência legislativa, o Tribunal entendeu que «de facto, o trabalhador continental, porque os preços dos bens e serviços essenciais, no seu conjunto, são, no continente, inferiores aos dos Açores, tem de despender com eles menos dinheiro que o trabalhador açoriano», e, em consequência, reconheceu à Região competência legislativa em matéria de institucionalização de suplementos regionais aos salários mínimos nacionais. Considerou o Tribunal que «a diferença dos índices do custo de vida, entre os diversos espaços da geografia portuguesa» justificaria o preenchimento do referido requisito, já que tal questão, por essas circunstâncias, seria «merecedora, pelo seu caráter único e exclusivo, de um tratamento próprio».
O suplemento regional regulado pelas normas que foram, no citado Acórdão, objeto de fiscalização pelo Tribunal Constitucional é hoje estabelecido pelo diploma em que se inserem as normas sob apreciação, com a designação «acréscimo regional à retribuição mínima mensal garantida».
Em suma, no caso das normas em apreciação, conclui-se que a criação de uma remuneração complementar regional não é uma questão da República, mas uma questão de âmbito regional.
27. Será neste ponto que caberá verificar se, como sustenta o requerente, as normas agora questionadas contrariam o reforço da unidade nacional e os laços de solidariedade entre todos os portugueses, pondo em causa a reserva de competência legislativa da República.
Entende o requerente que o exercício da competência legislativa regional, traduzido nas alterações ao regime previsto para o complemento de remuneração regional, conduziria a que se esvaziasse, em termos significativos, «o esforço de redução da despesa pública levado a cabo pelos órgãos de soberania», e que não se pode permitir que «medidas legislativas adotadas pela Assembleia da República ao abrigo da sua competência legislativa genérica (161.º) e, só por isso, aplicáveis a todo o território nacional (…) tenham a sua eficácia comprometida em virtude de regimes especiais ou excecionais emanados pelos legisladores regionais, em nome de interesses públicos conjunturais ou parcelares».
Por isso, em seu entender, «o desrespeito por parte do legislador regional das referidas disposições normativas fixadas imperativamente pela Assembleia da República implica, por inerência, uma violação da reserva de competência soberana desta, implícita no princípio da unidade do Estado e no princípio da solidariedade entre todos os portugueses».
28. A instituição, pelo legislador regional, de uma remuneração complementar favorecendo os trabalhadores da administração regional direta e indireta, ainda que encontre cobertura estatutária, só poderá ocorrer quando não ponha em causa, designadamente, os princípios do Estado unitário e da solidariedade nacional.
Assim, o Tribunal tem exigido (veja-se o Acórdão n.º 304/2011) que mesmo em matérias de competência legislativa concorrencial, como em muitas matérias de direitos económicos, sociais e culturais, a Região pode criar um regime complementar mais favorável «desde que com isso não subverta o sentido do regime autonómico insular por referência ao princípio do Estado unitário (artigo 6.º da Constituição) e das razões em que a autonomia regional constitucionalmente se funda e dos objetivos que visa (artigo 225.º da Constituição)».
No caso, tudo está em saber se estaremos diante de uma questão de interesse nacional, «que não se compadece com a regionalização do seu tratamento normativo, mormente com a abertura incondicionada que a norma sindicada lhe dá». O mesmo é dizer que é necessário saber se «estão em causa valores e interesses que reclamam um acolhimento universal e uma conformação unitária em todo o território nacional, com o controlo e supervisão da atividade confiada concertadamente a uma única entidade, sem deixar margem a configurações desviantes particularizadoras» (Acórdão n.º 402/2008).
29. Sempre que exista uma previsão estatutária que defira competência legislativa à Região Autónoma, só em casos muito excecionais (Acórdão n.º 613/2011) se deve procurar nas exigências decorrentes do Estado unitário e na solidariedade nacional a justificação para o afastamento do exercício dessa competência pela Região.
Mesmo para quem admita que o funcionamento destes princípios terá o seu campo operativo próprio, que não coincide com o universo delimitado pela reserva explícita de competência legislativa dos órgãos de soberania, não será possível, hoje, à luz dos pressupostos constitucionais saídos da 6.ª Revisão da Constituição, avalizar a intervenção do legislador nacional, sem olhar às circunstâncias, aceitando que só a este caiba legislar em qualquer situação em que estejam em causa assuntos que interessam imediatamente à generalidade dos cidadãos.
Relembre-se que, em virtude do modelo desenhado pela Revisão Constitucional de 2004, como princípio geral «a Constituição só elenca as matérias sobre as quais é, de forma exclusiva e excludente, competente o próprio Estado (matérias de competência dos órgãos de soberania…)», e é aos Estatutos – e não à opção do legislador (estadual) ordinário – que deixa a tarefa de fixação das restantes matérias sobre as quais decidem as Regiões (MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, p. 377; no mesmo sentido, JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, p. 349).
Não basta que o legislador ordinário decida que algumas matérias – mesmo que sejam reduções remuneratórias e proibição de revalorizações – requerem iniciativas legislativas uniformes. Se tal fosse suficiente, o legislador ordinário, na prática, faria a sua própria repartição de competências, ao arrepio do disposto na Constituição e nos Estatutos Político-Administrativos da Região.
30. É indiscutível que a autonomia político-administrativa das Regiões Autónomas, manifestada no exercício do poder legislativo por parte da Região, está condicionada pelo respeito devido à forma unitária do Estado, inscrita no artigo 6.º da Constituição.
O princípio do Estado unitário encerra essencialmente a ideia de um “único Estado – uma só constituição, órgãos de soberania únicos para todo o território nacional, uma ordem jurídica, com clara definição da competência das competências políticas e legislativas.” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, Coimbra Editora, 2010, p. 231).
A consagração constitucional da autonomia das Regiões Autónomas, nas suas diversas expressões – autonomia política; autonomia administrativa; autonomia económica e financeira; autonomia normativa, – implica que o exercício do poder autonómico não prejudique a integridade da soberania do Estado.
Mediante a criação e regulação da prestação de remuneração complementar, a Região não afeta a soberania do Estado: ao moldá-la, a Região não está a assumir os poderes dos órgãos de soberania, nem, de modo algum, a bulir com a estrutura unitária do Estado. Exerce, somente, um poder inscrito no regime autonómico insular. E este poder, legislativo, traz consigo uma opção política própria da Região. Como se disse, as normas dos n.os 1 e 2 do artigo 43.º alargam e suportam uma prestação predominantemente económico-social que, em si, não tem interferência nos mecanismos de apoio previstos a nível nacional.
31. O Representante da República para a Região Autónoma dos Açores argumenta, também, que as normas em apreciação poriam em causa o princípio da solidariedade nacional (artigo 225.º, n.º 2, da Constituição). Diz o requerente que «todos os portugueses se encontram empenhados na construção de um destino comum e que, portanto, devem partilhar equitativamente tanto os benefícios quanto as dificuldades desse percurso». Logo, nas circunstâncias atuais, todos deveriam sofrer o impacto das reduções remuneratórias, o que, em seu entender, não acontece.
Ora, como se explicou já, a Região, com esta medida, não pôs em causa as reduções remuneratórias ou as proibições de revalorização salarial. E, ainda que com o complemento remuneratório haja sido minorado o impacto das medidas de redução salarial e do agravamento fiscal resultante da diminuição do diferencial fiscal concedido à Região pela nova Lei das Finanças Regionais, tal prestação não pôs em causa o contributo da Região para o esforço comum da consolidação das contas públicas.
Mesmo sendo certo que a redução das remunerações e a proibição de revalorização salarial previstas no Orçamento do Estado são intervenções legislativas que se inscrevem no âmbito de uma orientação estratégica dirigida ao esforço de consolidação orçamental, visando a eliminação do desequilíbrio nas Finanças Públicas e a redução no nível do endividamento, não se pode, à evidência, declarar que com esta medida esse objetivo nacional tenha sido posto em causa.
Não poderá, com rigor, afirmar-se que a Região Autónoma não contribui para a resposta global de sustentabilidade das contas públicas e para a correspondente redução do défice público nacional, pelo facto de ter procurado minorar – na sua dimensão real, refletida no poder de compra dos açorianos – o impacto sacrificial pessoal que a diminuição do diferencial fiscal e a redução remuneratória pressupunham.
Nem, tão pouco, a medida acarreta, ao contrário do que invoca o requerente, um aumento das despesas com pessoal em cerca de 13,62 milhões de euros para o Orçamento da Região Autónoma.
Na verdade, a comparação enunciada não contemplava a reposição da totalidade dos subsídios de férias e de Natal, e o Orçamento da Região para 2014, que já não inclui a previsão de qualquer corte nos subsídios, esquecendo, assim, o Orçamento retificativo para 2013, aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 15/2013/A, de 4 de outubro.
Comparados os valores retificados para 2013 e os valores previstos para 2014, o que se verifica é uma diminuição da despesa com pessoal, de 314,3 milhões de euros em 2013, para 305,5 milhões de euros em 2014.
E a redução mantém-se, ainda que se leve em consideração as despesas com pessoal dos Fundos Autónomos: a despesa global desceu 3,9 milhões de euros, segundo as informações juntas ao processo.
A Região, apesar da atribuição da remuneração complementar, procurou contribuir para o esforço comum de redução das despesas com pessoal.
O que vem dito acerca da solidariedade da Região para com os portugueses residentes no restante território nacional, suportado no n.º 2 do artigo 225.º da Constituição, não deve fazer esquecer que o sentido matricial da solidariedade na Constituição, em matéria de autonomia regional, é a ideia da correção das desigualdades derivadas da insularidade (artigo 229.º, n.º 1), havendo a Constituição erigido como tarefa fundamental do Estado «Promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em conta, designadamente, o caráter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e da Madeira» (artigo 9.º, alínea g), da Constituição).
O mesmo sentido de proteção diferenciadora é assegurado no quadro europeu, que reconhece, no artigo 349.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, que Regiões Ultraperiféricas – aí se incluindo as Regiões Autónomas portuguesas – têm necessidade de um tratamento diferenciado, de especial favor, justificado pelas suas particulares características socioeconómicas, provocadas «pelo grande afastamento, pela insularidade, pela pequena superfície, pelo relevo e clima difíceis e pela sua dependência económica em relação a um pequeno número de produtos, fatores estes cuja persistência e conjugação prejudicam gravemente o seu desenvolvimento». E é neste quadro de promoção do crescimento inclusivo que a Comunicação da Comissão – COM (2012) 287, acerca das Regiões ultraperiféricas da União Europeia, disponível em http://ec.europa.eu/regional_policy/sources/docoffic/official/communic/rup2012/rup_com2012287_pt.pdf -, reconhece também ela, a necessidade de tratamento específico das Regiões Periféricas, legitimando diferenciações. Neste mesmo pressuposto, é delineado o Plano de Ação 2014-2020, para a Região Autónoma dos Açores (disponível em http://ec.europa.eu/regional_policy/activity/outermost/doc/plan_action_strategique_eu2020_acores_pt.pdf).
32. Resta aqui invocar que o argumento fundamental segundo o qual a corrente conjuntura – à qual é inerente a necessidade de consolidação das contas públicas, redução da despesa pública e consequente diminuição do défice orçamental – justificaria a proibição da adoção de medidas parcelares que nos seus efeitos práticos contrariassem as medidas de âmbito nacional, não procede no contexto da concreta questão em análise.
Não se aceita que, mesmo em situações de todo singulares, se possa pretender que, em casos de competência concorrencial, se atenda à invocação dessas circunstâncias extraordinárias, para obstar a uma medida que não contribui para frustrar o invocado desígnio nacional, já que a medida não acarreta um encargo suplementar para a República.
Embora o Representante da República para a Região Autónoma dos Açores haja invocado o Acórdão n.º 613/2011 para justificar a alegada inconstitucionalidade das normas que vêm reconfigurar a atribuição da remuneração complementar regional, as modificações introduzidas pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores a tal prestação não põem em causa os objetivos de «redução do excesso de dívida pública, mediante a contenção de despesas com pessoal» que determinaram aquela solução.
As normas em análise, prevendo a concessão de uma prestação de caráter predominantemente económico-social, que exclusivamente afeta o orçamento próprio da Região Autónoma dos Açores, não se repercutem na solução do problema da “emergência orçamental e financeira de amplitude nacional” visado pelo Acórdão n.º 613/2011. Tanto mais que, como reconhece o requerente, tais benefícios, sendo inteiramente financiados pelo orçamento regional, não implicam um acréscimo de transferências financeiras do Orçamento do Estado para a Região Autónoma dos Açores, já que o cálculo do montante de tais transferências orçamentais se encontra rigorosamente definido na Lei das Finanças Regionais (artigo 48.º da Lei n.º 2/2013), não tendo qualquer relevância, nesta perspetiva orçamental, a redistribuição interna de recursos de nível regional.
Conclui-se, por isso, que a Região Autónoma está autorizada a criar, à sua própria custa, (e admite que as autarquias locais da região possam vir a fazer o mesmo, caso assim o entendam), um apoio, procurando compensar as desvantagens das condições de vida resultantes da insularidade e os custos acrescidos que esta implica. E, na situação atual, também resultantes do agravamento dos impostos na Região Autónoma.
Pelo que vem de se dizer, não se vê como poderia o pagamento de tal prestação complementar ser entendida como quebra da solidariedade nacional ou da unidade do Estado. No caso, como reconhece o próprio requerente, os complementos à remuneração, a cuja reconfiguração a Região Autónoma agora procede, são custeados pela Região, e não implicam, em si mesmos, um acréscimo de transferências financeiras do Estado para a Região, nem determinam o aumento da despesa com pessoal, relativamente ao ano anterior.
Em suma, não estão ausentes nesta opção, como já anteriormente se referiu, as razões em que a autonomia das Regiões Autónomas constitucionalmente se funda, nem os propósitos que visa (artigo 225.º da Constituição).
Conclui-se, assim sendo, pela não violação da reserva de competência legislativa da República ínsita nos princípios da unidade do Estado e da solidariedade nacional.
33. Saliente-se, por fim, que a modelação do regime de atribuição da remuneração complementar regional, introduzida pelos n.os 1 e 2 do artigo 43.º do Decreto n.º 24/2013, é realizada no âmbito do exercício da autonomia financeira constitucionalmente deferida às Regiões Autónomas.
A autonomia financeira regional, designadamente na sua vertente de autonomia orçamental, é, ao lado da autonomia político-legislativa e administrativa da Região Autónoma, uma importantíssima dimensão, «a qual constitui o suporte indispensável daquelas» (FREITAS do AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. I, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2006, p. 704).
Nas palavras de Eduardo Paz Ferreira, a «autonomia financeira das regiões constitui, de facto, um ponto absolutamente essencial da autonomia política, dado que é ela que, verdadeiramente, vai garantir a prossecução dos objetivos que se visam alcançar com o regionalismo político, permitindo às comunidades regionais formularem padrões de escolha de despesa diversificados» («Aspetos Recentes da Evolução da Autonomia Financeira», Estudos de Direito Financeiro Regional, Jornal de Cultura, Ponta Delgada, 1995, p.71).
A autonomia orçamental, no caso com maior pertinência, consiste na disponibilidade da Assembleia Legislativa afetar as suas receitas à cobertura das respetivas despesas, dentro da sua lógica de oportunidade, embora com as limitações decorrentes de uma disciplina jurídica própria (desde logo, os Estatutos, a Lei das Finanças das Regiões Autónomas, mas, também, os princípios jurídicos fundamentais). Tal autonomia traduz-se, segundo o mesmo autor, «na consagração da existência de uma possibilidade de escolha de um padrão de despesa distinto daquele que está consagrado no Orçamento do Estado» (ob. cit. p.74).
Constitucionalmente credenciadas pelo artigo 227.º, n.º 1, alínea j) («afetá-las (as receitas) às suas despesas próprias»), e pelos artigos 227.º, n.º 1, alínea p), e 232.º, n.º 1 (aprovação do Orçamento regional pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma), as Regiões elaboram e aprovam o seu próprio orçamento, no exercício da respetiva autonomia orçamental, decidindo, com autodeterminação, a afetação dos recursos à satisfação das necessidades que elegeram.
Como se vem afirmando, sendo objetivo fundamental das Regiões Autónomas o respetivo desenvolvimento económico e social – assim como o fim específico de correção das desigualdades derivadas da insularidade -, é condição da sua operância o poder de dispor, com certo grau de liberdade, das suas receitas.
O desenho constitucional da autonomia orçamental assenta, deste modo, na preponderância da liberdade de opção da Assembleia Legislativa Regional, isenta, conforme reconhece o requerente, de um escrutínio de mérito político por parte dos órgãos de soberania. As Regiões Autónomas, dotadas dos seus próprios recursos e de uma certa margem de “independência orçamental” (JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo III, 2007, p. 330) encontram-se constitucionalmente legitimadas para a afetação e gestão das suas receitas, de acordo com o seu próprio juízo de oportunidade, para prossecução dos objetivos económico-sociais por si delineados.
Como referiu este Tribunal, no Acórdão n.º 567/2004, dispondo as Regiões Autónomas de poder orçamental, podem «tomar autonomamente as decisões de afetação das receitas às suas despesas (cf. artigo 227º, nº1, alínea j), da Constituição)», ou seja, dispõem do poder de «decidir quais as finalidades das despesas, quais os serviços que recebem os créditos orçamentais e o seu volume».
Também neste domínio, a autonomia regional é «autonomia como liberdade de decisão dentro do leque de competências constitucional e estatutariamente definidas, sem qualquer tutela ou controlo dos órgãos do governo central» (GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, Almedina, Coimbra, p. 360).
Assim sendo, resulta, igualmente, nesta perspetiva, que a criação ou modelação da disciplina jurídica da remuneração complementar – cuja atribuição tem por efeito onerar, de forma circunscrita, o orçamento regional – se enquadra dentro da competência da Assembleia Legislativa da Região Autónoma, sendo exercida no quadro da autonomia financeira regional.
Pelo que se conclui que as normas em apreciação não só não padecem de inconstitucionalidade por violação da reserva legislativa dos órgãos de soberania ínsita nos princípios da unidade do Estado e da solidariedade nacional, como foram emitidas no âmbito da autonomia financeira (orçamental) que a Constituição consigna à Região Autónoma.
b) Apreciação da inconstitucionalidade por violação do Princípio da Igualdade (artigos 13.º e 229.º, n.º 1 da Constituição)
34. Invoca, igualmente, o Representante da República para a Região Autónoma dos Açores que «as normas conjugadas do n.º 1 e n.º 2 do artigo 43.º do Decreto n.º 24/2013 vêm introduzir no ordenamento jurídico uma diferenciação de tratamento – vêm tratar mais favoravelmente determinadas categorias de trabalhadores em funções públicas, por comparação com o regime geral que resulta do Orçamento do Estado – sem que, contudo, exista um fundamento material suficiente para justificar esse mesmo tratamento diferenciado».
Segundo o requerente, as normas em causa tratam de modo diverso os trabalhadores da administração regional autónoma (direta e indireta), – que beneficiariam da medida –, bem como os trabalhadores da administração local açoriana, – que poderiam vir a dela beneficiar por opção da administração local -, relativamente aos trabalhadores da Administração Pública da Região Autónoma da Madeira, assim como aos trabalhadores de toda a Administração estadual, designadamente os trabalhadores da Administração estadual que exerçam funções nas ilhas – que não usufruiriam de remuneração complementar, ainda que auferissem o mesmo rendimento base.
Tal tratamento diferenciado traduzir-se-ia numa violação do princípio da igualdade já que teria lugar apenas pelo facto de os trabalhadores pertencerem a «aparelhos administrativos diferentes».
35. A construção do requerente para censura das normas sob o ponto de vista de igualdade parte, de novo, da ideia de que as disposições questionadas visam contrariar as normas orçamentais do Estado que impuseram reduções remuneratórias aos trabalhadores do setor público (33.º) e proibiram revalorizações salariais (39.º).
Ora, começam por valer, também aqui, as razões atrás enunciadas relativas à caracterização da medida em causa: as normas em apreciação não estabelecem uma derrogação às normas orçamentais que preveem as reduções remuneratórias e que proíbem as revalorizações salariais, antes criam e modelam a atribuição, pela Região Autónoma, de uma prestação complementar à remuneração.
36. Ainda que se afaste a existência de uma contradição formal das normas em apreciação com as mencionadas normas orçamentais, é inegável que a instituição de uma remuneração complementar regional introduz um regime que diferencia, positivamente, os trabalhadores que recebem por verbas da Região, aumentando o seu rendimento disponível.
Sublinhe-se, porém, que não tem fundamento constitucional pretender-se que a igualdade inscrita no artigo 13.º da Constituição obriga a que se omita qualquer diferenciação positiva.
Já a Comissão Constitucional, no Parecer n.º 15/81, perfilhara o entendimento de que o legislador constitucional não considera ilícita a criação de regimes jurídicos mais favoráveis para certos grupos de cidadãos, quando se tem em vista uma tendencial «igualdade de oportunidades ou igualdade de tratamento de facto». A Comissão concluiu no sentido de não se declarar a inconstitucionalidade de um regulamento do Governo da República que previa uma alteração dos preços nas tarifas aéreas, mais vantajosas para os residentes nas Regiões Autónomas. Nesse Parecer afirmou-se:
“Sucede, porém, que tais discriminações favoráveis ou positivas têm uma razão de ser evidente, não configurando, por isso, uma violação ao princípio da igualdade, tal como é postulado na nossa Constituição (artigo 13º): o legislador considera atendível a circunstância de os cidadãos portugueses residirem habitualmente nas regiões autónomas, em ilhas afastadas do continente, para introduzir reduções dos preços de viagens aéreas que, de alguma maneira, minorem os inconvenientes da insularidade e do desigual desenvolvimento sócio-económico das próprias regiões autónomas por referência ao continente (...).”
37. Muitas vezes, é na perspetiva da diferenciação estabelecida entre as soluções adotadas para o continente e as soluções adotadas para todos os que, numa Região Autónoma, se enquadrem em determinado grupo, que vem pedido ao Tribunal Constitucional que proceda à sua avaliação, de modo a aferir do seu respeito pelo princípio da igualdade.
E desse ponto de vista, a justificação da diferença de tratamento vem sendo encontrada na própria condição regional do grupo em causa: as especificidades económicas, sociais e culturais do arquipélago justificariam a autonomização da prossecução de interesses regionais especiais (VIEIRA DE ANDRADE, “Autonomia regulamentar e reserva de lei”, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Coimbra, 1984, p. 21), orientados no sentido da correção das desigualdades face ao mesmo grupo do continente, ou, até, de outra Região Autónoma (artigo 229.º, n.º 1, da Constituição). É o que se pode apreender, por exemplo, do Acórdão n.º 304/2011. Aí se disse que «Se a Região Autónoma, com recursos próprios, pretende discriminar positivamente as pessoas que padecem de determinada doença tentando compensar, com apoio clínico, as suas desvantagens, é livre de o fazer. Neste campo estritamente económico-social e fora das matérias constitucionalmente reservadas aos órgãos de soberania, a autonomia legislativa regional prevalece sobre a igualdade formal». O Tribunal considerou determinante, para a validade da diferenciação regional estabelecida no sentido da atribuição de benefícios sociais, o facto de estes serem aprovados pelas Regiões nos estritos limites do seu poder legislativo, e de serem custeados pelas próprias Regiões.
Muitas vezes é o próprio legislador nacional que modela os regimes jurídicos, ou admite a sua modelação pela Região Autónoma, de forma a acomodar as diferenças justificadas pelas especiais características geográficas, económicas e sociais das Regiões insulares. Para a situação em análise, é particularmente impressiva a já mencionada possibilidade de adaptação do sistema fiscal nacional às especificidades regionais, que a Lei das Finanças das Regiões Autónomas (artigo 59.º) abre às Regiões, autorizando a diminuição das taxas nacionais do IRS, do IRC, do IVA e dos impostos especiais de consumo, admitindo deduções à coleta especiais, assim como benefícios fiscais diferenciados.
Atendendo às diversas considerações atrás já expendidas – nomeadamente às que salientaram as especificidades resultantes dos custos da insularidade, agora agravados pela diminuição do diferencial fiscal, bem como a circunscrição dos efeitos orçamentais ao orçamento próprio da Região Autónoma dos Açores – conclui-se que haverá razões para permitir à Região instituir ou modelar, através de um complemento de remuneração, uma diferenciação de tratamento, de sentido mais favorável, relativamente ao regime em vigor no continente, não procedendo a alegada violação do princípio da igualdade.
38. Acontece que, no caso em apreciação, conforme reclama o requerente, a solução adotada isola um universo de destinatários que serão objeto de tratamento díspar «apenas» pelo facto de se inserirem em organizações administrativas diversas. E o requerente invoca que a condição regional – de trabalharem na Administração Regional – não é fundamento suficiente para justificar a diferença de tratamento. Aqui, a correção das desigualdades derivadas da insularidade – a que se refere o artigo 229.º, n.º 1, da Constituição – não justificaria a discriminação positiva destes trabalhadores da Administração Pública regional em relação aos trabalhadores da Administração não regional a operar na Região, e que tivessem disponível o mesmo rendimento base.
Todavia, a razão que possibilita uma tal diversidade de soluções é evidente e pode ser procurada na própria arquitetura da forma de Estado constitucionalmente escolhida: um Estado de estrutura unitária, que, simultaneamente acolhe a autonomia insular (JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, V. II, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009, p. 979 e ss.).
A autonomia regional (e em especial a autonomia político-legislativa), que a Constituição e os estatutos político-administrativos desenham, concede às Regiões autónomas um papel relevante no sistema das fontes de direito. É a própria opção constitucional por um Estado unitário que «respeita na sua organização e funcionamento o regime autonómico insular» (artigo 6.º) que implica a existência de subsistemas normativos regionais diferenciados (PEDRO MACHETE, «Elementos para o estudo das relações entre os atos legislativos dos Estado e das Regiões Autónomas no quadro da Constituição vigente», Estudo de Direito Regional, Lex, Lisboa, 1997, p. 92). Por força do exercício do poder legislativo das Regiões, coexistem, na ordem jurídica nacional, o sistema legislativo nacional e os sistemas legislativos regionais.
Inexistindo uma relação de hierarquia entre o sistema nacional e o sistema regional, está o legislador regional – nos termos e com as condicionantes constitucionais e estatutárias atrás descritos – habilitado a consagrar soluções diferentes das previstas a nível nacional.
39. Assim, o que é pedido ao legislador regional, pelo artigo 13.º da Constituição, é que, dentro do universo jurídico por si criado, não introduza soluções de desigualdade não fundadas. Este princípio «vincula o legislador regional no exercício das suas competências próprias, mas não o subordina, no exercício das suas competências, às soluções encontradas no plano nacional. Diferente entendimento corresponderia, aliás, à negação da própria ideia de autonomia constitucionalmente garantida.» (Acórdão n.º 423/2008).
Por isso, quando o requerente sustenta que as alterações introduzidas pelos n. os 1 e 2 do artigo 43.º se aplicam imediatamente aos trabalhadores da administração regional autónoma, mediatamente aos trabalhadores do setor público empresarial regional, e apenas condicionalmente aos trabalhadores da administração local insular, não se aplicando aos trabalhadores da administração pública estadual, que desempenham a sua função no território açoriano, isso resulta, precisamente, do limite de competência do legislador regional.
O legislador regional só pode, por si mesmo, atingir o universo circunscrito de destinatários direta ou indiretamente ligados à administração regional. Tal como apenas pode, no exercício da sua competência legislativa, dispor de verbas relativamente às quais seja competente. Como reconhece o requerente, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma «não pode dispor legislativamente para o Estado e tem de respeitar o estatuto e a autonomia financeiras das autarquias locais».
E dentro do universo abrangido no âmbito das suas competências, o legislador regional procurou, até, corrigir desigualdades, alargando o possível leque de beneficiários da remuneração complementar regional.
Fê-lo, designadamente, de modo a contemplar os trabalhadores do setor público empresarial regional.
Mas, por não dispor a Assembleia Legislativa da Região Autónoma de competência legislativa, já lhe estará vedada a atribuição da remuneração complementar aos trabalhadores do Estado que exerçam funções nos serviços periféricos do Estado localizados na Região.
Por outro lado, vinculando cada um dos legisladores regionais no exercício das suas próprias competências, o princípio da igualdade também não condiciona a solução adotada por uma Região Autónoma em função da solução que haja sido adotada pela outra Região Autónoma.
Do mesmo modo, são, também, os limites impostos pelo reconhecimento constitucional da autonomia local (artigo 235.º), designadamente da sua autonomia financeira (artigo 238.º), que circunscrevem o poder de influência do legislador insular nas soluções a adotar em matéria de remuneração complementar regional. Ao legislador regional não cabe substituir-se às autarquias locais, ainda que sediadas na Região, numa opção que, desde logo, afeta receitas de que aquelas, e não a Região, são titulares (RUI MEDEIROS/JOÃO LAMY FONTOURA, «”Remuneração compensatória Regional”, no quadro das restrições remuneratórias impostas na Lei do Orçamento do Estado para 2011», Açores: uma reflexão jurídica, Coimbra Editora, p. 108). Pelo que fica na liberdade de cada autarquia o seu alargamento aos trabalhadores dos órgãos das autarquias locais e do setor empresarial municipal.
Ora, como se referiu já, é a Constituição, conjugada com a previsão estatutária do artigo 67.º, alínea f), enquanto fundamento legal da opção regional diferenciadora, que dão à instituição do complemento de remuneração a credenciação indispensável ao exercício da liberdade de conformação legislativa por parte da Região.
Essa liberdade de conformação legislativa autonómica radica, além do mais, como atrás se referiu, em circunstâncias regionais específicas capazes de credenciarem a opção da Região pela criação e concreta modelação da remuneração complementar regional.
Assim sendo, não se considera que as normas impugnadas sejam violadoras do princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição) por criarem uma diferenciação entre os trabalhadores da administração regional e os das restantes administrações públicas, designadamente quando estes vivam e trabalhem nos Açores.
III. Decisão
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide não se pronunciar pela inconstitucionalidade das normas resultantes da conjugação dos n.os 1 e 2 do artigo 43.º, do Decreto n.º 24/2013 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores – que aprova o Orçamento da Região Autónoma dos Açores para o Ano de 2014 – na medida em que aquele preceito dá nova redação aos artigos 9.º, 10.º, 11.º e 13.º e aprova a tabela anexa ao Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, de 10 de abril.
Lisboa, 20 de janeiro de 2014. – Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Lino Rodrigues Ribeiro – Ana Guerra Martins – Pedro Machete (com declaração) - Maria João Antunes – José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral (vencida, conforme declaração de voto junta) – Carlos Fernandes Cadilha (vencido conforme declaração de voto junta) – Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida, de acordo com declaração junta) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Subscrevi a decisão do acórdão, por considerar, no essencial pelas razões nele aduzidas, não se poder ter por demonstrado que as alterações ao regime da «remuneração complementar regional» introduzidas pelos n.os 1 e 2 do artigo 43.º do Decreto n.º 24/2013 desfigurem ou modifiquem a mesma «remuneração», de tal modo, que este complemento tenha passado a corresponder a um mero sucedâneo da anterior «remuneração compensatória», insuscetível de se reconduzir à figura prevista no artigo 67.º, alínea f), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores. O novo regime contribui decerto, e em termos não negligenciáveis (de que é exemplo elucidativo a progressividade inicial do coeficiente de atribuição), para a aproximação dos dois institutos. Porém, e como referido no acórdão, subsistem diferenças relevantes impeditivas de uma total identificação. Acresce que o citado preceito estatutário – expressamente invocado como título habilitante pelo órgão autor das normas ora em análise - consagra uma competência que confere grande espaço de conformação ao legislador democrático regional e que se autonomiza claramente da norma estatutária relativa ao âmbito e regime dos trabalhadores da Administração Pública regional autónoma (cfr. o artigo 49.º, n.º 3, alínea a), do mesmo Estatuto Político-Administrativo). Consequentemente, e salvo evidência do contrário, cumpre ao Tribunal respeitar a indicação da norma estatutária habilitante feita pelo legislador regional. De resto - e muito significativamente – o requerente (também) não rejeita nem põe em causa que o sindicado artigo 43.º, n.os 1 e 2, do Decreto n.º 24/2013 incida sobre matéria enunciada no referido Estatuto Político-Administrativo; questiona, isso sim, o seu âmbito regional, na medida em que considera que aquela disciplina normativa «invade» a competência legislativa da República.
Não obstante a concordância com o sentido da decisão, afasto-me da sua fundamentação em dois aspetos particulares, ambos relacionados com a compreensão constitucional das competências legislativas regionais e a interpretação que das mesmas tem vindo a ser feita pela jurisprudência constitucional posterior à sexta revisão constitucional, aprovada pela Lei Constitucional n.º 1/2004, de 24 de julho.
2. Em primeiro lugar, discordo da pertinência de uma análise da reserva de lei da República fundada na consideração do princípio da unidade do Estado e do princípio da solidariedade entre os cidadãos portugueses, considerados de per si ou isoladamente, como normas (organizatórias) de competência. Penso, diversamente, que estes princípios correspondem a normas materiais estruturantes do Estado de direito democrático e que, como tal, e em articulação necessária com outras normas materiais e organizatórias, contribuem para a definição do sistema constitucional de repartição de competências legislativas, incluindo as competências implícitas, entre os três centros de poder legislativo: o Estado e as duas regiões autónomas.
2.1. A perspetiva competencial – que é aquela que subjaz ao pedido e a grande parte da fundamentação do acórdão - é estática e pressupõe a determinabilidade prévia do objeto sobre o qual vai incidir o exercício da competência: uma norma de competência legislativa, por definição, é habilitadora; habilita a legislar sobre os assuntos nela enunciados com maior ou menor densidade. Ora, dos princípios da unidade do Estado e da solidariedade entre os cidadãos portugueses não consegue retirar-se que matérias não consideradas ex professo noutros artigos da Constituição (com especial destaque para os artigos 164.º e 165.º, mas não só) devem ser objeto apenas de lei ou decreto-lei; ou, por outras palavras, um qualquer conteúdo mínimo competencial determinável ex ante relativamente ao qual os órgãos do Estado devem estabelecer necessariamente a disciplina legislativa primária. Daí a necessidade de o acórdão se socorrer da análise da imperatividade de normas nacionais infraconstitucionais e dos motivos invocados para a fundamentar ou de uma alegada «ofensa do conteúdo mínimo» daqueles princípios, aferindo a violação do conteúdo competencial de tais princípios por parte de leis regionais unicamente – porque também só assim é aferível – por intermédio da violação de leis nacionais.
Por essa via, pode identificar-se um conflito entre fontes normativas infraconstitucionais; mas não uma relação direta e imediata de contradição entre as leis regionais e a Constituição. Do mesmo modo, também não me parece consentânea com a estrutura organizatória da Constituição a ideia de que, numa base casuística e ex post, as leis nacionais podem revelar ou explicitar assuntos e matérias que, por força dos aludidos princípios da unidade e da solidariedade, devem ser objeto de «legislação primária» por parte dos órgãos de soberania.
2.2. A premissa em que assenta o pedido do requerente – sob invocação da jurisprudência do Acórdão n.º 613/2011 - é, com efeito, a de que o desrespeito por parte do legislador regional de disposições normativas imperativas fixadas pela Assembleia da República “implica, por inerência, uma violação da reserva soberana” desta, implícita nos mencionados princípios da unidade do Estado e da solidariedade entre os cidadãos portugueses. Os poderes regionais seriam, deste modo, confrontados com uma “obrigação negativa de respeito por certas opções legislativas fundamentais do legislador nacional”.
Porém, a revisão constitucional de 2004, ao eliminar a categoria de «leis gerais da República», afastou a possibilidade de a competência legislativa regional ser delimitada negativamente por atos legislativos do Estado (ou pelos seus «princípios fundamentais»); aquela competência passou, desde então, a ser definida exclusivamente – de forma explícita ou implícita - pela Constituição, completada pelo catálogo de matérias enunciadas no estatuto político-administrativo da respetiva região (cfr., na Constituição, os artigos 112.º, n.º 4, 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1; na jurisprudência, v. em especial os Acórdãos n.os 258/2007, 423/2008 e 304/2011; e, como exemplo do reconhecimento de competência implícita, v. o caso do financiamento de partidos políticos decidido pelo Acórdão n.º 26/2009).
Isto, naturalmente, sem prejuízo de o Estado Português continuar a ser unitário e de, portanto, quer o princípio da unidade do Estado, quer o princípio da solidariedade entre os cidadãos portugueses continuarem a ser mobilizáveis no domínio em que operam de acordo com a sua natureza de normas materiais. Contudo, a aludida «obrigação negativa de respeito por certas opções legislativas fundamentais do legislador nacional», a deduzir eventualmente desses princípios, não implica nem exige uma reserva de competência legislativa dos órgãos de soberania; basta-se, de acordo com uma perspetiva principiológica, com a preferência aplicativa da legislação nacional nos casos em que o maior peso do interesse da unidade do estado ou do interesse da solidariedade entre os cidadãos portugueses justifica a preterição do princípio da subsidiariedade. Aliás, isso mesmo parece ser reconhecido, ao menos implicitamente, no próprio pedido (pág. 15):
« Em causa está apenas o reconhecimento de que a legislação emanada dos órgãos de soberania, quando manifestamente incorpore a defesa de valores constitucionais de primeira grandeza — como a independência do País em face dos credores internacionais e das instituições que os representam e/ou a recuperação, pelos órgãos democraticamente eleitos, dos seus poderes normais de governação - não pode ter natureza meramente supletiva, nem consequentemente ser afastada a sua plena vigência insular pelos órgãos de governo próprio dos Açores e da Madeira.».
No Acórdão n.º 304/2011 este Tribunal caracterizou o ordenamento resultante do sistema de repartição de competências legislativas entre a República e as regiões autónomas como «pluricêntrico», “com um centro estadual (ou da República) e dois centros regionais de produção de atos legislativos”, e reconduziu o princípio da supletividade consagrado no artigo 228.º, n.º 2, da Constituição ao “critério da preferência aplicativa da normação regional válida, para a resolução dos conflitos normativos (conflitos positivos) entre a legislação regional e a legislação estadual que regule a mesma matéria”. A perspetiva aqui adotada já não é estática e competencial-organizatória, mas dinâmica e material, fundada na relação entre princípios jurídicos: ocorrendo um conflito entre normas nacionais e normas regionais, importa verificar qual delas, atentos os valores constitucionais concretamente em causa, deve prevalecer. E a resposta a esta questão dada no mencionado artigo 228.º, n.º 2, é a de que prima facie deve preferir a norma regional, desde que válida.
A supletividade entendida nestes termos é um corolário dos princípios da autonomia político-administrativa das regiões autónomas e da subsidiariedade consagrados no artigo 6.º da Constituição. Deste modo, a mesma supletividade tem de respeitar os fins e os limites daquela autonomia político-administrativa. Daí a necessidade de admitir que normas nacionais imperativas possam prevalecer sobre as normas regionais concorrentes, quando, e se, estiverem em causa os laços de solidariedade entre todos os portugueses e, ou, a integridade da soberania do Estado (cfr. os artigos 225.º, n.os 2 e 3, da Constituição). Julgo ser este o sentido que se deve inferir da jurisprudência do Tribunal Constitucional posterior à revisão constitucional de 2004: desde logo, no Acórdão n.º 613/2011, invocado como antecedente pelo requerente; mas também no Acórdão n.º 412/2012, a propósito da sobretaxa extraordinária sobre os rendimentos sujeitos a IRS no ano de 2011.
Consequentemente, uma vez firmada a validade jurídico-constitucional de uma norma legislativa regional com base na verificação dos respetivos requisitos positivos e negativos de competência, em caso de conflito positivo com normas de uma lei ou um decreto-lei de caráter imperativo para o todo nacional, a questão de constitucionalidade que se pode suscitar – e que deve ser decidida pelo Tribunal Constitucional - respeita apenas à pretensão de prevalência destas últimas.
E esta é uma vantagem metódica da abordagem aqui perfilhada: a necessidade de tutela dos interesses fundamentais do Estado que justificam o afastamento no caso concreto do princípio da supletividade da legislação nacional, dando primazia aos princípios da unidade do Estado e, ou, da solidariedade entre os cidadãos portugueses é discutida diretamente com o representante legítimo daqueles interesses, ou seja, com o autor da norma que pretende a sua aplicação preferencial com base nos aludidos princípios: é ele que tem de convencer o Tribunal Constitucional das boas razões para afastar no caso concreto a mera supletividade da norma nacional, aplicando-a preferencialmente relativamente ao direito de fonte regional. Deste modo, centra-se a discussão naquilo que verdadeiramente é essencial – se os fins e interesses invocados para justificar a pretendida prevalência da norma nacional são constitucionalmente legítimos – e possibilita-se o controlo do exercício de poderes excecionais face aos princípios constitucionais aplicáveis (diferentemente do que sucede em casos como o presente em que o órgão legislativo que afirma a necessidade de prevalência do direito nacional – a Assembleia da República ou o Governo – nem sequer pode intervir no contraditório).
2.3. Revertendo ao caso objeto do presente acórdão, direi que, nesta perspetiva, não tem o Tribunal Constitucional de conhecer e apreciar a eventual incompatibilidade entre o novo regime da «remuneração complementar regional» e a Lei do Orçamento do Estado para 2014; as relações entre esses dois atos legislativos relevam exclusivamente do plano infraconstitucional, situando-se, por conseguinte, fora dos seus poderes de cognição e decisão.
As únicas questões de constitucionalidade que se podem suscitar, a propósito da imperatividade de normas contidas na citada Lei do Orçamento, dizem respeito tão-somente à respetiva pretensão de aplicação preferencial, com afastamento do princípio da supletividade consagrado no artigo 228.º, n.º 2, da Constituição. O problema coloca-se, nesse particular, em termos análogos àqueles em que a questão foi apreciada pelo Acórdão n.º 613/2011 (ainda que in casu a solução possa ser diferente).
3. Em segundo lugar, no que se refere ao princípio da igualdade, considero que o argumento enunciado no Acórdão n.º 423/2008 e acolhido no presente acórdão procede, sem mais, apenas em relação à perspetiva nacional (comparação dos trabalhadores da Administração Pública da Região Autónoma dos Açores com trabalhadores em funções públicas residentes fora daquela Região Autónoma). Quanto à perspetiva intrarregional (comparação dos trabalhadores que exercem funções públicas ao serviço de diferentes Administrações Públicas na Região Autónoma dos Açores), a procedência do mesmo argumento carece de uma explicação adicional.
Com efeito, na ótica do requerente, o que está em causa é o tratamento diferenciado por parte do legislador regional de situações que, por força da Constituição, devem ser disciplinadas de modo uniforme em todo o território nacional, incluindo a própria Região Autónoma dos Açores. Nesses casos, a adoção de normas legislativas regionais induz, salvo reprodução de normas nacionais, a violação da igualdade. Isso mesmo foi reconhecido no Acórdão n.º 793/2013:
« A «questão chave» é aqui […] a exigência constitucional de uniformidade de regime […] dos trabalhadores em funções públicas. E face a tal exigência, um decreto legislativo regional não é, em princípio, instrumento adequado para disciplinar essa matéria, uma vez que está, por natureza, limitado ao «âmbito regional», no sentido territorial e institucional do termo consagrado pela jurisprudência constitucional (cfr. os Acórdãos n.os 258/2007, 423/2008 e 304/2011). Mas, sendo assim, o vício de inconstitucionalidade radicará, desde logo, no instrumento legislativo, e não no seu conteúdo, qualquer que ele seja; a violação da igualdade será simples consequência da adoção de um regime que não pode deixar de diferenciar entre realidades, em princípio, iguais – os trabalhadores da Administração Pública regional e os trabalhadores das demais Administrações – e que, por isso mesmo, requerem um tratamento igual.»
In casu, porém, justamente pelas razões invocadas supra no n.º 1, o requerente não logrou afastar o âmbito regional do artigo 43.º, n.os 1 e 2, do Decreto n.º 24/2013 e, consequentemente, não demonstrou a necessidade constitucional de a «remuneração complementar regional» ou realidade equivalente ser paga a todos os trabalhadores que exerçam funções públicas na Região Autónoma dos Açores, independentemente de qual seja a respetiva entidade pública empregadora. E, fora do âmbito da exigência constitucional de tratamento uniforme, pode a Região Autónoma dos Açores no quadro das suas competências compensar os custos da insularidade, tal como postulado pela previsão dos artigos 58.º, n.º 2, alínea b) («complemento regional de pensão»), 61.º, n.º 2, alínea b) («complemento regional à remuneração mínima mensal garantida») e 67.º, alínea f) («remuneração complementar regional»), todos do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores. Assim, a «remuneração complementar regional» não é atribuída aos trabalhadores da Administração do Estado na Região Autónoma dos Açores, porque de outro modo tal Região extravasaria das suas atribuições e do âmbito regional da sua competência legislativa.
Pedro Machete
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. A figura da reserva de competência legislativa da República foi sendo construída pela jurisprudência do Tribunal desde meados da década de 1980. Nessa altura e como bem se sabe, a Constituição procedia à repartição de competências legislativas entre Estado e regiões empregando para tanto uma cláusula geral valorativa: as regiões autónomas podiam legislar em matérias que não estivessem reservadas à competência própria dos órgãos de soberania desde que tais matérias fossem do interesse específico da região. Foi neste contexto que o Tribunal disse que o elemento negativo do sistema de repartição de competências – o decorrente da “reserva de competência própria dos órgãos de soberania” – não podia ser entendido de forma estrita: o âmbito do que fosse a “reserva própria dos órgãos de soberania” não podia coincidir com a lista de matérias expressamente atribuídas, em reserva, pela Constituição à Assembleia da República (a reserva de competência legislativa do Governo é aqui irrelevante) porque se não podia excluir a ocorrência de situações ou a existência de domínios da vida que, não obstante não encontraram lugar em nenhuma das listas constantes dos (hoje) artigos 164.º e 165.º da CRP, reclamassem por condição e natureza a intervenção uniforme do legislador da República para todo o território nacional. A categoria, assim formulada, sustentou-a metodicamente o Tribunal nos princípios fundantes do Estado unitário. A inclusão de uma certa matéria nesta “reserva legislativa da República” – que assim se distinguia da reserva de competência legislativa da Assembleia da República – seria decidida caso a caso, por recurso à interpretação dos princípios estruturantes do Estado unitário e às exigências de regulação uniforme que dele decorressem.
Creio que não vale a pena voltar a mencionar as críticas que então foram feitas a esta construção. O que vale a pena, penso, é salientar como ela se tornou particularmente útil (se não mesmo indispensável) depois da sexta revisão constitucional. Um sistema de repartição de competências fundado, não já na técnica da cláusula geral, mas na técnica da dupla lista – lista das matérias reservadas à competência própria dos órgãos de soberania, coincidente com os elencos dos artigos 164.º e 165.º da CRP (o artigo 198.º, n.º 2 continua a ser irrelevante); lista das matérias, estatutariamente definidas, que formam o âmbito da competência legislativa das regiões após a sexta revisão constitucional – seguramente que não será operativo, apenas assim definido, para resolver todos os problemas de conflitos de competências que venham a emergir entre Estados e regiões. Entre os domínios da vida fixados nas normas dos Estatutos político-administrativos e aqueles que decorrem do elenco dos artigos 164.º e 165.º da CRP seguramente que haverá muitos outros a requererem regulação, e que nenhuma das duas listas pode prever. E certamente que em alguns desses domínios a competência matricial que, num Estado unitário, o legislador estadual detém – e que é a competência para legislar para todo o território nacional – se converterá em competência reservada, e portanto furtada à possibilidade de regulação regional, justamente pelas exigências decorrentes dos princípios da unidade do Estado e da solidariedade entre todos os portugueses.
A definição de uma política macro-económica tendente a resolver os problemas das contas da República perante credores externos parece-me ser, sem margem para dúvidas, um desses domínios. Os órgãos de governo da República que, neste contexto, tomam decisões, têm que ser capazes (têm que ser constitucionalmente capazes) de fazer incidir os efeitos das suas escolhas sobre todo o território nacional, dada a magnitude dos valores fundamentais que aqui requerem uma solução uniforme para a toda a ordem jurídica. A meu ver, e se a categoria “reserva da competência da República” faz sentido, é precisamente este um dos domínios em que o faz. Não creio que tenha relevância, para a resolução do problema, o facto de a eventual dissensão das regiões face às decisões de política macro-económica nacional se não traduzir em custos orçamentais para o Estado, por ser tomada (essa decisão de eventual dissensão) estritamente à “custa “ da região. Uma política macro-económica (precisamente por ser desta índole) procura evidentemente ter efeitos em muitos outras variáveis e em muitos outros domínios que não os estritamente orçamentais ou financeiros. A competência da República para a definir em termos exclusivos, sem possibilidade de dissensão das regiões autónomas, não pode pois ser contra-argumentada com a invocação da autonomia financeira e (ou) orçamental da região. O problema, pura e simplesmente, não passa por aí.
2. O Tribunal também não entendeu que fosse esse o problema. A decisão maioritariamente tomada neste caso, e que conduziu à pronúncia de não inconstitucionalidade, foi integralmente determinada por um outro pressuposto: o de que a matéria em causa era da competência da região, uma vez que se subsumia no disposto pela alínea f) do artigo 67.º dos Estatutos Político-Administrativos do Açores. Com a assunção deste pressuposto o Tribunal aderiu à tese defendida pelo autor da medida legislativa, segundo o qual as normas sob juízo mais não eram do que a regulação normal do regime de remuneração complementar regional, regime esse iniciado há mais de dez anos e constitucionalmente justificado pela necessidade de compensar os custos de insularidade. Podia o Tribunal ter aderido a esta tese por assumir (em posição metódica que eu entenderia bem mais correta, se bem que com ela não concordasse) que lhe não era possível, em nome do princípio da presunção da constitucionalidade das leis ou de outro que limitasse no caso os poderes de reexame da medida legislativa, concluir que o legislador, in casu, tinha pretendido outra coisa que não a que ele próprio confessava. Mas não foi isso que sucedeu. Na verdade (e segundo creio), o Tribunal tomou como sua a tese defendida pelo autor da norma porque a entendeu defensável face aos princípios constitucionais que fundamentam a existência de regimes de “vantagem”, em termos de prestações sociais, para as regiões [a forma como se responde à questão da desigualdade de tratamento, no território regional, entre trabalhadores que exercem funções públicas tendo como empregador a região e trabalhadores que exercem funções públicas tendo como empregador o Estado, e que chega a ser conceptualizada de acordo com os quadros próprios da figura da discriminação positiva, revela bem, a meu ver, esta “deriva” da resposta dada pelo Tribunal para uma justificação da defensabilidade da medida face a parâmetros constitucionais materiais]. Só que a questão que lhe fora colocada não era esta mas uma outra, de estrita natureza competencial. Ora, quanto a este problema de competência, a solução encontrada arrimou-se em argumentos de interpretação do direito ordinário que entendo perfeitamente reversíveis, e, por isso mesmo, não convincentes.
Foi por isso que me pronunciei no sentido da inconstitucionalidade, em consonância aliás com o que penso ser o lastro deixado pela jurisprudência anterior, nomeadamente a fixada no Acórdão nº 613/2011.
Maria Lúcia Amaral
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por considerar que a alteração introduzida pelo diploma em apreciação no Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, de 10 de abril, descaracteriza a remuneração complementar regional que aí se encontrava prevista, em termos de não poder considerar-se já inserida no âmbito da competência legislativa regional a que se reporta o artigo 67º, alínea f), do Estatuto Político Administrativo da Região Autónoma dos Açores, visando antes neutralizar em relação aos trabalhadores da administração pública regional a imperatividade das reduções remuneratórias instituídas pelo artigo 33º, n.º 1, da Lei do Orçamento de Estado para 2014, que deverá entender-se como medida legislativa de âmbito nacional integrada na reserva de competência da Assembleia da República.
Na linha dos regimes anteriormente definidos pelos Decretos Legislativos Regionais n.ºs 1/2000/A, 2/2000/A e 3/2000/A, de 12 de janeiro, o Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, que procurou condensar esses outros diplomas legais, veio estabelecer, a par do acréscimo regional ao salário mínimo e do complemento regional de pensão, o regime jurídico da atribuição da remuneração complementar regional, visando, por um lado, «atenuar a diferença do nível de custo de vida nos Açores em relação ao continente, designadamente os derivados dos custos da insularidade, e, por outro, diminuir as desigualdades resultantes do baixo valor das remunerações ou pensões auferidas por uma faixa da população residente nos Açores, traduzindo-se numa medida de justiça social» (do respetivo preâmbulo). Nesse sentido se compreendia que o montante efetivo a abonar (por último atualizado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 3/2012/A, de 13 de janeiro), fosse determinado segundo uma escala gradualmente regressiva que ia desde a atribuição da totalidade para aqueles cuja remuneração fosse igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida até a 25% desse montante para aqueles cuja remuneração esteja compreendida entre os índices 355 e 380 da escala remuneratória, correspondente ao intervalo entre € 1.216 e € 1.304.
Contrariamente, por via da nova redação dada pelo Decreto n.º 24/2013 ao artigo 11º do Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, a remuneração complementar regional é atribuída aos trabalhadores que aufiram remuneração base até € 3050 inclusive, e de acordo com uma tabela que aplica um coeficiente regressivo nos três primeiros escalões de remuneração, fortemente progressivo até à remuneração base de € 2000, e um coeficiente regressivo apenas a partir desse montante, e que neutraliza tendencialmente os efeitos das reduções salariais decorrentes das Lei do Orçamento de Estado para 2014. Para os escalões que não atingem € 675, e que não são objecto de reduções salariais, a remuneração complementar, por efeito da sua estrutura regressiva, mantém o sentido útil de uma prestação social. Para valores de remunerações superiores a € 675 e inferiores a € 2000, a que se aplica, para os trabalhadores do setor público, uma taxa progressiva de redução remuneratória que varia entre os 2,5% e os 12%, o acréscimo remuneratório aplicável aos trabalhadores da administração regional é agora calculado com base num coeficiente de atribuição também progressivo que permite anular aquelas reduções salariais. A título meramente exemplificativo, para retribuições de € 675, € 1000, € 1500 e € 2000, a que por efeito do Orçamento do Estado correspondem, respetivamente, reduções de € 16,875 (2,5%), € 52 (5,2%), € 129 (8,6%) e € 240 (12%), o acréscimo remuneratório regional atinge € 72,70 (100 x 0,727), € 94,60 (100 x 0,946), € 161,2 (100 x 1,612) e € 239,2 (100 X 2,392). Para remunerações superiores a € 2000 a que se aplica em geral uma taxa fixa de redução remuneratória de 12%, o coeficiente de atribuição do acréscimo remuneratório é regressivo mas também porque o carácter proporcional da redução determina um desagravamento em termos monetários da medida orçamental em função do maior valor da remuneração, pelo que tem ainda assim um efeito compensatório relativamente aos cortes salariais, mitigando o sacrifício que é imposto pelas disposições gerais de redução remuneratória aplicáveis aos trabalhadores do setor público.
O alargamento para € 3050 do limite máximo de remuneração a que é agora aplicável a remuneração complementar regional (anteriormente fixado em € 1304) é, desde logo, pouco consentâneo com a natureza de medida de justiça social que justificava a atribuição desse acréscimo remuneratório, e revela que o que se pretende não é já um mero efeito corretivo de desigualdades resultantes do baixo valor das remunerações auferidas pelos trabalhadores da administração regional, mas um efeito corretivo das próprias reduções salariais impostas pelo legislador nacional. Por outro lado, a aplicação de um coeficiente variável em função da incidência da taxa de redução remuneratória (em substituição da anterior escala regressiva), também demonstra de modo muito claro que o objetivo político não é o de atenuar o desvio negativo que resulta do agravamento do custo de vida nos Açores por comparação com o continente. Se estivesse em causa apenas a necessidade de compensar os custos económicos gerados pela insularidade o que faria sentido é que a medida, tal como foi originariamente concebida, beneficiasse preferencialmente, numa escala gradual, os trabalhadores com menores rendimentos por serem esses os mais penalizados com o aumento do custo de vida.
Por efeito da alteração legislativa introduzida, a remuneração complementar regional apresenta agora a configuração de um mero complemento remuneratório que tem como efeito prático compensar as reduções remuneratórias a que os trabalhadores da administração regional se encontram sujeitos, enquanto trabalhadores do setor público, nos termos da Lei do Orçamento do Estado e afasta-se manifestamente do conteúdo e da finalidade da medida inicialmente gizada pelo Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A. A disposição do artigo 43º do Decreto n.º 24/2013 não é, nesses termos, reconduzível ao âmbito aplicativo da alínea f) do artigo 67º do Estatuto Político Administrativo da Região Autónoma dos Açores, que inclui na competência da Assembleia Legislativa Regional a possibilidade de instituição de remuneração complementar aos trabalhadores da administração regional autónoma enquanto medida de apoio social justificada pelos custos da insularidade.
Nesse sentido, a disposição em causa está ferida de inconstitucionalidade orgânica por ausência, desde logo, de um dos requisitos de que depende a intervenção legislativa regional (artigo 227º, n.º 1, alínea a), da Constituição).
Como se ponderou, por outro lado, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 613/2011, que incidiu sobre a constitucionalidade de disposições da Lei do Orçamento do Estado para 2011 que impunham reduções remuneratórias em relação a deputados da assembleias legislativas das regiões autónomas e aos membros dos governos regionais, essas são medidas de redução do défice e de sustentabilidade das contas públicas que visam dar resposta institucionalmente abrangente a um problema de emergência orçamental e financeira de amplitude nacional e que só poderão ser eficazmente garantidas ao nível de todas as entidades financeiramente relacionadas com o Estado, num quadro de «unidade nacional» e de «solidariedade entre todos os portugueses». E trata-se, por isso, de medidas de contenção de despesa, que ainda que se não encontrem textualmente inseridas na reserva de competência da Assembleia da República, poderão ser feitas prevalecer imperativamente em todo o território nacional e integram a competência implícita do legislador nacional. Esse mesmo critério tem necessariamente aplicação no quadro das reduções remuneratórias que, pelas mesmas razões de emergência financeira, são tornadas extensivas à generalidade dos trabalhadores do setor público, incluindo os trabalhadores da administração pública regional, pelo que também em relação à norma do artigo 33º, n.º 1, da Lei do Orçamento do Estado para 2014 se deverá entender que incide sobre matéria que, pela sua natureza, só pode ser regulada pelos órgãos legislativos da República. Também por esse motivo, a Assembleia Legislativa Regional não poderia legislar de modo a contrariar as normas imperativas que estabelecem reduções remuneratórias e que integram a reserva de competência do legislador nacional, incorrendo, também por isso, em violação do disposto no artigo 227º, n.º 1, alínea a), da Constituição.
É inteiramente irrelevante, por outro lado, que os efeitos financeiros do complemento remuneratório sejam exclusivamente suportados pela dotação orçamental da Região.
Como se esclareceu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 304/11, aos órgãos legislativos regionais, em matéria de competência legislativa concorrencial, não está vedado instituir um regime complementar mais favorável do que aquele que foi uniformemente definido pelo legislador estadual para todo o território nacional, desde que exclusivamente financiado por verbas orçamentais de âmbito regional. O ponto é que se trate de medidas de âmbito exclusivamente regional, até do ponto de vista orçamental, e que não contenda com as matérias reservadas aos órgãos de soberania.
Não é esse o caso quando a Região Autónoma se propõe atribuir um complemento remuneratório, ainda que à sua custa, que se destina a esvaziar, no âmbito geográfico da Região, as medidas de redução de despesa que o legislador nacional pretende estabelecer articuladamente para vigorar em todo o território nacional. Neste contexto, não se trata de matéria de mera incidência regional em que a Assembleia Legislativa Regional pudesse interferir.
Nestes termos, pronunciei-me no sentido da inconstitucionalidade orgânica do diploma.
Carlos Fernandes Cadilha
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei a inconstitucionalidade das normas resultantes dos n.os 1 e 2 do artigo 43.º, do Decreto n.º 24/2013 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores - que dão nova redação aos artigos 9.º, 10.º, 11.º e 13.º e aprova a tabela anexa ao Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, de 10 de abril.
Passo a expor, sumariamente, as razões do meu voto.
2. A alínea f) do artigo 67.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (EPARAA) atribui à Assembleia Legislativa a competência para legislar em matéria da “instituição de remuneração complementar aos funcionários, agentes e demais trabalhadores da administração regional autónoma” (destaque da minha autoria).
É certo que o referido preceito do EPARAA não estabelece o objetivo que deve ser prosseguido por essa “remuneração complementar”. No entanto, na interpretação deste preceito, não se poderá esquecer que, por um lado, a competência legislativa da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores incide «no âmbito regional» (artigo 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição), e que, por outro lado, nos termos da Constituição, a autonomia das regiões visa «a participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico-social e a promoção e defesa dos interesses regionais, bem como o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses» (artigo 225.º, n.º 2) – sendo, neste âmbito, de dar especial atenção à necessária «correção das desigualdades derivadas da insularidade» (artigo 229.º, n.º 1, da Constituição). A criação de uma “remuneração complementar” deverá ter, portanto, um destes objetivos.
3. Esta interpretação é confirmada pela consagração legislativa efetiva da remuneração complementar. Note-se que a alínea f) do artigo 67.º do EPARAA foi introduzida em 2009, aquando da revisão operada pela Lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro, sendo que a consagração da “remuneração complementar regional” a precede, tendo sido instituída na Região Autónoma dos Açores pelo Decreto Legislativo Regional n.º 3/2000, de 12 de janeiro. Pode-se, portanto, razoavelmente deduzir que a norma atribuidora de competência legislativa do EPARAA se referia, pelo menos, à criação e regulação de complementos deste tipo.
Esta “remuneração complementar regional” destinava-se aos agentes da administração regional e local com rendimentos inferiores aos estabelecidos como valor de incidência do imposto (IRS), e, como tal, não beneficiando do desagravamento fiscal instituído pelo Decreto Legislativo Regional n.º 2/99-A. Na mesma data foi criado o acréscimo regional ao salário mínimo e o complemento regional de pensão (Decreto Legislativo Regional n.º 1/2000 e Decreto Legislativo Regional n.º 2/2000, ambos de 12 de janeiro). Na revisão do regime de 2002 clarificou-se que a “remuneração complementar regional” se insere num conjunto de medidas fiscais e salariais, adotadas no exercício da autonomia legislativa da RAA, que visam “por um lado, atenuar a diferença do nível de vida nos Açores em relação ao continente, designadamente os derivados dos custos da insularidade, e, por outro, diminuir as desigualdades resultantes do baixo valor das remunerações ou pensões auferidas por uma faixa da população residente nos Açores, traduzindo-se numa medida de justiça social” (preâmbulo do Decreto Legislativo Regional, n.º 8/2002/A, de 10 de abril). Em conformidade com o fim para que foi instituído, as alterações subsequentemente introduzidas pelo Decreto Legislativo Regional n.º 6/2010/A, de 23 de fevereiro, no regime do complemento remuneratório (que não pode nem deve ser confundido com qualquer remuneração compensatória, do tipo da introduzida pelo Decreto Legislativo Regional n.º 34/2010/A, de 29 de dezembro, que aprovou o Orçamento da Região Autónoma dos Açores para o ano de 2011) mantiveram o seu formato.
Subjacente à criação de todas estas prestações (e da “remuneração complementar regional” em especial) esteve, pois, sempre o objetivo de custear os especiais custos de insularidade – que é também um dos fins constitucionais da autonomia, como referi. A “remuneração complementar” sempre se tratou, no fundo, de um complemento remuneratório “de insularidade” (ou seja, justificado pelos custos de insularidade) de forma “neutral” ou “moderada”. Fixando-se um determinado montante correspondente a esse objetivo, estabelecia-se uma escala moderadamente regressiva para a sua atribuição.
Creio, portanto, que a competência legislativa atribuída pela alínea f) do artigo 67.º do EPARAA deve ser interpretada não de uma forma excessivamente ampla – permitindo a aprovação de todo e qualquer complemento remuneratório – mas reconduzindo-se a uma lógica de correção das desigualdades derivadas da insularidade em matéria de remuneração complementar dos funcionários, agentes e demais trabalhadores da administração regional autónoma.
Note-se que as diversas alterações introduzidas no regime da “remuneração complementar regional” mantiveram a sua configuração regressiva em relação à remuneração do beneficiário, i.e., o complemento remuneratório “de insularidade” manteve sempre a lógica de atribuição do respetivo montante em percentagem variável que decrescia na razão inversa do valor da remuneração. O que bem se compreende, dado que o custo de insularidade aumenta necessariamente na proporção em que decresce o rendimento dos ilhéus e suas famílias. Nunca, na razão inversa.
4. Note-se que a análise do complexo normativo em concreto, que é objeto do pedido, e a sua qualificação, não pode deixar de se enquadrar no âmbito de competências do Tribunal Constitucional. De facto, tendo em conta a configuração das normas atribuidoras de competência legislativa às regiões autónomas, dependente da Constituição mas também, e em especial, das listagens constantes dos Estatutos, é essencial verificar se determinada norma está ou não abrangida por essa competência – o que significa interpretá-la e qualifica-la para determinar se está abrangida por uma dessas normas competenciais do Estatuto.
5. Ora, analisando as normas trazidas ao conhecimento do Tribunal Constitucional a esta luz, parece-me inegável que existe uma subversão do sentido subjacente à “remuneração complementar”.
Existe uma incongruência patenteada na tabela que concretiza os coeficientes de atribuição do complemento (tabela anexa ao Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, de 10 de abril, aditada pelas normas sob escrutínio no presente processo) que desvirtua a ratio do complemento remuneratório de insularidade. Com efeito, entre o escalão de remuneração de 621,35€ e o escalão de 2000€ há um progressivo aumento do complemento à medida que aumenta também a retribuição. Se o objetivo da medida se mantivesse como sendo a correção das desigualdades derivadas da insularidade, este aumento só se poderia justificar se o custo da insularidade fosse mais elevado à medida que aumenta o rendimento do respetivo beneficiário. Será que os custos de insularidade são mais elevados para quem aufere maiores vencimentos? Parece evidente que não. Se legislador quisesse corrigir o aumento do custo associado à insularidade, a solução lógica seria a atribuição de progressivamente maiores complementos a quem aufere menores remunerações, com eventuais correções pontuais, mas mantendo um critério uniforme – como fez, de resto, para o complemento regional de pensão – v. artigo 38.º do Orçamento Regional.
Acresce a circunstância de o complemento passar a ser atribuído a escalões de remunerações nunca antes abrangidos por tal benefício (o complemento introduzido pelas normas em análise incide sobre remunerações até aos 3.050 €), o que mais uma vez excede os objetivos definidos na instituição do respetivo regime acima já enunciados – ou seja de “diminuir as desigualdades resultantes do baixo valor das remunerações ou pensões auferidas por uma faixa da população residente nos Açores, traduzindo-se numa medida de justiça social”.
6. A estrutura das normas ora sob sindicância não cumpre, pois, o objetivo do complemento de insularidade.
Ora, não encontrando o propósito de correção das desigualdades derivadas da insularidade do complemento remuneratório confirmação na sua estrutura normativa, inevitável será concluir que ela não institui um mero complemento social derivado da insularidade. Uma explicação possível para a medida será então a tentativa de neutralização das reduções remuneratórias impostas aos trabalhadores em funções públicas e restantes trabalhadores do setor público pelo Orçamento de Estado de 2013. Mas esse é um objetivo que redunda na descaracterização da medida e no afastamento do seu objetivo estatutariamente e constitucionalmente estabelecido. Certo é que o objetivo visado não será já o da «correção das desigualdades derivadas da insularidade».
E, sendo assim, não é possível enquadrá-la nas matérias enunciadas no EPARAA, em especial, no seu artigo 67.º, n.º 1, alínea f). A configuração pretendida da “remuneração complementar regional” não se acomoda na habilitação estatutária para o efeito, por ter objetivos que lhe são estranhos. Não é, desta forma, atribuída competência legislativa à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores para legislar criando um complemento remuneratório alheio aos fins constitucionalmente estabelecidos para a autonomia. Em especial se esse exercício se faz com o objetivo de neutralizar uma medida da República, emitida no âmbito das suas competências, que recai sobre uma matéria – as remunerações dos trabalhadores em funções públicas – onde deve existir uma preocupação de uniformidade e igualdade relativamente ao todo nacional.
Desta forma, concluo que as normas em apreciação enfermam de inconstitucionalidade orgânica, por decorrerem do exercício de competência legislativa pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores sem habilitação estatutária (ultra vires), por incidir numa matéria não enunciada no EPARAA.
Note-se que esta conclusão não será alterada pelo facto de, estando no âmbito do Orçamento Regional, poder ser aqui invocada a autonomia orçamental da região. Da autonomia orçamental decorre a possibilidade de alocação livre pela região das suas receitas às despesas que entende serem prioritárias, dentro dos limites da lei e da Constituição. Daí não decorre nenhuma competência legislativa. Não é por a região ter receita disponível para despender num determinado projeto que automaticamente passa a ter competência para legislar sobre essa matéria. Nessa medida, não é relevante o facto de a medida ser sustentada pelo Orçamento Regional, sem a necessidade de transferências.
Não é, por isso, necessário recorrer à análise da violação de uma eventual reserva legislativa da República neste âmbito ou do princípio da unidade do Estado ou da solidariedade entre portugueses. A distribuição de competências entre República e regiões autónomas reflete a configuração do caráter unitário do Estado português. E é esta distribuição que me permitiu concluir que a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores não se encontra habilitada para legislar sobre esta matéria.
7. De todo o modo, de notar será ainda, que se a medida introduzida pelas normas em apreciação configurasse efetivamente um complemento remuneratório de insularidade aprovado no âmbito da norma estatutária contida no artigo 67.º, n.º 1, alínea f), EPARAA, inevitável seria concluir pela sua iniquidade intrínseca.
De facto, não é possível identificar um único e mesmo critério na atribuição do abono para todos os escalões remuneratórios. Com efeito, a análise da tabela anexa definidora dos coeficientes de atribuição do benefício revela uma evolução regressiva nos primeiros três escalões remuneratórios, seguindo-se uma curva progressivamente crescente entre o montante das remunerações e o complemento até aos 2000€, para só a partir daquele montante remuneratório voltar a decrescer à medida que cresce o montante da remuneração. Não é possível descortinar a razão justificativa para a adoção de critérios diferenciados para os diversos escalões remuneratórios na atribuição de uma compensação destinada a colmatar o custo da insularidade, o que sempre colocaria problemas ao nível da compatibilidade com o princípio da igualdade.
Maria de Fátima Mata-Mouros