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Processo n.º 1214/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. propôs no Tribunal Administrativo de Loulé ação administrativa especial de anulação de ato.
Foi proferida sentença que julgou improcedente esta ação.
A Autora interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Central Administrativo Sul.
Este Tribunal proferiu acórdão em 12 de setembro de 2013 não conhecendo do objeto do recurso com fundamento em que o mesmo não é legalmente admissível.
A Autora recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
Notificada para esclarecer qual era a interpretação normativa sustentada pela decisão recorrida cuja constitucionalidade pretendia ver fiscalizada, a Recorrente apresentou requerimento com o seguinte teor:
“1. É a interpretação feita no acórdão do TCA Sul do artigo 27.º/1/i/2 do CPTA, da qual resulta que a decisão do Juiz singular do TAF de Loulé, sem que exista constituído um Tribunal Coletivo, é insuscetível de recurso, cabendo antes, naquela interpretação reclamação para a (inexistente) conferência, que viola a Constituição da República por obstar à aplicação do principio da tutela jurisdicional efetiva e do princípio do duplo grau de jurisdição, negando o direito de recurso.
2. Sublinhe-se que o TAF de Loulé é um tribunal de 1.ª instância no qual a constituição do tribunal coletivo só ocorreu em 12 de outubro de 2012, muito depois de ter sido proferida a sentença pelo TAF de Loulé - 18 de abril de 2011- em causa nos autos.
3. Acresce que, da redação do art.º 27.º do CPTA, e do comentário feito ao mesmo pelo próprio autor deste Código, resulta que esta norma se destina a regular os poderes os relatores nos Tribunais superiores - únicos tribunais onde existem Juízes relatores - já que nos tribunais de 1.ª instância existem ou Juízes singulares, ou Juízes Presidentes em caso de Tribunal Coletivo, que não Juízes Relatores (vide comentário ao referido artigo 27.º in Comentário ao CPTA, Mário Aroso de Almeida - Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Almedina, 2005 cuja cópia se junta como doc. 1). Concretizando:
4. Em 18 de abril de 2011 foi o ora recorrente notificado de uma sentença proferida pela Mma. Juiz do TAF de Loulé.
5. Da qua1 interpôs recurso jurisdicional, em 1 de junho de 2011, para o TCA Sul.
6. Donde decorre que, tanto na data em que foi proferida a sentença em apreço (18-4-2011) como naquela em que foi interposto o respetivo recurso para o TCA Sul (1-6-2011) não havia tribunal coletivo no TAF de Loulé, posto que o mesmo só veio a ser constituído em 12 de outubro de 2012, conforme se comprova pelo documento 2, já junto com o presente recurso.
7. E optou-se por interpor recurso jurisdicional da sentença para o TCA Sul por duas ordens de razões: (1) Por se tratar de uma sentença proferida por juiz singular, e (2) por não ser materia1mente possível reclamar da mesma para a Conferência, dada a inexistência de Tribunal Coletivo no TAF de Loulé.
8. Porém, não foi este o entendimento do TCA Sul, que ignorou tal facto, ficcionando, outrossim, a existência de um Tribunal Coletivo, e partindo deste errado pressuposto desenvolveu toda uma teoria falaciosa que redunda na impossibilidade de uma decisão do tribunal de primeira instância poder ser sindicada por um tribunal superior, vedando ao recorrente o exercício do direito ao recurso jurisdicional previsto nos arts. 141.º/1 e 142.º/1 do CPTA, fazendo assim tábua rasa dos mais elementares princípios constitucionais de um Estado de Direito.
9. E fê-1o da seguinte forma: considerou que a sentença objeto de recurso foi proferida por Juiz Relatora no quadro da utilização da faculdade conferida pela al. i) do n.º 1 do art.º 27.º do CPTA, e que essa sentença não é sindicável através de recurso para o Tribunal Superior, mas sim através de reclamação para a conferência do próprio Tribunal nos termos do disposto no n.º 2 do mesmo art.º 27.º, decidindo por isso, e com fundamento na intempestividade da convolação do recurso em reclamação, por desrespeito do prazo legal de 10 dias fixado para esta última, rejeitar o recurso e não conhecer do seu objeto.
10. No entendimento do TCA Sul o art.º 27.º/1/i/2 do CPTA foi interpretado no sentido de que a sua simples invocação na sentença permite qualificá-la, sem mais, como uma decisão proferida por um juiz relator, qualificação que determinaria ipso facto que dessa decisão não caberia diretamente recurso jurisdicional, mas antes reclamação para a conferência do próprio tribunal de 1.ª instância (ou seja, a formação de três juízes prevista no art.º 40.º/3 do ETAF), mesmo que tal tribunal coletivo não existisse, por não se encontrar então constituído.
11. Exigindo assim, como condição para o conhecimento do recurso jurisdicional, a prévia utilização de um meio impugnatório (reclamação para a conferência) que não podia ser utilizado à data, reitera-se, por inexistência de tribunal co1ec no TAF de Loulé.
12. Em suma, o douto acórdão em crise, com base na mera invocação da al. i) do n.º 1 do art.º 27.º do CPTA efetuada na sentença recorrida, ficciona a existência de um tribunal coletivo que na verdade não existe, decidindo não conhecer o recurso com fundamento na falta de prévia reclamação para a conferência desse ficcionado tribunal coletivo, que também não existia, interpretação normativa essa que coarta completamente qualquer possibilidade de reação contra a sentença desfavorável da Mma. Juiz do TAF de Loulé, vedando ao recorrente o exercício do direito ao recurso jurisdicional previsto nos arts. 141.º/1 e 142.º/1 do CPTA.
13. Daqui retira o recorrente que a interpretação do disposto no art.º 27.º/1/i/2 do CPTA feita no acórdão em crise viola o principio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no art.º 268.º/4 da Constituição e, bem assim, do principio do Estado de Direito e dos seus corolários ao nível dos princípios da confiança e acesso ao direito e à justiça (Cfr. arts. 2.º e 20.º da CRP).
14. E sempre se dirá que, dada a comprovada inexistência de tribunal coletivo no TAF de Loulé à data da prolação da sentença em apreço, é forçoso concluir que esta é uma sentença proferida por juiz singular com preterição das regras de competência em função do valor da causa, o que determina a incompetência relativa do tribunal, a qual é sempre de conhecimento oficioso (cfr. art.ºs 108.º e 110.º/2 do CPC, à data vigente, aplicáveis ex vi do art.º 1.º do CPTA).
15. Daí que, o douto acórdão recorrido, ao entender que o recurso jurisdicional não devia ser admitido, deveria concomitantemente ter declarado oficiosamente a incompetência do juiz singular, nos termos do art.º 110.º/4 do CPC, aplicável com as devidas adaptações, ordenando que os autos baixassem ao TAF de Loulé para serem decididos por uma formação de três juízes, conforme determina o art.º 40.º/3 do ETAF, por à data da sua prolação – 12 de setembro de 2013 – o Tribunal Coletivo já se encontrar constituído.
16. Tudo de forma a garantir a possibilidade de exercício pelo recorrente do direito ao recurso jurisdicional previsto nos arts. 141.º/1 e 142.º/1 do CPTA, fazendo assim uma interpretação conforme à constituição do art.º 27.º/1/i/2 do CPTA, mas não o fez!”
Foi proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso com a seguinte fundamentação:
“No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente processo –, a sua admissibilidade depende ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada. É necessário, pois, que esse critério normativo tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão.
O Recorrente pretende que este Tribunal julgue inconstitucional a interpretação do artigo 27.º, n.º 1, i) e n.º 2, do Código de Procedimento nos Tribunais Administrativos, no sentido de que a decisão do Juiz singular, sem que exista constituído um Tribunal Coletivo, é insuscetível de recurso, cabendo antes, reclamação para a conferência.
Ora, da leitura da decisão recorrida constata-se que este critério não foi aplicado pela decisão recorrida, uma vez que esta nunca reconheceu que se verificasse uma situação de inexistência de tribunal coletivo, pelo que, não integrando o critério normativo questionado pelo Recorrente a ratio decidendi do acórdão recorrido, não é possível conhecer do presente recurso, devendo ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.”
O Recorrente reclamou desta decisão, invocando as seguintes razões:
“1. Considera o Exmº Senhor Juiz Conselheiro Relator que o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional julgue inconstitucional a interpretação do art.º 27.º/1/i/2 do CPTA, no sentido de que a decisão do Juiz singular, sem que exista constituído um Tribunal Coletivo, é insuscetível de recurso, cabendo antes, reclamação para a conferência.
2. E o Exmº Senhor Juiz Conselheiro Relator sob a consideração de que a decisão recorrida 'nunca reconheceu que se verificasse uma situação de inexistência de Tribunal Coletivo, pelo que, não integrando o critério normativo questionado pelo recorrente a ratio decidendi do acórdão recorrido', decidiu não ser possível conhecer do recurso, proferindo decisão sumária nesse sentido.
3. Com todo o respeito, que é muito e devido, não pode o recorrente ora reclamante conformar-se com semelhante decisão.
4. Na verdade não se coloca a questão do reconhecimento pelo TCA Sul de uma situação de inexistência de Tribunal Coletivo, mas antes e pelo contrário, que perante um recurso interposto da sentença proferida por Juiz singular, o TCA Sul tenha ficcionado a existência dum suposto Tribunal Coletivo com base na mera invocação feita nessa sentença do art.º 27. º/1/i/2 do CPTA.
5. É esta interpretação - de que, o art.º 27.º/1/2 é aplicável aos tribunais de primeira instância, e de que a mera invocação do referido preceito legal transmuta ipso facto a sentença proferida pelo juiz singular em apreço, numa decisão de um Juiz Relator de um Tribunal Coletivo, com os consequentes efeitos ao nível dos meios impugnatórios aplicáveis, redundando na impossibilidade de exercício do direito ao recurso jurisdicional previsto nos art.ºs 141.º/1 e 142.º/1 do CPTA - que o recorrente reputa de inconstitucional.
6. E este critério normativo integra inequivocamente a ratio decidendi do acórdão recorrido, o qual viola assim flagrantemente o princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no art.º 268.º/4 da Constituição da República e, bem assim, o princípio do Estado de Direito e os seus corolários, ao nível da confiança e do acesso ao direito e à justiça, cfr. art.º art.ºs 2.º e 20.º da CRP.
7. Na verdade, conforme o recorrente, ora reclamante, oportunamente invocou, o art.º 27.º do CPTA aplica-se apenas aos tribunais superiores, já que nos tribunais de primeira instância existem apenas juízes singulares ou juízes presidentes, em caso de tribunal coletivo, e nunca juízes relatores.
8. Razão pela qual a mera invocação desse preceito numa sentença proferida por juiz singular, como sucede no caso vertente, não permite, pura e simplesmente, a respetiva qualificação como decisão de um juiz relator da qual cabe reclamação para a conferência, e não diretamente recurso jurisdicional.
9. O que é aliás confirmado pela circunstância de não existir Tribunal Coletivo constituído no TAF de Loulé, à data e que foi proferida a sentença recorrida, conforme está documentalmente comprovado nos autos.
10. Em suma, o acórdão do TCA Sul faz errada interpretação e aplicação do art.º 27.º/1/i/2 do CPTA.
11. E essa errónea interpretação do referido preceito legal revela-se in casu inconstitucional, por coartar o exercício do direito ao recurso jurisdicional previsto nos art.ºs 141.º/1 e 142.º /1 do CPTA, em violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no art. º 268.º/4 da Constituição da República e do principio do Estado de Direito e dos seus corolários, ao nível da confiança e do acesso ao direito e à justiça, cfr. art.ºs 2.º e 20.º da CRP.
Nestes termos, nos melhores de direito, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas, Colendos Juízes Conselheiros, deve a presente reclamação ser atendida, revogando-se a decisão sumária reclamada e ordenando-se o prosseguimento dos autos.
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Fundamentação
A decisão reclamada não conheceu do recurso interposto para o Tribunal Constitucional por ter entendido que a interpretação normativa cuja fiscalização de constitucionalidade foi requerida no requerimento corrigido de interposição de recurso não integrava a ratio decidendi da decisão recorrida quando pressupunha uma situação de inexistência de tribunal coletivo.
O Recorrente, na reclamação apresentada, vem alegar que não imputou ao tribunal recorrido o reconhecimento de uma situação de inexistência de Tribunal Coletivo, mas antes e pelo contrário, acusou-o de, perante um recurso interposto da sentença proferida por Juiz singular, ficcionar a existência de um suposto Tribunal Coletivo com base na mera invocação feita nessa sentença do artigo 27. º, n.º 1, i), e n.º 2 do CPTA.
Contudo, não foi desse modo que o Recorrente, no requerimento de interposição de recurso, enunciou a interpretação normativa que pretendia ver fiscalizada pelo Tribunal Constitucional.
No ponto 1. do requerimento de resposta ao convite dirigido ao Recorrente para enunciar a interpretação normativa sustentada na decisão recorrida, cuja fiscalização de constitucionalidade pretendia, este disse que era a interpretação feita no acórdão do TCA Sul do artigo 27.º/1/i/2 do CPTA, da qual resulta que a decisão do Juiz singular do TAF de Loulé, sem que exista constituído um Tribunal Coletivo, é insuscetível de recurso, cabendo antes, naquela interpretação reclamação para a (inexistente) conferência, que viola a Constituição da República por obstar à aplicação do principio da tutela jurisdicional efetiva e do princípio do duplo grau de jurisdição, negando o direito de recurso.
Devendo o objeto do recurso ser definido pelo Recorrente no requerimento em que o interpõe e não coincidindo a interpretação aí indicada com aquela que foi sustentada na decisão recorrida, não pode o recurso ser conhecido, pelo que deve ser indeferida a reclamação.
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Decisão
Pelo exposto indefere-se a reclamação deduzida por A..
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Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.
Lisboa, 12 de fevereiro de 2014. – João Cura Mariano – Ana Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.