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Processo n.º 1291/13
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, A. veio, em 12 de setembro de 2013, interpor recurso, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de novembro, (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No início do requerimento de interposição de recurso, o recorrente identifica a decisão recorrida como correspondendo ao despacho de 10 de julho de 2013. Porém, acrescenta, depois, que “[r]ecorre ainda (…) do Acórdão proferido pela Relação do Porto relativamente à prova produzida nos autos – com recurso por parte da PJ à elaboração de ficheiros informáticos com dados de saúde de terceiros, bem como a recolha de receituário médico de terceiros (…)”.
Por último – não referindo pretender recorrer de qualquer outra decisão – acrescenta que “a interpretação e aplicação (…) efectuadas pelo Tribunal da Relação nos seus Acórdãos e despachos é flagrantemente violadora de uma interpretação e aplicação conforme à CRP”.
3. Relativamente à delimitação do objeto do recurso, extrai-se a mesma das seguintes referências, feitas de forma difusa, pelo recorrente:
“ (…) interpretação e aplicação das normas constantes dos Artºs 118, nº3, 125, 126, nº 1 e 3 do C.P.P. desconformes à Constituição (…)
A interpretação e aplicação dos Artºs 122 do CPP e 677 do CPC (…)”
4. Por decisão de 29 de outubro de 2013, proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, tal recurso não foi admitido, com os seguintes fundamentos:
“ Como é notório e ostensivo, já não se está aqui, sequer, perante uma tentativa de recurso de amparo – inadmissível no nosso sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade – mas sim de um verdadeiro recurso ordinário, em que se visa a revisão do Acórdão proferido e da decisão, posterior, que julgou inexistente a nulidade invocada, a propósito do mesmo.
Procurando-se protelar a execução da decisão condenatória proferida, transforma-se, no caso, o Tribunal Constitucional numa quarta instância comum de recurso, que aqui “seria chamada a intervir” em substituição da suprema instância comum – o S.T.J., para a qual não é admissível recurso.
Não se mostra validamente suscitada qualquer questão de constitucionalidade, respeitante a norma (ou dimensão interpretativa à mesma conferida) aplicada na decisão que julgou inexistente a invocada nulidade do Acórdão condenatório – última decisão em relação à qual tal faculdade ainda poderia, atempadamente (depois do pagamento da multa devida por entrega tardia), ser exercida.
*
Pelo exposto, e nos termos do art. 76º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional, não se admite o presente recurso para o Tribunal Constitucional, uma vez que se mostra manifestamente infundado.”
É desta decisão, proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, que o recorrente presentemente reclama.
5. Para fundamentar a reclamação apresentada, o reclamante começa por fazer uma súmula da tramitação dos autos.
Especificamente no que se refere ao recurso interposto para o Tribunal Constitucional, com carimbo de entrada em Juízo de 13 de setembro de 2013, diz o reclamante que, apesar de o acórdão de fls. 2067 a 2073 – datado de 24 de abril de 2013 – não referir expressamente o artigo 677.º do Código de Processo Civil, a verdade é que convoca a interpretação de tal artigo, quanto à definição de trânsito em julgado.
Assim, pretende o reclamante ver apreciada a inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 122.º e 379.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal e 677.º do Código de Processo Civil, assumida pelo Tribunal da Relação do Porto, por violação do artigo 32.º da Lei Fundamental.
Acrescenta que o artigo 122.º do Código de Processo Penal “não pode ser interpretado de tal forma que (…) resulte uma inconstitucionalidade (…) ou seja (…) de forma a que daí resulte que o trânsito em julgado se tenha já verificado na parte do Acórdão que o novo Acórdão considere válida porque tal importa a completa desconsideração dos efeitos da arguição de nulidade (…)”.
Esclarece o reclamante que a decisão reclamada corresponde à proferida em 29 de outubro de 2013.
6. O Ministério Público, junto do Tribunal Constitucional, respondeu à reclamação, pugnando pelo seu indeferimento e manifestando a sua concordância com a decisão reclamada.
7. Por despacho de 12 de dezembro de 2013, foi dada às partes a possibilidade de se pronunciarem, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, e 69.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, sobre a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, na perspetiva da inerente obrigatoriedade de coincidência entre o critério normativo enunciado como objeto do recurso – identificado com referência às disposições legais de que é extraível – e o critério utilizado pela decisão recorrida, tendo em conta o caso concreto.
Mais foram as partes advertidas da possibilidade de o Tribunal considerar que as decisões recorridas correspondem ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 16 de janeiro de 2013, e à decisão de 10 de julho de 2013, referente à arguição de nulidade.
O recorrente optou por não apresentar qualquer resposta.
O Ministério Público, por seu turno, veio responder, referindo que não existe, efetivamente, coincidência entre o critério normativo enunciado como objeto do recurso e o critério normativo utilizado pela decisão recorrida como ratio decidendi. Mais manifestou a sua concordância com a identificação das decisões recorridas pressuposta no despacho.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
8. O deferimento da reclamação encontra-se condicionado à verificação cumulativa dos pressupostos de admissibilidade do recurso interposto.
De acordo com a jurisprudência reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional, são os seguintes os requisitos da admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC: a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
9. O recorrente não identifica, inequivocamente, as decisões recorridas, no requerimento de interposição de recurso, nomeadamente especificando qual o concreto objeto do recurso em relação a cada uma delas. Teremos, assim, de chegar a tal resultado por via da interpretação global do conteúdo da referida peça processual.
Assim, quanto à delimitação das decisões recorridas, salienta-se que o recorrente refere expressamente, no início do seu requerimento de interposição de recurso, que pretende recorrer da decisão de 10 de julho de 2013, referindo, mais adiante, que recorre “ainda (…) do Acórdão proferido pela Relação do Porto relativamente à prova produzida nos autos – com recurso por parte da PJ à elaboração de ficheiros informáticos com dados de saúde de terceiros, bem como a recolha de receituário médico de terceiros (…)”.
Nestes termos, - uma vez que inexiste qualquer outra referência identificativa, que minimamente especifique, de forma diferenciada, uma outra decisão - considerar-se-á que o presente recurso visa, como decisões recorridas, o acórdão de 16 de janeiro de 2013 e a decisão de 10 de julho de 2013, referente à arguição de nulidade.
Salienta-se que não é admissível que o recorrente, em peça processual subsequente ao despacho que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso, altere a identificação que fez das decisões recorridas, nomeadamente alargando, por essa via, o âmbito do recurso. Por este motivo, a reclamação deduzida não pode ser valorada, para efeito de alteração de tal identificação.
10. O recorrente refere, como objecto do recurso, desde logo, a “ (…) interpretação e aplicação das normas constantes dos Artºs 118, nº3, 125, 126, nº 1 e 3 do C.P.P.”, resultando do conteúdo do requerimento de interposição de recurso que imputa a interpretação inconstitucional de tais normas ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que se pronuncia sobre a prova relacionada com “ficheiros informáticos com dados de saúde de terceiros” e “receituário médico de terceiros”, ou seja, o acórdão proferido em 16 de janeiro de 2013.
Assim, será relativamente a esta decisão que apreciaremos se os pressupostos de admissibilidade do recurso, referidos no ponto 8., se preenchem, entendendo que o respetivo objeto do recurso é composto por questão – não especificamente enunciada – extraível da interpretação dos preceitos identificados.
11. Analisado o acórdão de 16 de janeiro de 2013, verifica-se que a sua ratio decidendi não convoca um critério normativo, que seja extraível da conjugação dos artigos 118.º, n.º 3, 125.º, 126.º, n.os 1 e 3, todos do Código de Processo Penal.
De facto, relativamente à questão do recorrente, a propósito de tais preceitos, pode ler-se no aludido aresto:
“Na resposta do A. ao recurso, surge a seguinte asserção: “não prescindindo, para uma eventual alteração da sentença, a prova recolhida nestes autos é nula nos termos do Artº 118, nº 3, 125, 126 nº 1 e 3, Artigos esses do C.P.P.”, referindo-se à junção ao processo das receitas em causa.
A esta asserção segue-se esta outra: “a prova produzida nos autos com os documentos juntos (receitas), ficheiros juntos criados a partir daquelas e juntos como prova devem ser considerados e julgados ilícitos e em consequência a prova por eles constituída nula nos termos e por efeito da Lei nos Artºs 118, nº 3, 125, e 126, nºs 1 e 3 do C.P.P. e ainda por violação da Constituição nos seus Artºs 32 e seu nº 8 e ainda 35, bem como ainda de acordo com a interpretação conjugada dos Artºs 18, 25.1, 26.1, 35 nºs 3, 4 e 7 da C.R.P.”
Para além da sem razão deste argumentário, é nessa resposta por completo ignorado que essa questão já está decidida, no processo.
Foi decidida na Pronúncia, após ter sido suscitada pelos arguidos no requerimento de abertura de Instrução.
Naquela fase processual ficou decidido que “a recolha das receitas” pelo órgão de polícia criminal não representava “qualquer violação da lei, fundamental ou ordinária, (…) ou qualquer nulidade, nomeadamente a prevista no art. 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
(…)
Quanto à produção e junção pelo órgão de polícia criminal de “um ficheiro de dados pessoais a partir das receitas” é decidido que “concluindo-se pela legitimidade da investigação no acesso às receitas medicamentosas em questão, sempre o tratamento dos dados constantes das mesmas, ou de outros obtidos por via destas e de forma idêntica, ficaria igualmente legitimado” (…)
Decidiu-se não se verificar, pois, também a nulidade prevista no art. 126º, nº 3, do CPP, no respeitante ao “ficheiro” em causa.
Proferida decisão sobre uma concreta questão processual, está esgotado o poder jurisdicional do Julgador, a esse respeito, no processo em causa, que se encontra, assim, impedido de a alterar – nisto se consubstancia o caso julgado formal, previsto no art. 672º do CPC, aplicável por via do art. 4º do CPP.
(…)
Proferida uma decisão concreta, transitada esta em julgado, não pode essa questão voltar a ser objecto de apreciação nesse processo; sobre a mesma há caso julgado (…)
É certo que esta matéria foi de novo objecto de abordagem no Acórdão absolutório, agora sob recurso.
Essa reapreciação, se fosse divergente da decisão proferida na Pronúncia, ofenderia o caso julgado já formado nos termos expostos. Não o é, porém: os fundamentos são consonantes, considerando-se inexistente a invocada nulidade.
Sendo consonantes os fundamentos, não produz qualquer efeito jurídico essa reapreciação, pois tal matéria já estava decidida e transitada em julgado a decisão sobre a mesma.”
Do excerto transcrito, resulta que o acórdão recorrido não se pronunciou sobre a nulidade de prova invocada pelo recorrente, à luz das referidas disposições legais, concluindo que tal questão fora já decidida, revestindo a respetiva decisão força de caso julgado formal, sendo que tal vinculatividade não foi violada in casu.
A ratio decidendi do acórdão não se baseia, pois, em qualquer critério normativo – que, de resto, o recorrente não enuncia – extraível da conjugação dos artigos 118.º, n.º 3, 125.º, 126.º, n.os 1 e 3, todos do Código de Processo Penal.
Nestes termos, fica prejudicada a admissibilidade do recurso, por falta de correspondência entre o objeto do recurso e a ratio decidendi da decisão recorrida.
Na verdade, tal falta de correspondência é incompatível com o caráter ou função instrumental do recurso de constitucionalidade, que determina que o objeto do recurso só deve ser conhecido quando exista a possibilidade de o julgamento da questão de constitucionalidade se repercutir, de forma útil e eficaz, na solução jurídica do caso concreto. Tal possibilidade efetiva-se quando a decisão sobre a questão de constitucionalidade é suscetível de alterar o sentido ou os efeitos da decisão recorrida, implicando uma reponderação da solução dada ao caso, pelo tribunal a quo. Pelo contrário, a mesma possibilidade é afastada – acarretando a inutilidade da apreciação do mérito do recurso - quando a decisão sobre a questão de constitucionalidade seja insuscetível de se projetar no caso concreto, nomeadamente por incidir sobre critério normativo que não foi utilizado como ratio decidendi da decisão recorrida.
12. No tocante ao objeto do recurso, relativo à “interpretação e aplicação dos Artºs 122 do CPP e 677 do CPC”, o recorrente refere, com especial destaque, ter suscitado a questão “na arguição de nulidade”, peça processual em que diz ter referido o seguinte: “É por isso inconstitucional a interpretação efetuada aos efeitos do Artº 122 do C.P.P. por uma interpretação desconforme à Constituição e nomeadamente ao seu Artº 32, nº 1 e sendo ainda que vai contra jurisprudência do TC e nomeadamente a interpretação efetuada ao Artº 122 do CPP no Ac. 192/2001 (…)”.
Resulta, assim, que a decisão recorrida, quanto a esta parte do objeto do recurso, corresponde à decisão proferida em 10 de julho de 2013, que se pronuncia sobre a arguição de nulidade.
13. Analisada a referida decisão, conclui-se que a sua ratio decidendi não convoca um critério normativo, que seja extraível da conjugação dos artigos 122.º do Código de Processo Penal e 677.º do Código de Processo Civil.
Na verdade, o fundamento decisório da decisão de 10 de julho de 2013 assenta na inadmissibilidade de arguição de nulidade contra decisão complementar, que já resulte do conhecimento de arguição de nulidade dirigida à decisão principal. Assim, fica excluída da respetiva ratio decidendi questão normativa que envolva os preceitos identificados pelo recorrente, nomeadamente questão relativa à definição do trânsito em julgado, no contexto de decisão alvo de arguição de nulidade.
Nestes termos, demonstrada que se encontra a não correspondência entre o objeto do recurso e a ratio decidendi da decisão recorrida, face à necessária verificação cumulativa dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, torna-se ociosa a discussão sobre o preenchimento dos restantes, concluindo-se, desde já, pela inadmissibilidade do recurso, igualmente, nesta parte.
14. Atentas as considerações expendidas, conclui-se que, não tendo as decisões recorridas convocado um critério normativo extraível dos preceitos identificados pelo recorrente, nos termos que analisámos, como fundamento integrante da respetiva ratio decidendi, é inadmissível o presente recurso, o que determina o não conhecimento da totalidade do seu objeto.
III – Decisão
15. Pelo exposto, decide-se julgar inadmissível o recurso de constitucionalidade interposto e, em consequência, indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 21 de janeiro de 2014. – Catarina Sarmento e Castro – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral.