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Processo n.º 1144/13
3ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é recorrente A., e recorrido o Ministério Público, o primeiro vem reclamar para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da Decisão Sumária n.º 655/2013 que não conheceu do objeto do recurso interposto pelo recorrente, com fundamento no facto de o mesmo não constituir uma questão de inconstitucionalidade normativa e ainda no facto de não corresponder à ratio decidendi que fundamentou a decisão recorrida.
2. O teor da fundamentação da Decisão Sumária n.º 655/2013 de 29 de Julho, é o seguinte:
“(…)
5. No que concerne à primeira questão aqui em análise, o recorrente delimita o objecto do recurso como sendo constituído pela “interpretação normativa do artigo 204.º no sentido de que a carência de recursos, a falta de retaguarda familiar e a modesta condição económica constitui fundamento da medida de coacção da prisão preventiva”.
Ora, face à formulação do objecto do recurso assim transcrita, é patente que o recorrente não coloca ao Tribunal uma questão de constitucionalidade normativa de que este possa conhecer, antes questionando a própria bondade da decisão recorrida.
É verdade que o objecto de um recurso de constitucionalidade pode ser constituído apenas por uma determinada e delimitada interpretação de uma norma. Todavia, é necessário que esteja em causa uma interpretação da norma que seja susceptível de generalização. É necessário, para isso, que a questão de constitucionalidade seja autónoma do problema da aplicação aos factos da causa. É isso que não sucede no presente caso.
Com efeito, na determinação do conteúdo e alcance do presente objecto do recurso, o recorrente não se abstrai da consideração dos contornos do caso concreto. O que ele na verdade questiona é o juízo do tribunal a quo que, perante a factualidade dada como provada – carência de recursos, falta de retaguarda familiar e modesta condição económica – lhe aplicou determinada norma. É, enfim, a decisão concreta e irrepetível, moldada pelas circunstâncias específicas que caracterizam o caso concreto, que constitui o objecto deste recurso, o que torna impossível que, na eventualidade de um juízo de inconstitucionalidade, o mesmo possa ser aplicado a um número generalizado e indeterminável de situações.
6. Mas se assim é, não restam dúvidas de que não está em causa no presente recurso uma questão de constitucionalidade normativa. O recorrente não invoca uma inconstitucionalidade em relação a uma norma, nem a uma interpretação da mesma vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica. O que pretende obter é, antes, uma protecção directa da sua pretensão através dos princípios constitucionais que considera aplicável.
Como tal, há que relembrar a inexistência, no nosso ordenamento jurídico, da figura do “recurso de amparo” ou da acção constitucional para defesa de direitos fundamentais, na apreciação de alegadas inconstitucionalidades, directamente imputadas pelo recorrente às decisões judiciais proferidas. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da LTC, e assim tem sido afirmado por este Tribunal em inúmeras ocasiões.
O recurso de constitucionalidade em sede de fiscalização concreta é puramente normativo. Não tendo o presente recurso por objecto uma norma – nem uma interpretação normativa susceptível de generalização – ele não possui um objecto idóneo.
Tanto bastaria para que se não possa conhecer do objecto do presente recurso.
7. Mas importa ainda tecer algumas considerações relativas à segunda parte da formulação do objecto do presente recurso, em que o recorrente refere que o artigo 204.º (que presumimos ser do Código de Processo Penal) foi aplicado no sentido “sem ponderação de medida de coacção menos gravosa”.
Ora, neste contexto impõe-se relembrar outro pressuposto de conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º1 do art. 70.º da LTC: só cabe recurso, ao abrigo dessa norma, das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Isso significa, como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, que o recurso previsto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70º da LTC pressupõe ainda que a decisão recorrida tenha aplicado norma ou interpretação normativa que é arguida de inconstitucional como ratio decidendi no julgamento do caso. Tem, pois, de existir uma perfeita coincidência entre a norma – ou dimensão normativa – imputada de inconstitucional no requerimento de interposição do recurso, e a norma – ou dimensão normativa – que foi efectivamente aplicada pelo tribunal a quo para fundamentar a decisão final. Atenta a natureza instrumental do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, apenas assim um eventual juízo de inconstitucionalidade se poderá repercutir efectivamente na solução a dar ao caso concreto.
Importa, assim, confrontar a norma objecto do presente recurso, tal como foi delineada pela recorrente, com a norma que sustentou e fundamentou a decisão do Tribunal da Relação do Porto de 02/10/2013.
8. O objecto do presente recurso é delineado como sendo composto pelo artigo 204.º do CPP, interpretado no sentido de que a medida de coacção de prisão preventiva é aplicada “sem ponderação de medida de coacção menos gravosa”. Porém, da leitura do Acórdão recorrido ressalta que a referida norma foi interpretada com o sentido precisamente oposto ao invocado pelo recorrente.
Em várias passagens do referido aresto, o Tribunal da Relação do Porto preocupa-se em esclarecer que a medida de prisão preventiva deve ser aplicada apenas em ultima ratio, preocupando-se em esclarecer porque é que, no caso, as demais medidas de coacção são consideradas insuficientes. O Tribunal a quo sublinha de forma sistemática a necessidade de aplicação da medida de prisão preventiva apenas quando as demais medidas de coacção se revelem insatisfatórias. Atente-se nas seguintes passagens: “como critério de aplicação de qualquer medida de cocção, deve o Tribunal atentar nos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, referidos no art. 193.º do CPP. As medidas cautelares devem, por isso, como refere o n.º1 do artigo 193.º do CPP, ser “necessárias e adequadas às exigências que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas. Resta pois saber se a prisão preventiva é a única medida que satisfaz as exigências das medidas cautelares, ou se, no caso, tais exigências são satisfeitas com uma medida não preventiva da liberdade (art. 202.º, 1 do CPP)”.
9. Após enunciar o critério que vai pautar a sua decisão, o Tribunal a quo acaba precisamente por fundamentar detalhadamente porque é que, no caso concreto, se afigura que a aplicação da medida de prisão preventiva é a única que se afigura satisfatória, e porque é que as demais não se revelam suficientes. O tipo de crime em causa, a pena aplicada, os indícios de risco de fuga e de continuação da actividade criminosa são, em particular, detalhadamente expostos. O aresto acaba por concluir, assim, do seguinte modo: “Ora, como vimos no presente caso, pelas razões acima apontadas (condenação do arguido em pena de prisão efectiva de 3 anos e 6 meses, sendo toxicodependente e não tendo qualquer apoio social sólido), nenhuma outra medida de coacção é adequada às exigências cautelares que o caso requer. Assim, dado que no presente caso só a prisão preventiva é adequada às exigências cautelares que o caso requer e se verificam todos os demais requisitos legalmente previstos, a interpretação acolhida no art. 204.º do C.P.Penal não viola o disposto no art. 28.º da Constituição da República Portuguesa”.
Daqui ressalta, assim, que o Tribunal a quo não interpretou o artigo 204.º do CPP no sentido de se aplicar uma medida de prisão preventiva sem ponderação da aplicação de medida de coacção menos gravosa. Muito pelo contrário, o tribunal a quo preocupa-se a cada momento em interpretar a norma que resulta do artigo 204.º do CPP no sentido de que a medida de coacção de prisão preventiva é aplicada como ultima ratio, i.e., quando se revelarem insuficientes as medidas de coacção menos gravosas.
Mas se assim é, resta concluir que, também por este motivo não é possível ao Tribunal Constitucional conhecer desta questão de constitucionalidade, por falta de mais um dos pressupostos legais de admissibilidade, a saber: ter a decisão recorrida aplicado, como ratio decidendi, a exacta interpretação normativa cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada”.
3. O recorrente reclamou para a conferência com os fundamentos seguintes:
“1. Na decisão sumária proferia ao abrigo do disposto no nº 1 do Artigo 78º-A da LTC decidiu não tomar conhecimento do objecto de Recurso. Por entender que não possível ao Tribunal Constitucional conhecer a questão de constitucionalidade por falta de um ou mais pressupostos legais de admissibilidade, no caso ter a decisão recorrida aplicado como ratio decidendi a exacta interpretação normativa, cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada.
2. Nos termos constitucionais, a prisão preventiva tem natureza excepcional e apenas deve ser aplicada na impossibilidade de outra medida de coaccção mais favorável. Pelo exposto a manutenção da prisão preventiva é violadora do artigo 28º, nº 2 da Constituição portuguesa de 1976. A interpretação normativa do artigo 202º, nº 1 do CPP, no sentido da manutenção do arguido em prisão preventiva é violadora do artigo 28º, nº 2 da Constituição.
3. Nos termos constitucionais, a prisão preventiva tem natureza excepcional e apenas deve ser aplicada na impossibilidade de outra medida de coaccção mais favorável. Pelo exposto a manutenção da prisão preventiva é violadora do artigo 28º, nº 2 da Constituição portuguesa de 1976. A interpretação normativa do artigo 202º, nº 1 do CPP, no sentido da manutenção do arguido em prisão preventiva é violadora do artigo 28º, nº 2 da Constituição.
4. Carece de fundamentação a promoção do MP no sentido da manutenção da prisão preventiva. Em abstracto todo o arguido pode fugir à justiça, pode praticar novos crimes e pode ter dificuldades de inserção social. E nessa ter-se-ia de submeter todos os arguido, que aguardam julgamento, a prisão preventiva. Acontece que temos conhecimento de arguidos com níveis mais elevados de perigosidade, com níveis mais elevados para fuga, com prática de factos mais gravosos, com cadastro criminal mais extenso que aguardam julgamento em liberdade. Este modos operandi é violador do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
5. Nos termos constitucionais, a prisão preventiva tem natureza excepcional e apenas deve ser aplicada na impossibilidade de outra medida de coaccção mais favorável. Pelo exposto a manutenção da prisão preventiva é violadora do artigo 28º, nº 2 da Constituição portuguesa de 1976. A interpretação normativa do artigo 202º, nº 1 do CPP, no sentido da manutenção do arguido em prisão preventiva é violadora do artigo 28º, nº 2 da Constituição.
6. A douta decisão sumária negando o conhecimento do objecto do recurso acabou por estabelecer amplas considerações sobre a constitucionalidade das questões suscitadas pelo recorrente, sem que a este tivesse sido dada a possibilidade de apresentar a alegação de recurso. Pelo que se discorda da decisão sumária de não admitir o objecto do recurso. A questão suscitada tem a ver com a interpretação normativa do artigo 202º, nº 1 da igualdade em face dos princípios constitucionais consignados nos artigos 13º e 28º, nº 2 da Constituição. E o recorrente entende que essa interpretação é violadora da Constituição”.
4. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação nos termos seguintes:
“(…)
2º A douta Decisão Sumária baseia-se em dois fundamentos autónomos e qualquer um deles seria suficiente para se concluir pelo não conhecimento: i) inidoneidade do objecto do recurso tal como vem definido no requerimento de interposição; ii) não correspondência entre as “normas” identificadas, com a efectivamente aplicada na decisão recorrida.
3º Como se vê pelas pertinentes transcrições levadas a cabo na Decisão Sumária, parece-nos clara a inverificação de qualquer daqueles requisitos de admissibilidade do recurso.
4º Na reclamação o recorrente tece considerações sobre a natureza excepcional da prisão preventiva e o caso dos autos, porém, nada diz de concreto sobre os fundamentos que levaram ao não conhecimento do objecto do recurso”.
II – Fundamentação
5. O recorrente reclama para a conferência da Decisão Sumária n.º 655/2013 por discordar do aí decidido quanto ao não conhecimento do objeto do recurso interposto para este Tribunal. A decisão reclamada sustentou a impossibilidade de conhecimento do recurso por o recorrente não ter colocado ao Tribunal qualquer questão de constitucionalidade normativa de que este possa conhecer, e ainda por não existir correspondência entre o objecto do recurso e a ratio decidendi da decisão recorrida.
6. No entanto, o reclamante não aduz, na reclamação ora apresentada, qualquer argumento que permita abalar os referidos fundamentos que presidiram à decisão sumária de não conhecimento do objecto de recurso. De facto, limita-se a reiterar considerações sobre a inconstitucionalidade do mesmo, nada referindo quanto ao facto de esse objecto não constituir, por um lado, uma questão normativa nem, por outro, corresponder à ratio decidendi do Acórdão recorrido.
Assim sendo, resta confirmar a decisão de não conhecimento do objecto do recurso por falta dos pressupostos de admissibilidade do mesmo, remetendo-se para a fundamentação da Decisão Sumária n.º 655/2013.
III – Decisão
7. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, nos termos dos artigos 7.º e 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro.
Lisboa, 21 de janeiro de 2014. – Lino Rodrigues Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.