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Processo n.º 1121/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em Conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, por decisão do Presidente do Supremo Tribunal Administrativo (STA), foi indeferida a reclamação apresentada pela recorrente A., Lda, do despacho proferido em 15 de abril de 2013 pelo Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), que rejeitou o recurso por ela interposto do acórdão do mesmo tribunal, datado de 15 de fevereiro de 2013. Nesse acórdão, o TCAN indeferiu reclamação para a conferência e confirmou o despacho do relator que havia indeferido nulidade processual suscitada pela recorrente, e bem assim, concedeu provimento ao recurso apresentado da decisão em primeira instância, julgando improcedente a impugnação judicial deduzida pela mesma contra o ato de fixação do valor patrimonial de imóvel de sua propriedade.
2. Inconformada, a reclamante A., Lda., interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal Constitucional, que referiu a duas questões: i) uma, reportada a interpretação do artigo 280.º, n.º 2 do CPPT, “no sentido de que uma questão decidida num processo judicial por um Tribunal Central Administrativo, pela primeira vez, não é passível de recurso por tal situação não configurar uma verdadeira decisão de 1ª instância”; ii) outra, que reportada a interpretação do artigo 283.º, n.º3, do CPPT, “no sentido de que não é necessário notificar a contraparte recorrida da apresentação das alegações da parte recorrente”. Como parâmetro constitucional violado aponta, em ambas as questões, o artigo 20.º da Constituição.
O recurso foi admitido pelo Tribunal a quo.
3. Neste Tribunal, foi proferida a decisão sumária n.º 657/2013, em que se concluiu não conhecer do recurso, com fundamento, no que concerne à primeira questão de constitucionalidade, por ilegitimidade da recorrente, por não ter sido suscitada previamente perante o Tribunal a quo, e, quanto à segunda questão, por inutilidade do recurso, em virtude do sentido normativo impugnado não ter sido efetivamente aplicado, como ratio decidendi, na decisão recorrida.
4. Nessa sequência, veio a recorrente apresentar requerimento com o seguinte teor:
«A. LDª., pessoa coletiva nº 506547167, recorrida nos autos à margem referenciados, tendo sido notificada do douto despacho que decidiu não ser possível conhecer do objeto de recurso, vem requerer a Aclaração do mesmo, o que faz nos termos seguintes:
1- Relativamente à questão relacionada com o nº 2 do artº.282º do CPPT, a recorrente considera que, de facto, nada há a apontar à douta decisão cuja aclaração aqui se suscita, assistindo total razão a V. Exª.
2- No entanto, já no que concerne à inconstitucionalidade da interpretação dada ao nº 3 do art.º 283º do CPPT, considera a recorrente que a douta decisão aqui em causa não é suficientemente esclarecedora na parte relativa à sua douta fundamentação.
3- Isto porque, salvo sempre o devido respeito por opinião diversa, a questão da apreciação da inconstitucionalidade acima referida, por violação do artº. 20º da CRP, irá sempre produzir efeitos na presente ação, nomeadamente nas doutas decisões de mérito proferidas no mesmo, após a douta sentença de 1ª instância.
4- Com efeito, a ser considerado que o entendimento defendido pelo Tribunal Central Administrativo e pelo STA relativamente ao nº 2 do artº. 282º do CPPT é inconstitucional, todo o processado após as alegações da Fazenda Pública em 1ª instância seria anulado, podendo a recorrente esgrimir todos os argumentos que o aludido entendimento das referidas doutas instâncias não permitiu fazer.
5- Nos presentes autos, após a douta decisão de 2ª instância, a recorrente nunca mais se pôde pronunciar sobre a questão de fundo, pela simples razão que a interpretação dada pelo Tribunal Central Administrativo e pelo STA relativamente ao nº 2 do artº. 282º do CPPT não o permitiu.
6- Analisando o fundamento da impugnação judicial, a douta decisão de 1ª instância e todo o processado posterior à mesma, constata-se que a douta decisão proferida pelo Venerando Tribunal Central Administrativo do Norte foi proferida sem que a recorrente tivesse podido apresentar as suas alegações, sendo que, a partir daí, todo o processado versa sobre a questão de ser ou não possível tal apresentação.
7- A verdade é que se tivesse sido possível à recorrente apresentar as suas alegações, a mesma poderia ter esgrimido argumentos de cariz substantivo relacionadas com a questão de fundo, uma vez que o processado posterior à apresentação das doutas Alegações da Fazenda Pública teria sempre que ser anulado.
8- E, assim sendo, todas as questões relacionadas com a ratio decidendi seriam objeto de nova apreciação, tendo em conta quer os doutos argumentos da Fazenda Pública, quer os argumentos da recorrente.
9- Por outras palavras, a declaração de inconstitucionalidade da interpretação dada ao nº 3 do artº. 283º do CPPT defendido pelo Tribunal Central Administrativo e pelo STA, levaria sempre à anulação de todo o processado posterior à apresentação das doutas Alegações da Fazenda Pública, e permitiria à recorrente apresentar também a sua argumentação, em sede de direito substantivo, relativamente à bondade da douta decisão proferida em 1ª instância.
10- A não ser assim, e com todo o respeito, haveria na situação sub judice uma clara e manifesta prevalência do direito formal sobre o direito material, o que a nossa Constituição não parece admitir (O direito ao processo conjugado com o direito à tutela jurisdicional efetiva, impõe, por conseguinte, a prevalência da justiça material sobre a justiça forma, isto é, sobre uma pretensa justiça que, sob a capa de 'requisitos processuais', se manifeste numa decisão que, afinal, não consubstancia mais do que um simples denegação de justiça.' - Jorge Miranda e Rui Medeiros in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, págs.190 e 191.
11- 'Numa palavra, como se refere no Acórdão nº 384/98, a garantia de acesso ao direito e aos tribunais não admite a consagração, no plano legal, de exigências que consubstanciem tão-somente condicionantes processuais desprovidas de fundamento racional e sem conteúdo útil ou excessivas, não sendo em particular admissível o estabelecimento de ónus desinseridos da teleologia própria da tramitação processual e cuja consagração, nessa medida, não prossegue quaisquer interesses dignos de tutela.' - Jorge Miranda e Rui Medeiros, m Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, págs.190 e 191.
12- Na douta decisão cuja aclaração ora se requer, não se explicita qual o fundamento com base no qual se considera que, sendo declarada a inconstitucionalidade da interpretação dada ao nº 3 do artº 283º do CPPT defendida pelo Tribunal Central Administrativo e pelo STA, a decisão de mérito em causa nos autos - proferida pelo TCA - se manteria inalterada.»
13- Com todo o devido respeito, tal questão carece de ser esclarecida, na medida em que, o efeito da aludida declaração de inconstitucionalidade terá no caso concreto o efeito de anular todo o processado até à apresentação das doutas alegações da Fazenda Pública.
14- Face ao supra exposto, requer seja aclarada a douta decisão singular de 13 de novembro de 2013, tudo com as legais consequências.»
5. Notificada, a recorrida respondeu, nos seguintes termos:
«1.
Pretende a Recorrente que a decisão aclaranda não explicitou o fundamento com base no qual considera que, ainda que fosse declarada a inconstitucionalidade, a decisão de mérito proferida pelo TCAN não seria alterada.
2.
Ora não é exato que esse fundamento não se encontre explicitado.
3.
O Tribunal é muito claro quando refere que a questão normativa colocada não integra a norma que constitui a ratio decidendi da decisão recorrida.
4.
E que esse facto torna inútil o seu conhecimento porque, ainda que fosse reconhecida a inconstitucionalidade, ela não determinaria a revogação do despacho do Presidente do STA de 12 de julho de 2013,sustentada em pressupostos legais absolutamente distintos.
5.
A interpretação da decisão não oferece, pois, quaisquer dúvidas.
6.
Aliás, se efetivamente o tribunal não tivesse justificado devidamente a sua opção pelo não conhecimento da questão de inconstitucionalidade colocada pela recorrente, essa falta corresponderia a nulidade por absoluta falta de motivação.
7.
E não a ambiguidade ou obscuridade que cumprisse esclarecer.
8.
Pelo exposto e sem mais, o presente pedido deve ser indeferido com as legais consequências.»
Cumpre decidir.
II. Fundamentação
6. Importa preliminarmente caracterizar a conformação material do impulso formulado em apreço, que a recorrente apresenta como de “aclaração”, e assentar na competência para o seu conhecimento.
Ora, a decisão sumária visada no requerimento apresentado pela recorrente foi proferida na vigência do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 6 de junho, aplicável à tramitação do recurso de constitucionalidade por força do artigo 69.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (doravante LTC), no âmbito do qual não há lugar a incidente de aclaração, ao contrário do que acontecia com o regime processual civil anterior.
Mas, mesmo que assim não fosse, sempre seria de afastar a qualificação que a requerente atribuiu à pretensão formulada. Na verdade, no requerimento em apreço não se aponta qualquer obscuridade ou ambiguidade à decisão; exprime-se discordância (e não incompreensão) quanto ao decidido, cingida à decisão de não conhecimento da segunda questão colocada, alinhando argumentos que, na ótica da recorrente, colocam em crise o seu mérito. O que significa, em substância, que a pretensão da recorrente passa na verdade por impulsionar nova instância de reexame da questão de admissibilidade do recurso quanto à segunda questão de constitucionalidade que enunciou, sob as vestes de pedido de esclarecimento ou de aclaração. Reexame que, no que concerne às decisões sumária, compete à Conferência ou ao pleno da Secção, e não ao Relator, de acordo com os n.ºs 3 e 4 do artigo 78.º-A da LTC.
Assim sendo, tem aplicação no caso vertente o entendimento deste Tribunal no sentido de que os incidentes pós decisórios com tais contornos carecem ser convolados em reclamação para a Conferência, qualquer que seja a qualificação que o requerente lhes atribua (assim, entre muitos, os Acórdãos n.ºs 623/2004, 716/2004, 125/2005, 479/2005, 363/2006, 379/2006, 427/2006, 541/2006, 580/2007, 147/2008, 219/2010, 390/2010, 399/2012 484/2012 e 91/2013, todos acessíveis em www.tribconstitucional.pt ).
A pretensão formulada, deverá, por isso, ser apreciada como reclamação para a Conferência, para efeito do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 78.º-A da LTC.
7. A propósito da segunda questão colocada – a única em que incide divergência da recorrente – exarou-se na decisão sumária reclamada o seguinte:
«7. Na questão seguinte, a recorrente pretende ver apreciado o artigo 283.º, nº 3, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, interpretado no sentido de que “não é necessário notificar a contraparte recorrida da apresentação das alegações da parte recorrente”.
Embora discorra sobre a sua constitucionalidade, a decisão recorrida claramente não aplicou, como fundamento jurídico determinante do decidido, a norma indicada, mas tão somente as regras pertinentes à admissibilidade do recurso interposto de acórdão do Tribunal Central Administrativo. Que assim é torna-se evidente se atentarmos em que de outro modo o que o acórdão recorrido estaria a decidir seria o mérito do recurso e não o da reclamação.
Deste modo, por a questão normativa colocada não integrar norma efetivamente aplicada, como ratio decidendi, da decisão recorrida e, por decorrência, o recurso de constitucionalidade não revestir utilidade, não há que conhecer também desta questão.»
8. No requerimento em apreço, a recorrente A., Lda, procura demonstrar que, ao invés do afirmado na decisão sumária, a questão reportada a interpretação extraída do n.º 3 do artigo 283.º do CPPT comporta utilidade, na medida em que a decisão sobre o mérito da causa sufragada pelo TCA e pelo STA seria necessariamente alterada, com a anulação de todo o processado posterior à apresentação das alegações da Fazenda Pública.
Porém, esse raciocínio enferma do vício de desconsiderar que a intervenção jurisdicional do Tribunal Constitucional reveste a natureza de recurso, que assume como objeto (em sentido processual) uma decisão judicial, e não o processo, em toda a sua dimensão problemática. O que significa que a averiguação dos pressupostos objetivos do recurso, mormente no que respeita à inscrição da questão de constitucionalidade nos critérios normativos efetivamente aplicados, como exige a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, carece de ser feita perante o concreto objeto que lhe foi conferido pelo recorrente.
Ora, o recurso de constitucionalidade não incidiu sobre qualquer decisão de mérito da impugnação judicial. Nos termos do requerimento de interposição de recurso, que delimitam o seu objeto, o recurso de constitucionalidade incidiu tão somente sobre o despacho que indeferiu a reclamação de despacho de não admissão de recurso, confirmando a decisão que considerou irrecorrível o acórdão do TCAN, proferido em 15 de fevereiro de 2013. Recorde-se que o recorrente iniciou esse requerimento dizendo “tendo sido notificada do douto despacho que indeferiu a reclamação por si apresentada, e não se conformando com o mesmo, dele pretende interpor recurso para o Tribunal Constitucional” (sublinhado aditado). Nenhum recurso foi apresentado (e, logicamente, admitido) quanto a acórdão proferido pelo TCAN, nem a recorrente defende na reclamação em apreço que assim aconteceu.
Então, circunscrito o recurso de constitucionalidade à decisão do STA que confirmou a irrecorribilidade do acórdão proferido pelo TCAN em 15 de fevereiro de 2013, a respetiva ratio decidendi encontra-se nas normas pertinentes à definição das decisões proferidas pelo TCAN que admitem recurso e à esfera de competência do STA, de que não faz parte, isolada ou conjugadamente, qualquer dimensão normativa extraída do artigo 283.º do CPPT. O que significa que, qualquer que fosse o resultado do controlo normativo peticionado pela recorrente, nenhum impacto teria na decisão recorrida, na perspetiva relevante da sua reforma (n.º 2 do artigo 80.º da LTC), permanecendo inafetados os fundamentos em que assentou o julgamento de inadmissibilidade do recurso para o STA do acórdão proferido em 15 de fevereiro de 2013.
Nessa medida, não existe propriedade no apelo à prevalência das questões de substância sobre as questões de forma pois a concretização da decisão recorrida pela recorrente não reveste, no recurso de constitucionalidade, natureza ou função formal: dela depende, em termos substanciais, a delimitação objetiva da cognição do Tribunal, sujeita ao princípio do pedido (artigos 75.º -A, n.º 1 e 79.º-C da LTC).
Como, paralelamente, não encontra procedência a alusão à anulação de todo o processado posterior à apresentação das alegações da Fazenda Pública, dada pela recorrente como certa e capaz de conferir utilidade ao recurso de constitucionalidade, pois essa consequência processual remete para a verificação de nulidade, questão que não foi objeto de decisão pelo STA, mormente pela decisão recorrida. Foi decidida por acórdão do TCAN de 15 de fevereiro de 2013, pelo que só impugnação que lhe fosse dirigida poderia conduzir à sua reforma e, eventualmente, ao resultado processual (e de mérito) pretendido pela recorrente.
Conclui-se, pelo exposto, em concordância com a decisão sumária reclamada, que o recurso não pode ser conhecido, pois a questão colocada em segundo lugar não integra norma efetivamente aplicada na decisão recorrida como ratio decidendi e, nessa medida, o recurso de constitucionalidade não comporta, nessa parte, utilidade.
III. Decisão
9. Pelo exposto, decide-se:
a) Indeferir a reclamação apresentada por A., Lda, e confirmar a decisão sumária reclamada;
b) Condenar a recorrente, aqui reclamante, nas custas, fixando-se em 20 (vinte) Ucs a taxa de justiça, tendo em atenção os critérios seguidos por este Tribunal e a dimensão do impulso desenvolvido.
Lisboa, 22 de janeiro de 2014. – Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.