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Processo n.º 478/13
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Por acórdão de 30 de abril de 2012 da 3.ª Vara Criminal da Comarca do Porto, A. e B., recorrentes nos presentes autos em que é recorrido o Ministério Público, foram condenados pela prática de crimes de sequestro, coação e (apenas o primeiro arguido) detenção de arma proibida, respetivamente, nas penas únicas de dois anos e seis meses de prisão efetiva e dois anos de prisão efetiva.
Interpuseram recurso desta decisão para o Tribunal Relação do Porto, tendo ambos sustentado que, designadamente, «a diligência de tomada de declarações para memória futura, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271º do C.P.P., exige que seja dada a possibilidade ao arguido e ao seu defensor de estarem presentes e, dessa foram, contraditar o depoimento que a pessoa ouvida em declarações venha a prestar» (fls. 321 e 361). Sustentaram, consequentemente, que, na situação de prestação de declarações para memória futura, nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, deveria, não obstante ainda não ter ocorrido a constituição de arguido, ser nomeado defensor «para acautelar a defesa e sobretudo para dar cumprimento ao Princípio do contraditório», sob pena de «violação do preceituado no art.º 32º, n.º 5 2.ª parte da CRP» (cfr. fls. 324 e 364).
Por decisão singular de 4 de janeiro de 2013, os recursos foram julgados manifestamente improcedentes (fls. 316 e seguintes).
Não se conformando com esta decisão, apresentaram reclamação da mesma (fls. 235 e seguintes), reiterando, nos mesmos termos em que o haviam feito anteriormente, a questão da nulidade de valoração de prova não produzida em audiência, pelo facto de, aquando da prestação de declarações para memória futura, não ter sido designado defensor não obstante ainda não ter ocorrido a constituição de arguido.
A Relação do Porto, em acórdão de 13 de fevereiro de 2013 (fls. 244 e seguintes), indeferiu a reclamação, concluindo não se vislumbrar «nenhuma nulidade» (fls. 284).
Novamente inconformados, os recorrentes recorreram para este Tribunal, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (“LTC”). Pela Decisão Sumária n.º 408/2013, foi decidido não tomar conhecimento do objeto de tal recurso, com os seguintes fundamentos:
« 5. A competência do Tribunal Constitucional, no domínio da fiscalização concreta, reconduz-se à faculdade de revisão, em via de recurso, de decisões judiciais. Por isso se compreende também o requisito de suscitação do problema de constitucionalidade em moldes processualmente adequados perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos tais que este estivesse obrigado a apreciar uma tal questão, tomando, sobre a mesma, a sua própria decisão. É o que resulta expressamente do disposto no artigo 72.º, n.º 2 da LTC. Este pressuposto assenta no facto de que, no sistema português de fiscalização da constitucionalidade, todos os tribunais têm, nos termos do artigo 204.º da Constituição, o poder-dever de recusar a aplicação de normas que infrinjam as normas ou princípios fundamentais. O Tribunal Constitucional intervém, por conseguinte, em sede de recurso o que pressupõe que, regra geral, o tribunal da causa tenha formulado uma primeira e autónoma apreciação sobre o problema de constitucionalidade relevante nos autos.
6. No caso ora em apreço, os recorrentes não suscitaram, durante o processo, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa. Durante o processo, e perante o tribunal recorrido, os recorrentes limitaram-se a invocar que o facto de não ter sido constituído defensor que pudesse estar presente na diligência da tomada de declarações para memória futura, prevista no artigo 271.º do Código de Processo Penal, teve por efeito inquinar tal prova de nulidade, verificando-se, por conseguinte, a violação do artigo 32.º, n.º 5 da Constituição. A inconstitucionalidade nunca surge, no entanto, imputada a qualquer preceito ou respetiva interpretação. Tal imputação – apta a configurar a suscitação de inconstitucionalidade de norma que fundamente o recurso de constitucionalidade interposto pelos recorrentes – vem a ocorrer apenas no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, no qual aqueles afirmam que «a interpretação e aplicação do disposto no art.º 271º do Código de Processo Penal, ao permitir, na interpretação que foi implicitamente acolhida no tribunal Criminal do Porto, a inquirição, válida e relevante, mesmo no caso de o inquérito ainda não correr contra um arguido conhecido e constituído, que por isso não pode ser notificado nem obviamente estar presente na inquirição, e sem a presença de um Defensor, é inconstitucional (…)» (fls. 3793).
Segundo jurisprudência firme do Tribunal Constitucional, “[s]uscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo claro e percetível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido” (Acórdão n.º 269/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Como se afirma no Acórdão n.º 367/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, “[a]o questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há de ser enunciado de forma a que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição”. […].»
2. Notificados desta decisão, os recorrentes deduziram reclamação para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, invocando o seguinte:
«(…) O Tribunal a quo entende que “O Recurso para o Tribunal Constitucional não é admissível pois se reporta à decisão que indeferiu a reclamação e não a qualquer norma em que a mesma decisão se tenha baseado.
Todavia, nesta parte, os arguidos aludem aos art.s 29º e 32º da CRP, por entender que a que a interpretação e aplicação do disposto no art.º 271º do Código Processo Penal, ao permitir, na interpretação que foi implicitamente acolhida no tribunal Criminal do Porto, a inquirição, válida e relevante, mesmo no caso de o inquérito ainda não correr contra um arguido conhecido e constituído, que por isso não pode ser notificado nem obviamente estar presente na inquirição, e sem a presença de um Defensor, é inconstitucional, inconstitucionalidades essas previamente invocadas no seu recurso da 3ª vara do tribunal Criminal do Porto para o Tribunal da Relação do Porto.
Se os recorrentes não pudessem invocar as inconstitucionalidades resultantes da interpretação e aplicação das normas feitas pelos Tribunais Superiores (Relação ou Supremo Tribunal de Justiça) ficaria fora da alçada do Tribunal Constitucional uma grande parte da fiscalização concreta da constitucionalidade que cabe a esse alto tribunal.
É com a prolação da Decisão, e só nessa altura, que se tornam patentes os vícios e manifesta a interpretação inconstitucional dada às normas, afrontando de maneira gritante e inadmissível o Estado de Direito e processo Democrático, pondo em causa princípios que deviam estar mais do que consolidados na ordem jurídica portuguesa:
Assim sendo, o recorrente tem o Direito a ver apreciado o Recurso interposto para o Tribunal Constitucional no sentido de controlar a constitucionalidade:
Ora, entendemos salvo melhor opinião que a interpretação e aplicação do disposto no art.º 271º do Código Processo Penal, ao permitir, na interpretação que foi implicitamente acolhida no tribunal Criminal do Porto, a inquirição, válida e relevante, mesmo no caso de o inquérito ainda não correr contra um arguido conhecido e constituído, que por isso não pode ser notificado nem obviamente estar presente na inquirição, e sem a presença de um Defensor, constitui uma violação dos artigos 29º e 32° da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidades essas invocadas previamente no seu recurso do Tribunal Criminal do Porto, para o Tribunal da Relação do Porto.»
3. O Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido de a reclamação não dever merecer acolhimento (fls. 413 e seguintes).
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
4. A decisão de não conhecimento do recurso teve como fundamento a ausência de suscitação de questão de constitucionalidade normativa, durante o processo, em moldes processualmente adequados.
Os recorrentes, ora reclamantes, insurgem-se contra o não conhecimento do recurso, invocando que só com a prolação da decisão da Relação do Porto é que se «torna[ram] patentes os vícios e manifesta a interpretação inconstitucional dada às normas, afrontando de maneira gritante e inadmissível o Estado de Direito e processo Democrático, pondo em causa princípios que deviam estar mais do que consolidados na ordem jurídica portuguesa.»
5. O Tribunal Constitucional tem entendido, em jurisprudência consolidada, que a suscitação da inconstitucionalidade durante o processo constitui, em certos casos, um pressuposto dispensável em matéria de conhecimento do recurso de constitucionalidade. Será assim sempre que se apure que, em concreto, o sujeito não teve oportunidade processual para suscitar a inconstitucionalidade em momento anterior ao da interposição deste recurso.
É muito fácil comprovar, no entanto, que os presentes autos não evidenciam merecer essa dispensa. Com efeito, mesmo que se admitisse que a interpretação conferida pelo Tribunal da Relação ao artigo 271.º do Código de Processo Penal era totalmente inesperada e insólita – o que é assaz duvidoso – os recorrentes sempre dispuseram de oportunidade de suscitar a inconstitucionalidade da mesma perante o tribunal recorrido quando, inconformados com a decisão singular de 4 de janeiro de 2013 (fls. 316 e seguintes), dela reclamaram para a conferência.
Com efeito, a interpretação que pretendem ver sindicada em fiscalização concreta, traduzida na possibilidade, decorrente do artigo 271.º do Código de Processo Penal, de «inquirição válida e relevante, mesmo no caso de o inquérito ainda não correr contra um arguido conhecido e constituído, que por isso não pode ser notificado nem obviamente estar presente na inquirição, e sem a presença de um Defensor», resultava já, de modo claro, dos fundamentos expressos pela referida decisão singular, onde pode ler-se:
«Igualmente não se denota nos autos qualquer violação de prova proibida, nos termos do disposto no art.º 355.º, n.º 1 do CPP. Não foi violado o disposto no art.º 271.º, n.º 2 do CPP, por não presença de defensor do arguido nas diligências de inquirição de testemunhas para memória futura, já que inexistia qualquer arguido nessa fase processual. Nenhum contraditório havia a exercer, porque este sujeito e estatuto processual previsto pela lei não tinha qualquer dimensão ontológica. O texto da lei é absolutamente claro; esta não prevê o caso de nomeação de defensores a suspeitos ou a pessoas que eventualmente no futuro possam vir a ser constituídos arguidos; e por fim, não se deve entender a sua presença como zelador da legalidade dos atos, secundando o MP e aproximando a sua intervenção do papel desempenhado pelo defensor nomeado pelo Estado nos regimes ditatoriais e sistemas inquisitoriais de processo penal; antes se compreende a mesma como devendo agir estritamente nos interesses e sob a direção e vontade do representado.»
Em sede de reclamação no âmbito do processo base, a conferência do Tribunal da Relação retomou este mesmo fundamento, acrescentando-lhe maior densidade argumentativa. No entanto, se alguma surpresa pudesse advir para os recorrentes com a interpretação feita pelo tribunal a quo do artigo 271.º do Código de Processo Penal, tal surpresa foi necessariamente dissipada com a decisão de 4 de janeiro de 2013. Por conseguinte, na sequência da mesma, e da reclamação que interpuseram, os recorrentes tiveram efetiva oportunidade processual para suscitarem a inconstitucionalidade normativa perante o tribunal recorrido, uma vez que ainda não se encontravam esgotados os meios de impugnação disponíveis.
No entanto, quando reclamaram para a conferência no Tribunal da Relação, os ora recorrentes reiteraram, nos mesmos termos em que o haviam feito anteriormente, apenas a questão da nulidade de valoração de prova não produzida em audiência, pelo facto de, aquando da prestação de declarações para memória futura, não ter sido designado defensor não obstante ainda não ter ocorrido a constituição de arguido.
Isto mesmo se havia já constatado, aliás, na decisão sumária ora reclamada.
Falece, portanto, o argumento invocado pelos ora reclamantes de que só com a «prolação da Decisão [entenda-se: o acórdão objeto do presente recurso de constitucionalidade proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 13 de fevereiro de 2013], e só nessa altura, (…) se torna[ram] patentes os vícios e manifesta a interpretação inconstitucional dada às normas», uma vez que tiveram oportunidade de, durante o processo, suscitar a inconstitucionalidade, de modo adequado, perante o tribunal recorrido.
Nestes termos, não tendo os reclamantes impugnado qualquer outro dos fundamentos que nortearam a decisão reclamada, resta agora confirmá-la, concluindo pelo indeferimento da presente reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar o reclamante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 4 de janeiro de 2014. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.