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Processo n.º 639/12
Plenário
Relator: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Um grupo de seis deputados à Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira submeteu ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 281.º, n.º 2, alínea g), da Constituição da República Portuguesa, um pedido de «apreciação sucessiva abstrata da constitucionalidade e da legalidade» do Decreto Regulamentar Regional n.º 6/2012/M – “Aplica à Região Autónoma da Madeira o Decreto-Lei n.º 113/2011, de 29 de novembro”, aprovado em Conselho do Governo Regional em 17 de maio de 2012».
2. O pedido, que deu entrada neste Tribunal em 20/09/2012, apresenta a seguinte fundamentação:
«1º - O Decreto Regulamentar n.º 6/2012/M aplica à Região Autónoma da Madeira o Decreto-Lei n.º 113/2011, de 29 de novembro, que regula o acesso às prestações do Serviço Nacional de Saúde (SNS) por parte dos utentes, no que respeita ao regime das taxas moderadoras e à aplicação de regimes especiais de benefícios.
2º - Ora, tal Decreto Regulamentar, tendo em conta que pretende regulamentar um Decreto-Lei, é manifestamente um ato que excede os poderes do Governo Regional. Vejamos:
3º - Nos termos da alínea d), do artigo 69º, do Estatuto Político Administrativo da Região autónoma da Madeira, compete ao Governo Regional 'elaborar os decretos regulamentares regionais, necessários à execução dos decretos legislativos (...)”.
4º - Não mencionando a possibilidade de regulamentar decretos-leis, nem havendo presunção legal nesse sentido.
5º - Além disso, é bom de ver que a Assembleia Legislativa Regional é o único órgão regional com poder legislativo, não havendo concessão de autorizações legislativas ao Governo Regional, diferentemente do que acontece com o Governo d República.
6º - Ainda, no que concerne às normas da Constituição da República Portuguesa, a questão em apreço clarifica-se, se atentarmos no nº 1, do artigo 232º, que diz o seguinte: 'É da exclusiva competência da assembleia legislativa regional o exercício das atribuições referidas nas alíneas a), b) e c), na segunda parte da alínea d), na alínea f), na primeira parte da alínea i) e nas alíneas l), n) e q) do n.º 1 do artigo 227.º ( ... )'.
7º - Ora, a segunda parte da alínea d), do nº 1 do artigo 227º, da Constituição, diz-nos que são poderes das regiões autónomas, nomeadamente regulamentar as leis emanadas dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respetivo poder regulamentar.
8º - O que torna evidente que o poder de regulamentar qualquer decreto-lei ou lei é da exclusiva competência da Assembleia Legislativa Regional.
9º - Concluindo, tal decreto viola, não só, o artigo 69.º, alínea d), do Estatuto Político Administrativo da R.A.M., assim como o artigo 232º, nº 1 conjugado com a segunda parte da alínea d), do nº 1, do artigo 227.º, da Constituição da República Portuguesa, ferindo-o de inconstitucionalidade formal e orgânica.».
3. Notificado para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, o Presidente do Governo Regional da Região Autónoma da Madeira, decorrido o prazo, não respondeu.
4. Apresentado o memorando a que se refere o n.º 1 do artigo 63.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre elaborar acórdão nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.
II – Fundamentação
5. Os requerentes pedem a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade e da ilegalidade do Decreto Regulamentar Regional n.º 6/2012/M. As normas do Decreto em causa têm o seguinte teor:
“Artigo 1.º
Objeto
1 – O presente diploma aplica à Região Autónoma da Madeira o Decreto-Lei n.º 113/2011, de 29 de novembro, que regula o acesso às prestações do Serviço Nacional de Saúde (SNS) por parte dos utentes no que respeita ao regime das taxas moderadoras e à aplicação de regimes especiais de benefícios.
2 – O regime referido no número anterior é aplicável à Região com as adaptações e especificidades decorrentes do artigo seguinte.
Artigo 2.º
Taxas moderadoras
1 – O acesso à prestação de cuidados de saúde, no âmbito do Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira, implica o pagamento de taxas moderadoras no serviço de urgência do Hospital Dr. Nélio Mendonça, aos utentes a quem seja atribuído, no âmbito do Sistema de Triagem de Manchester, a prioridade pouco urgente (cor verde) e a prioridade não urgente (cor azul).
2 – Os atos e os valores das taxas moderadoras são os que vigoram para o Serviço Nacional de Saúde.
Artigo 3.º
Entrada em vigor
O presente diploma entra em vigor no 1.º dia útil do mês seguinte ao da sua publicação.”
A) Da legitimidade processual dos requerentes - Questão de inconstitucionalidade
6. Nos termos do disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea g), da Constituição da República Portuguesa (CRP), têm legitimidade para requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização abstrata da constitucionalidade e da legalidade, entre outros, um décimo dos deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas quando o pedido se fundar, respetivamente, em violação dos direitos das regiões autónomas e em violação do respetivo estatuto.
O requerimento dirigido ao Tribunal Constitucional encontra-se subscrito por seis deputados à Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira (ALRAM), ou seja, mais de um décimo dos quarenta e sete deputados da referida Assembleia, pelo que tal número de deputados cumpre o primeiro requisito de legitimidade para requerer a este Tribunal Constitucional a fiscalização abstrata da constitucionalidade e da legalidade.
Todavia, e tal como pode ler-se no Acórdão deste Tribunal nº 136/11 (disponível, tal como os demais adiante citados, em http://www.tribunalconstitucional.pt), “o poder de requerer a declaração de inconstitucionalidade que é conferido aos deputados regionais pelo artigo 22.º, n.º 1, alínea h) do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira opera 'nos termos constitucionais', ou seja, nos termos do artigo 281.º, n.º 2, alínea g), da Constituição. A respeito da disposição constitucional referida, este Tribunal tem entendido, em jurisprudência uniforme, que o poder conferido aos deputados às assembleias legislativas regionais (tal como às outras entidades referidas no mesmo preceito – Ministros da República, assembleias legislativas regionais e respetivos presidentes e presidentes dos governos regionais) pressupõe, sob pena de ilegitimidade, que esteja “necessariamente em causa uma eventual violação de direitos das regiões em face do Estado nacional, na medida em que esses direitos tiverem consagração constitucional, isto é, conformarem constitucionalmente de modo direto a autonomia político-administrativa das regiões” (cfr. Acórdãos n.º 198/00, 615/03 e 75/04).
Ora, o fundamento invocado, no presente caso, para o pedido de declaração de inconstitucionalidade é a alegada violação do disposto no artigo 232.º, n.º 1, da CRP (na parte em que fixa a competência regulamentar exclusiva da Assembleia Legislativa da região autónoma), conjugado com a segunda parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 227.º. Está em causa, nos presentes autos de fiscalização abstrata da constitucionalidade, o exercício, por parte de um órgão da Região Autónoma da Madeira (o Governo Regional), de uma competência eventualmente pertencente a um outro órgão dessa mesma Região (a Assembleia Legislativa), pelo que não se poderá invocar a violação de um direito da região autónoma enquanto tal.
Efetivamente, por “direitos das regiões” deve entender-se, neste contexto, “os direitos constitucionalmente reconhecidos às regiões face à República” (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, II, 4.ª ed., Coimbra, 967). Não pode dizer-se ser esse aqui o caso. O problema em apreciação reside numa mera questão de repartição de competências entre os órgãos da própria região autónoma; não se levantam, assim, quaisquer dúvidas relativas aos direitos da região em face do Estado, o que, como se viu, seria o único fundamento admissível num pedido de fiscalização legitimamente feito pelos requerentes, enquanto deputados à Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira. Por isso, mesmo que se entendesse, hipoteticamente, existir uma violação das normas constitucionais invocadas, e ainda que elas definam os poderes jurídicos conferidos às regiões autónomas enquanto pessoas coletivas territoriais, não estaria, em todo o caso, posta em questão a concretização do princípio da autonomia político-administrativa regional.
Problema idêntico foi apreciado pelo Tribunal Constitucional, por exemplo, no Acórdão n.º 198/2000, no qual se sustentou:
“No caso concreto, as normas questionadas limitam-se a proceder à distribuição interna de competências entre os diversos órgãos regionais, não definindo, consequentemente, poderes das regiões perante entidades externas, como o Estado.
Ora, esta conformação, interna à região, dos poderes regulamentares do Governo que eventualmente conflituem com os da Assembleia Legislativa Regional não suscita, de modo algum, um problema atinente aos direitos constitucionais das regiões em face do Estado. Não se revela, nesta situação, nem o fator estrutural do relacionamento direto de uma competência regional com as do Estado nem qualquer significado de defesa da região perante o Estado.
(…)Nestes termos, impõe-se a conclusão de que os requerentes não têm legitimidade para suscitar perante o Tribunal Constitucional o pedido de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral”.
Deste modo, tem de concluir-se, nos termos da alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º, pela ilegitimidade dos requerentes, no que concerne ao pedido de declaração de inconstitucionalidade.
B) Da legitimidade processual dos requerentes - Questão de ilegalidade
7. Os requerentes pedem igualmente a declaração de ilegalidade do Decreto Regulamentar Regional n.º 6/2012/M, por violação do artigo 69.º, alínea d), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (EPARAM). Em relação a esta questão, estão claramente cumpridos os requisitos constitucionais de legitimidade, no que respeita aos fundamentos, uma vez que, como previsto na alínea g) do n.º 2, do artigo 281.º da CRP, o pedido de declaração de ilegalidade se funda na violação do respetivo estatuto.
Porém, assentando o pedido dos requerentes, fundamentalmente, na exclusividade da competência da Assembleia Legislativa da Região Autónoma em causa para regulamentar leis gerais emanadas dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respetivo poder regulamentar, poderá questionar-se a legitimidade dos requerentes para a formulação do presente pedido de declaração da ilegalidade, face ao facto de o artigo 39.º do EPARAM se limitar a reafirmar o conteúdo prescritivo do artigo 227.º, n.º 1, alínea d), em conjugação com o disposto no artigo 232.º, n.º 1, da Constituição. Estabelece, na verdade, aquela norma estatutária: «Compete à Assembleia Legislativa Regional da Madeira, no exercício de funções regulamentares, proceder à regulamentação das leis gerais emanadas dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respetivo poder regulamentar».
Sendo assim, pode entender-se que, a verificar-se a violação destas normas, estaríamos perante um vício de inconstitucionalidade que consome o vício de ilegalidade decorrente da violação do artigo 39.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, na medida em que esta disposição estatutária reproduz o critério constitucional de atribuição de competência regulamentar da legislação nacional à Assembleia Legislativa da região autónoma – valendo idêntico juízo no tocante a outras normas estatutárias atributivas de competência aos órgãos regionais que reproduzam o conteúdo prescritivo de disposições constitucionais e cuja violação possa estar em causa.
Tem sido esse o entendimento do Tribunal Constitucional, expresso, por exemplo no Acórdão n.º 198/2000, já mencionado anteriormente. Considerou-se que admitir, nestes casos, que os deputados da Assembleia Legislativa tenham legitimidade para requerer a apreciação da ilegalidade, com força obrigatória geral, implicaria uma “manifesta contradição com a ratio legis e com o sentido histórico” do artigo 281.º, n.º 2, da CRP, e que aceitar o contrário significaria aceitar que, através da reprodução de normas constitucionais nos estatutos das regiões, se poderia alargar o âmbito do poder dos deputados regionais quanto à formulação de pedidos de declaração de inconstitucionalidade. Com isso, se “frustraria a lógica das opções constitucionais plasmadas nos artigos 280.º e 281.º da Constituição”.
Contudo, logo em declaração de voto apensa ao Acórdão n.º 198/2000 se desenvolveram pertinentes reflexões, em sentido contrário. De facto, é de assinalar, em primeiro lugar, que existem notáveis diferenças de regime entre a inconstitucionalidade e a ilegalidade por violação de estatuto, nomeadamente, a diferença respeitante ao âmbito de legitimidade dos deputados às assembleias legislativas regionais para requerer a sua apreciação pelo Tribunal Constitucional. Além disso, o sentido próprio da parametricidade estatutária em relação à constitucional, parece também pesar a favor de um entendimento da inconstitucionalidade e da ilegalidade com fundamento em violação do estatuto da região como vícios autónomos, com pressupostos processuais distintos, designadamente no que respeita aos requisitos de legitimidade. Nas expressivas palavras do mencionado voto de vencido:
“a ilegalidade por violação de estatuto não pode ser reduzida apenas a um minus em relação à inconstitucionalidade, sendo sim um aliud. Isto é, trata-se de um vício resultante da violação de outro parâmetro normativo, diverso da Constituição da República – outro parâmetro esse, porém, que tem também de ser conforme à Lei Fundamental –, e cuja violação está igualmente submetida à apreciação pelo Tribunal Constitucional. Assim, a introdução de uma norma num estatuto, pelo menos quando tal norma tem natureza ou vocação “intrinsecamente estatutária” – como é manifestamente o caso, com uma norma relativa à repartição de competências entre a assembleia legislativa e o governo regional – tem, pois, o sentido de a autonomizar enquanto parâmetro, também em relação ao parâmetro constitucional – que, porém, como todas as normas, aquele tem de respeitar –, se e na medida em que sejam de reconhecer diferenças de regime jurídico, como acontece, no presente caso, relativamente à legitimidade para desencadear o processo de reconhecimento da sua violação. A redução da inserção de uma norma como parâmetro estatutário, mesmo quando ela coincide com uma norma constitucional, a mera “inserção formal” deixa, pois, escapar o essencial, ou seja, a autónoma força paramétrica de uma norma justamente enquanto norma (no caso, aliás, também “com vocação”) estatutária”.
Este entendimento mereceu, posteriormente, acolhimento no Acórdão n.º 645/2013, onde se afirmou, quanto à legitimidade para requerer a apreciação da ilegalidade de normas do Regimento da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira por confronto com o artigo 58.º do EPARAM, por se tratar de norma estatutária relativa ao modo de organização do poder político autonómico:
«(…) Sendo assim, é aqui de resolução imperativa a questão, acima enunciada (…), relativa à legitimidade dos requerentes.
A este propósito, são duas as posições já manifestadas na jurisprudência deste Tribunal.
A primeira apontaria para que fosse negada aos requerentes legitimidade para o pedido de declaração da ilegalidade com fundamento na violação do artigo 58.º do EPARAM, sob o argumento de que o reconhecimento dessa legitimidade implicaria a aceitação de que, por efeito da sua reprodução no Estatuto, o princípio da responsabilidade política do Governo Regional perante a Assembleia Legislativa Regional, consagrado no n.º 3 do artigo 231.º da Constituição, passasse a poder intervir no controlo de validade das normas impugnadas como parâmetro de mera legalidade, abrindo-se com isso ao legislador ordinário a possibilidade de, através da reprodução das normas constitucionais nos estatutos político-administrativos das regiões autónomas, modificar o resultado do funcionamento das regras de legitimidade definidas pelo legislador constitucional no âmbito da fiscalização abstrata sucessiva. Dessa forma, passaria a ser invocável um parâmetro de invalidação materialmente constitucional, sem dependência da verificação de uma qualquer “violação dos direitos das regiões autónomas” (cf. artigo 281.º, n.º 2, alínea h), da Constituição).
A esta perspetiva, outra se pode opor.
Conforme resulta do voto de vencido aposto ao referido Acórdão n.º 198/2000, poder-se-á considerar que, para além dos elementos literal e histórico subjacentes ao artigo 281.º, n.º 2, alínea h), da Constituição, aponta para uma interpretação contrária ao entendimento ali maioritariamente sufragado um argumento retirado da “consideração da autonomia da força paramétrica do estatuto regional em relação à da Constituição – embora evidentemente submetido aquele a esta”. De acordo com tal perspetiva, uma vez que “a ilegalidade por violação de estatuto não pode ser reduzida apenas a um minus em relação à inconstitucionalidade, sendo sim um aliud”, a «introdução de uma norma num estatuto, pelo menos quando tal norma tem natureza ou vocação “intrinsecamente estatutária” (…), tem (…) o sentido de a autonomizar enquanto parâmetro, também em relação ao parâmetro constitucional – que, porém, como todas as normas, aquele tem de respeitar –, se e na medida em que sejam de reconhecer diferenças de regime jurídico (…) relativamente à legitimidade para desencadear o processo de reconhecimento da sua violação», não ocorrendo, além do mais, qualquer defraudação da “limitação de legitimidade para invocar a inconstitucionalidade (…) através da reprodução de normas constitucionais nos estatutos das regiões autónomas” na medida em que, não só a “violação de estatuto regional” é irredutível à “invocação de uma inconstitucionalidade” mesmo que a “norma estatutária coincida com uma norma constitucional”, como, no âmbito da ilegalidade, “a ligação com a região autónoma e a defesa do seu estatuto político administrativo está sempre assegurada – ao contrário do que acontece com a invocação da inconstitucionalidade – pelo facto de estar em questão apenas a ilegalidade justamente por violação de estatuto regional”.
Aderindo a esta segunda orientação, o Tribunal deve tomar conhecimento, nesta parte, do objeto do pedido de ilegalidade, apreciando e resolvendo a questão de saber se é ou não contrária ao princípio da responsabilidade política do Governo Regional perante a Assembleia Legislativa Regional, consagrado no artigo 58.º do EPARAM, a ausência de limites temporais às intervenções do Presidente do Governo Regional, no âmbito do debate das moções de censura ao Governo, tal como expressamente assegurada pelo n.º 3 do artigo 196.º do Regimento da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira (…).».
Nestes termos, e segundo tal entendimento, afigura-se fundado reconhecer aos deputados regionais ora requerentes legitimidade para pedir ao Tribunal Constitucional, no presente caso, a fiscalização da legalidade, com força obrigatória geral, das normas do Decreto Regulamentar Regional n.º 6/2012/M.
C) Do mérito
Cumpre, assim, apreciar do mérito do pedido quanto à questão de ilegalidade do Decreto Regulamentar Regional n.º 6/2012/M colocada pelos requerentes a este Tribunal.
A norma estatutária em que se fundamenta o pedido (artigo 69.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira) refere-se às competências do Governo Regional, prevendo a alínea d) do preceito que aquele deve “Elaborar os decretos regulamentares regionais, necessários à execução dos decretos legislativos e ao bom funcionamento da administração da Região, bem como outros regulamentos, nomeadamente portarias”. Esta disposição leva os requerentes a concluir pela impossibilidade de aquele órgão regulamentar leis emanadas dos órgãos de soberania, bem como pela necessidade de existência de um decreto legislativo regional prévio à intervenção por via de decreto regulamentar do Governo Regional, dada a exclusiva competência da Assembleia Legislativa Regional em matéria de regulamentação de qualquer lei ou decreto-lei.
Nestes termos, a questão que se coloca a este Tribunal é, precisamente, a da repartição de competências entre os órgãos da Região Autónoma da Madeira.
À luz dos artigos 232.º, n.º 1, e 227.º, n.º 1, alíneas d) e a), da CRP, integram a reserva de competência da Assembleia Legislativa da região autónoma, entre outros, o poder de “regulamentar a legislação regional e as leis emanadas dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respetivo poder regulamentar”, bem como o poder de “legislar no âmbito regional em matérias enunciadas no respetivo estatuto político-administrativo”. Esta divisão de competências no seio do ordenamento interno da Região Autónoma da Madeira é confirmada pelo quadro definido no respetivo Estatuto, nomeadamente, nos artigos 69.º e 36.º a 39.º do EPARAM.
Na ótica central do pedido formulado pelos requerentes – exclusividade da competência da Assembleia Legislativa Regional para regulamentar leis emanadas dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respetivo poder regulamentar e correspondente omissão de norma estatutária que confira ao Governo Regional aquela competência –, impõe-se, pois, indagar se o legislador estatutário quis criar, no domínio do ordenamento interno da região, uma reserva de regulamentação das matérias tratadas em legislação nacional a favor do órgão legislativo regional, assim como há que definir se essa será uma reserva total, de modo a que nenhum espaço seja deixado à regulação por fonte administrativa.
Problema idêntico foi já apreciado pelo Tribunal Constitucional, que afirmou no seu Acórdão n.º 187/12:
“O Estatuto Político-Administrativo é a lei básica da região, que, dentro do quadro constitucional, regula o modo de organização e de exercício do poder autonómico, definindo as competências e inter-relações entre os órgãos de governo próprio da região e o estatuto dos seus titulares (artigo 231.º). As normas que integram esta lei básica, e que completam o quadro constitucional de repartição de competências entre legislador nacional e legislador regional, detêm, pelo lugar, hierárquico e funcional, que a Constituição lhe atribui – e pela função substancial que cumprem, de serem a primeira expressão da autonomia político-legislativa da região: artigo 6.º, nº 2, da CRP – legitimidade bastante para serem elas próprias “normas distribuidoras” de tarefas no seio da região, enunciando as matérias que, sendo reservadas à função reguladora do legislador regional, ficam subtraídas, na região, à regulação administrativa”.
Como acima se deu conta, à luz do artigo 39.º do EPARAM, compete à Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, no exercício de funções regulamentares, proceder à regulamentação das leis gerais emanadas dos órgãos de soberania – não sendo atribuída ao Governo Regional, pelo artigo 69.º do Estatuto, competência para proceder a tal regulamentação. Pelo que, inexistindo norma habilitante para a aprovação do Decreto Regulamentar Regional em causa pelo Governo Regional, tal bastaria prima facie para concluir pela ilegalidade das suas normas.
Verifica-se todavia, in casu, que o vício em presença se afigura outro, mais grave, na medida em que se mostra afetada a própria reserva de competência legislativa da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira e, assim, a reserva de lei em favor do legislador regional – a que os requerentes não deixam de aludir.
Com efeito, apesar de a fundamentação dos requerentes ser alicerçada, no essencial, na exclusividade da competência da Assembleia Legislativa da Região Autónoma em causa para regulamentar as leis emanadas dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respetivo poder regulamentar (artigos 39.º do EPARAM e 227.º, n.º 1, alínea d), segunda parte, e 232.º, n.º 1, da CRP), aqueles referem igualmente, no quadro da estrutura orgânica regional, a exclusividade do poder legislativo daquela Assembleia Legislativa (cfr. requerimento, 5.º).
A este propósito, afigura-se adequado recordar o que este Tribunal sustentou no mencionado Acórdão n.º 187/12:
“As relações que, nas regiões, se estabelecem entre o poder legislativo e o poder executivo não replicam aquelas outras que, na República, se estabelecem entre Parlamento e Governo. Por razões que se prendem, afinal, com os fundamentos da própria autonomia regional (artigo 225.º), na região a assembleia legislativa, de base eletiva, detém uma reserva de competência face ao governo regional que, sendo bem mais vasta do que a reserva homóloga da Assembleia da República, abarca não apenas todas as competências legislativas da região, mas também certos dos seus poderes regulamentares, bem como as suas competências de iniciativa legislativa (artigo 232.º, nº 1).
É por estes motivos que se conclui que a CRP não impede que se entenda que as normas dos estatutos que enunciam as matérias sobre as quais a região pode legislar são normas que têm por efeito a constituição, na ordem interna dessa região, de reservas de lei a favor do legislador regional. (...)
Resta no entanto determinar qual a extensão que deve ter esta reserva de lei. (...)
A extensão de uma reserva especial de lei pode ter gradações diversas, consoante a específica matéria sobre a qual incida. Todavia, tanto a jurisprudência (veja-se, por exemplo, o Acórdão nº 289/2004, disponível em www.tribunalconsitucional.pt) quanto a doutrina (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed. Vol. II, Coimbra 2010, p. 70) são unânimes em considerar que, aí onde houver reservas de lei, ao ato legislativo caberá sempre, e pelo menos, fixar “o sentido e os limites da intervenção regulamentar” (Acórdão nº 289/2004) “não podendo a lei, no âmbito da reserva, deixar de esgotar toda a regulamentação “primária” das matérias, só podendo remeter para regulamento os aspetos “secundários”. (ob. e loc. cits.)”.
No presente caso está em causa a aplicação à Região Autónoma da Madeira (cfr. artigo 1.º, n.º 1) e a adaptação às especificidades da região do disposto no Decreto-Lei n.º 113/2011 (cfr. artigos 1.º, n.º 2 e 2.º).
Com efeito, o Decreto Regulamentar Regional n.º 6/2012/M, sub iudice, determina a aplicação à Região Autónoma da Madeira, ainda que com adaptações e especificidades, do Decreto-Lei n.º 113/2011, de 29 de novembro – que regula o acesso às prestações do Serviço Nacional de Saúde (SNS) por parte dos utentes no que respeita ao regime das taxas moderadoras e à aplicação de regimes especiais de benefícios – e, assim, a aplicação, ao Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira, do regime das taxas moderadoras aprovado por um órgão de soberania, no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei de Bases da Saúde (LBS), aprovada pela Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, modificada pela Lei n.º 27/2002, de 8 de novembro, e aplicável ao SNS.
Na ausência de disposição expressa no Decreto-Lei n.º 113/2011, de 29 de novembro, que preveja a sua aplicação aos Serviços Regionais de Saúde, o Decreto Regulamentar Regional n.º 6/2012/M consubstancia uma opção primária por parte da Região Autónoma da Madeira – a opção de aplicar à Região Autónoma e ao respetivo Serviço Regional de Saúde um regime em matéria de atos sujeitos a taxas moderadoras e respetivo valor tal como foi definido por um órgão de soberania, no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei de Bases da Saúde, para o SNS.
Tal opção primária – de aplicação à Região Autónoma da Madeira do regime jurídico aprovado pelo decreto-lei em causa, emanado de um órgão de soberania, e cujo âmbito de aplicação se circunscreve ao âmbito do SNS (cfr. art.º 1.º) – encontra-se expressamente prevista no artigo 21.º do Estatuto do Sistema Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira, aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 4/2003/M, de 7 de Abril, com as alterações introduzidas pelo Decreto Legislativo Regional 23/2008/M, de 23 de Junho, no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela base VIII, conjugada com a base XXXVI da LBS, ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP e nos artigos 37.º, n.º 1, alínea e) e 40.º, alínea m) do EPARAM. Prevê aquela disposição do Estatuto do Sistema Regional de Saúde que “As normas cujo âmbito de aplicação seja o Serviço Nacional de Saúde (…) podem ser aplicadas e adaptadas à Região”. E a opção primária por tal aplicação, em detrimento da aplicação de regime distinto, traduz ainda o exercício de uma escolha de política legislativa quanto à configuração de uma vertente do Serviço Regional de Saúde – o regime de taxas moderadoras e de benefícios em matéria de acesso às respetivas prestações – que se enquadra na competência legislativa, e respetiva margem de conformação, cometida à ALRAM, in casu, de desenvolvimento da Lei de Bases da Saúde em função do interesse específico da Região (cfr. artigo 37.º, n.º 1, alínea e) e artigo 40.º, alínea m) do EPARAM).
E, sendo a competência legislativa reservada, em exclusivo, na Região Autónoma da Madeira, à respetiva Assembleia Legislativa (cfr. artigos 13.º e 37.º, n.º 1, do EPARAM e artigos 227.º, n.º 1, e 232.º, n.º 1, da CRP), a opção pela aplicação do regime do diploma em causa, aprovado por um órgão de soberania, ao Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira, operada por via do Decreto Regulamentar Regional n.º 6/2012/M aprovado pelo Governo Regional, afigura-se desconforme com o disposto no EPARAM, por violar a referida reserva de competência legislativa da ALRAM, consagrada nos artigos 13.º e 37.º, n.º 1, alínea e), do EPARAM.
Por esta razão, deverá ter-se por justificada e inteiramente aplicável ao presente pedido de declaração de ilegalidade a reserva de competência em favor da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira prevista quer no artigo 227.º, n.º 1, alínea c) da CRP, quer no artigo 37.º, n.º 1, alínea e), do EPARAM.
Assim, e face a tudo o que acima se referiu, não pode deixar de concluir-se que o Decreto Regulamentar Regional n.º 6/2012/M desrespeita as normas constantes dos artigos 13.º e 37.º, n.º 1, alínea e), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, padecendo, por isso, de ilegalidade.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não tomar conhecimento, por ilegitimidade dos requerentes, do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do Decreto Regulamentar Regional n.º 6/2012/M;
b) Declarar a ilegalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do Decreto Regulamentar Regional n.º 6/2012/M, por violação dos artigos 13.º e 37.º, n.º 1, alínea e), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
Lisboa, 6 de fevereiro de 2014. – Maria José Rangel de Mesquita – Pedro Machete – Ana Guerra Martins – Maria João Antunes (sem prejuízo da declaração aposta ao Ac. nº 187/12) – Fernando Vaz Ventura - Maria Lúcia Amaral (sem prejuízo da declaração aposta ao Ac. nº 645/13) – José da Cunha Barbosa – Carlos Fernandes Cadilha (vencido quanto à questão da legitimidade dos requerentes sobre a matéria da ilegalidade nos termos da declaração aposta ao Ac nº 187/12) – Maria de Fátima Mata-Mouros (sem prejuízo - no que respeita à alínea a) da decisão, das dúvidas expressas no acórdão 645/2013 quanto à ilegitimidade dos requerentes para o pedido de fiscalização de constitucionalidade) – Lino Rodrigues Ribeiro– Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.