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Processo n.º 482/2013
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A Autoridade para as Condições do Trabalho aplicou à arguida «A., Limitada» uma coima pela contraordenação prevista e punida pelas disposições conjugadas dos artigos 25.º, n.º 1, alínea a), e 14.º, n.º 4, alíneas a) e b), da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto.
A arguida impugnou tal decisão, tendo o Tribunal do Trabalho de Leiria recusado a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma constante do artigo 13.º, nºs. 1 e 2, da citada Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, absolvendo, em consequência, a arguida.
O Ministério Público recorreu desta decisão, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), a fim de ver apreciada a inconstitucionalidade da norma cuja aplicação foi recusada, tendo o tribunal recorrido admitido o recurso.
Os autos prosseguiram com a apresentação de alegações pelo Ministério Público, onde se conclui:
40º Por todo o exposto ao longo das presentes alegações, julga-se, ao invés do decidido na sentença recorrida, não haver motivos para considerar inconstitucional o disposto no art. 13º, nºs 1 e 2 da Lei 27/2010, de 30 de agosto.
41º No caso dos autos, o motorista da arguida, empresa transportadora “A., Lda.”, não era portador das folhas de registo de tacógrafo, referentes aos últimos 28 dias do trabalho por si executado, pelo que foi levantado o correspondente auto de contraordenação, por parte da autoridade administrativa – ACT.
Em consequência, foi aplicada à arguida uma coima de € 2.040,00, dada a sua conduta negligente:
“A arguida infringiu, pois, o nº 7 alínea a) do art. 15º do Regulamento (CEE) nº 3821/85, de 20/12, do Conselho, publicado no Jornal Oficial das Comunidades nº L 370/85, de 31/12, alterado pelo Regulamento (CE) nº 561/2006 do Parlamento Europeu e do artigo 25º nº 1 al. a) da Lei 27/2010 de 30.08.
Nos termos do artigo 14º nº 4 al. a) e b) da Lei 27/2010 de 30.08 «Os limites das coimas correspondentes às infrações muito graves têm os seguintes valores, de 20 UC a 300 UC em caso de negligência, o equivalente a € 2.040,00 a € 30.600,00 e de 45 UC a 600 UC em caso de dolo».”
“Tendo em conta os factos provados e que da conjugação dos mesmos não se pode concluir que a Arguida agiu com dolo, podendo no entanto concluir-se que agiu com negligência, sempre punível neste tipo de contraordenações nos termos do Art. 550º do Código do Trabalho e, ainda, as finalidades da disposição infringida – a prevenção e segurança rodoviárias e, por outro lado, a salvaguarda dos direitos do condutor relativos aos tempos de trabalho e de descanso, propõe-se a aplicação da coima no montante de 20 UC o equivalente a € 2.040,00 (dois mil e quarenta euros), a que acresce o valor das custas legais.”
42º Impugnada judicialmente a coima aplicada, foi, por sentença de 12 de abril de 2013, do Tribunal de Trabalho de Leiria, recusada a aplicação da norma constante do art. 13º nºs 1 e 2 da Lei nº 27/2010, de 30 de agosto, por materialmente inconstitucional, designadamente por:
“Ora, no caso sub judice, dos factos descritos na decisão administrativa não resulta a imputação (quer objetiva quer) subjetiva da infração à arguida, o que teria de ser baseado em factos concretos e precisos e não, como daquela se infere, em conclusões, juízos de valor e remissão para matéria de direito valendo-se da presunção da culpa «permitida» pela Lei.
Não resultando, assim, dos autos de contraordenação que tenha sido feita prova da culpa da entidade empregadora e estando nós no regime contraordenacional ao qual é aplicável subsidiariamente o regime penal, não prescindindo ambos da existência de culpa em concreto (não objetivada nem presumida) para uma eventual condenação tem a arguida que ser absolvida da prática da infração que lhe foi imputada por falta de prova do elemento subjetivo da infração e pelo juízo de inconstitucionalidade que defendemos quanto ao art. 13º nºs 1 e 2 do referido diploma por violação do princípio da culpa.
Com efeito, bastou-se a decisão administrativa com o facto de o motorista infrator ser trabalhador da arguida para, e sem mais, aplicar o diploma em questão, considerando esta responsável, não exigindo qualquer comportamento ilícito ou culposo por parte daquela em termos de ser possível assacar-lhe a responsabilidade pela prática da contraordenação como autora, coautora ou cúmplice. Baseou-se assim numa responsabilidade objetiva motivo pelo qual entendemos dever a decisão ser revogada por aplicação de lei inconstitucional, arts. 277 nº 1 e 2 da CRP.
Pelo que recusamos a aplicação da norma por materialmente inconstitucional e assim decidimos absolver a arguida.
Pelo exposto recusamos a aplicação da norma do art. 13º nºs 1 e 2 da Lei nº 27/2010 de 30 de agosto por materialmente inconstitucional e violadora dos princípios da culpa e de proibição da inversão do ónus da prova constitucionalmente consagrados no art. 32º da CRP, pelo que absolvemos a arguida da contraordenação que lhe vem imputada.”
43º Estamos, porém, nos presentes autos, no âmbito do chamado Direito da Mera Ordenação Social, ou Direito das Contraordenações, concebido como um instrumento de intervenção administrativa de natureza sancionatória, no sentido de garantir maior eficácia à ação administrativa.
O Direito das Contraordenações surge como um novo ramo de direito sancionatório, autónomo do Direito Penal, mas que, com ele, mantém profundas ligações.
Assim, o Decreto-Lei nº 433/82, de 27/10 (RGCO), que define o regime geral do Direito de Mera Ordenação Social, no seu art.º 32º, define o Direito Penal como direito subsidiário e, por força do seu art.º 41º, no que ao regime processual se refere, determina que o Código de Processo Penal seja tido como direito subsidiário.
No entanto, a aplicação do processo criminal, enquanto direito subsidiário, tem como limite a salvaguarda do próprio regime do processo de contraordenação, como resulta da 1ª parte do n.º 1 do art.º 41.º do RGCO.
Pelo que, não obstante a aproximação existente, não se pode confundir o processo criminal com o procedimento contraordenacional, até pela natureza distinta de cada um deles e das respetivas sanções, que constituem, quanto ao procedimento contraordenacional, medidas sancionatórias de caráter não penal.
Por outro lado, a autonomia do tipo de sanção, previsto para as contraordenações, repercute-se a nível adjetivo, não se justificando, por isso, que sejam inteiramente aplicáveis, ao processo contraordenacional, os princípios que orientam o direito processual penal.
A diferente natureza dos processos impõe, ainda, que a invocação das garantias de processo criminal, em sede de procedimento contraordenacional, deva ser rodeada de especiais cautelas.
44º Assim, relativamente às garantias de defesa, os princípios do direito criminal não se aplicam ao processo contraordenacional de forma cega, mas com cautelas, variando o grau de vinculação, a esses princípios, consoante a natureza do processo.
Tais cautelas, no que respeita à invocação das garantias de processo criminal em sede de procedimento contraordenacional, conduziram, mesmo, à redação do n.º 8 do art.º 32.º da CRP, introduzida pela Revisão Constitucional de 1989 (atualmente o n.º 10 do mesmo art.º 32.º da Constituição), o qual dispõe, que “nos processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa”.
Desta forma, o legislador constitucional pretendeu, apenas, assegurar, no âmbito do processo contraordenacional, os direitos de audiência e de defesa do arguido, isto é, que o arguido não possa sofrer qualquer sanção contraordenacional, sem que seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas.
Ora, a empresa arguida, nos presentes autos, foi devidamente ouvida, durante o procedimento contraordenacional e esteve em condições de se defender como entendeu, tendo mesmo impugnado, judicialmente, a coima que, no respetivo âmbito, lhe foi aplicada.
O respeito pelo art. 32º, nº 10, da Constituição parece, assim, ter sido suficiente e devidamente assegurado, nos presentes autos, ao contrário do concluído pela digna magistrada judicial.
45º A aplicação de uma coima à arguida resulta do entendimento, aliás justificado, por parte da autoridade administrativa, de que:
a) o motorista infrator atuava, no dia da prática dos factos, no interesse, e sob a autoridade e direção da arguida, uma vez que cabia a esta distribuir-lhe o serviço;
b) não se fazia, de facto, acompanhar dos discos de tacógrafo respeitantes aos últimos 28 dias de trabalho, que executara;
c) a arguida tinha o dever de organizar o trabalho dos seus motoristas no respeito das disposições legais em vigor, fornecendo-lhes, para o efeito, todas as instruções necessárias e mantendo controlos regulares adequados;
d) devia, por outro lado, assegurar que os seus motoristas zelassem pelo bom funcionamento e pela correta utilização dos tacógrafos;
e) ao não evitar a prática da infração, a arguida agiu, assim, com negligência, sempre punível no âmbito das infrações laborais.
Aliás, facto que a digna magistrada judicial se esqueceu, talvez, de ponderar devidamente, a não imputação da responsabilidade contraordenacional à arguida, leva à sua impunidade e desresponsabilização social, tanto mais indesejável, quanto é ela que beneficia, em primeiro lugar, do cometimento da infração.
E a decisão judicial recorrida não contribui também, certamente, para acautelar as finalidades prosseguidas pela previsão legal em apreciação, quando esta entendeu estabelecer a aplicação de coimas a casos como o dos autos: «a prevenção e segurança rodoviárias e, por outro lado, a salvaguarda dos direitos do condutor relativos aos tempos de trabalho e de descanso».
46º Por outro lado, a coima aplicada, em termos do respetivo montante, não se revela inadequada, desproporcionada ou arbitrária, atendendo aos valores mínimo e máximo aplicáveis e ao facto de se tratar de uma contraordenação muito grave.
47º Não se poderá, pois, dizer, como o faz, de forma algo temerária, a sentença recorrida, que a autoridade administrativa – ACT – considerou, sem mais, a arguida responsável pela contraordenação, “dos factos descritos na decisão administrativa não resulta[ndo] a imputação (quer objetiva quer) subjetiva da infração à arguida, o que teria de ser baseado em factos concretos e precisos e não, como daquela se infere, em conclusões, juízos de valor e remissão para matéria de direito valendo-se da presunção da culpa «permitida» pela Lei.”.
Bem pelo contrário, como se viu, a autoridade administrativa procurou definir, com precisão, as razões que a levaram a considerar a conduta da arguida, no mínimo, como negligente. E fê-lo com recurso a argumentação diversa e adequada.
48º É indubitável, ainda, ter sido intenção do Regulamento (CE) 561/2006 (cfr. supra nº 12 das presentes alegações),
“prever como princípio/regra a responsabilidade objetiva dos empregadores transportadores pelas infrações cometidas pelos respetivos trabalhadores; não obstante, aí se admitiu também que os Estados-Membros, no âmbito do poder/dever de regulamentação do quadro sancionatório, viessem a prever formas atenuadas dessa responsabilidade objetiva, mormente: (a) enquadrando-a no âmbito de uma verdadeira responsabilidade subjetiva, ao fazer depender a sua responsabilidade da violação, por si cometida, dos deveres previstos nos nºs 1 e 2 do art. 10º do Regulamento; (b) ou, consagrando embora a responsabilidade da empresa transportadora com base numa presunção de culpa, permitir que esta alegue e prove não ter sido responsável pelo seu cometimento.”
49º Por outro lado, também se pode dar como adquirido, o facto de a Lei 27/2010, de 30 de agosto, ter vindo (cfr. supra nº 13º das presentes alegações),
“estabelecer o regime sancionatório aplicável à violação das normas respeitantes aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso e ao controlo de utilização de tacógrafos, na atividade de transporte rodoviário, assim criando o quadro sancionatório e dando, por consequência, execução aos arts. 10º, nº 3 e 19º do Regulamento 561/2006 (e revogando o DL 272/89, de 19.08), diploma esse que entrou e vigor aos 05.09.2010 e que é o aplicável ao caso em apreço.
Ora, o art. 13º da citada Lei veio dispor que:
1 – A empresa é responsável por qualquer infração cometida pelo condutor, ainda que fora do território nacional.
2 – A responsabilidade da empresa é excluída se esta demonstrar que organizou o trabalho de modo a que o condutor possa cumprir o disposto no Regulamento (CEE) nº 3821/85, do Conselho, de 20 de dezembro, e no capítulo II do Regulamento (CE) nº 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março.
3 – O condutor é responsável pela infração na situação a que se refere o número anterior ou quando esteja em causa a violação do disposto no artigo 22º.
4 – (...)
Ou seja, a Lei 27/2010 veio consagrar uma das soluções previstas pelo art. 10º, nº 3, do Regulamento, qual seja uma forma mitigada da responsabilidade objetiva ou presumida, pois que, consagrando embora a responsabilidade da empresa transportadora com base numa presunção de culpa, veio, contudo, permitir que esta alegue e prove não ter sido responsável pelo seu cometimento, para o que deverá demonstrar que organizou o trabalho de modo a que seja possível o cumprimento das imposições legais.”
50º Não se crê, pois, que se possa considerar tal “forma mitigada da responsabilidade objetiva ou presumida”, relativamente à empresa transportadora, como inconstitucional, tal como decidido pela sentença recorrida, dado que a presunção de culpa pode ser ilidida pela mesma transportadora, comprovando, no caso concreto, que a responsabilidade da infração lhe não pode ser atribuída.
Esta, a melhor solução para os fins pretendidos com o estabelecimento de tal presunção, desde logo, decorrentes das razões que levaram à publicação do Regulamento (CE) 561/2006, de 15 de março: melhorar as condições de trabalho dos motoristas e reforçar a segurança rodoviária.
51º A jurisprudência deste Tribunal Constitucional vai em idêntico sentido, como decorre, por exemplo, da leitura do Acórdão 448/87, de 18 de novembro, relativo à responsabilidade dos diretores de periódicos relativamente a crimes de liberdade de imprensa por escritos não assinados.
Ora, também no caso dos presentes autos, estamos perante uma situação de presunção em que, no caso de não ser possível imputar a responsabilidade a determinado agente, a mesma acaba por impender sobre agente diverso, neste caso, a empresa de transportes, ora arguida.
Por outro lado, está subjacente, a esta presunção, uma finalidade político-contra-ordenacional clara: impedir que se criem situações de impunidade no seio de uma atividade tão importante e essencial como é o transporte rodoviário de mercadorias, prevenindo acidentes e protegendo a saúde dos motoristas ao serviço das empresas, que a tal transporte se dedicam.
Acresce que, também no caso dos autos, se está perante uma situação em que houve menor diligência por parte da arguida, no controlo da atividade dos seus motoristas. Daí ser punida a sua negligência.
Por outras palavras, essa imputação de responsabilidade, perante uma conduta que poderia ter sido bastante mais diligente, não poderá ter-se por inadequada, nem desproporcionada ou excessiva.
Por último, trata-se, também, de uma presunção de um puro facto, que a empresa transportadora poderá ilidir.
Ora, tal presunção não se poderá ter por arbitrária, uma vez que impende, sobre a empresa transportadora, um especial dever objetivo de cuidado: o dever não só de distribuir o trabalho aos seus motoristas, como também o de orientar e controlar a respetiva atividade, que integra potenciais riscos para terceiros.
Não se revela, por isso, excessivo, que a lei ponha, a cargo da empresa transportadora, o risco de uma sua eventual conduta imprudente ou imprevidente nesta matéria.
52º Tomando, como referência, o Acórdão 135/92, de 2 de abril, também sobre abuso de liberdade de imprensa, no caso dos autos não estamos no âmbito do regime penal, mas contraordenacional, necessariamente menos exigente.
Depois, não se dispensa totalmente a exigência de culpa da empresa transportadora, uma vez que se pune a sua negligência.
A punição radica, por outro lado, em razões materialmente fundadas.
Por último, designadamente na fase de impugnação judicial, a empresa transportadora teve, como se disse já, ampla oportunidade de se defender como entendeu, e, nessa medida, de contestar os fundamentos da coima que lhe havia sido aplicada pela autoridade administrativa.
53º Como referido no Acórdão 276/2004, de 20 de abril, “a existência de presunções, mesmo em direito penal, não é constitucionalmente inadmissível, desde que ilidíveis”, o que é, como se viu, o caso dos autos.
54º No seguimento do Acórdão 23/2010, de 13 de janeiro, nos presentes autos, também a imputação da infração, à empresa transportadora arguida, não tem origem numa responsabilidade inteiramente objetiva.
Resulta, antes, de uma responsabilidade por atuação, em nome da empresa transportadora, de um seu motorista, ou seja, assenta na culpa in elegendo ou in vigilando da empresa.
55º Acresce, que a solução proposta se mostra inteiramente conciliável com o disposto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, em que designadamente se determina:
“Artigo 550.º
Punibilidade da negligência
A negligência nas contraordenações laborais é sempre punível.
Artigo 551.º
Sujeito responsável por contraordenação laboral
1 - O empregador é o responsável pelas contraordenações laborais, ainda que praticadas pelos seus trabalhadores no exercício das respetivas funções, sem prejuízo da responsabilidade cometida por lei a outros sujeitos.
2 - Quando um tipo contraordenacional tiver por agente o empregador abrange também a pessoa coletiva, a associação sem personalidade jurídica ou a comissão especial.
3 - Se o infrator for pessoa coletiva ou equiparada, respondem pelo pagamento da coima, solidariamente com aquela, os respetivos administradores, gerentes ou diretores.
4 - O contratante é responsável solidariamente pelo pagamento da coima aplicada ao subcontratante que execute todo ou parte do contrato nas instalações daquele ou sob responsabilidade do mesmo, pela violação de disposições a que corresponda uma infração muito grave, salvo se demonstrar que agiu com a diligência devida.
56º Conclui-se, por isso, por todas as razões invocadas, que este Tribunal Constitucional deverá conceder provimento ao presente recurso de constitucionalidade, não considerando inconstitucional o disposto no art. 13º, nºs 1 e 2 da Lei 27/2010, de 30 de agosto.
E determinar, nessa medida, a revogação da sentença recorrida, do Tribunal do Trabalho de Leiria, de 12 de abril de 2013.
A recorrida, notificada para o efeito, não contra-alegou.
2. Cumpre apreciar e decidir.
A questão que constitui objeto do presente recurso foi recentemente apreciada pelo Acórdão n.º 45/2014 da 2.ª Secção do Tribunal Constitucional, que decidiu não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 13.º, nºs. 1 e 2, da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto. Considerou-se, para assim concluir, o seguinte:
«A Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, veio estabelecer o regime sancionatório aplicável à violação das normas respeitantes aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso, e ao controlo da utilização de tacógrafos, na atividade de transporte rodoviário, transpondo a Diretiva n.º 2006/22/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março de 2006, alterada pela Diretiva n.º 2009/5/CE da Comissão, de 30 de janeiro de 2009.
A regulamentação internacional nesta matéria teve como objetivos harmonizar as condições de concorrência entre empresas de transporte rodoviário e melhorar as condições de trabalho e a segurança rodoviária. Na verdade, tais regras visam melhorar as condições de trabalho dos condutores, atuando sobre os tempos de condução, as pausas e os repousos, promovendo, assim, o descanso dos condutores e, simultaneamente, diminuindo os riscos de sinistralidade rodoviária. Por outro lado, harmonizam as condições de concorrência entre as empresas, porque todas devem incorporar os encargos das condições de trabalho e da segurança rodoviária nos custos da respetiva atividade.
Estes objetivos são prosseguidos através da fixação de limites máximos aos tempos de condução, de durações mínimas de pausas e períodos de repouso, de proibição de certas modalidades de pagamento do trabalho suscetíveis de agravar o risco de fadiga e de acidente, bem como na imposição de controlos e sanções por infração àquelas regras, a cargo das autoridades públicas.
Anteriormente, esta matéria encontrava-se regulada no Decreto-Lei n.º 272/89, de 19 de agosto, o qual, preenchendo um vazio legislativo, visou dar cumprimento ao Acordo Europeu Relativo ao Trabalho das Tripulações dos Veículos Que Efetuem Transportes Internacionais Rodoviários (AETR), aprovado para ratificação pelo Decreto n.º 324/73, de 30 de junho, e aos Regulamentos (CEE) n.º 3820/85 e n.º 3821/85, ambos de 20 de dezembro de 1985. Neste diploma não existia um preceito que expressamente imputasse as infrações ao empregador ou ao trabalhador em matéria de tempos de condução e repouso, pelo que a jurisprudência e a doutrina pronunciavam-se pela responsabilização de quem tivesse o domínio do facto (vide João Soares Ribeiro, em “Responsabilidade contraordenacional dos trabalhadores por conta de outrem”, em Questões laborais, Ano I (1994), n.º 1, pág. 41-42).
A Lei n.º 116/99, de 4 de agosto, veio alterar esta situação, ao aprovar um novo regime geral das contraordenações laborais, em cujo artigo 4.º consagrava genericamente a responsabilidade da entidade patronal pelas infrações laborais. A jurisprudência dividiu-se entre a que considerava que o empregador, por via de uma responsabilidade presumida, seria o responsável pela contraordenação e a que entendia que, detendo o motorista o controle do veículo e estando ele também obrigado à observância das normas existentes nessa matéria, a responsabilidade do empregador dependia da prova da verificação da materialidade da infração e da culpa do mesmo na sua ocorrência.
Com a aprovação do Código de Trabalho de 2003, a consequente revogação da citada Lei n.º 116/99, e perante a inexistência de norma idêntica ao mencionado artigo 4.º, passou a entender-se ser necessária a demonstração da imputabilidade ao empregador da autoria material da contraordenação.
Em 11 de abril de 2007 entrou em vigor o Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, que, para além do mais, estabeleceu no 1.º parágrafo, do n.º 3, do artigo 10.º que as empresas de transportes são responsáveis por qualquer infração cometida pelos condutores da empresa, ainda que essa infração tenha sido cometida no território de outro Estado-Membro ou de país terceiro.
A jurisprudência voltou a dividir-se quanto à necessidade de concretização por normas internas daquela disposição regulamentar e consequentemente quanto à imputação legal ao empregador da responsabilidade pelas infrações cometidas em matéria de tempos de condução e repouso dos condutores de transporte rodoviário (vide uma resenha dessa jurisprudência, feita por João Soares Ribeiro, em “Tempos de condução, de repouso, e pausas no transporte rodoviário”, na Revista do Ministério Público, Ano 31, n.º 124, pág. 157-158).
Entretanto viria a ser aprovado o Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19 de junho, que, apesar de pretender regular alguns aspetos do tempo de trabalho dos trabalhadores móveis e prevendo no seu artigo 10.º, n.º 2, que o empregador é responsável pelas infrações ao disposto nesse diploma, no artigo 8.º, n.º 4, excecionou a sua aplicação aos condutores que estão obrigados ao uso de tacógrafo, quanto a algumas infrações, nomeadamente as que respeitavam aos intervalos de descanso e seu registo.
O Código do Trabalho aprovado em 2009 veio, no entanto, dispor de forma genérica no artigo 551.º, n.º 1, que o empregador é o responsável pelas contraordenações laborais, ainda que praticadas pelos seus trabalhadores no exercício das suas funções, sem prejuízo da responsabilidade cometida por lei a outros sujeitos.
É esta também a orientação do artigo 13.º, da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, aqui em apreciação, onde se lê:
“1 — A empresa é responsável por qualquer infração cometida pelo condutor, ainda que fora do território nacional.
2 — A responsabilidade da empresa é excluída se esta demonstrar que organizou o trabalho de modo a que o condutor possa cumprir o disposto no Regulamento (CEE) n.º 3821/85, do Conselho, de 20 de dezembro, e no capítulo II do Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março.
3 — O condutor é responsável pela infração na situação a que se refere o número anterior ou quando esteja em causa a violação do disposto no artigo 22.º.
4 — A responsabilidade de outros intervenientes na atividade de transporte, nomeadamente expedidores, transitários ou operadores turísticos, pela prática da infração é punida a título de comparticipação, nos termos do regime geral das contraordenações.”
Neste preceito consagra-se uma presunção iuris tantum de imputação da violação de um dever de comportamento à entidade patronal dos condutores de transporte rodoviário.
Entende-se que, se um condutor não observar algum dos deveres estabelecidos na presente lei, sendo essa inobservância tipificada como contraordenação, há uma presunção que a respetiva infração se deve à circunstância da entidade patronal não ter adotado as medidas necessárias que impedissem a ocorrência do evento contraordenacional. O estabelecimento dessa presunção dispensa a alegação e prova dos factos materiais donde se pudesse extrair a responsabilidade do empregador pelos atos do condutor que é seu trabalhador, mas não deixa de permitir que aquele possa demonstrar que organizou o serviço de transporte rodoviário de modo a que o condutor ao seu serviço pudesse ter cumprido a norma que inobservou, excluindo assim a sua responsabilidade.
Ora, conforme já tem referido este Tribunal, no âmbito das contraordenações, a imputação de um facto a um agente tem por referente legal e dogmático um conceito extensivo de autoria de matriz causal, conceito este segundo o qual é considerado autor de uma contraordenação todo o agente que tiver contribuído causal ou cocausalmente para a realização do tipo, ou seja, que haja dado origem a uma causa para a sua realização ou que haja promovido, com a sua ação ou omissão, o facto ilícito, podendo isso ocorrer de qualquer forma (cfr. Frederico Lacerda da Costa Pinto, em “O ilícito de mera ordenação social”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 7, Fasc. 1, pág. 25-26).
O relevo da opção legal por um conceito extensivo de autor no âmbito da responsabilidade contraordenacional, por oposição ao conceito restritivo de autoria que vigora, em regra, no domínio do direito penal, é especialmente percetível nas hipóteses em que, como na presente situação, os factos cometidos envolvem a estrutura orgânica e funcional de uma empresa.
Esta construção é uma decorrência lógica da existência no direito de mera ordenação social de normas de dever, cujo incumprimento é sancionado com coimas. Se o sistema impõe deveres a um leque alargado de destinatários é porque lhes reconhece capacidade para os cumprir e também para os violar. Daí que, apurando-se a violação do dever legalmente estabelecido os destinatários do mesmo serão responsáveis por essa violação. “O critério de delimitação da autoria neste tipos de ilícito não é o do domínio do facto, mas sim o da titularidade do dever” (Frederico Lacerda da Costa Pinto na ob. cit., pág.48).
É nesta lógica que, em casos como este, a regra de imputação colocada pelo conceito extensivo de autor conduzirá à responsabilização da entidade dirigente titular do dever de garante sempre que se tenha verificado o resultado (a inobservância do dever) que ela se encontrava legalmente incumbida de evitar.
Impendendo sobre a entidade patronal, o dever legal de garantir o cumprimento das regras respeitantes aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso e ao controlo da utilização de tacógrafos, na atividade de transporte rodoviário, ela é contraordenacionalmente responsabilizável, nos termos previstos no diploma em análise, não apenas nas hipóteses em que, por ação sua, tiver originado diretamente o resultado antijurídico, mas ainda no contexto de uma contribuição omissiva, causal ou cocausalmente promotora do resultado típico presumida, quando a infração é cometida pelo condutor que se encontra ao seu serviço.
Competindo-lhe enquanto entidade patronal organizar o transporte rodoviário de modo a que o condutor ao seu serviço cumpra as normas que regulamentam essa atividade, designadamente as regras laborais, não se revela arbitrária, nem injustificada, a presunção de que a inobservância dessas regras por parte do condutor tem a sua causa na deficiente organização daquela atividade, estando nós perante o funcionamento de uma mera presunção relativa a factos.
Se uma construção deste tipo pode ser problemática no domínio do direito penal, já em sede de direito de mera ordenação social em que apenas está em jogo a aplicação de coimas, não suscita qualquer reserva, tanto mais que, neste caso, se permite que a entidade patronal afaste a sua responsabilidade contraordenacional, demonstrando que organizou o serviço de transporte rodoviário de modo a que o seu condutor pudesse ter cumprido a norma que inobservou, ilidindo assim aquela presunção.
Como se escreveu no Acórdão 336/2008, desta 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
“…existem, desde sempre, razões de ordem substancial que impõem a distinção entre crimes e contraordenações, entre as quais avulta a natureza do ilícito e da sanção (vide FIGUEIREDO DIAS, em “Temas Básicos da Doutrina Penal”, pág. 144-152, da ed. de 2001, da Coimbra Editora).
A diferente natureza do ilícito condiciona, desde logo, a eventual incidência dos princípios da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade.
É que “no caso dos crimes estamos perante condutas cujos elementos constitutivos, no seu conjunto, suportam imediatamente uma valoração – social, moral, cultural – na qual se contém já a valoração da ilicitude. No caso das contraordenações, pelo contrário, não se verifica uma correspondência imediata da conduta a uma valoração mais ampla daquele tipo; pelo que, se, não obstante ser assim, se verifica que o direito valora algumas destas condutas como ilícitas, tal só pode acontecer porque o substrato da valoração jurídica não é aqui constituído apenas pela conduta como tal, antes por esta acrescida de um elemento novo: a proibição legal.” (FIGUEIREDO DIAS, na ob. cit., pág. 146).
Não se trata aqui “de uma culpa, como a jurídico-penal, baseada numa censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma imputação do facto à responsabilidade social do seu autor; dito de outra forma, da adscrição social de uma responsabilidade que se reconhece exercer ainda uma função positiva e adjuvante das finalidades admonitórias da coima” (FIGUEIREDO DIAS em “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, in “Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar”, I, pág. 331, da ed. de 1983, do Centro de Estudos Judiciários).
Estas diferenças não são nada despiciendas e deverão obstar a qualquer tentação de exportação imponderada dos princípios constitucionais penais em matéria de penas criminais para a área do ilícito de mera ordenação social.”
Daí que a solução contida na norma recusada não possa ser considerada violadora do princípio penal da culpa, nem de qualquer outro parâmetro constitucional, devendo ser julgado procedente o recurso interposto pelo Ministério Público.»
Afigura-se ser de acolher, também no caso vertente, um tal entendimento, pelo que, pelas razões enunciadas no Acórdão n.º 45/2014, acima transcritas, se formula idêntico juízo de não inconstitucionalidade.
4. Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional, a norma constante do artigo 13.º, nºs. 1 e 2, da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto;
b) Julgar, em consequência, procedente o recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão da constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 13 de fevereiro de 2014.- Carlos Fernandes Cadilha – Maria José Rangel de Mesquita – Catarina Sarmento e Castro (com declaração de voto) – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Subscrevi a decisão e, no geral, a fundamentação, do presente Acórdão, o que significa que aceitei, no essencial, a fundamentação acolhida no Acórdão n.º 45/2014, para o qual o presente Acórdão remete.
Contudo, não teria feito uso do Acórdão n.º 336/2008 (naquele citado), designadamente, por não considerar as apreciações transcritas transponíveis, sem mais, para a situação em apreço, já que em tal aresto se traça uma distinção, a meu ver, demasiado extremada relativamente à incidência do princípio da culpa e da proporcionalidade, consoante o ilícito em causa revista natureza penal ou contraordenacional.
Em meu entender, não deve, sem mais, prescindir-se da culpa, quando estamos no campo das contraordenações.
No caso, entendo, tal como o faz o Acórdão n.º 45/2014, que «impendendo sobre a entidade patronal o dever legal de garantir o cumprimento das regras respeitantes aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso e ao controlo da utilização de tacógrafos, na atividade de transporte rodoviário, ela é contraordenacionalmente responsabilizável». E o facto de o ser «não apenas nas hipóteses em que, por ação sua, tenha originado diretamente o resultado antijurídico, mas ainda no contexto de uma contribuição omissiva, causal ou cocausalmente promotora do resultado típico da infração cometida pelo condutor ao seu serviço», que inobserva as regras em virtude de (presumida) deficiente organização da atividade de transporte rodoviário por parte de quem mais beneficia com o cometimento da infração, tal é demonstrativo do facto de não se prescindir da culpa: na verdade, há uma conduta própria e autónoma relativamente àquela que levou à aplicação da sanção ao condutor, pelo que não há transmissão de responsabilidade do condutor ao empregador, nem violação do princípio da culpa.
E ainda que a culpa da entidade patronal se presuma, o empregador pode sempre demonstrar que organizou o serviço de transporte rodoviário de modo a que o condutor pudesse ter cumprido a norma, afastando a sua culpa.
A presunção de que a infração ocorre em virtude de a «entidade patronal não ter adotado as medidas necessárias que impedissem a ocorrência do evento contraordenacional», com a dispensa de «alegação e prova dos factos materiais donde se pudesse extrair a responsabilidade do empregador pelos atos do condutor que é seu trabalhador», não deixando de permitir que «aquele possa demonstrar que organizou o serviço de transporte rodoviário de modo a que o condutor ao seu serviço pudesse ter cumprido a norma que inobservou, excluindo a sua responsabilidade», não é violadora do artigo 32.º, n.º 10 da CRP. Na verdade, atendendo às especiais características do direito de mera ordenação social, admite-se, ao contrário do que sucede relativamente ao direito criminal, a inversão do ónus da prova, sem que daí decorram problemas de constitucionalidade.
Pelo exposto, também me pronunciei no sentido de julgar não inconstitucional a norma constante do artigo 13.º, n.os 1 e 2 da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto.
Catarina Sarmento e Castro