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Processo n.º 1187/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Por sentença proferida em 23 de dezembro de 2011 foi declarada a insolvência de A. e de B. no processo n.º 4458/11.4TBGMR, do 3.º Juízo Cível do Tribunal de Guimarães.
A Credora C., S.A., requereu a qualificação das insolvências como culposas, no que foi acompanhada pelo Administrador da Insolvência e pelo Ministério Público.
Após realização de audiência de julgamento foi proferida sentença, qualificando as insolvências como culposas.
Os Insolventes recorreram desta decisão para o Tribunal da Relação de Guimarães que negou provimento ao recurso por acórdão proferido em 30 de maio de 2013.
Os Insolventes pediram a reforma e arguiram a nulidade daquela decisão, o que foi indeferido por novo acórdão proferido em 12 de setembro de 2013.
Os Insolventes recorreram então para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido em 30 de maio de 2013, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, pedindo a declaração de inconstitucionalidade das normas dos artigos 264.º, do Código de Processo Civil e dos entendimentos nelas ancorados e delas extraídos.
Notificados para esclarecerem quais as interpretações normativas sustentadas na decisão recorrida, relativas ao artigo 264.º, do Código de Processo Civil, cuja constitucionalidade pretendiam ver fiscalizada, os Insolventes apresentaram novo requerimento com o seguinte conteúdo:
1. Através de requerimento apresentado a 21 de março de 2012, veio o credor 'C. S.A.', requerer a qualificação da insolvência dos ora Recorrentes como culposa, baseando-se, simplesmente, numa denúncia apresentada nos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Braga.
2. A 2 de maio de 2012, veio o Administrador de Insolvência apresentar o respetivo parecer, no qual concluiu que a insolvência deveria ser qualificada como '(...) fortuita'.
3. Contudo, veio o Administrado de Insolvência, a 25 de maio de 2012, apresentar 'nova versão' do pertinente parecer, fundamentado em meras transcrições do requerimento apresentado pelo credor 'C. S.A.' a 21 de março de 2012, no qual concluiu que '(...) estas pessoas singulares devem ser afetadas pela qualificação da insolvência como culposa'',
4. A 24 de maio de 2012 veio o Ministério Público, apresentar o respetivo parecer, no qual concluiu que '(...) assim sendo, concordando com o parecer emitido pelo Sr. Administrador do Insolvência, somos do parecer que, configurando-se o preenchimento da situação previsto no artigo 186º, nº 1, nº 2, alínea b), do C.I. R.E., a insolvência dos autos deve ser qualificada como culposa, devendo ser afetados pela qualificação da insolvência A. e B.',
5. A 15 de junho e 02 de julho de 2012 vieram os ora Recorrentes apresentar requerimento de oposição à qualificação da insolvência como culposa, concluindo que a mesma deveria ser considerada como fortuita, alegando para tal que todos os pareceres tiveram por base, simplesmente. o requerimento apresentado pelo credor 'C. S.A.' a 21 de março de 2012 - suportado pela denúncia apresentada - e, em consequência, teria de se concluir pela desconsideração de todas as conclusões apresentadas constantes de um processo de inquérito, por manifesta falta de fundamento, sob pena de, com entendimento contrário, se estar perante uma violenta violação dos princípios constitucionais previstos no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual 'todo o arguido se presume inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa'.
6. Proferida a sentença, a 05 de março de 2013, o Tribunal Judicial de Guimarães qualificou as insolvências dos ora Recorrentes A. e de B. como culposas, não se pronunciando, simplesmente, sobre a invocada violação dos princípios constitucionais dos 'entendimentos' sufragados pelo credor 'C. S.A.', Administrador de Insolvência e Ministério Público.
7. Inconformados com aquela decisão, os Recorrentes dela recorreram judicialmente para o Tribunal da Relação de Guimarães, desde logo e também com o fundamento precisamente na inconstitucionalidade material das normas constantes do artigo 264.º do Código de Processo Civil, assim como dos entendimentos nela ancorados e dela extraídos, alegando para tal que:
'(...)
21.A decisão que ora se recorre teve como suporte factual, como realçado pelos pareceres apresentados pelo Administrador de Insolvência e Ministério Público, os elementos apresentados pelo credor C., S.A.
22. Contudo, atentos aqueles elementos, tem necessariamente de se concluir que os mesmos não poderiam nunca consubstanciar, por si só, fundamento para a qualificação da insolvência como culposa.
23. Isto porque, os elementos apresentados pelo credor C., S.A. mais não são que a 'sua versão dos factos', relatada na denúncia efetuada, e cujo processo se encontra em fase de inquérito, sem que tenha sido considerado provado qualquer facto, nem proferida qualquer decisão condenatória quanto à prática de qualquer ilícito.
24. Por essa razão, o MM. o Juiz do Tribunal a quo, estribando-se no artigo 264.º do CPC, não poderia ter relevado, para qualquer efeito aqueles elementos, tendo necessariamente de se abstrair das considerações efetuadas e apresentadas pelo credor C., S.A., sob pena de se incorrer em violação do principio constitucionalmente consagrado da presunção de inocência.
25. Ou seja, não é por se encontrar a correr um inquérito que resulta demonstrada a prática de qualquer ilícito ou que se encontra suficientemente indiciada qualquer criação artificial, até porque, se, no âmbito daquele inquérito, não foi considerado provado qualquer facto ou proferida qualquer decisão, não pode o MM. Juiz a quo fazer deduções para efeitos dos presentes Autos.
26. Assim, o mesmo vale o que vale, ou seja, nos termos do n.º 1 do artigo 262.º do Código de Processo Penal (CPP), '(...) o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação'.
27. Pelo que, qualquer interpretação dos factos constantes daquele inquérito, com fundamento nos n.ºs 2 e 3 do artigo 264.º do CPG, teria sempre de ser efetuada à luz do princípio constitucionalmente consagrado da presunção da inocência, nos lermos do artigo 32.º da CRP, sob pena de violação manifestamente grosseira da lei fundamental.
28. É notório, assim, que o MM.º Juiz do Tribunal a quo teria de decidir pela desconsideração de todas as conclusões 'parciais' apresentadas, sob pena de, com entendimento contrário, resultante das alegações apresentadas pelo credor C., S.A., no âmbito da denúncia apresentada, se estar perante uma violenta violação dos princípios constitucionais previstos no artigo 32.º da CRP, segundo o qual 'todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa'.
29. Contudo, tal situação não se verificou, tendo o MM.º Juiz do Tribunal a quo, ao proferir a sentença que ora se recorre, sem que se tenha demonstrado provado qualquer facto relevante, relevado e evidenciado, apenas, as conclusões e os elementos apresentados pelo credor C., S.A.
30. Assim sendo, é manifesta a inconstitucionalidade do artigo 264.º do CPC, quando interpretado no sentido em que permite, não só a junção aos Autos de elementos cantantes de processo em fase de inquérito, quando conotados com alegadas conclusões de 'condenações consumadas', assim como, a apreciação pelo juiz de elementos de prova e alegações parciais que violam o princípio da presunção da inocência.
31. Ou seja, o MMº Juiz a quo não se limitou a analisar objetivamente os elementos apresentadas pelo credor C., S.A., pelo contrário, fi-lo conjuntamente com as respetivas alegações e considerações parciais apresentadas, não permitindo, assim, uma valoração da prova equitativa e objetiva.
32. Portanto, o preceito supra mencionado, quando interpretado no sentido de permitir ao MM.º Juiz do Tribunal a quo a valoração das alegações parciais apresentadas pelo credor C., S.A. tem necessariamente de se concluir que viola a Constituição da República Portuguesa, razão pela qual deve ser considerado inconstitucional.
33. Deste modo, tem necessariamente de se concluir que o entendimento manifestado e expressado pelo MMº Juiz do Tribunal a quo, na sentença que ora se recorre, violou flagrantemente e de forma grosseira a Constituição da República Portuguesa, designadamente a presunção de inocência prevista no artigo 32.º e em consequência os mais elementares e básicos diretos, liberdades e garantias dos ora Recorrentes, razão pela qual deve a mesma ser revogada. (...)”
8. No entanto, o Tribunal da Relação de Guimarães, por Acórdão proferido a 30 de maio de 2013, decidiu manter a decisão do Tribunal Judicial de Guimarães, não reconhecendo a existência da alegada inconstitucionalidade, concluindo que: '(...) Logo, no âmbito do processo civil, visto o disposto no artigo 264.º, n.ºs 2 e 3 do CPC, nada impede que o tribunal tenha em conta factos alegados pela referida credora e considerados provados, após instrução e discussão da causa, tendo-se facultado o exercício do contraditório aos insolventes, ainda que parte desses factos esteja a ser investigados no âmbito do processo crime. As garantias do processo criminal, mormente o dito princípio de presunção de inocência; consagrado no artº 32º, nº 2, da CRP, em nada interferem ou colidem com os principias da prova e no âmbito das provas atendíveis designadamente de natureza documental (prova pré-constituída), em matéria de processo civil, salvaguardando o principio da audiência contraditória (...).
E mesmo quanto às provas constituendas (depoimentos e perícias), a lei processual civil não o impede de todo, ante o preceituado no artº 522, nº 1, do CPC.
A lei de processo civil vigente não obsta a qua as partes e o Tribunal- segundo as limitações legais que a lei impõe em matéria de prova neste tipo de processo - possam carrear para os autos qualquer meio de prova que tenha por objeto 'os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se contravertidos ou necessitados de prova' (art. 513.º do CPC).
(...) Destarte, não está o tribunal recorrido impedido de, nestes autos, proceder à valoração desses documentos e matéria de facto, como o fez (...).
Deste modo, também não se descortina qualquer inconstitucionalidade do art.º 264.º do CPC, porque - no dizer dos apelantes - interpretando no sentido de o tribunal poder valorar, em sentido desfavorável aos recorrentes, 'documentos constantes de um processo em fase de inquérito', por violação do artº 32, da CRP, pois inexiste qualquer interpretação dos factos constantes daquele inquérito, com fundamento nos nºs 2 e 3 do artigo 264.º do CPC.
Houve, sim, um exame crítico de toda a factualidade provada, nomeadamente da constante nas alíneas g) a l) supra, mas toda no âmbito destes autos de processo civil, no qual rege o princípio da livre apreciação da prova – artº 655, do CPC - e não de presunção de inocência. (...) '
9. De facto, e como ficou demonstrado no requerimento de interposição do presente Recurso, os Recorrentes esclarecem que, com o presente recurso, pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade e a desconformidade com os mais básicos princípios constitucionais das normas constantes do artigo 264.º do Código de Processo Civil, assim como dos entendimentos nela ancorados e dela extraídos, nomeadamente quando decorrentes da sua articulação com o princípio da livre apreciação da prova, constante do artigo 655.º do Código de Processo Civil, e, também, das normas que do todo aquele diploma legal lhes sejam direta ou indiretamente consequentes ou delas decorram.
10. Tudo isto por manifesta violação do disposto no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa e do princípio da presunção da inocência que ali é estabelecido no n.º 2 daquela disposição constitucional, que estabelece que 'todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa',
11. por manifesta violação do disposto no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, e da previsão da 'Força Jurídica' que ali é preconizada para os preceitos constitucionais, muito principalmente no que toca ao nº 1 daquela disposição, que estabelece que 'os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias silo diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”.
12. por manifesta violação do disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, e da previsão da 'Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva' que ali é preconizada para os preceitos constitucionais, muito principalmente no que toca ao n.º 3 daquela disposição, que estabelece que 'todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”,
13. e por manifesta violação do disposto no artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa, e da previsão da 'Apreciação da inconstitucionalidade' que ali é preconizada para os preceitos constitucionais, que estabelece que 'nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.”
14. Deste modo, e como sempre alegaram os ora Recorrentes, o que se trata de fiscalizar não é a interpretação normativa decorrente do artigo 264.º do Código de Processo Civil, que limite a alegação de factos pelas partes, mas, pelo contrário, a interpretação, defendida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, segundo a qual não existe qualquer limite para as partes no que concerne à alegação de factos e respetivos suportes probatórios,
15. mesmo que, tal entendimento, articulado com os demais princípios jurídicos aplicáveis, nomeadamente, o da livre apreciação de prova, possa dar azo, desde logo, a uma análise dos factos 'ferida' pelas considerações subjetivas efetuadas pelas partes nos respetivos requerimentos,
16. e, em consequência, provoque uma violação grosseira do princípio da presunção da inocência consagrado na Constituição da República Portuguesa.
17. Não podem, os ora Recorrentes concordar com o entendimento defendido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, segundo o qual '(...) no âmbito destes autos de processo civil, no qual rege o princípio da livre apreciação da prova – artº 655, do CPC - e não de presunção de inocência,
18. nem pode significar isto que, por se estar no âmbito do processo-civil, os princípios normativos plasmados na Constituição da Republica Portuguesa não tenham de ser respeitados em toda a sua plenitude, através de atuações violadoras dos direitos, liberdades e garantias,
19. pois os princípios constitucionalmente consagrados devem trespassar todos os ramos do direito, sendo vistos como princípios norteadores da atuação de todas as partes, tal como resulta do seu artigo 18.º.
20. Deste modo, pretendem os ora Recorrentes ver fiscalizada a interpretação, defendida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, segundo a qual, no âmbito do processo civil, por força da interpretação conjugada dos artigos 264.º, e do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 655.º do mesmo diploma, é permitido às partes carrearem determinados factos para os Autos suscetíveis de violarem o princípio da presunção da inocência, por dos mesmos resultarem 'versões subjetivas' da relação controvertida, capazes de subverterem a respetiva realidade dos factos.
Foi proferida decisão sumária de não conhecimento com a seguinte fundamentação:
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a preceitos legais ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo, ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço, com carácter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente processo –, a sua admissibilidade depende ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada. É necessário, pois, que esse critério normativo tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão.
Uma vez que no primeiro requerimento apresentado os Recorrentes não explicitaram quais as interpretações normativas imputadas à decisão recorrida que eram objeto do recurso interposto, foram convidados a enunciá-las.
Os Recorrentes concluíram o requerimento apresentado na sequência desse convite, dizendo que pretendiam ver fiscalizada a interpretação, defendida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, segundo a qual, no âmbito do processo civil, por força da interpretação conjugada dos artigos 264.º e do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 655.º do mesmo diploma, é permitido às partes carrearem determinados factos para os autos suscetíveis de violarem o princípio da presunção da inocência, por dos mesmos resultarem 'versões subjetivas' da relação controvertida, capazes de subverterem a respetiva realidade dos factos.
Ora, da leitura do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães facilmente se constata que nela não se assumiu que seja permitido às partes carrearem determinados factos para os autos suscetíveis de violarem o princípio da presunção da inocência, por dos mesmos resultarem 'versões subjetivas' da relação controvertida, capazes de subverterem a respetiva realidade dos factos.
Aquele acórdão apenas se limitou a dizer que “a lei do processo civil vigente não obsta a que as partes e o Tribunal – segundo as limitações legais que a lei impõe em matéria de prova neste tipo de processo – possam carrear para os autos qualquer meio de prova que tenha por objeto “os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos e necessitados de prova”.
Não coincidindo o critério normativo enunciado pelos Recorrentes com a ratio decidendi do acórdão recorrido, não pode o recurso ser conhecido, pelo que deve ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
Os recorrentes reclamaram desta decisão, expondo os seguintes argumentos:
1. Por sentença proferida a 05 de março de 2013, o Tribunal Judicial de Guimarães qualificou as insolvências dos ora Recorrentes A. e de B. como culposas, não se pronunciando, simplesmente, sobre a invocada violação dos princípios constitucionais dos 'entendimentos' sufragados pelo credor 'C. S.A. ', Administrador de Insolvência e Ministério Público.
2. Inconformados com aquela decisão, os Recorrentes dela recorreram judicialmente para o Tribunal da Relação de Guimarães, desde logo e também com o fundamento precisamente na inconstitucionalidade material das normas constantes do artigo 264.º do Código de Processo Civil, assim como dos entendimentos nela ancorados e dela extraídos, e, também, das normas que do todo aquele diploma legal lhes sejam direta ou indiretamente consequentes ou delas decorram.
3. No entanto, o Tribunal da Relação de Guimarães, por Acórdão proferido a 30 de maio de 2013, decidiu manter a decisão do Tribunal Judicial de Guimarães, não reconhecendo a existência da alegada inconstitucionalidade, concluindo que: '(...) Logo, no âmbito do processo civil, visto o disposto no artigo 264.º, nºs 2 e 3 do CPC, nada impede que o tribunal tenha em conta factos alegados pela referida credora e considerados provados, após instrução e discussão da causa, tendo-se facultado o exercício do contraditório aos insolventes, ainda que parte desses factos esteja a ser investigados no âmbito do processo crime. As garantias do processo criminal, mormente o dito princípio de presunção de inocência, consagrado no artº 32º, nº 2, da CRP, em nada interferem ou colidem com os princípios da prova e no âmbito das provas atendíveis designadamente de natureza documental (prova pré-constituída), em matéria de processo civil, salvaguardando o princípio da audiência contraditória (...).
E mesmo quanto às provas constituendas (depoimentos e perícias), a lei processual civil não o impede de todo, ante o preceituado no artº 522, nº 1, do CPC.
A lei de processo civil vigente não obsta a qua as partes e o Tribunal – segundo as limitações legais que a lei impõe em matéria de prova neste tipo de processo - possam carrear para os autos qualquer meio de prova que tenha por objeto 'os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se contravertidos ali necessitados de prova' (art. 513.º do CPC).
(...) Destarte, não está o tribunal recorrido impedido de, nestes autos, proceder à valoração desses documentos e matéria de facto, como o fez (...).
Deste modo, também não se descortina qualquer inconstitucionalidade do art.º 264.º do CPC, porque - no dizer dos apelantes - interpretando no sentido de o tribunal poder valorar, em sentido desfavorável aos recorrentes, 'documentos constantes de um processo em fase de inquérito', por violação do artº 32, da CRP, pois inexiste qualquer interpretação dos factos constantes daquele inquérito, com fundamento nos nºs 2 e 3 do artigo 264.º do CPC.
Houve, sim, um exame crítico de toda a factualidade provada, nomeadamente da constante nas alíneas g) a I) supra, mas toda no âmbito destes autos de processo civil, no qual rege o princípio da livre apreciação da prova – artº 655, do CPC - e não de presunção de inocência. (...)'
4. Mais uma vez inconformados, a 23 de setembro de 20l3, interpuseram os Recorrentes o presente recurso para o Tribunal Constitucional, esclarecendo que pretendem a apreciação da inconstitucionalidade e a desconformidade com os mais básicos princípios constitucionais das normas constantes do artigo 264.º do Código de Processo Civil, assim como dos entendimentos nela ancorados e dela extraídos, e, também, das normas que do todo aquele diploma legal lhes sejam direta ou indiretamente consequentes ou delas decorram.
5. Tudo isto por manifesta violação do disposto no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa e do princípio da presunção da inocência que ali é estabelecido no n.º 2 daquela disposição constitucional, que estabelece que 'todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa',
6. por manifesta violação do disposto no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, e da previsão da 'Força Jurídica' que ali é preconizada para os preceitos constitucionais, muito principalmente no que toca ao nº 1 daquela disposição, que estabelece que 'os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas',
7. por manifesta violação do disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, e da previsão da 'Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva' que ali é preconizada para os preceitos constitucionais, muito principalmente no que toca ao n.º 3 daquela disposição, que estabelece que 'todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo',
8. e por manifesta violação do disposto no artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa, e da previsão da 'Apreciação da inconstitucionalidade' que ali é preconizada para os preceitos constitucionais, que estabelece que 'nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.'
9. A 02 de dezembro de 20l3, vieram os Recorrentes responder, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 75.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de novembro.
10. Contudo, não obstante os esclarecimentos prestados, foram, agora, os Recorrentes notificados da decisão sumária, proferida ao brigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da supra citada Lei do Tribunal Constitucional, segundo a qual:
'(…)
Aquele acórdão apenas se limitou a dizer que 'a lei do processo civil vigente não obstam a que as partes e o Tribunal - segundo as limitações legais que a lei impõe em matéria de prova neste tipo de processo - possam carrear para os autos qualquer meio de prova que tenha por objeto 'os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos e necessitados de prova'.
Não coincidindo o critério normativo enunciado pelos Recorrentes com a ratio decidendi do acórdão recorrido, não pode o recurso ser conhecido, pelo que deve ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC'.
11. No entanto, e inconformados com mesma, reclamam, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 78.º. A da Lei do Tribunal Constitucional, para a conferência, na medida em que, ao contrário do mencionado na decisão sumária, entendem que se verificam os pressupostos para que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre o pedido de declaração de inconstitucionalidade apresentado a 23 de setembro de 2013.
12. Assim sendo, e ao contrário da decisão sumária proferida, conforme resulta do requerimento de interposição dos recursos para os tribunais da Relação de Guimarães e Constitucional, assim como da resposta apresentada, nos termos do artigo 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, o critério normativo enunciado pelos Recorrentes coincide com a ratio decidendi do acórdão recorrido.
13. Deste modo, e conforme resulta do requerimento de recurso apresentado a 23 de setembro de 2013, os Recorrentes pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade e a desconformidade com os mais básicos princípios constitucionais das normas constantes do artigo 264.º do Código de Processo Civil, assim como dos entendimentos nela ancorados e dela extraídos, e também das normas que do todo aquele diploma legal lhes sejam direta ou indiretamente consequentes ou delas decorram.
14. Ora, conforme resulta manifestamente daquele requerimento trata-se de apreciar as normas constantes do artigo 264.º do Código de Processo Civil, assim como dos entendimentos nela ancorados e dela extraídos, e também das normas que do todo aquele diploma legal lhes sejam direta ou indiretamente consequentes ou delas decorram,
15. o que necessariamente ocorre com a norma consagrada no artigo 655.º do mesmo diploma, a qual permitiu ao Tribunal da Relação de Guimarães suportar as conclusões do Acórdão proferido a 30 de maio de 2013.
16. Até porque, tal situação foi clara e cabalmente demonstrada e esclarecida pelos ora Recorrentes em sede de resposta apresentada nos termos do n.º 5 do artigo 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional,
17. segundo o qual 'se o requerimento de interposição do recurso não indicar algum dos elementos previstos no presente artigo, o juiz convidará o requerente a prestar essa indicação no prazo de 10 dias',
18. Ou seja, se tal preceito legal permite às partes, a convite do juiz, prestar a indicação dos elementos em falta no requerimento de interposição, obrigatoriamente terá de consentir que as mesmas venhas esclarecer os Autos quanto ao sentido atribuído aos elementos que efetivamente já constam daquele requerimento,
19. sendo que, tal situação só não será possível quando não exista qualquer conjugação ou suporte entre o alegado pelas partes nas demais peças processuais e o vertido no requerimento de interposição do recurso.
20. Deste modo, atento o exposto, é manifesto que essa ligação existe entre o alegado pelos ora Recorrentes desde o início do processo, nas devidas peças processuais, e o constante do requerimento de recurso apresentado a 23 de setembro de 2013 e resposta apresentada a 02 de dezembro de 2013,
21. pelo que terá necessariamente de se concluir pela existência de coincidência entre o critério normativo enunciado pelos Recorrentes com a ratio decidendi do acórdão recorrido,
22. e, em consequência, a existência de fundamento para o Tribunal Constitucional decidir sobre o pedido de inconstitucionalidade suscitado,
23. Deste modo, como sempre alegaram os ora Recorrentes, o que se trata de fiscalizar não é a interpretação normativa decorrente do artigo 264.º do Código de Processo Civil, que limite a alegação de factos pelas partes, mas, pelo contrário, a interpretação, defendida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, segundo a qual não existe qualquer limite para as partes no que concerne à alegação de factos e respetivos suportes probatórios,
24. mesmo que, tal entendimento, articulado com os demais princípios jurídicos aplicáveis, nomeadamente, o da livre apreciação de prova, possa dar azo, desde logo, a uma análise dos factos 'ferida' pelas considerações subjetivas efetuadas pelas partes nos respetivos requerimentos,
25. e, em consequência, provoque uma violação grosseira do principio da presunção da inocência consagrado na Constituição da República Portuguesa,
26. Ou seja, pelo que se expôs pretendem os ora Recorrentes ver fiscalizada a interpretação, segundo a qual, no âmbito do processo civil, por força da interpretação conjugada do artigo 264,º e do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 655.º do mesmo diploma, é permitido carrear para o processo todos os factos, mesmo que dos mesmos resultem situações suscetíveis de violar preceitos constitucionais,
27. tal como entende o Tribunal da Relação de Guimarães, segundo o qual, por nos encontrarmos no âmbito do processo civil, o principio da presunção da inocência não é aplicável, e tudo é permitido às partes.”
*
Fundamentação
Os Recorrentes pretendem que o Tribunal Constitucional fiscalize a interpretação, segundo a qual, no âmbito do processo civil, por força da interpretação conjugada do artigo 264.º, do Código de Processo Civil e do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 655.º do mesmo diploma, é permitido carrear para o processo todos os factos, mesmo que dos mesmos resultem situações suscetíveis de violar preceitos constitucionais, designadamente o princípio da presunção de inocência.
Ora, conforme se explicou na decisão sumária na decisão recorrida não se sustentou tal critério normativo, tendo o Acórdão da Relação de Guimarães se limitado a dizer que “a lei do processo civil vigente não obsta a que as partes e o Tribunal – segundo as limitações legais que a lei impõe em matéria de prova neste tipo de processo – possam carrear para os autos qualquer meio de prova que tenha por objeto “os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos e necessitados de prova”.
Desta transcrição resulta que a admissibilidade dos meios de prova não foi sustentada com a amplitude que os Recorrentes referem, pelo que não é possível imputar à decisão recorrida a interpretação indicada pelos Recorrentes como constituindo o objeto do recurso de constitucionalidade.
Não coincidindo o critério normativo enunciado pelos Recorrentes com a ratio decidendi do acórdão recorrido, não pode o recurso ser conhecido, pelo que deve ser indeferida a reclamação apresentada.
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Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A. e B..
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Custas pelos Recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 22 de janeiro de 2014. – João Cura Mariano – Ana Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.