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Processo n.º 1239/13
3ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A., e recorrido o Ministério Público, o primeiro vem reclamar para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da Decisão Sumária n.º 775/2013 que não conheceu do objeto do recurso interposto pelo recorrente, com fundamento no facto de o mesmo não constituir uma questão de inconstitucionalidade normativa, bem como no facto de o recorrente não ter suscitado nenhuma questão de constitucionalidade durante o processo.
2. O teor da fundamentação da Decisão Sumária n.º 775/2013 é o seguinte:
“(…)
3. Admitido o recurso, cumpre, antes de mais, decidir se é possível conhecer do seu objeto, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76º, n.º 3, da LTC).
O recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC pressupõe que o recorrente suscite uma questão de constitucionalidade normativa. De acordo com o que se dispõe na alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da Constituição da República Portuguesa e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, “identificando-se assim, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto de tal recurso” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Nos presentes autos, como se verá sumariamente, tal não aconteceu no que toca a algumas das questões suscitadas.
4. De facto, na segunda, terceira e quarta questões formuladas pelo recorrente, é patente que o recorrente não coloca ao Tribunal questões de constitucionalidade normativa de que este possa conhecer, antes questionando a própria bondade da decisão recorrida. O recorrente necessita de recorrer a longas transcrições dessa decisão para delimitar as questões de inconstitucionalidade que suscita. E em todas elas, acaba por ter de fazê-lo sem se abstrair dos circunstancialismos que moldaram a decisão no caso concreto. Sob a aparência de questionar a “interpretação normativa” de várias normas, o que acaba por querer ver examinada é a decisão recorrida em si. Senão vejamos. Na segunda questão, está em causa a interpretação do artigo 32.º da CRP, segundo a qual o STJ considerou que “improcede a invocação do princípio in dubio pro reo (…)”. Na terceira questão, a interpretação dada pelo artigo 71.º da CRP, através da quais o STJ julga “justa a pena de 4 anos e seis meses de prisão aplicada ao arguido” e, finalmente, a última questão diz respeito à inconstitucionalidade do art. 50.º, n.º1 do C.P., no sentido interpretado pelo STJ, de que “é de rejeitar a aplicação da pena suspensa ao Recorrente”.
Como se vê, o que o recorrente pretende é impugnar, perante o Tribunal Constitucional, não a inconstitucionalidade das normas invocadas, mas sim a decisão que com as mesmas é fundamentada. O que se pretende é, assim, um reexame do mérito do recurso, uma reapreciação de todos os elementos constitutivos da condenação, tais como a invocação do princípio in dubio pro reo, a pena concretamente aplicada ao arguido, bem como da suspensão da mesma.
Assim, em suma, o que o recorrente pretende é questionar a própria bondade da decisão do STJ.
5. Mas se assim é, não restam dúvidas de que, no que respeita a essa questão, não está em causa no presente recurso uma questão de constitucionalidade normativa. Como tal, há que relembrar a inexistência, no nosso ordenamento jurídico, da figura do “recurso de amparo” ou da ação constitucional para defesa de direitos fundamentais, na apreciação de alegadas inconstitucionalidades, diretamente imputadas pelo recorrente à decisão judicial proferida. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da LTC, e assim tem sido afirmado por este Tribunal em inúmeras ocasiões.
Não tendo as questões referidas por objeto uma norma, elas não possuem um objeto idóneo de um recurso de fiscalização da constitucionalidade, pelo que não podem ser conhecidas.
6. Já no que toca à primeira questão de inconstitucionalidade, a mesma não foi arguida durante o processo, ou seja, antes da prolação da decisão recorrida, maxime, num momento prévio ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria em causa (cfr., entre outros, o acórdão n.º 352/94). De facto, nas alegações de recurso perante o STJ, o recorrente não logra formular a questão da inconstitucionalidade normativa referente aos arts. 427.º e 434.º do C.P.P., “conjugados com o art. 32.º, n.º1 da CRP e com o art. 410.º, ns. 2 e 3 do C.P.P”, segundo qual “não é admissível, para o Supremo Tribunal de Justiça (…) a impugnação da matéria de facto dada como provada e assente pelo Acórdão da Relação do Porto, na sequência do recurso, interposto pelo M.P., do acórdão proferido pelo Tribunal de 1ª instância”. O recorrente limita-se a tecer considerações genéricas sobre o direito ao recurso constitucionalmente protegido no artigo 32.º, n.º1 da CRP, e sempre reportadas aos artigos 399.º, 400.º, n.º1 e 432.º, n.º1, al. b) do CPP. Assim, não suscitou a questão de inconstitucionalidade aqui levantada, de forma a que o STJ pudesse dela ter conhecido.
O próprio recorrente reconhece que as questões de constitucionalidade não foram adequadamente suscitadas perante o tribunal a quo, porque a decisão recorrida terá consubstanciado uma decisão surpresa, i.e., uma decisão não antecipável por si aquando da interposição do recurso para o STJ. No entanto, também este argumento não procede. No que toca à primeira questão de inconstitucionalidade, é o próprio o artigo 434º do CPP que limita os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça à matéria de direito (sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do mesmo Código), para além de, como a decisão recorrida bem demonstra, a interpretação por si acolhida corresponder a jurisprudência consolidada do STJ: “É jurisprudência pacífica a de que este STJ não se imiscui no âmbito da matéria de facto fixada pela Relação, que constitui o limite incontornável do seu conhecimento, que encerra, nos termos do art. 427.º do CPP”. Assim, o recorrente não poderia deixar de ter antecipado a possibilidade de aplicação dessa interpretação normativa.
O mesmo se diga das demais questões de inconstitucionalidade, que se reportam a fundamentos que foram levantados no próprio recurso perante o STJ, sem o recorrente ter aproveitado para suscitar qualquer inconstitucionalidade normativa relacionada com os mesmos. Ora, tendo, na sequência desse recurso, o STJ confirmado na íntegra o Acórdão da Relação, não se pode dizer que a sua decisão possa constituir qualquer decisão-surpresa.
Assim, atento o exigente critério veiculado pela jurisprudência constitucional em matéria de suscitação tempestiva (cfr., entre outros, o acórdão n.º 479/89), há que concluir que sempre seria exigível ao recorrente a arguição, durante o processo, daquelas questões de constitucionalidade.
7. Ainda que assim não se entenda, sempre se dirá, relativamente à primeira questão de inconstitucionalidade, que mesmo que ela tivesse sido adequadamente suscitada perante o tribunal a quo, ainda assim ela não procederia. De facto, ao invocar a inconstitucionalidade dos arts. 427.º e 434.º do C.P.P., “conjugados com o art. 32.º, n.º1 da CRP e com o art. 410.º, ns. 2 e 3 do C.P.P”, segundo qual “não é admissível, para o Supremo Tribunal de Justiça (…) a impugnação da matéria de facto dada como provada e assente pelo Acórdão da Relação do Porto, na sequência do recurso, interposto pelo M.P., do acórdão proferido pelo Tribunal de 1ª instância”, o que o recorrente verdadeiramente pretende é aceder a um terceiro grau de jurisdição em matéria de facto, o que não é constitucionalmente garantido. Já por muitas vezes o Tribunal Constitucional decidiu que o cumprimento do disposto no artigo 32.º, n.º1 da CRP se basta com a garantia de acesso ao recurso, i.e. a um segundo grau de jurisdição (assim, entre muitos outros, os Acórdãos n.º189/2001 e n.º 451/2003, de 14/10). Assim, o presente recurso improcederia.”
3. O recorrente reclamou para a conferência, em longa peça processual, com mais de trinta páginas, em que, após longo excurso sobre o percurso processual dos autos, reclama da decisão sumária n.º 775/2013 com os fundamentos seguintes:
“(…)
18º Com efeito, o recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, cumprindo salientar que, no nosso entendimento, se encontram, de igual modo, preenchidos os pressupostos específicos e cumulativos do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, questionando, desde já, a constitucionalidade das interpretações normativas, em relação aos arts. 427º e 434º do C.P.P. (e ainda da conjugação destas normas com o art. 32º, nº 1 da C.R.P. e com o art. 410º, nºs 2 e 3 do C.P.P.); do art. 32º, nº 2 da C.R.P.; dos arts. 40º, nº 1 e 71º do C.P. (e da conjugação destas normas com o art. 13º nº 1 da C.R.P. e com o art. 21º, nº 1 do Dec-Lei 15/93, de 22/0) e do art. 50º, nº 1 do C.P., realizadas pelo Tribunal recorrido.
NÃO OBSTANTE,
19º por Decisão Sumária, supra melhor identificada, o Exmo. Juiz Conselheiro Relator determinou que o Tribunal Constitucional não deveria tomar conhecimento do objeto do recurso.
20º Ora, salvo o devido respeito, o Reclamante não pode concordar com o entendimento perfilhado.
21º Entende o Reclamante que o Tribunal Constitucional tem de apreciar a inconstitucionalidade das interpretações normativas seguidas no acórdão proferido pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça.
22º Assim sendo, deve o referido recurso ser admitido, sob pena de preterição das garantias de defesa do arguido, violadora da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, maxime direito a um processo equitativo e direito ao recurso.
Senão vejamos:
23º Ora, desde logo, e em resposta à primeira questão formulada pelo Recorrente, aqui Reclamante, no respetivo requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, entende o Exmo. Juiz Conselheiro Relator que a inconstitucionalidade da interpretação normativa dada aos arts. 427º e 434º do C.P.P., e na interpretação dada à conjugação destas normas com o art. 32º, nº 1 da C.R.P., não foi arguida pelo Reclamante durante o processo, ou seja, antes da prolação da decisão recorrida.
24º Sendo ainda entendimento do Venerando Juiz Conselheiro que mesmo que assim «não se entenda, sempre se dirá (…) que mesmo que ela tivesse sido adequadamente suscitada perante o tribunal a quo, ainda assim ela não procederia. De facto, (…) o que o recorrente verdadeiramente pretende é aceder a um terceiro grau de jurisdição em matéria de facto, o que não é constitucionalmente garantido.»
25º Porém, salvo o devido respeito, tal argumentação não se coaduna, de todo, com a situação aqui em apreço.
26º Desde logo, cumpre esclarecer que o Reclamante, ao contrário do que alega o Exmo. Juiz Conselheiro Relator, suscitou, convenientemente, em sede de alegações de recurso para o S.T.J., as referidas questões de inconstitucionalidade da interpretação normativa em causa, designadamente a fls. 3 a 5, sendo que mais não lhe seria exigível.
27º É certo que a conjugação dos normativos previstos nos arts. 70º, nº 1, al. b) e 72º, nº 2 da LTC, obriga a que o Recorrente suscite a inconstitucionalidade durante o processo e de modo processualmente adequado.
CERTO É, PORÉM QUE,
28º conforme vem sendo entendimento da jurisprudência constitucional, aliás seguida pelo Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça Dr. Carlos Lopes do Rego, em «Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional», a regra que obriga a suscitar a questão de inconstitucionalidade antes da prolação da decisão recorrida sofre restrições ou limitações em determinadas situações processuais excecionais ou anómalas:
29º isto é, nas situações em que o poder jurisdicional para apreciar a matéria a propósito da qual é convocada a questão de inconstitucionalidade se não haja esgotado no momento da prolação da decisão final,
30º ou naqueles casos em que o Recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de ser proferida a decisão recorrida ou por se tratar de decisão-surpresa, de conteúdo imprevisível, tornando inexigível a prévia suscitação de tal questão, antes de a parte ter sido confrontada com o teor da decisão proferida.
31º No caso concreto, o poder jurisdicional esgotou-se com a prolação do acórdão recorrido e a aplicação de quatro interpretações normativas inconstitucionais.
32º No entanto, no nosso entendimento, a presente situação encontra-se sob a alçada do segundo grupo de situações excecionais, e por via disso, dispensada da prévia suscitação da questão da constitucionalidade, antes de proferida a decisão recorrida,
33º porquanto, no presente caso, trata-se de uma situação em que o Recorrente não teve anteriormente oportunidade processual de suscitar a questão da inconstitucionalidade, ocorrida aquando da prolação do acórdão recorrido,
34º uma vez que, foi confrontado com esse circunstancialismo ou vicissitude processual ocorrida (que o Recorrente não poderia razoavelmente prever que viesse a ser adotada), apenas após a sua última intervenção nos autos, isto é, com a respetiva notificação do acórdão proferido pelo Tribunal a quo, é que o Recorrente poderia reagir.
35º Assim sendo, trata-se, de igual modo, de um caso que se está perante tramitação processual a que não se aplica o preceituado no art. 3º, nº 3 do C.P.C. e, por via disso, não se encontrou privilegiado o princípio do contraditório.
36º Além disso, trata-se de uma situação em que não era exigível ao Recorrente que antevisse a possibilidade de aplicação da supra referida interpretação normativa à dirimição do caso concreto, de modo a impor-lhe o ónus de suscitar a questão da respetiva inconstitucionalidade antes de conhecido o teor do acórdão recorrido, que constitui uma verdadeira «decisão surpresa» que a convoca e aplica.
37º Na verdade, o Recorrente é efetivamente confrontado com uma concreta interpretação normativa, no acórdão recorrido, de todo imprevisível e inesperada, aquando da prolação do acórdão recorrido, não se lhe podendo impor, segundo critérios de exigibilidade e razoabilidade, a antecipação de que o Tribunal iria optar pela surpreendente interpretação inconstitucional das normas consubstanciadas nos arts. 427º e 434º do C.P.P. (e ainda da conjugação destas normas com o art. 32º, nº 1 da C.R.P. e com o art. 410º, nºs 2 e 3 do C.P.P.); no art. 32º, nº 2 da C.R.P.; nos arts. 40º, nº 1 e 71º do C.P. (e da conjugação destas normas com o art. 13º nº 1 da C.R.P. e com o art. 21º, nº 1 do Dec-Lei 15/93, de 22/01) e no art. 50º, nº 1 do C.P..
38º Porém, ao invés do que decorre do teor da Decisão Sumária da qual ora se reclama, com a interposição do dito recurso para o Tribunal Constitucional o Reclamante não visou aceder a um terceiro grau de jurisdição em matéria de facto.
39º Ora, segundo o entendimento do Exmo. Juiz Conselheiro Relator, o disposto no art. 434º, do C.P.P. limita os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça à matéria de facto.
40º Contudo, o recurso interposto, pelo aqui Reclamante, para o S.T.J. tinha como fundamentos, ao abrigo do disposto nos arts. 434º e 410º, nºs 2 do C.P.P, a impugnação da matéria de facto (que resultou não provada na 1ª Instância) que foi dada como provada pela decisão recorrida e a reapreciação da matéria de direito.
41º Sendo que, em relação à matéria de facto, foram arguidos pelo Reclamante vários vícios, supra melhor descritos e para onde se remete por uma questão de economia processual, ao abrigo do disposto no art. 410º, nº 2, als. a), b) in fine e c) do C.P.P..
42º Pois, não esqueçamos que o Reclamante foi condenado pelo Tribunal Coletivo de 1ª Instância, em 12/01/2012, como autor material, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, al. a) do Dec-Lei 15/93, de 22/01, com referência à tabela I-B, anexa ao mesmo diploma, na pena de 1 ano e seis meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período.
43º Todavia, na sequência do recurso interposto pelo Ministério Público, o aqui Reclamante foi condenado, pelo Tribunal da Relação do Porto, como autor material, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1 do D.L. 15/93, de 22/01, na pena única de quatro anos e seis meses de prisão.
SUCEDE QUE,
44º de acordo com o estipulado no art. 434º do C.P.P. «Sem prejuízo do disposto nos nºs 2 e 3 do art. 410º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.».
45º Por sua vez, estabelece o art. 410º, nº 2 que «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de facto, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.».
46º Assim sendo, e atendendo às circunstâncias do caso aqui em apreço, sempre deveria o Supremo Tribunal de Justiça ter procedido ao reexame da matéria de facto em causa.
47º Ou, se assim não entendesse, o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, atento o disposto no art. 426º do C.P.P., teria sempre que proceder ao reenvio dos autos para o Tribunal da Relação, para que, desta forma, se procedesse à sanação dos vícios do art. 410º, nº 2, o que in casu não sucedeu.
48º Em face disso, não restam dúvidas de que a interpretação normativa do Venerando Supremo Tribunal de Justiça viola, portanto, princípios e normas constitucionais.
NA VERDADE,
49º o art.º 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa dispõe que o processo criminal assegura ao arguido todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
50º Este direito constitui, de resto, uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal.
51º Os fundamentos do direito ao recurso são a redução do risco de erro judiciário, a apreciação da decisão recorrida por um Tribunal superior e a possibilidade de, perante este, a defesa apresentar de novo a sua visão sobre os factos ou sobre o direito.
52º O direito ao recurso é uma das garantias de defesa reconhecidas constitucionalmente ao arguido (art.º 32 n.º 1 do CRP), garantia que ficaria defraudada se – tendo o arguido sido condenado na 1.ª instância pela prática de um crime diferente e numa pena significativamente mais leve –, viesse agora a ser condenado no Tribunal da Relação por um crime diferente e numa pena mais gravosa, sem que desta decisão pudesse recorrer.
53º De resto, referira-se que o artigo 2º do protocolo nº 7 da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República 22/90 de 27/09 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República 51/90 da mesma data, dispõe que: «qualquer pessoa declarada culpada de uma infração penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação».
54º O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados por lei, sendo concedida ao arguido a oportunidade de defesa, também nesta instância de recurso, mediante o exercício do direito do contraditório.
55º Razão pela qual, o recurso interposto para o S.T.J. tinha como objeto a matéria do acórdão condenatório proferido pelo Tribunal da Relação do Porto nos presentes autos, no que concerne aos factos que são imputados ao Reclamante e à decisão que sobre os mesmos foi proferida.
FACE AO EXPOSTO,
56º deveria ter sido apreciada pelo Tribunal Constitucional a inconstitucionalidade das interpretações normativas dadas aos arts. 427º e 434º do C.P.P., e na interpretação normativa dada à conjugação destas com o art. 32º, nº 1 da C.R.P. e do art. 410º, nº 2 e 3 do C.P.P.,
57º pois, deveria ter sido admissível no âmbito do recurso interposto para o S.T.J., pelas razões já expostas, ao aqui Reclamante a impugnação da matéria de facto dada como provada e assente pelo acórdão da Relação do Porto, na sequência do recurso, interposto pelo M.P., do acórdão proferido pelo Tribunal de 1ª instância.
58º Ou, em alternativa, deveria o Supremo Tribunal de Justiça determinar o reenvio dos autos para o Tribunal da Relação para se proceder à sanação dos referidos vícios constante no art. 410º, nº 2 do C.P.P.
59º A este respeito refere o autor Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, que o S.T.J, em relação aos vícios da matéria de facto, tem o «poder de verificar (oficiosamente ou a requerimento) os vícios do art. 410º, nº 2, determinar o reenvio dos autos e identificar as “questões” a decidir em tribunal para sanação desses vícios (art. 426º, nº 1); este poder de identificação restringe-se à colocação dos problemas que compete ao tribunal inferior decidir».
ACRESCE QUE,
60º já no que toca à segunda, terceira e quarta questões de inconstitucionalidade suscitadas pelo Reclamante no respetivo requerimento de interposição de recurso aqui em causa, entende o Venerando Juiz Conselheiro Relator que o «recorrente não coloca ao Tribunal questões de constitucionalidade normativa de que este possa conhecer, antes questionando a própria bondade da decisão recorrida».
61º Todavia, tal circunstancialismo fáctico não corresponde à verdade.
62º Ao invés, o Reclamante pretendeu impugnar, perante o Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade das interpretações normativas plasmadas no acórdão proferido pelo S.T.J..
Vejamos porquê:
63º Desde logo, no que respeita à segunda questão, o que realmente o Reclamante contesta é que face a uma situação de elevada dúvida e “obscuridade”, o Tribunal «a quo» tenha optado pela solução jurídica mais gravosa para o arguido, em pleno desrespeito pelo princípio da presunção da inocência.
64º Conforme refere Figueiredo Dias, a sindicância do respeito pelo princípio em causa configura uma questão de direito, pois que se trata de um princípio geral do processo penal, pelo que a sua violação conforma uma autêntica questão de direito que cabe, como tal, na cognição do Supremo Tribunal de Justiça e das Relações.
65º Porém, considerou o Venerando Supremo Tribunal de Justiça que, mediante a interpretação, por si dada ao art. 32º, nº 2 da C.R.P., teria que improceder a invocação do princípio in dubio pro reo.
66º Razão pela qual, entende o ora Reclamante, que tal interpretação normativa se revela inconstitucional porquanto, violadora do supra referido princípio constitucional.
67º Na mesma senda, na terceira questão formulada pelo ora Reclamante, impugna-se a interpretação normativa dada aos arts. 40º, nº 1 e 71º do C.P., e na interpretação normativa dada à conjugação destas normas com o art. 13º nº 1 da C.R.P. e com o art. 21º, nº 1 do Dec-Lei 15/93, de 22/01.
68º Sucede que, admitindo-se apenas, por mera hipótese de raciocínio, que o Reclamante tenha praticado o crime de que vem acusado, e pelo que foi condenado pelo Tribunal recorrido, o que, repita-se, só por mero exercício académico se equaciona, então, deveria o Tribunal «a quo», aquando da sua tarefa de determinação da medida concreta da pena a aplicar, ter tido em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do crime, depuseram a favor do Recorrente,
69º designadamente, a sua clara e harmoniosa integração familiar, profissional e social na vida em sociedade.
70º O princípio da culpa, acolhido no nosso ordenamento jurídico-penal e cujo fundamento axiológico radica no princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal, implica que a culpa seja condição necessária da aplicação da pena e, simultaneamente, que a medida da pena não possa ultrapassar a medida da culpa.
71º Nos termos dos nºs 1 e 2 do art. 40º do C. Penal, as penas têm como finalidade a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, e não podem em caso algum ultrapassar a medida da culpa.
72º E, bem assim, no nº 1 do art. 71º do C. Penal, de acordo com o qual a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, operação na qual, e de acordo com o nº 2 do mesmo preceito, o Tribunal terá de atender àquelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.
73º O equilíbrio desejável entre as finalidades relativas à prevenção geral e à prevenção especial não obsta a que, perante as especificidades do caso concreto, uma dessas finalidades haja de prevalecer sobre a outra.
ACONTECE QUE,
74º a pena fixada no douto Acórdão de primeira instância revela-se adequada ao grau de culpa do Reclamante e satisfaz as exigências de prevenção geral e especial.
75º Em face disso, violou-se o artigo 40º, n.ºs 1 e 2, do C.P., porquanto a pena fixada no douto Acórdão recorrido excede a medida da culpa e não visam, de forma alguma, a reintegração do arguido na sociedade.
76º Ora, culpa e prevenção, constituem o binómio que o julgador terá de utilizar na determinação da medida da pena – artigo 71º, n.º 1, do Código Penal.
77º Porém, inexplicavelmente, o Venerando Supremo Tribunal de Justiça entendeu que a pena de quatro anos e seis meses aplicada ao Reclamante se revelava justa,
78º violando-se, assim, o S.T.J., através de tal interpretação normativa, o princípio da igualdade vertido no art. 13º da C.R.P..
79º Assim sendo, não restam dúvidas de que a interpretação normativa constante no Acórdão recorrido quanto aos referidos dispositivos legais é inconstitucional.
80º Com efeito, a este processo deve presidir uma preocupação de tratamento justo do caso concreto, adequado à vontade e intenções da lei.
POR ÚLTIMO,
81º entendeu o Venerando Supremo Tribunal de Justiça que, mediante a interpretação do art. 50º, nº 1 do Código Penal, atentas as superiores necessidades de prevenção geral, é de rejeitar a aplicação da pena suspensa ao Recorrente, pelas razões supra expostas.
82º Todavia, ao condenar o Recorrente, ora Reclamante, nos precisos termos da decisão recorrida encontra-se a ser diretamente violado o princípio da igualdade, previsto pelo art. 13º da C.R.P. porquanto, arguidos em relação aos quais foi produzida prova consideravelmente superior da prática do crime de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 do Dec-Lei 15/93, de 22 de janeiro, nos presentes autos, foram condenados por decisão proferida pela 1ª Instância, em penas de prisão inferiores ou até mesmo iguais, suspensas na sua execução,
83º pelo que, a manter-se a decisão recorrida sempre se diria que se encontrava em plena violação e desrespeito pelo art. 13º da C.R.P..
84º Com efeito, salvo o devido respeito, o ora Reclamante não pode concordar com o entendimento perfilhado pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça, por violar princípios constitucionalmente consagrados.
85º A suspensão da execução da pena não pode deixar de ser entendida como uma medida pedagógica e reeducativa (cf. Ac. do STJ de 30-09-1999, Proc. n.º 578/99 - 5.ª, CJSTJ, VII, tomo 1, pág. 213) com vista à realização – de forma adequada – das finalidades da punição, isto é, da proteção dos bens jurídicos e da reintegração do agente na sociedade (art. 40.º, n.º 1, do CP).
86º Trata-se de um poder-dever, ou seja, de um poder vinculado do julgador que terá de decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente, sempre que se verifiquem aqueles pressupostos, sendo que tem de ter na sua base um juízo de prognose social favorável ao arguido, isto é, que a respetiva condenação constitua uma séria advertência e um forte alerta para que não volte a delinquir, a praticar crimes: para aquele juízo de prognose deve ter-se a esperança deque o arguido, em liberdade, adira, sem quaisquer reservas, a um processo de socialização.
87º Tal juízo de prognose tem de reportar-se ao momento da decisão e não ao da prática do crime e deve assentar «em bases de facto capazes de o suportarem com alguma firmeza, sem que todavia se exija uma certeza quanto ao desenrolar futuro do comportamento do arguido».
88º Portanto, para a suspensão da execução da pena, o Tribunal deve atender aos elementos referidos no art. 50.º, n.º 1, do CP: à personalidade do agente, às suas condições de vida, à conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
89º Se, da ponderação de todas essas circunstâncias, o Tribunal concluir favoravelmente sobre o comportamento futuro do arguido decidirá se a simples censura do facto e a ameaça da pena serão suficientes para satisfazer as suprarreferidas finalidades da punição, sendo que, se decidir que sim, fixará o período da suspensão.
90º Não obstante, no caso em apreço, o Supremo Tribunal de Justiça não atendeu à notória integração social do arguido, à sua estabilidade económica e familiar e ao projeto de vida que delineou para pautar os seus comportamentos de acordo com as regras da vida em sociedade.
91º Ante tal quadro, só ao optar-se pela suspensão da execução da pena imposta ao arguido é que será feita uma correta interpretação do disposto no artigo 50º do Código Penal e ao manter a suspensão da execução por período igual ao da pena.
92º Assim sendo, o Venerando Supremo Tribunal de Justiça devia ter mantido a decisão já proferida em 1ª instancia in totum, ou seja, condenação pelo crime de tráfico de menor gravidade, em pena de prisão de 1 ano e seis meses suspensa na sua execução, em obediência ao disposto nos artigos 40.°, 70.°, 71.°, 72.°, e 50.° do Código Penal, sendo que, não o tendo feito, violou tais disposições legais, tanto mais que inexistem elementos nos autos que permitam contrariar o juízo de prognose favorável a que chegou o Tribunal de 1ª Instância e que o levou a suspender a execução da pena de prisão em que condenou o Recorrente.
93º Porém, mesmo que se considerasse, como na decisão recorrida, um juízo de prognose não tão favorável ao arguido como fez o Tribunal de 1ª Instância, sempre se podia lançar mão do regime de suspensão com regime de prova, que o arguido, desde já, declara aceitar submeter-se,
94º jamais devendo ser cerceada a possibilidade da socialização em liberdade que o Reclamante já encetou.
95º A pena de prisão em que o Reclamante foi condenado em 1ª Instância e cuja execução foi suspensa na sua execução é, pois, suficiente para satisfazer as prementes necessidades de proteção dos bens jurídicos violados, bem como é adequada a proporcionar a reintegração do agente na sociedade e não ultrapassa a medida da sua culpa.
96º Daí que se entenda estarem reunidas, claramente, as condições da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao Reclamante.
97º Assim sendo, a interpretação normativa seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça a respeito do art. 50º, nº 1 do C.P., é, absolutamente, inconstitucional, conforme decorre do supra exposto.
CERTO É, PORÉM QUE,
98º a Decisão Sumária, ora reclamada, decidiu que o Tribunal Constitucional não devia tomar conhecimento do objeto do recurso.
99º Todavia, atento o supra melhor explanado, e ao contrário do que entende o Exmo. Juiz Conselheiro Relator, é de se concluir, pois, pela inconstitucionalidade das interpretações normativas resultantes da conjugação das referidas normas melhor elencadas pelo Reclamante no respetivo requerimento de interposição de recurso.
Termos em que deve conceder-se integral provimento à presente reclamação e, em consequência, revogar-se a douta decisão sumária ora reclamada, mediante a prolação de acórdão no sentido da admissão do recurso interposto e, consequente mente, de conhecimento do mérito do mesmo, em conformidade com o acima exposto e com as legais consequências.”
4. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação nos termos seguintes:
1º Pela douta Decisão Sumária n.º 775/2013, não se tomou conhecimento do objeto do recurso em relação às quatro questões que o recorrente identificava no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal Constitucional.
2º Em relação à segunda, terceira e quarta questões, parece-nos evidente, como de forma clara se demonstra na douta Decisão Sumária, que as mesmas não têm natureza normativa.
3º Essa ausência de normatividade é patente, quer quando “durante o processo” o recorrente suscitou as questões, quer quando as enunciou no requerimento de interposição do recurso.
4º Também nos parece evidente que o recorrente não estava dispensado do ónus da suscitação prévia.
5.º Aliás, tal só podia ser relevante para um dos fundamentos, o da suscitação prévia, uma vez que, mesmo os recorrentes que estejam dispensados do cumprimento desse ónus, têm de enunciar no requerimento de interposição do recurso, uma questão de constitucionalidade passível de constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade.
6.º Na reclamação, o recorrente nada diz de relevante e que possa abalar os fundamentos da decisão reclamada, limitando-se, em larga medida, a repetir o anteriormente dito e a transcrever o que o Supremo Tribunal de Justiça dissera sobre as matérias.
7.º Quanto à primeira questão de constitucionalidade, na verdade, ela não foi adequadamente suscitada, tendo o recorrente disposto de plena oportunidade para tal.
8.º Acresce que, traduzindo a afirmação do recorrente a pretensão a um terceiro grau de jurisdição em matéria de facto, sempre a questão seria de considerar simples face à jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre tal matéria que sempre entendeu que o direito ao recurso consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa não abrange um terceiro grau de jurisdição, ou um duplo grau de recurso, em matéria de facto.
9.º Também na reclamação, e quanto a esta parte, nada de relevante se diz.
10.º Aliás, o recorrente labora num equívoco quando, no ponto 38º, diz:
“Porém, ao invés do que decorre do teor da Decisão Sumária da qual ora se reclama, com a interposição do dito recurso para o Tribunal Constitucional o Reclamante não visou aceder a um terceiro grau de jurisdição em matéria de facto.”
10.º Ora, era com o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (e não Tribunal Constitucional) que se pretendia ter acesso a um terceiro grau de jurisdição em matéria de facto.
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.”
II – Fundamentação
5. O recorrente reclama para a conferência da Decisão Sumária n.º 755/2013 por discordar do aí decidido quanto ao não conhecimento do objeto do recurso interposto para este Tribunal. A decisão reclamada sustentou a impossibilidade de conhecimento do recurso por o mesmo não cumprir os pressupostos processuais necessários para que o Tribunal Constitucional pudesse conhecer do mérito do mesmo.
6. Foram várias as questões de constitucionalidade suscitadas pelo recorrente no requerimento de interposição do recurso.
A decisão reclamada considerou que, na segunda, terceira e quarta questões, o recorrente não coloca ao Tribunal questões de constitucionalidade normativa de que este possa conhecer, antes questionando a própria bondade da decisão recorrida. No entanto, o reclamante não aduz, na reclamação ora apresentada, qualquer argumento que permita abalar esse fundamento de não conhecimento do objeto de recurso. Na verdade, na reclamação, o ora reclamante continua a necessitar de longas explicações referentes aos circunstancialismos do caso, assim demonstrando, mais uma vez, que o que está em causa, sob a aparência da “interpretação normativa” de várias normas, é a pretensão de impugnar a própria decisão recorrida. Senão vejamos.
6.1. Na segunda questão está em causa a interpretação do artigo 32.º da CRP, segundo a qual o STJ considerou que “improcede a invocação do princípio in dubio pro reo (…)”. Invoca agora o reclamante, para abalar os argumentos da decisão reclamada que, “conforme refere Figueiredo Dias, a sindicância do respeito pelo princípio em causa configura uma questão de direito, pois que se trata de um princípio geral do processo penal, pelo que a sua violação conforma uma autêntica questão de direito que cabe, como tal, na cognição do Supremo Tribunal de Justiça e das Relações. Porém, considerou o Venerando Supremo Tribunal de Justiça que, mediante a interpretação, por si dada ao art. 32º, nº 2 da C.R.P., teria que improceder a invocação do princípio in dubio pro reo. Razão pela qual, entende o ora Reclamante, que tal interpretação normativa se revela inconstitucional porquanto, violadora do supra referido princípio constitucional”. Ora, em primeiro lugar, há que referir que o facto de a sindicância do respeito pelo princípio do indubio pro reo constituir uma questão de direito, isso não significa que a questão suscitada perante o Tribunal Constitucional seja uma questão de constitucionalidade normativa. Pois que o que o ora reclamante contesta é, como ele próprio define na reclamação, a decisão do STJ no sentido de que “teria que improceder a invocação do princípio in dubio pro reo”. Em causa está, assim, a decisão concreta do STJ que não considerou esse princípio aplicável ao caso dos autos.
6.2. Na terceira questão, é questionada a interpretação dada pelo pelo STJ ao artigo 71.º da CRP, através da qual o mesmo julga “justa a pena de 4 anos e seis meses de prisão aplicada ao arguido”. No que toca a esta questão, volta o ora reclamante a demonstrar que o que pretende é um verdadeiro reexame de todos os elementos constitutivos da condenação, i.e., uma reapreciação do mérito do recurso, como se os recursos de fiscalização da constitucionalidade funcionassem como mais um grau de recurso ordinário. Tanto assim é que o ora reclamante insiste em defender qual seria a pena “adequada ao grau de culpa do Reclamante”, bem como a que “satisfaz as exigências de prevenção geral e especial”. Pretende, assim, o ora reclamante, sob pretexto de uma suposta violação do princípio da igualdade vertido no art. 13º da C.R.P., que o Tribunal Constitucional se pronuncie sob uma questão de ordem infraconstitucional e atinente unicamente a juízos de aplicação da lei penal, como é o da determinação da pena concretamente aplicável a um determinado facto. Ora, não é demais relembrar que, por um lado, não incumbe ao Tribunal Constitucional substituir o seu juízo, sobre questões infraconstitucionais ao juízo dos tribunais comuns. Por outro lado, importa sublinhar que não basta invocar genericamente que uma dada decisão viola preceitos constitucionais para se considerar que se está perante uma questão de constitucionalidade normativa. Como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, uma questão de constitucionalidade normativa é aquela que surge com autonomia relativamente ao tema da simples interpretação normativa e aplicação de determinada norma aos factos da causa. Ora, no presente caso, foi pelo facto de o STJ não considerar aplicável o princípio do indubio pro reo ao caso que o ora reclamante imputa de inconstitucional a suposta «interpretação normativa» feita por esse tribunal. O que demonstra, assim, que o que questiona e imputa de inconstitucional é a própria decisão do tribunal a quo que decidiu não ser convocável esse princípio para os autos.
6.4. A última questão diz respeito à inconstitucionalidade do art. 50.º, n.º1 do C.P., no sentido interpretado pelo STJ, de que “é de rejeitar a aplicação da pena suspensa ao Recorrente”. Ora, o que o ora reclamante aqui pretende ver sindicada é a decisão de não aplicação de pena suspensa ao caso concreto. Mais uma vez a reclamação ora apresentada não afasta o juízo da decisão sumária, antes o reforça. Senão vejamos. Refere o ora reclamante que “ao condenar o Recorrente, ora Reclamante, nos precisos termos da decisão recorrida encontra-se a ser diretamente violado o princípio da igualdade, previsto pelo art. 13º da C.R.P. porquanto, arguidos em relação aos quais foi produzida prova consideravelmente superior da prática do crime de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 do Dec-Lei 15/93, de 22 de janeiro, nos presentes autos, foram condenados por decisão proferida pela 1ª Instância, em penas de prisão inferiores ou até mesmo iguais, suspensas na sua execução”. Como claramente resulta da transcrição feita, o que o ora reclamante imputa de inconstitucional é a decisão de condenação em pena de prisão efetiva. Assim, o que se referiu no ponto precedente é perfeitamente transponível para o presente ponto.
6.5. Assim, no que toca à segunda, terceira e quarta questões de inconstitucionalidade suscitadas pelo recorrente, resta reafirmar o que se escreveu na decisão reclamada: o que o recorrente com elas pretende é impugnar, perante o Tribunal Constitucional, não a inconstitucionalidade das normas invocadas, mas sim a decisão que com as mesmas é fundamentada.
E “porque não vigora entre nós um sistema de recurso de amparo ou de queixa constitucional, existindo, sim, um sistema de fiscalização normativa da constitucionalidade que não permite que o Tribunal Constitucional conheça do ato casuístico de subsunção de um pormenorizado conjunto de factos concretos na previsão abstrata de uma certa norma legal” (Acórdão n.º 183/08), delas não pode o Tribunal Constitucional conhecer.
7. No que toca à primeira questão de inconstitucionalidade, a decisão sumária reclamada considerou que a mesma não fora arguida durante o processo, ou seja, antes da prolação da decisão recorrida. O ora reclamante agora alega, por um lado, que “suscitou, convenientemente, em sede de alegações de recurso para o S.T.J., as referidas questões de inconstitucionalidade da interpretação normativa em causa, designadamente a fls. 3 a 5, sendo que mais não lhe seria exigível”. No entanto, já a decisão reclamada referiu que nas fls. indicadas o recorrente se limita a tecer considerações genéricas sobre o direito ao recurso constitucionalmente protegido no artigo 32.º, n.º1 da CRP, e sempre reportadas aos artigos 399.º, 400.º, n.º1 e 432.º, n.º1, al. b) do CPP. Assim, não suscitou a questão de inconstitucionalidade aqui levantada, de forma a que o STJ pudesse dela ter conhecido.
Mas, por outro lado, o ora reclamante alega ainda, e de certa forma entrando em contradição com o argumento anterior, que “não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de ser proferida a decisão recorrida ou por se tratar de decisão-surpresa, de conteúdo imprevisível, tornando inexigível a prévia suscitação de tal questão, antes de a parte ter sido confrontada com o teor da decisão proferida”.
Já no requerimento de interposição de recurso sustentava que a decisão recorrida deveria ser considerada, para efeitos de cumprimento do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, uma “decisão-surpresa”. Ora, e mais uma vez, há que afirmar que essa argumentação não procede. Por um lado, é a própria lei a prever que os poderes de cognição do STJ se limitam à matéria de direito (sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do mesmo Código), e por outro, a interpretação por acolhida pela decisão recorrida corresponde à jurisprudência consolidada do STJ. Assim, o recorrente não poderia ter deixado de antecipar que o tribunal recorrido iria aplicar a interpretação arguida de inconstitucional no requerimento de interposição do recurso, i.e., a interpretação dos artigos 427.º e 434.º do C.P.P., “conjugados com o art. 32.º, n.º1 da CRP e com o art. 410.º, ns. 2 e 3 do C.P.P”, segundo a qual “não é admissível, para o Supremo Tribunal de Justiça (…) a impugnação da matéria de facto dada como provada e assente pelo Acórdão da Relação do Porto, na sequência do recurso, interposto pelo M.P., do acórdão proferido pelo Tribunal de 1ª instância”.
Tanto bastaria para não se conhecer do mérito do presente recurso.
8. Mas mesmo que assim não se entendesse, e mesmo que a questão fosse conhecida pelo Tribunal Constitucional, ainda assim a questão teria de se considerar uma questão simples. A interpretação normativa em causa nesta última questão não seria julgada inconstitucional, face à ampla e consolidada do Tribunal Constitucional sobre tal matéria, que sempre entendeu que o direito ao recurso consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa não abrange um terceiro grau de jurisdição, ou um duplo grau de recurso, em matéria de facto. Ora, como afirma o parecer do Ministério Público, «na reclamação também nada de relevante se diz quanto a esta parte. Aliás, o recorrente labora num equívoco quando, no ponto 38º, diz: “Porém, ao invés do que decorre do teor da Decisão Sumária da qual ora se reclama, com a interposição do dito recurso para o Tribunal Constitucional o Reclamante não visou aceder a um terceiro grau de jurisdição em matéria de facto.” Ora, era com o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (e não Tribunal Constitucional) que se pretendia ter acesso a um terceiro grau de jurisdição em matéria de facto».
O que o recorrente pretende, com a construção que elabora é, na verdade, aceder a um terceiro grau de jurisdição perante o STJ. Assim, há que relembrar a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional no sentido de que o direito ao recurso, garantido como direito de defesa no art. 32.º, n.º1 da Constituição, se basta com um grau de recurso. Atente-se, por exemplo, o Acórdão n.º 117/2004, de 18/02, onde se sublinhou que “estando garantido o direito ao recurso - em processo penal - mediante o duplo grau de jurisdição, mostram-se satisfeitas as garantias de defesa constitucionalmente consagradas”. O direito de o arguido a ver reexaminado o seu caso mostrou-se já satisfeito com a pronúncia do Tribunal da Relação, pelo que nenhuma disposição constitucional se mostra violada por o Tribunal a quo ter adotado interpretação normativa de acordo com a qual “não é admissível, para o Supremo Tribunal de Justiça (…) a impugnação da matéria de facto dada como provada e assente pelo Acórdão da Relação do Porto, na sequência do recurso, interposto pelo M.P., do acórdão proferido pelo Tribunal de 1ª instância”.
III – Decisão
9. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, nos termos dos artigos 7.º e 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro.
Lisboa, 13 de fevereiro de 2014. – Lino Rodrigues Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.