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Processo n.º 302/13
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
(Conselheira Maria João Antunes)
Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 14 de janeiro de 2013.
2. Em 31 de janeiro de 2000, foi fixada ao recorrido uma incapacidade permanente parcial, na sequência de acidente de trabalho que teve lugar no dia 6 de novembro de 1997, tendo a seguradora em causa sido condenada ao pagamento de uma pensão anual e vitalícia.
Em 17 de julho de 2002 e em 21 de julho de 2006, o sinistrado requereu a revisão da sua incapacidade, tendo sido proferidas decisões no sentido da manutenção da incapacidade anteriormente atribuída (decisões de 18 de junho de 2003 e de 18 de maio de 2007).
Em 22 de maio de 2012 o sinistrado requereu, mais uma vez, a revisão da sua incapacidade. Por decisão de 29 de maio de 2012, o tribunal decidiu indeferir o pedido, por «já não ser possível ao sinistrado deduzir qualquer incidente de revisão de pensão, porque decorridos mais de 10 anos sobre a data da fixação da incapacidade», limite imposto pelo n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127, de 3 de agosto de 1965.
Desta decisão foi interposto recurso para o Tribunal da Relação do Porto, suscitando o recorrente a inconstitucionalidade do n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127 e pugnando pela aplicação da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, mais concretamente o seu artigo 70.º.
Por Acórdão de 14 de janeiro de 2013, o Tribunal da Relação do Porto acordou em «conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e ordenando a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento do processo, concretamente do incidente de revisão deduzido pelo sinistrado». É a seguinte a fundamentação deste acórdão:
«Uma nota prévia para sublinhar que, tendo o acidente ocorrido em 06.11.1997, ao caso é aplicável a Lei nº 2127, de 03.08.1965 – Base LI, nº 1, al. a), da referida Lei, e art. 83º do Decreto nº 360/71 de 21.08.
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A única questão suscitada consiste em saber se, como pretende o recorrente, a interpretação dada na sentença à Base XXII, nº 2, da Lei nº 2127, de 03.08.1965, deve ser recusada, por violadora do disposto nos artigos 13º e 59º, nº 1, al. f), da Constituição da República Portuguesa.
Sobre esta matéria, se pronunciou esta Relação, no seu acórdão de 19.12.2012, (relatora Fernanda Soares), proferido no processo nº 42/1976.1.P1, aí se sufragando o entendimento de que, em face do disposto na Lei nº 98/2009 de 04.09 – relativamente ao modo de exercício do direito de pedir a revisão das prestações – é inconstitucional o determinado na Base XXII, nº 2, da Lei 2127 [na interpretação seguida pelo Tribunal Constitucional nos acórdãos nºs 155/2003 de 19.03.2003, nº 612/2008 de 10.12.2008 e nº 219/2012 de 26.04.2013], por violação dos princípios da igualdade e da justa reparação previstos, respetivamente, nos artigos 13º e 59º, nº 1, alínea f) da Constituição da República Portuguesa.
Sufragando esse entendimento, dele se transcrevem a fundamentação interessante ao caso em apreço:
«[…]
Segundo o disposto no nº 2 da Base XXII da Lei nº 2127 “A revisão só poderá ser requerida dentro dos dez anos posteriores à data da fixação da pensão e poderá ser requerida uma vez em cada semestre, nos dois primeiros anos, e uma vez por ano, nos anos imediatos”.
Sobre a referida disposição legal já o Tribunal Constitucional se pronunciou.
No acórdão nº 155/2003, de 19.03.2003, considerou-se não ser inconstitucional a norma do nº 2 da Base XXII da Lei nº 2127, quando aplicada ao caso em que não tenha sido requerido a revisão da pensão/incapacidade dentro do prazo de 10 anos desde a fixação da pensão inicial. Diz-se nesse acórdão que “não se reveste de flagrante desrazoabilidade o entendimento do legislador ordinário de que, 10 anos decorridos sobre a data da fixação da pensão (que pressupõe a prévia determinação do grau de incapacidade permanente que afeta o sinistrado), sem que se tenha registado qualquer evolução justificadora do pedido de revisão, a situação se deve ter por consolidada” (...).
No mesmo sentido é o acórdão nº 612/2008, de 10.12.2008, onde se diz o seguinte: “Ora, no caso concreto, a lei fixa um prazo suficientemente dilatado, que segundo a normalidade das coisas, permitirá considerar como consolidado o juízo sobre o grau de desvalorização funcional do sinistrado, e que, além do mais, se mostra justificado por razões de segurança jurídica, tendo em conta que estamos na presença de um processo especial de efetivação de responsabilidade civil dotado de especiais exigências na proteção dos trabalhadores sinistrados. E, nesse condicionalismo, é de entender que essa exigência se não mostra excessiva ou intolerável em termos de poder considerar-se que afronta o princípio da proporcionalidade” (...).
E mais recentemente, no mesmo sentido, é o acórdão do mesmo Tribunal com o nº 219/2012, de 26.04.2012 – publicado no DR, 2ª série, nº 102, de 25.05.2012 – no qual se analisou a situação de um pedido de revisão formulado para além dos 10 anos contados desde a data da última fixação da pensão. Aí se concluiu que “Efetivamente, não ocorreu, neste caso, qualquer atualização intercalar do grau de incapacidade no período de dez anos que antecedem o novo requerimento de atualização, nem se verifica qualquer circunstância que afaste, de modo irrecusável, a presunção de estabilização da situação clínica. Pelo que não viola a alínea f) do nº 1 do artigo 59º da Constituição a norma do nº 2 da Base XXII da Lei nº 2127 de 3 de agosto de 1965, na interpretação de que o direito de revisão da pensão com fundamento em agravamento das lesões caduca se tiveram passado dez anos, contados da data da última revisão, mesmo que tenha havido alterações de pensão inicial com idêntico fundamento”.
(…)
Por isso, o caso dos autos não cabe na situação analisada no acórdão do Tribunal Constitucional com o nº 161/2009, mas antes com a apreciada nos acórdãos do mesmo Tribunal com os nºs 155/2003, 612/2008 e 219/2012.
No entanto, cumpre referir o seguinte.
A interpretação a que se chegou quanto à situação em análise – e que tem sido acolhida pelo Tribunal Constitucional – «briga», atualmente, com o determinado na Lei nº 98/2009 [este diploma veio regulamentar o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais], a qual entrou em vigor em 01.01.2010 – artigo 188º da referida Lei.
Na verdade, a Lei nº 98/2009 veio eliminar qualquer prazo limite para a possibilidade de revisão ao estabelecer, no artigo 70º, nº 3, que “A revisão pode ser requerida uma vez em cada ano civil”.
Assim, e relativamente aos acidentes ocorridos após 01.01.2010, o direito de pedir a revisão das prestações deixou de estar condicionado ao limite máximo de 10 anos [na interpretação atrás indicada e que abrange a situação dos autos].
E a pergunta que devemos colocar é a seguinte; Será que em face do determinado na Lei nº 98/2009 a interpretação que tem sido feita da Base XXII, nº 2 da Lei nº 2127 é agora inconstitucional por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa?
É o que vamos analisar.
O princípio da igualdade traduz-se na ideia da proibição do arbítrio, ou seja, «As medidas de diferenciação hão de ser materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da solidariedade, não devendo basear-se em qualquer razão constitucionalmente imprópria» – acórdão do Tribunal Constitucional de 23.04.1992, no BMJ, nº 416, página 296 e seguintes.
Escreveu-se, também, no acórdão do Tribunal Constitucional nº 409/1999 que “O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objetiva e racional. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio (...)”.
Posto isto avancemos para o caso concreto.
Se o legislador da Lei nº 98/2009 de 04.09 não impôs qualquer limite para a formulação do pedido de revisão das prestações devidas em consequência de acidente de trabalho é porque «abandonou» a presunção de que o decurso de 10 anos, contados da data da fixação da pensão, e sem que o sinistrado requeira a revisão, é tempo mais do que suficiente para se considerar as lesões decorrentes do acidente consolidadas.
E, se assim é, então os fundamentos que o Tribunal Constitucional tem invocado para não considerar a Base XXII, nº 2, da Lei nº 2127 inconstitucional, não foram acolhidos pela Lei nº 98/2009 de 04.09.
Assim, e no que diz respeito ao modo de exercício do direito de revisão das prestações, verifica-se, nitidamente, uma diferença de tratamento de situações jurídicas idênticas.
Na verdade, a diferença de tratamento reside no facto de o acidente de trabalho ocorrer antes, ou depois da entrada em vigor da Lei nº 98/2009 [no o primeiro caso, o sinistrado que nunca tenha requerido a revisão durante dez após a data da fixação das prestações, já não o pode fazer; no segundo caso, o sinistrado pode requerer a revisão, uma vez por ano, e sem qualquer limite de tempo].
E salvo o devido respeito, não parece que essa diferença de tratamento de situações idênticas – quanto ao modo de exercício do direito de revisão das prestações – encontre justificação suficiente e razoável no princípio da não retroatividade da lei. Ou seja, tal princípio, consagrado no artigo 187º, nº 1 da Lei nº 98/2009, não é suficiente para afastar o princípio da igualdade.
E de algum modo, esta diferença de tratamento acaba, igualmente, por ofender o direito de justa reparação consagrado no artigo 59º, nº 1, al. f) da Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, o único elemento que separa os sinistrados – relativamente aos acidentes ocorridos antes ou depois de 01.01.2010 – é apenas a data do acidente, e nada mais, o que, e ressalvando melhor opinião, nos parece bem pouco tendo em conta os interesses em causa e constitucionalmente protegidos.
Por isso, e em face do disposto na Lei nº 98/2009 de 04.09 – relativamente ao modo de exercício do direito de pedir a revisão das prestações – é inconstitucional o determinado na Base XXII, nº 2, da Lei 2127 [na interpretação seguida pelo Tribunal Constitucional nos acórdãos nºs 155/2003 de 19.03.2003, nº 612/2008 de 10.12.2008 e nº 219/2012 de 26.04.2013], por violação dos princípios da igualdade e da justa reparação previstos, respetivamente, nos artigos 13º e 59º, nº 1, alínea f) da Constituição da República Portuguesa [...]».
Acompanhando inteiramente esta fundamentação, também entendemos que, no caso em apreço, não obstante terem já decorrido 12 anos sobre a data da fixação da pensão [a decisão judicial que fixou a pensão tem a data de 31.01.2000 e o pedido de revisão foi apresentado em 22.05.2012] ter-se-á de concluir pela admissibilidade do pedido de revisão requerido pelo sinistrado.
Procedem, pois, as conclusões do recurso».
4. Foi desta decisão que o Ministério Público interpôs o presente recurso obrigatório, com vista à apreciação da constitucionalidade da norma do n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127, de 3 de agosto de 1965, por violação dos princípios da igualdade e da justa reparação, previstos, respetivamente, nos artigos 13.º e 59.º da Constituição da República Portuguesa.
5. O recorrente produziu alegações, que conclui do seguinte modo:
«1. A Base XXII, n.º 2 da Lei 2127, de 3 de agosto de 1965, consagra um prazo preclusivo de 10 anos, contados da fixação originária da pensão devida ao sinistrado em acidente de trabalho, para a revisão.
2. Não tendo ocorrido revisões anteriores procedentes, numa jurisprudência uniforme e constante, o Tribunal Constitucional tem entendido que a fixação daquele prazo não é inconstitucional.
3. A Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (artigo 70.º) alterou o regime, deixando, agora, de estar fixado qualquer prazo.
4. Mostrando-se o regime atual mais respeitador dos princípios constitucionais relevantes, maxime o artigo 59.º, n.º 1, alínea f) da Constituição, mas não operando o princípio da igualdade diacronicamente, aceitando-se o sentido da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre tal matéria, aquela Base XXII, n.º 2, na dimensão em causa, não é inconstitucional.
5. Termos em que deve conceder-se provimento ao recurso».
Notificado para o efeito, o recorrido não contra-alegou.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
a) A norma recusada
6. A decisão recorrida, considerando «inconstitucional o determinado na Base XXII, n.º 2, da Lei n.º 2127 [na interpretação seguida pelo Tribunal Constitucional nos Acórdãos n.º 155/2003, 612/2008 e 219/2012] por violação dos princípios da igualdade e da justa reparação, previstos, respetivamente, nos artigos 13.º e 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa», admitiu o pedido de revisão deduzido pelo sinistrado, «não obstante terem já decorrido 12 anos sobre a data da fixação da pensão».
7. O presente recurso tem, assim, como fundamento a recusa de aplicação, pelo Tribunal da Relação do Porto, do n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127, de 3 de agosto de 1965.
Esta disposição legal tem a seguinte redação:
«Base XXII
Revisão de Pensões
1 – (…)
2 – A revisão só poderá ser requerida dentro dos dez anos posteriores à data da fixação da pensão e poderá ser requerida uma vez em cada semestre, nos dois primeiros anos, e uma vez por ano, nos anos imediatos.
3 – (…)» (itálico aditado).
b) Enquadramento da questão no ordenamento infraconstitucional
8. Desempenhando o direito à pensão por acidente de trabalho uma função de garantia de subsistência do sinistrado compreende-se a necessidade de garantir a possibilidade da revisão do seu montante, nos casos em que a capacidade de trabalho do sinistrado sofra alteração decorrente da evolução do estado de saúde originado no acidente.
O direito de revisão das pensões por acidente de trabalho foi consagrado, inicialmente, sem condicionamento do seu exercício a qualquer prazo (artigo 33.º do Decreto n.º 4288, de 22 de maio de 1918). Mais tarde, a Lei n.º 1942, de 27 de julho de 1936, no seu artigo 24.º, viria introduzir a exigência do pedido de revisão das pensões com fundamento em alteração da capacidade de ganho do sinistrado, ser formulado “durante o prazo de cinco anos, a contar da data da homologação do acordo ou do trânsito em julgado da sentença” e “desde que, sobre a data da fixação da pensão ou da última revisão, t[ivessem] decorrido seis meses, pelo menos”.
9. A Lei n.º 2127, de 3 de agosto de 1965, que continha as bases do regime jurídico dos acidentes de trabalho e doenças profissionais, veio regular a revisão de pensões por acidente de trabalho na Base XXII, aí se prevendo o alargamento deste prazo para dez anos, após a fixação da pensão.
Idêntico regime seria consagrado no artigo 25.º da Lei n.º 100/97, de 13 de setembro, que instituiu o novo regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais.
10. Na sequência da aprovação de uma nova versão do Código de Trabalho, pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, a Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, veio regulamentar o regime de reparação de acidentes de trabalho, nos termos do artigo 284.º do referido Código do Trabalho.
Um dos aspetos expressamente salientados na Exposição de motivos do Projeto de Lei apresentado na Assembleia da República foi, precisamente, «a eliminação da regra que determina que a pensão por acidente de trabalho só pode ser revista nos 10 anos posteriores à sua fixação, passando a permitir-se a sua revisão a todo o tempo, tal como já sucede no regime da reparação de doenças profissionais» (cf. Projeto Lei n.º 786/X/4.ª).
À redação do n.º 3 do artigo 70.º, que permite a revisão a todo o tempo (com o limite apenas de ser requerida uma vez em cada ano civil), não correspondeu, todavia, a revogação do n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127, que estabelece o limite de dez anos (podendo a revisão ser requerida uma vez em cada semestre, nos dois primeiros anos, e uma vez por ano, nos anos imediatos). Pelo contrário, a opção foi antes a de o novo regime valer apenas para os acidentes de trabalho ocorridos depois da entrada em vigor da Lei n.º 98/2009 (cf. artigos 187.º, n.º 1, e 188.º).
Com efeito, o artigo 70.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (disposição integrada no Capítulo II) tem a seguinte redação:
«1 – Quando se verifique uma modificação na capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado proveniente de agravamento, recidiva, recaída ou melhoria da lesão ou doença que deu origem à reparação, ou de intervenção clínica ou aplicação de ajudas técnicas e outros dispositivos técnicos de compensação das limitações funcionais ou ainda de reabilitação e reintegração profissional e readaptação ao trabalho, a prestação pode ser alterada ou extinta, de harmonia com a modificação verificada.
2 – A revisão pode ser efetuada a requerimento do sinistrado ou do responsável pelo pagamento.
3 – A revisão pode ser requerida uma vez em cada ano civil».
Por sua vez, o artigo 187.º do mesmo diploma legal, dispõe:
«1 – O disposto no Capítulo II aplica-se aos acidentes de trabalho ocorridos após a entrada em vigor da presente lei».
c) O princípio da igualdade na sucessão de leis no tempo
11. Esta opção de diferenciação do regime legal aplicável na revisão da pensão por acidentes de trabalho consoante estes tenham ocorrido antes ou depois de 1 de janeiro de 2010 poderia colocar a questão de constitucionalidade atinente à aplicação do princípio da igualdade na sucessão de regimes jurídicos. Na apreciação dessa questão, o Tribunal Constitucional tem reiterado o entendimento de que o princípio da igualdade não opera diacronicamente, pelo que não será em regra aplicável a fenómenos de sucessão de leis no tempo (vide entre outros, os Acórdãos n.os 43/88, 309/93, 99/2004, 188/2009, 3/2010, 260/2010 e 398/2011, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, tal como os restantes Acórdãos do Tribunal Constitucional citados de ora em diante; vide ainda, a Decisão Sumária n.º 265/2013, disponível no mesmo sítio, que não julgou inconstitucional o n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127, de 3 de agosto de 1965, na interpretação de que o direito à revisão da pensão com fundamento em agravamento das lesões caduca se tiverem passado dez anos, contados da última revisão, não obstante o disposto na Lei n.º 98/2009).
12. Afirmar que o princípio da igualdade não opera diacronicamente, significa que a mera sucessão de leis no tempo não afeta, só por si, aquele princípio. Com efeito, «apesar de uma alteração legislativa poder operar uma modificação do tratamento normativo em relação a uma mesma categoria de situações, implicando que realidades substancialmente iguais possam ter soluções diferentes, isso não significa que essa divergência seja incompatível com a Constituição, visto que ela é determinada, à partida, por razões de política legislativa que justificam a definição de um novo regime legal. Visando as alterações legislativas conferir um tratamento diferente a determinada matéria, a criação de situações de desigualdade, resultantes da aplicação do quadro legal revogado e do novo regime, é inerente à liberdade do legislador do Estado de Direito alterar as leis em vigor, no cumprimento do seu mandato democrático» (Acórdão n.º 398/11, do Plenário deste Tribunal).
Também no Acórdão n.º 260/2010 (tirado em matéria de acidentes de trabalho), se pode ler que «o legislador não está impedido de, através de uma alteração legislativa, poder operar uma modificação do tratamento jurídico de uma mesma categoria de situações, implicando que realidades substancialmente iguais passem a ter tratamento diferente, pois isso não significa que essa divergência seja incompatível com a Constituição, desde que seja determinada por justificadas razões de política legislativa. Visando a alteração legislativa conferir um tratamento diferenciado a determinada matéria, a ocorrência de situações de desigualdade, resultante da aplicação do novo regime em face do quadro legal revogado, é inerente à liberdade do legislador de alterar as leis em vigor. Daí que, conforme tem referido o Tribunal Constitucional, o princípio da igualdade não opere diacronicamente (Acórdãos n.º 34/86, em AcTC, 7.º vol., pág. 42, n.º 43/88, em AcTC, 11.º vol, pág. 565, n.º 309/93, em AcTC, 24.º vol., pág. 185). Na determinação do conteúdo das normas que disciplinam a sucessão de leis no tempo é, em suma, reconhecida ao legislador uma apreciável margem de liberdade no que respeita ao estabelecimento do marco temporal relevante para a sucessão de regimes. Quando se diz que o princípio da igualdade não opera diacronicamente, quer-se significar que apenas através do princípio da proteção da confiança, associado às exigências da proporcionalidade, é que a igualdade tem proteção diacrónica, e que apenas se abrangem as desigualdades resultantes de aplicação do mesmo regime legal durante a sua vigência, mas já não quando, após a entrada em vigor da nova lei, o legislador restringe a sua aplicação a determinadas situações, sem que se vislumbre fundamento razoável para essa distinção. Neste último caso, o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição, imporá um juízo de censura constitucional sobre essa opção (…)» (no mesmo sentido, vide Acórdãos n.os 203/86, 12/88, 407/2010 e 398/2011). Por outras palavras, «a fixação do tempo de aplicação de uma norma [pode] brigar com o princípio da igualdade se houver tratamentos desiguais para situações iguais e sincrónicas» (vide Acórdão n.º 34/86).
13. Não foi, todavia, na recusa de aplicação da norma que delimita a aplicação no tempo do novo regime legal estabelecido para a revisão de pensões por acidentes de trabalho que o tribunal recorrido fundou a sua decisão.
A decisão recorrida não questiona a constitucionalidade da norma que dispõe sobre a aplicação no tempo do novo regime (artigo 187.º da Lei n.º 98/2009). Antes cinge a recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, ao n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127, e mais precisamente ainda ao segmento daquele preceito legal em que se estatui que a revisão só poderá ser requerida dentro dos dez anos posteriores à data da fixação da pensão.
d) A jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127
14. Na base do recurso está o entendimento perfilhado pela decisão recorrida, segundo o qual as decisões do Tribunal Constitucional que não julgaram inconstitucional o n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127, designadamente os Acórdãos n.os 155/2003, 612/2008 e 219/2012, “brigam” com o atualmente disposto na Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, que entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2010 (cf. artigo 188.º do diploma). Com efeito – sempre de acordo com a decisão recorrida –, dispondo o n.º 3 do artigo 70.º desta lei que a revisão pode ser requerida uma vez em cada ano civil e decorrendo do n.º 1 do artigo 187.º que esta regra se aplica a acidentes de trabalho ocorridos após a entrada em vigor da mesma lei, o direito de requerer a revisão deixou de estar condicionado ao limite máximo de dez anos relativamente aos acidentes ocorridos após 1 de janeiro de 2010.
Não existindo justificação suficiente e razoável para o tratamento diferenciado dos sinistrados em função da data da ocorrência do acidente de trabalho – antes ou depois de 1 de janeiro de 2010 – o n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127 viola o princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição), acabando por ofender também o direito de justa reparação consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa.
15. A questão da conformidade constitucional da fixação de limites temporais para o exercício do direito à revisão da incapacidade, com a consequente revisão da pensão por acidentes de trabalho, não é nova na jurisprudência constitucional, como se dá notícia no acórdão recorrido.
O Tribunal Constitucional tem sido chamado a pronunciar-se sobre a conformidade constitucional da norma que constitui objeto deste recurso.
Como sumariado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 219/2012:
«Nos Acórdãos n.ºs 147/06, 59/07 e 161/09, bem como nas Decisões Sumárias n.ºs 390/08, 470/08 e 36/09 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal julgou inconstitucional, por violação do direito do trabalhador à justa reparação quando vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, a citada norma do nº2 da Base XXII da Lei nº 2127, de 3 de agosto de 1965, interpretada no sentido de consagrar um prazo absolutamente preclusivo de 10 anos [destaque aditado], contados a partir da fixação inicial da pensão, para a revisão da pensão devida ao sinistrado com fundamento em agravamento superveniente das lesões sofridas. No mesmo sentido e pelas mesmas razões, o Acórdão nº 548/09, julgou inconstitucional, a norma do nº 2 do artigo 25.º da Lei nº 100/97, de 13 de setembro.
Diverso foi o sentido da decisão proferida nos Acórdãos n.ºs 155/03 e 612/08, bem como no Acórdão n.º 271/2010 (este incidindo sobre norma extraída de preceito legal similar no domínio das relações jurídicas de emprego público, o artigo 24.º, n.º 1, da Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, relativa aos chamados “acidentes em serviço”). Mas sem contradição, porque a dimensão aplicativa concreta apreciada em cada um dos referidos conjuntos de acórdãos divergia quanto a um elemento essencial: terem ou não ocorrido 10 anos entre a anterior fixação da pensão e o pedido de revisão considerado.
Na verdade, os Acórdãos nºs 155/03 e 612/08 dizem respeito a casos em que não tinham sido formulados quaisquer pedidos de revisão de pensão dentro do prazo de 10 anos desde a fixação da pensão inicial. Já as demais decisões – com exceção do acórdão n.º 161/09, cuja ratio decidendi se explicará de seguida – respeitavam a situações que tinham em comum o facto de, desde a fixação inicial da pensão e o termo do prazo de 10 anos, ter ocorrido alguma atualização da pensão, por se ter dado como provado o agravamento das lesões sofridas pelo sinistrado. Em todos estes casos foi, pois, determinante a não estabilização, no período de tempo de 10 anos, da situação de incapacidade resultante do acidente de trabalho (…)».
Depois de se explicar que no Acórdão n.º 161/2009 foi determinante o aparecimento na situação clínica do sinistrado de um elemento “singular” (cirurgia, a cargo da seguradora, cuja possibilidade de execução derivara da evolução de técnicas médicas inexistentes à data do acidente) que afastou, de modo irrecusável, a presunção de estabilização da situação de incapacidade resultante do acidente, conclui-se ainda no Acórdão n.º 219/2012:
«o entendimento do Tribunal Constitucional é o de que o legislador dispõe de alguma margem de conformação na concretização do direito à justa reparação por acidentes de trabalho e doenças profissionais, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Lei Fundamental e de que não se reveste de flagrante desrazoabilidade o aludido prazo de 10 anos, decorridos sobre a data da fixação da pensão, quando não se tenha registado qualquer evolução justificadora de pedido de revisão nesse período. Isto porque, de acordo com a experiência médica, a ocorrência de agravamentos (ou de melhorias) tem maior incidência no período inicial, tendendo a situação a estabilizar com o decurso do tempo. Assim, o prazo legal de 10 anos, revela-se, na generalidade e segundo a normalidade das coisas, um prazo suficientemente dilatado para permitir considerar como consolidada a situação clínica do sinistrado. Num regime que globalmente é mais favorável ao sinistrado do que o regime geral de responsabilidade civil (v.gr., promoção oficiosa do procedimento, caráter objetivo da responsabilidade, irrelevância da contribuição do lesado para o acidente que não se traduza em culpa grosseira) não é incompatível com o direito à “justa reparação” a ponderação de razões de segurança jurídica e a limitação da revisibilidade pelo decurso de um período de tempo inferior ao prazo geral de prescrição».
16. Verifica-se, assim, que de acordo com a jurisprudência desenvolvida pelo Tribunal Constitucional o facto de haver um prazo para o pedido de revisão da pensão, por si só, não viola o direito à pensão por acidente de trabalho. Não existe qualquer imposição constitucional no sentido de dever ser ilimitada a possibilidade de revisão das pensões por acidente de trabalho. Pelo contrário, o entendimento do Tribunal é o de que o legislador dispõe de margem de conformação na concretização do direito à justa reparação por acidentes de trabalho e doenças profissionais consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, não se afigurando como desrazoável a fixação de um prazo para o pedido de revisão da pensão.
Mais se considerou que um prazo de 10 anos se apresenta como suficientemente lato para permitir a manifestação de hipotéticos agravamentos das lesões.
Para este entendimento concorreu também a «verificação da experiência médica quotidiana de que os agravamentos como as melhorias têm uma maior incidência nos primeiros tempos (daí a fixação dos dois anos em que é possível requerer mais revisões), decaindo até decorrer um maior lapso de tempo (que o legislador fixou generosamente em dez anos)», como lembrado é no Acórdão n.º 612/2008, por referência a Carlos Alegre, Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais, Coimbra, 2000, p. 128.
e) Apreciação da questão de constitucionalidade colocada pela decisão recorrida
17. A questão de constitucionalidade colocada, tal como decorre da decisão recorrida, não se reconduz, todavia, à verificação de um limite temporal, em si mesmo considerado, para requerer a revisão da pensão, objeto da jurisprudência proferida pelo Tribunal Constitucional concernente à previsão legal daquele limite, referida anteriormente. Aliás, a decisão recorrida faz expressa menção a essa jurisprudência.
A questão colocada pelo tribunal a quo incide antes em saber se «em face do determinado na Lei n.º 98/2009 a interpretação que tem sido feita da Base XXII, n.º 2 da Lei 2127 é agora inconstitucional por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa», como expressamente identifica a decisão proferida. E é por concluir pela violação daquele princípio, designadamente por não encontrar justificação suficiente e razoável no princípio da não retroatividade da lei, para a diferença de tratamento de situações idênticas resultante da sucessão legislativa introduzida pela Lei n.º 98/2009, que, a final, se considera de algum modo também ofendido o direito de justa reparação consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição.
18. Ora, ao identificar a violação do princípio da igualdade, exclusivamente na dualidade de regimes vigentes no que respeita à existência, ou não, de prazo limite para o pedido de revisão de pensões devidas por acidentes de trabalho ocorridos antes e depois de 1 de janeiro de 2010, resultante da sucessão legislativa verificada, a decisão recorrida enferma de alguns problemas de fundo.
Desde logo, a decisão não procede a uma análise global dos dois regimes, ignorando outros aspetos relevantes na compreensão do seu alcance como, por exemplo, a possibilidade prevista apenas no regime definido até 2010, de solicitação de duas revisões por ano, nos dois primeiros anos subsequentes à data da fixação da pensão.
Para além disso, se tomarmos na devida consideração a jurisprudência do Tribunal Constitucional, já acima enunciada, a diferença nos regimes legais em confronto nem se encontra propriamente na previsão, na Base XXII, de um prazo limite para requerer a revisão, antes na previsão de um prazo (de dez anos) cujo decurso, sem que a pensão tenha sofrido qualquer revisão por alteração da incapacidade do sinistrado, preclude a apresentação de novos pedidos.
19. De qualquer forma, pode referir-se que o tratamento diferente, resultante da sucessão de regimes legais, de situações jurídicas que, por se prolongarem no tempo, se apresentam como sincronicamente iguais, pode encontrar justificação noutra ordem de razões. E é neste ponto que reside o maior problema suscitado pelo juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida. Com efeito, esta fundou o juízo de inconstitucionalidade numa aplicação do princípio da igualdade, ignorando eventuais razões justificadoras da restrição do âmbito de aplicação do novo regime a qual, de resto, nem sequer resulta da norma cuja aplicação foi recusada (mas sim da norma contida no artigo 187.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009).
De facto, como todos os princípios fundamentais, também o princípio da igualdade sofre a força inibidora de outros princípios gerais aplicáveis à situação. Importa, assim, analisar se a diferença assinalada encontra ainda justificação em alguma outra ordem de razões a que a Constituição também manda atender.
20. Desde logo, decorre do princípio do Estado de Direito democrático a possibilidade de o legislador, no exercício da sua liberdade de conformação, alterar o regime de reparação de acidentes de trabalho. Foi o que ocorreu quando, em 2009, foi eliminado o limite de dez anos que então valia para a revisão de pensões por acidente de trabalho (n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127), estabelecendo a regra da revisão a todo o tempo das prestações (n.º 3 do artigo 70.º da Lei n.º 98/2009). O legislador restringiu, porém, a aplicação desta regra aos acidentes de trabalho ocorridos após 1 de janeiro de 2010 (artigos 187.º, n.º 1, e 188.º da Lei n.º 98/2009). E ao fazê-lo introduziu uma diferença no tratamento dos sinistrados em função da data de ocorrência do acidente de trabalho: para acidente de trabalho ocorrido antes de 1 de janeiro de 2010 continua a valer o limite de dez anos estabelecido no n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 98/2009; para acidente ocorrido depois desta data vale a regra da revisão a todo o tempo.
21. Diferentemente do que foi entendido na decisão recorrida existe, porém, fundamento razoável para a diferenciação do campo de aplicações dos dois regimes vigentes, em função da data de ocorrência do acidente de trabalho. Existem razões de segurança jurídica a acautelar.
Sendo dedutível do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição), o princípio geral da segurança jurídica não deixa de ser reconhecido como um «princípio essencial na Constituição material do Estado de Direito» (JORGE REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, p. 261.), tendo o indivíduo «o direito de poder confiar em que aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos por essas mesmas normas» (J.J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 1998, p. 250).
O Tribunal Constitucional, no Acórdão do n.º 574/98, referiu a este propósito que:
“a proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica na atuação do Estado obriga este, para que a vida em comunidade decorra com normalidade e sem sobressaltos, à garantia de um mínimo de certeza e de segurança do direito das pessoas e das expectativas que lhes são juridicamente criadas, pelo que uma alteração legislativa que modifique de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva aqueles mínimos de certeza e segurança que devem ser respeitados não pode deixar de contender com tal princípio constitucional.
O cidadão deve poder prever que as intervenções legislativas do Estado se façam segundo uma certa lógica racional e por forma a que ele se possa preparar para adequar a sua futura atuação a tais intervenções e de tal modo que uma tal atuação possa ser reconhecida na ordem jurídica e tenha os efeitos e consequências que são previsíveis face à decorrência lógica da modificação realizada”.
22. Ora, a solução propugnada pela decisão recorrida conduziria necessariamente à possibilidade de fazer renascer situações passadas e definitivamente consolidadas na ordem jurídica, colocando em causa o referido princípio da segurança jurídica. De facto, admitir esse “renascimento” apenas porque o legislador, na sua liberdade de conformação, decidiu legislar de forma diferente para o futuro, é algo que afeta intoleravelmente a segurança das relações jurídicas.
Como bem observa o Ministério Público nas alegações produzidas, também as expetativas do responsável pelo pagamento da pensão merecem tutela.
O regime de reparação por acidentes de trabalho decorre da lei, mas a relação jurídica que conduz à reparação pelo acidente de trabalho por uma empresa seguradora resulta do contrato de seguro celebrado. É pela celebração deste negócio jurídico que a entidade empregadora transfere a sua responsabilidade para uma seguradora, acordando ambas as partes as condições e termos da efetivação pela última de uma prestação ao trabalhador sinistrado, caso se verifique a condição de que depende a cobertura. Como contrapartida, a entidade empregadora obriga-se a pagar o prémio de seguro igualmente acordado. Ora, para a estipulação do valor deste prémio concorre naturalmente a apreciação do risco seguro e este é necessariamente condicionado pelo regime legal em vigor. É violador do princípio da segurança que a seguradora seja confrontada com a realização dum exame de revisão da incapacidade, quando se trata dum acidente de trabalho com incapacidade permanente fixada há mais de dez anos, o que face ao regime legal vigente acarretou a extinção do direito de requerer tal revisão. Tanto mais quando a norma em questão passou sempre, neste Tribunal, o teste da constitucionalidade.
A prevalência do princípio da segurança jurídica não é, no entanto, absoluta, No Acórdão n.º 161/2009, o Tribunal Constitucional, face ao aparecimento na situação clínica do sinistrado de um elemento “singular” (cirurgia, a cargo da seguradora, cuja possibilidade de execução derivara da evolução de técnicas médicas inexistentes à data do acidente) que foi considerado determinante, afastou, a presunção de estabilização da situação de incapacidade resultante do acidente.
23. Conforme referido no Acórdão n.º 398/2011, já citado:
«Apesar de uma alteração legislativa poder operar uma modificação do tratamento normativo em relação a uma mesma categoria de situações, implicando que realidades substancialmente iguais passem a ter soluções diferentes, isso não significa que essa divergência seja incompatível com a Constituição, visto que ela é determinada, à partida, por razões de política legislativa que justificam a definição de um novo regime legal. Visando as alterações legislativas conferir um tratamento diferente a determinada matéria, a criação de situações de desigualdade, resultantes da aplicação do quadro legal revogado e do novo regime, é inerente à liberdade do legislador do Estado de Direito alterar as leis em vigor, no cumprimento do seu mandato democrático. Daí que, conforme tem referido o Tribunal Constitucional, o princípio da igualdade não opere diacronicamente (…). São as normas de conflitos que, numa situação de sucessão de leis, determinam qual o âmbito de aplicação no tempo da nova lei (…). Na determinação do conteúdo destas normas é reconhecida ao legislador uma apreciável margem de liberdade quanto ao estabelecimento do marco temporal relevante para aplicação do novo e do velho regime legal. Contudo, o critério escolhido terá que respeitar não só o princípio constitucional da segurança jurídica e da proteção da confiança, de modo a não violar direitos adquiridos ou frustrar expectativas legítimas, sem fundamento bastante, assim como também não poderá resultar na criação de desigualdades arbitrárias na aplicação da nova lei, após ela ter entrado em vigor».
Assim, a ponderação entre o princípio da igualdade e o princípio da segurança jurídica, em situação de confronto entre si resultantes da alteração de regimes jurídicos, deve ser feita pelas normas instrumentais de conflitos, nomeadamente as normas transitórias. É neste âmbito que, visando precisamente garantir a segurança nas relações jurídicas entre sinistrado e entidade responsável pelo pagamento da pensão, a norma constante do artigo 187.º, n.º 1 da Lei n.º 98/2009, veio estabelecer que o novo regime de revisão das pensões só vigora para os acidentes ocorridos após a publicação da lei que eliminou o limite de prazo para o efeito.
No entanto, o juízo de censura constitucional do juiz a quo não incidiu sobre o regime transitório, mas sobre o regime material. Ora, relativamente a este último não se encontra motivo de censura, na linha da jurisprudência constitucional citada.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional o n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127, de 3 de agosto de 1965, na parte em que estatui que a revisão só poderá ser requerida dentro dos dez anos posteriores à data da fixação da pensão (na interpretação seguida pelo Tribunal Constitucional), e em consequência,
b) Conceder provimento ao recurso.
Lisboa, 12 de fevereiro de 2014.- Maria de Fátima Mata-Mouros – José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Maria João Antunes (vencida, de acordo com declaração anexa) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei no sentido da inconstitucionalidade do n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, na parte em que estatui que a revisão só poderá ser requerida dentro dos dez anos posteriores à data da fixação da pensão, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
1. A Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, entrada em vigor no dia 1 de janeiro de 2010 (cf. artigo 188.º do diploma), veio regulamentar, entre o mais, o regime de reparação de acidentes de trabalho, nos termos do artigo 284.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro. Um dos aspetos expressamente salientados na Exposição de motivos do Projeto de Lei apresentado na Assembleia da República foi, precisamente, a eliminação da regra que determina que a pensão por acidente de trabalho só pode ser revista nos 10 anos posteriores à sua fixação, passando a permitir-se a sua revisão a todo o tempo, tal como já sucede no regime da reparação de doenças profissionais (cf. Projeto Lei n.º 786/X/4.ª).
À redação do n.º 3 do artigo 70.º, que permite a revisão a todo o tempo, com o limite de ser requerida uma vez em cada ano civil, não correspondeu, porém, a revogação do n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127, que estabelece o limite de dez anos. Pelo contrário, a opção foi antes a de o novo regime valer apenas para os acidentes de trabalho ocorridos depois da entrada em vigor da Lei n.º 98/2009 (cf. artigos 187.º, n.º 1, e 188.º). E é esta opção que coloca a questão de constitucionalidade que este acórdão decidiu – a de saber se, assim sendo, é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a norma segundo a qual a revisão só poderá ser requerida dentro dos dez anos posteriores à data da fixação da pensão, norma que integra o regime da reparação de acidentes de trabalho ocorridos antes de 1 de janeiro de 2010.
2. O Tribunal tem reiterado o entendimento de que o princípio da igualdade não opera diacronicamente, pelo que não será em regra aplicável a fenómenos de sucessão de leis no tempo (entre outros, Acórdãos n.ºs 43/88, 309/93, 99/2004, 188/2009, 3/2010, 260/2010 e 398/2011, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.).
Lê-se no Acórdão n.º 260/2010 que «o legislador não está impedido de, através de uma alteração legislativa, poder operar uma modificação do tratamento jurídico de uma mesma categoria de situações, implicando que realidades substancialmente iguais passem a ter tratamento diferente, pois isso não significa que essa divergência seja incompatível com a Constituição, desde que seja determinada por justificadas razões de política legislativa. Visando a alteração legislativa conferir um tratamento diferenciado a determinada matéria, a ocorrência de situações de desigualdade, resultante da aplicação do novo regime em face do quadro legal revogado, é inerente à liberdade do legislador de alterar as leis em vigor». Mas mais se salienta que quando se diz que o princípio da igualdade não opera diacronicamente quer-se significar, por um lado, que a igualdade tem proteção diacrónica apenas por via do princípio da proteção da confiança e, por outro, «que apenas se abrangem as desigualdades resultantes de aplicação do mesmo regime legal durante a sua vigência, mas já não quando, após a entrada em vigor da nova lei, o legislador restringe a sua aplicação a determinadas situações, sem que se vislumbre fundamento razoável para essa distinção. Neste último caso, o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição, imporá um juízo de censura constitucional sobre essa opção» (no mesmo sentido, Acórdãos n.ºs 203/86, 12/88, 407/2010 e 398/2011, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Por outras palavras, a fixação do tempo de aplicação de uma norma poderá brigar com o princípio da igualdade se houver tratamentos desiguais para situações iguais e sincrónicas (cf. Acórdão n.º 34/86, disponível no mesmo sítio).
3. Em 2009, no exercício da sua liberdade de conformação em matéria de regime de reparação de acidentes de trabalho, o legislador eliminou o limite de dez anos que então valia para a revisão de pensões por acidente de trabalho (n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127), estabelecendo a regra da revisão a todo o tempo das prestações (n.º 3 do artigo 70.º da Lei n.º 98/2009). Restringiu, porém, a aplicação desta regra aos acidentes de trabalho ocorridos após 1 de janeiro de 2010 (artigos 187.º, n.º1, e 188.º da Lei n.º 98/2009). E ao fazê-lo diferenciou os sinistrados em função da data de ocorrência do acidente de trabalho: para acidente de trabalho ocorrido antes de 1 de janeiro de 2010 continua a valer o limite de dez anos estabelecido no n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 98/2009; para acidente ocorrido depois desta data vale a regra da revisão a todo o tempo.
Não vislumbramos, porém, um fundamento razoável para esta diferenciação em razão da data de ocorrência do acidente de trabalho. Aliás, para o legislador não foi indiferente a circunstância de a revisão a todo o tempo valer já no regime de reparação de doenças profissionais, tendo sido sua intenção não distinguir deste regime o de reparação de acidentes de trabalho. Por outro lado, a alteração do limite temporal até então vigente em matéria de revisão de pensões ter-se-á fundado em razões que valem independentemente da data de ocorrência do acidente de trabalho. Ter-se-á fundado no entendimento de que não é de presumir, afinal, a consolidação do juízo sobre o grau de desvalorização funcional do sinistrado se, decorridos dez anos sobre a data da fixação da pensão (ou sobre a data que a tenha alterado), não se tiver registado qualquer evolução justificadora de um pedido de revisão.
Desrespeitando a proibição do arbítrio, o legislador criou um tratamento desigual para situações iguais e sincrónicas que não é materialmente fundado, o que acarreta o juízo de inconstitucionalidade da norma apreciada. Em nossa opinião, este entendimento não é contrariado quando contrapomos ao direito consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição o princípio da segurança jurídica que é dedutível do artigo 2.º da Constituição.
Maria João Antunes