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Processo n.º 566/13
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo Sul, A. e outros vieram interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alíneas b) e f) da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações subsequentes (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada LTC).
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se o seguinte:
“(…) Nos termos do artigo 75.º-A da LTC, o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional deve indicar a alínea do n.º 1 do artigo 70.º ao abrigo da qual o recurso é interposto.
Não obstante os recorrentes mencionarem, além da alínea b), igualmente a alínea f), não se vislumbra que a respetiva previsão normativa tenha qualquer relação com a concreta situação dos autos. Na verdade, é manifesto que o presente recurso não se baseia em qualquer aplicação de norma, relativamente à qual haja sido suscitada a ilegalidade, por violação de lei com valor reforçado ou do estatuto da região autónoma, nem mesmo se baseia na aplicação de qualquer norma constante de diploma regional, alegadamente violadora de lei geral da República ou ainda de estatuto de uma região autónoma.
Resta-nos, pois, a apreciação do presente recurso, à luz da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
(…) Enquadrando-se a situação sub judice no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, é caso de proferir decisão sumária, termos em que se passa a decidir.
(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
(…) Começando por analisar o pressuposto da suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo, diremos que, nos termos do artigo 72.º, n.º 2, da LTC, o presente recurso apenas seria admissível se os recorrentes tivessem cumprido o ónus de suscitação prévia da exata e específica questão de inconstitucionalidade que pretendem agora ver apreciada em sede de recurso de constitucionalidade, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria.
Era indispensável, neste âmbito, uma precisa delimitação e especificação do objeto de recurso – necessariamente, de natureza normativa, e por isso depurado das concretas circunstâncias casuísticas - e uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que incluísse a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido, de modo a tornar exigível que o tribunal a quo se apercebesse e se pronunciasse sobre a questão jurídico-constitucional, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr. v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 708/06 e 630/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
No presente caso, em sede de reclamação para o Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul – peça processual em que os recorrentes deveriam ter suscitado ou renovado a suscitação da questão de constitucionalidade, que pretendessem erigir como objeto de ulterior recurso de constitucionalidade – os recorrentes limitaram-se à alusão de que “É deste despacho [que não admitiu o recurso para aquele tribunal] que se reclama (…) por a interpretação nele seguida ser manifestamente inconstitucional, por atentar contra princípios do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 268.º, n.º 4 da CRP e seus corolários ao nível dos princípios derivados de confiança e estabilidade e acesso ao direitos e justiça vertidos nos artigos 2.º e 20.º da CRP.”
Sem nunca densificar a interpretação normativa que agora pretendem ver apreciada e auxiliando-se de jurisprudência dissonante da interpretação levada a cabo pelo tribunal a quo concluíram que “Perante a contradição no texto da decisão entre a qualificação dada de “sentença” e a invocação do art. 27.º, n.º 1 do CPTA, não pode deixar de se admitir o recurso jurisdicional tempestivamente interposto pelos ora reclamantes, sob pena de ser posta em causa a garantia jurisdicional efetiva, prevista no art. 268.º, n.º 4, o direito de acesso ao direito e à justiça previsto no art. 20.º, e de ser posto em causa os ditames do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 2.º, todos da CRP”.
Neste contexto, a referência à violação de normas ou princípios constitucionais apenas surge enquanto vício do concreto ato impugnado e não como decorrência de um determinado e preciso critério normativo, que aos recorrentes incumbiria autonomizar e enunciar.
Nestes termos, não tendo os recorrentes enunciado, previamente, de forma clara e adequada, perante o tribunal a quo, uma específica questão de constitucionalidade - atinente a uma interpretação normativa, extraída do artigo 27.º, n.º 1, alínea i) e n.º 2 do CPTA, autonomizando tal questão das concretas circunstâncias do caso de forma a criar para o tribunal a quo um específico dever de pronúncia - ficou definitivamente prejudicada a possibilidade de virem, ulteriormente, interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
Por conseguinte, não tendo os recorrentes cumprido um dos pressupostos de admissibilidade do recurso, atenta a sua necessária verificação cumulativa, mostra-se ociosa a apreciação dos restantes, concluindo-se, desde já, pela inadmissibilidade do recurso e consequente não conhecimento do respetivo objeto.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
3. Manifestam os reclamantes a sua discordância, relativamente ao teor da decisão sumária, invocando que cumpriram o ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, que pretendem ver apreciada, perante o tribunal a quo.
Para fundamentarem a sua posição, argumentam que, no artigo 4.º da reclamação para o Tribunal Central Administrativo Sul, suscitaram a exata e específica questão de constitucionalidade, densificando a sua explanação nos artigos 16.º a 24.º da mesma peça processual.
Acrescentam que, de tais referências, resulta o cumprimento do ónus de suscitação da desconformidade da interpretação das normas indicadas com a Lei Fundamental, tendo tal suscitação sido feita de modo direto, explícito e percetível, através da indicação das disposições legais em que assenta a interpretação posta em crise.
Explicitam que a questão de constitucionalidade, que pretendem ver apreciada, consubstancia-se na interpretação da norma extraída do artigo 27.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, em qualquer um dos seguintes sentidos:
a) sentido de «considerar que, apesar de o tribunal apelidar o seu ato de sentença e essa ser uma decisão de mérito que remete para um regime de recurso jurisdicional, entender o tribunal superior que a qualificação dada não estava correta, e que, como tal, a reação jurisdicional dessa não se poderia ter conformado com a qualificação que o próprio tribunal havia dado»;
b) «sentido de que, não obstante o tribunal designar a decisão como sentença, a mesma é insuscetível de recurso, já que proferida por juiz singular (relator) com invocação da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º do CPTA, com o que era obrigatório o uso de reclamação para a conferência, sendo irrelevante a qualificação que o tribunal emissor da decisão dá à mesma, mais considerando que sob o termo “despacho” constante do n.º 2 do art. 27.º do CPTA também se integram por interpretação extensiva as “sentenças”».
Concluem, deste modo, que, tendo cumprido o ónus previsto no n.º 2 do artigo 72.º da LTC, deve o recurso interposto ser admitido.
O reclamado optou por não apresentar resposta.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
4. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos pelos reclamantes não infirmam a correção do juízo efetuado na decisão sumária proferida.
Na verdade, os reclamantes insurgem-se contra a circunstância de se ter considerado que não suscitaram previamente, perante o tribunal a quo, uma questão de constitucionalidade normativa, reportada ao artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Porém, analisada a reclamação, especificamente os seus artigos 4.º e 16.º a 24.º, constata-se que os reclamantes começam por referir que o despacho reclamado viola vários preceitos infraconstitucionais, não detendo “qualquer apoio na letra da lei”, concluindo que a interpretação nele seguida – que não enunciam ou especificam – é inconstitucional. Citando o conteúdo de um determinado acórdão, pretendem, de seguida, os reclamantes que se considere que tal citação contém a enunciação de uma questão normativa, suscetível de constituir objeto idóneo de ulterior recurso de constitucionalidade.
Não lhes assiste, porém, razão.
Na verdade, não pode considerar-se como enunciação de um critério normativo, extraível do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, a afirmação de que “é uma aplicação inconstitucional do n.º 2 do art. 27.º CPTA e da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º CPTA, aplicar os mesmos no sentido de considerar que apesar de um Tribunal apelidar certo ato seu de sentença e essa ser uma decisão de mérito que remete para um regime de recurso jurisdicional, entender um Tribunal superior que a qualificação dada não estava, afinal, correta e que como tal, as reações jurisdicionais dessas não se poderiam ter conformado com essa qualificação que os próprios tribunais haviam dado”.
Aliás, sintomaticamente, o que aí se refere como inconstitucional é a atividade de “aplicação” de determinado preceito a um caso concreto, com determinadas caraterísticas, e não a específica interpretação do mesmo.
A esse propósito, refere o Acórdão n.º 633/08 do Tribunal Constitucional (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) o seguinte:
“(…) sendo o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas, que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação direta de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efetuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao ato judicial de “aplicação” a violação (direta) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efetuado in concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida, cabendo ao recorrente, como se disse, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, o ónus de suscitar o problema de constitucionalidade normativa num momento anterior ao da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (…)”.
Nestes termos, conclui-se que impendia sobre os recorrentes o ónus de autonomizarem e enunciarem um verdadeiro critério normativo – enquanto regra abstrata vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica – correspondente a um dos sentidos extraíveis da literalidade do preceito indicado. Acresce que tal enunciação deveria ser apresentada em termos tais que o Tribunal Constitucional, no caso de concluir pela sua inconstitucionalidade, pudesse reproduzir tal enunciação, de modo a que os respetivos destinatários e operadores do direito em geral ficassem cientes do concreto sentido normativo julgado desconforme com a Lei Fundamental.
Ora, não tendo os reclamantes conseguido cumprir tal ónus, não enunciando, perante o tribunal a quo, um verdadeiro critério normativo, extraível do preceito legal identificado, depurado de quaisquer referências casuísticas, ficou prejudicada a admissibilidade do recurso.
Pelo exposto, sendo certo que a fundamentação aduzida na decisão reclamada merece a nossa concordância, damos a mesma por reproduzida e, em consequência, concluímos pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III – Decisão
5. Assim, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 1 de outubro de 2013, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 13 de fevereiro de 2014. – Catarina Sarmento e Castro – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral.