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Processo n.º 141/13
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal, ora recorrente, foi condenada, por decisão do Tribunal Judicial da Figueira da Foz de 30 de setembro de 2011 (fls. 1 e seguintes), no pagamento, a título de indemnização e compensação por danos, de diversas quantias a A. e outros, ora recorridos.
Inconformada com tal sentença, interpôs recurso de apelação da mesma. Este recurso não foi admitido com fundamento em extemporaneidade (cfr. o despacho de fls. 123 e seguintes). A Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal reclamou deste despacho para o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra (fls. 130 e seguintes).
Por despacho de 11 de dezembro de 2012, o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra indeferiu a reclamação, mantendo a decisão de não admissão do recurso (fls. 150 e seguintes).
A recorrente apresentou então o requerimento de fls. 158 e seguintes, invocando a «aplicação analógica do artigo 700.º, n.º 3, do CPC», pedindo que sobre a matéria da (in)admissibilidade do recurso fosse proferido um acórdão. Invocou igualmente a inconstitucionalidade do «segmento do artigo 700.º, n.º 3, do CPC na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de setembro, em que se lê ‘salvo o disposto no artigo 688.º…’ (…) por violação dos artigos 13.º, 20.º, e 202.º da C.R.P., quando interpretado no sentido de excluir a sindicabilidade [d]a reclamação prevista no artigo 688.º junto de um órgão coletivo».
Por despacho de 18 de janeiro de 2013, o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra indeferiu o referido requerimento. Tomando conhecimento da questão de constitucionalidade suscitada, concluiu no sentido de a mesma não ser procedente, considerando não existir qualquer violação dos parâmetros fundamentais invocados pela recorrente (cfr. fls. 184 e seguintes).
2. É na sequência deste despacho que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (adiante referida como “LTC”), para apreciação dos «artigos 700.º, n.º 3 e 689.º, n.º 2, primeira parte, do C.P.C., na redação aplicável (…) quando interpretados no sentido de excluir a sindicabilidade da reclamação prevista no artigo 688.º junto de um órgão coletivo» (cfr. fls. 199), por violação dos princípios da universalidade e da igualdade (artigos 12.º e 13.º da Constituição), do acesso ao direito e do primado da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da Constituição) e, bem assim, do princípio do juiz natural (artigo 202.º da Constituição).
Notificada para alegar, a recorrente concluiu nos seguintes termos:
«1ª
Na sequência do despacho de rejeição do recurso interposto pelo Recorrente, proferido no âmbito dos presentes autos pelo Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, aquele, por aplicação analógica do art. 700º, nº 3 do C.P.C. e por entender que o segmento do mesmo em que se lê “salvo o disposto no art. 688º...”, é inconstitucional quando interpretado no sentido de excluir a sindicabilidade da referida reclamação - ao abrigo do art. 688º - junto de um órgão coletivo - o que, consequentemente, gera igualmente a inconstitucionalidade do art. 689º, nº 2, primeira parte, do C.P.C., por determinar a irrecorribilidade do despacho do presidente do tribunal ao qual, ao abrigo do art. 688º, o recurso é dirigido - deduziu reclamação para a conferência.
2ª
O referido despacho, do qual ora se recorre, negou provimento à pretensão do Recorrente com fundamento na não inconstitucionalidade das normas em relação às quais a mesma foi alegada. Porém, salvo melhor opinião, o referido despacho faz errada interpretação e aplicação da Lei Fundamental. Com efeito:
3ª
Na versão do C.P.C. aplicável ao presente caso, apenas se prevê a possibilidade de o indeferimento do recurso ser objeto de apreciação por um tribunal coletivo, no caso de o mesmo ser proferido pelo juiz relator, por força do art. 700º, nº 3 do C.P.C., ficando excluída essa possibilidade quando é o presidente do tribunal para o qual se recorre que profere essa decisão. Com efeito:
4ª
Mesmo que, ao abrigo do art. 688º do C.P.C., o despacho do Presidente do Tribunal da Relação - no caso de se tratar de um recurso interposto para esse tribunal - seja no sentido de admitir o recurso e ordenar a sua subida, tal não obsta a que o tribunal ao qual o recurso é dirigido - nomeadamente na pessoa do seu relator - decida em sentido contrário (art. 689º, nº 2), tendo sempre o recorrente, nesse caso, a possibilidade de, nos termos do art. 700º, nº 3, requerer que sobre o despacho do relator que rejeite o recurso recaia um acórdão, sendo o caso submetido à conferência.
5ª
Porém, no caso de o presidente do Tribunal da Relação rejeitar o recurso, é vedada ao recorrente a possibilidade de impugnação dessa decisão, ou sujeição da mesma a apreciação por um tribunal coletivo (art. 689º do CP.C.).
6ª
Ou seja, caso o juiz de primeira instância indefira o requerimento de interposição de recurso, ao recorrente apenas é conferida a possibilidade de reclamar para o presidente do tribunal ao qual o mesmo é dirigido, sendo que a decisão deste último não é passível de impugnação (art. 689º do C.P.C.).
7ª
Por outro lado, como se disse, se o juiz de primeira instância admitir o recurso e o mesmo for rejeitado pelo relator, o recorrente tem sempre a possibilidade de requerer que sobre a decisão do deste recaia um acórdão.
8ª
Ora, como se pode verificar, estamos perante um regime que, para além de, arbitrariamente, tratar situações idênticas de diferente forma, atribuindo ao recorrente, relativamente ao mesmo requerimento de interposição de recurso, numa situação, a possibilidade de sindicar a sua pretensão junto de um tribunal coletivo, e noutra, destituindo-o dessa possibilidade, é ainda inconstitucional face às garantias de acesso ao direito, bem como aos princípios do juiz natural e do primado da tutela jurisdicional previstos na Constituição. Com efeito:
9ª
O regime previsto no art. 700º, nº 3 do C.P.C., vigente desde 1996, confere ao recorrente, como se disse, a possibilidade de, no caso de o recurso ser admitido pelo tribunal de primeira instância, mas rejeitado pelo relator ao abrigo do art. 689º, requerer que sobre a referida rejeição recaia um acórdão.
10ª
Assim, ao recorrente, num caso como este último descrito, é sempre assegurada uma dupla jurisdição relativamente ao requerimento de interposição de recurso, bem como a possibilidade de sujeição desse requerimento à apreciação por um tribunal coletivo, sendo que, sem que haja qualquer alteração dos pressupostos de recorribilidade da decisão do juiz a quo, já assim não será no caso de o Presidente do Tribunal da Relação indeferir a reclamação deduzida pelo recorrente, ao abrigo do art. 688º do C.P.C.
11ª
Ora, constituindo o acesso ao direito, consagrado no art. 20º da Constituição, uma garantia de defesa dos interesses e direitos legalmente protegidos dos cidadãos, a possibilidade de rejeição de um recurso interposto perante um tribunal superior só se coadunará com aquele preceito se for garantido ao recorrente que é esse mesmo tribunal, em coletivo - tal como a lei o institui -, o órgão com a última palavra sobre a admissibilidade do recurso.
12ª
Se assim não for - como sucedeu no caso sub judice, porquanto, interposto recurso de apelação, a admissibilidade do mesmo apenas foi apreciada por órgãos singulares -, não estará devidamente garantida à parte processual a possibilidade de recorrer da decisão em causa - sendo certo que se trata de uma decisão que reúne todos os pressupostos de recorribilidade - uma vez que, tal como sucede com a exceção consagrada no nº 3 do art. 700º do C.P.C., o mesmo apenas se poderá socorrer de uma mera reclamação deduzida perante um órgão singular.
13ª
Afirma-se no douto despacho ora recorrido que a garantia de acesso ao direito “consiste no direito a ver solucionados os conflitos, segundo a lei aplicável, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência, e face ao qual as partes se encontrem em condições de plena igualdade, no que diz respeito à defesa dos respetivos pontos de vista, designadamente sem que a insuficiência de meios económicos possa prejudicar tal possibilidade”.
14ª
Não discordando de tal afirmação, a verdade é que as normas cuja inconstitucionalidade ora se suscita impedem que tal direito seja assegurado. Com efeito:
15ª
Ao determinar que a reclamação prevista no referido art. 688º (na versão aplicável ao caso sub judice), apenas pode ser apreciada por uma pessoa que à partida já está determinada - a pessoa que no momento concreto ocupar o cargo de presidente do tribunal para o qual se recorre -, é o próprio regime consagrado que viola, além do princípio do acesso ao direito, o princípio do juiz natural, ínsito na C.R.P., uma vez que o referido preceito determina que todos os requerimentos de interposição de recurso adstritos a uma determinada circunscrição territorial, caso sejam rejeitados, sejam posteriormente apreciados pela mesma pessoa, em sede de uma reclamação que, embora o seja, constitui o último meio ao alcance do Recorrente para ver apreciada a validade do seu requerimento de interposição de recurso, sendo certo que é a própria lei que prevê a possibilidade de, em casos análogos - como no caso de o recurso ser admitido pelo juiz de 1ª instância e, depois de rejeitado pelo relator, ser apreciado pela conferência - tal requerimento ser apreciado por um tribunal coletivo, cujos membros são determinados aleatoriamente.
16ª
Desta forma, a referida exceção que resulta dos arts. 700º, nº 3 e 689º, nº 2, viola, não só o art. 20º da Constituição, mas ainda o princípio do primado da tutela jurisdicional efetiva e o princípio do juiz natural.
17ª
Por outro lado, verifica-se que os referidos arts. 700º, nº 3 e 689º, nº 2, do C.P.C., na versão aplicável ao caso sub judice, são inconstitucionais, não só pelos fundamentos expostos, mas ainda face ao art. 13º da Constituição, por configurarem uma violação do princípio da igualdade, porquanto, se a lei assegura, relativamente à interposição de um recurso, a possibilidade de o requerimento de interposição do mesmo ser apreciado por um tribunal coletivo, deve prever essa admissibilidade em relação a todos os requerimentos que sejam deduzidos em circunstâncias idênticas, não podendo as garantias de recorribilidade do despacho de indeferimento do referido requerimento ser menores apenas pelo facto de esse despacho emanar do juiz de primeira instância e posteriormente ser confirmado pelo presidente do tribunal ao qual o recurso é dirigido, contrariamente ao que aconteceria se o mesmo deferisse o requerimento e o recurso fosse rejeitado pelo juiz relator – igualmente um órgão singular -, prevendo a lei, quando tal acontece – embora, erradamente, apenas no caso descrito – a possibilidade de o recorrente requerer que sobre tal decisão recaia um acórdão.
18ª
É que, em ambos os casos, existem duas decisões sobre a admissibilidade da interposição de recurso proferidas por órgãos singulares, mas apenas num deles é assegurada ao recorrente a possibilidade de sindicar essas decisões junto de um tribunal coletivo, existindo, por outro lado, quanto a este último, uma verdadeira aplicação do princípio do juiz natural.
19ª
Por outro lado, embora se tenha vindo a entender, tal como no douto despacho recorrido, que as normas cuja inconstitucionalidade se questiona resultam da aplicação do princípio da celeridade processual, a verdade é que essa aplicação deveria, em todos os casos, respeitar os princípios constitucionais suprarreferidos.
20ª
Aliás, a possibilidade de recorrer para a conferência, sem qualquer distinção sobre a origem do despacho de indeferimento do requerimento de interposição de recurso, é já a regra geral adotada no C.P.T.A. (art. 27º), na Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (art. 78º-A) e no C.P.P. (art. 417º, nº 8), não se fazendo nestes diplomas qualquer distinção relativamente às garantias de sindicabilidade dos despachos que indefiram o requerimento de interposição de recurso ou fazendo a mesma depender tais garantias do facto de esse despacho ser proferido previamente por um juiz singular.
21ª
Pelo exposto e, salvo melhor opinião, deve entender-se que o segmento do art. 700º, nº 3, do C.P.C., na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro, na parte em que se lê “salvo o disposto no art. 688º...”, bem como o nº 2, primeira parte, do art. 689º, (na versão aplicável ao caso sub judice) são inconstitucionais por violação dos arts. 12º, 20º e 202º da C.R.P., quando interpretados no sentido de excluir a sindicabilidade da reclamação prevista no art. 688º junto de um órgão coletivo e, consequentemente, por aplicação analógica do restante segmento da referida norma, admitir-se que o requerimento previsto no referido art. 700º, nº 3, possa incidir sobre o despacho proferido ao abrigo do art. 688º, igualmente na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro, admitindo-se assim a reclamação para a conferência requerida por parte do Recorrente no âmbito dos presentes autos (rejeitado através do despacho ora recorrido).
Termos em que Vossas Excelências, concedendo provimento ao presente recurso e considerando inconstitucionais os arts. 700º, nº 3, do C.P.C., na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro, na parte em que se lê “salvo o disposto no art. 688º…”, bem como o nº 2, primeira parte, do art. 689º do C.P.C. (na versão aplicável ao caso sub judice), por violação dos arts. 12º, 20º e 202º da C.R.P., quando interpretados no sentido de excluir a sindicabilidade da reclamação prevista no art. 688º junto de um órgão coletivo e, consequentemente, por aplicação analógica do restante segmento da referida norma, considerando que o requerimento previsto no referido art. 700º, nº 3, possa incidir sobre o despacho proferido ao abrigo do art. 688º, igualmente na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro, farão a costumada JUSTIÇA!»
Os recorridos não apresentaram contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A. Delimitação do objeto do recurso
3. O objeto dos presentes autos de fiscalização concreta, tal como foi delimitado pelo recorrente no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, é integrado pelas normas dos artigos 700.º, n.º 3, e 689.º, n.º 2, primeira parte, do Código de Processo Civil, na redação anterior à que foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto – portanto, a redação que resulta do Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de setembro -, “quando interpretadas no sentido de excluir a sindicabilidade da reclamação prevista no artigo 688.º junto de um órgão coletivo”.
Tais disposições apresentam a seguinte redação:
«Artigo 700.º
Funções do relator – Reclamação para a conferência
1 – (…)
2 – (…)
3 – Salvo o disposto no artigo 688.º, quando a parte se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão; o relator deve submeter o caso à conferência, depois de ouvida a parte contrária.
(…)»
(redação do Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de setembro)
«Artigo 689.º
Julgamento da reclamação
1 – (…)
2 – A decisão do presidente não pode ser impugnada, mas, se mandar admitir ou subir imediatamente o recurso, não obsta a que o tribunal ao qual o recurso é dirigido decida em sentido contrário.
(…)»
(redação do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro)
4. O regime legal aplicável traduz-se, essencialmente, nos seguintes aspetos: do despacho proferido pelo tribunal de primeira instância que julgue o recurso inadmissível, cabe reclamação para o presidente do Tribunal da Relação, a qual é decidida por despacho (artigo 688.º). Se este despacho persistir na não admissão do recurso, torna-se definitivo, não cabendo do mesmo qualquer outro tipo de impugnação, designadamente a possibilidade de apresentar reclamação para a conferência do mesmo.
Este regime de inimpugnabilidade do despacho do presidente da Relação que confirme a não admissão do recurso decorre, por um lado, do disposto no artigo 689.º, n.º 2, e, por outro, da salvaguarda prevista na parte inicial do artigo 700.º, n.º 3. Assim, dispõe o artigo 689.º, n.º 2, na redação aplicável, que “a decisão do presidente não pode ser impugnada, mas, se mandar admitir ou subir imediatamente o recurso, não obsta a que o tribunal ao qual o recurso é dirigido decida em sentido contrário”.
Deste preceito decorre, por um lado, a inimpugnabilidade da decisão proferida pelo presidente do tribunal ad quem em reclamações deste tipo e, por outro, a sua não definitividade, caso a mesma seja no sentido da admissão ou da subida imediata do recurso. Já o artigo 700.º, n.º 3, na redação aplicável, exclui a possibilidade de reclamar para a conferência do despacho de não admissão de recurso proferido no tribunal a quo, nos termos do artigo 688.º.
5. A recorrente invocou, perante o tribunal ora recorrido, a existência de uma lacuna legal decorrente de não se encontrar expressamente prevista na lei a possibilidade de impugnar os despachos proferidos pelo presidente da relação, e pugnou pela aplicação analógica do disposto no artigo 700.º, n.º 3, do Código de Processo Civil – norma que contempla a possibilidade de a parte que se considere prejudicada por qualquer despacho do relator requerer que sobre a matéria desse mesmo despacho recaia um acórdão – aos casos em que, como sucedeu nos autos, a decisão proferida pelo presidente da relação mantém a decisão do juiz da primeira instância de não admitir o recurso, rejeitando, por conseguinte a reclamação. Essa lacuna apresenta-se, no desenvolvimento da argumentação da recorrente, incindivelmente ligada ao juízo de inconstitucionalidade que, em seu entendimento, deve ser proferido quanto à solução da ininpugnabilidade da decisão do presidente da relação que rejeita a reclamação.
Assim, e em síntese, constitui objeto do presente recurso de constitucionalidade a norma extraída dos artigos 689.º, n.º 2, e 700.º, n.º 3, do Código de Processo Civil de 1961, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de setembro, segundo a qual o despacho proferido pelo presidente do tribunal da relação que confirme a decisão de não admissão do recurso para aquele tribunal é definitivo, não podendo o mesmo ser objeto de reclamação para a conferência. Tal norma é arguida de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º), do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º) e do juiz natural.
B. Do regime legal aplicável. Evolução legislativa no processo civil e regime aplicável no processo penal e contencioso administrativo
6. A interpretação do regime legal aplicável feita pela decisão recorrida corresponde à que é propugnada pela generalidade da doutrina (nesse sentido cfr., por exemplo, Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, volume 3.º, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, anotação ao artigo 689.º, ponto 3, pág. 46, e Código de Processo Civil Anotado, volume 3.º, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, anotação ao artigo 700.º, ponto 5, pág. 75; Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, pág. 50; Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Coimbra: Almedina, 2002, pág. 90; António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil – Novo Regime, Coimbra, Almedina, 2007, pág. 163).
O próprio Tribunal Constitucional reconheceu ser esse o sentido inequívoco do direito ordinário então em vigor, conforme se pode ler no Acórdão n.º 354/2011:
«[Na] vigência do regime anterior à reforma introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, não era legítima qualquer dúvida interpretativa sobre a possibilidade de impugnar, designadamente por via da reclamação para a conferência, a decisão (singular) do presidente do tribunal superior que julgue reclamação deduzida ao abrigo do artigo 688.º do CPC, a quem estava antes cometida tal competência, por ser hipótese então expressamente vedada por lei (artigo 689.º, n.º 2, do mesmo código) […]».
7. No âmbito do Código de Processo Civil de 1939, previa-se o recurso de queixa, dirigido ao presidente do tribunal ad quem, da decisão que não admitisse recurso ordinário (artigo 689.º). No Código de Processo Civil de 1961, este mecanismo impugnatório passou a designar-se reclamação, mas, no essencial, manteve a mesma estrutura.
Com efeito, nos termos do artigo 689.º, alínea f), do Código de 1939, a decisão proferida pelo presidente do tribunal superior, “não admite recurso algum, mas quando atenda a queixa não obstará a que mais tarde o tribunal superior decida em sentido contrário”. Como escreveu Alberto dos Reis, a decisão do presidente no âmbito destas impugnações “[s]e desfavorável, arruma definitivamente a questão posta na queixa; se favorável, obriga o tribunal a quo, mas não vincula o tribunal ad quem” (Código de Processo Civil Anotado, volume V, reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 1981, pág. 350). Assim, a possibilidade de reclamação para a conferência de qualquer despacho do relator que não seja de mero expediente prevista no § único do artigo 700.º não englobava as decisões relativas aos recursos de queixa.
Como referido, este regime foi mantido pelo Código de Processo Civil de 1961. O artigo 689.º, n.º 2, manteve a inimpugnabilidade da decisão proferida pelo presidente do tribunal superior, caso esta confirme a não admissão do recurso; mas estatui a respetiva provisoriedade, em caso de admissão. Por outro lado, o artigo 700.º, n.º 3 (na redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 182/96, de 25 de setembro), continuou a prever a possibilidade de reagir contra qualquer despacho do relator que não seja de mero expediente, possibilitando a obtenção de um acórdão proferido pela conferência. Ressalvaram-se, no entanto, as situações previstas no artigo 688.º, relativamente à «reclamação contra o indeferimento ou a retenção do recurso».
8. Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, veio alterar o citado artigo 688.º do Código de Processo Civil de 1961, que passou a apresentar a seguinte redação:
«Artigo 688.º
Reclamação contra o indeferimento
1 – Do despacho que não admita o recurso pode o recorrente reclamar para o tribunal que seria competente para dele conhecer no prazo de dez dias contados da notificação da decisão.
2 – (…)
3 – A reclamação, dirigida ao tribunal superior, é apresentada na secretaria do tribunal recorrido, autuada por apenso aos autos principais e é sempre instruída com o requerimento de interposição de recurso e as alegações, a decisão recorrida e o despacho objeto de reclamação.
4 – A reclamação é logo apresentada ao relator, que, no prazo de dez dias, profere decisão que admita o recurso ou mantenha o despacho reclamado.
5 – Se o relator não se julgar suficientemente elucidado com os documentos referidos no n.º 3, pode requisitar ao tribunal recorrido os esclarecimentos ou as certidões que entenda necessários.
6 – Se o recurso for admitido, o relator requisita o processo principal ao tribunal recorrido, que o deve fazer subir no prazo de dez dias.»
O artigo 700.º, n.º 3, manteve a redação que vigorava anteriormente.
Em 2007, o legislador extinguiu, portanto, a competência anteriormente atribuída ao presidente do tribunal ad quem para a apreciação de reclamações sobre despachos de rejeição dos recursos, deferindo tal competência ao relator naquele tribunal.
Esta solução não deixou de ser criticada pela doutrina, tendo Lebre de Freitas escrito o seguinte: “[é] criticável atribuir ao mesmo juiz competência para conhecer da reclamação e para exercer a função de relator no recurso admitido, na medida em que – os juízes são seres humanos – podem interferir na apreciação da reclamação fatores que desvirtuem o resultado pretendido pelo legislador. Na verdade, era preferível atribuir a um relator ou, de preferência, a uma formação especializada do tribunal ad quem – como antes se atribuía ao presidente do tribunal superior – competência apenas para apreciar a reclamação. Sendo esta deferida, pelo relator ou, em reclamação, pela conferência, deveria o processo ir de novo à distribuição, ficando o primeiro relator impedido de intervir no julgamento do recurso” (Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, tomo I, cit., pág. 76). Quanto à dúvida sobre a impugnabilidade do despacho do relator que rejeite o recurso, tendo em conta que a redação do artigo 700.º, n.º 3, (“salvo o disposto no artigo 688.º”) se manteve, defendia aquele mesmo autor o seguinte: “[o] que o art. 700-3 visa excluir é a reclamação para a conferência da Relação da decisão do relator que não admita o recurso de revista interposto (reclamação essa que era imposta no direito anterior à revisão de 1995-1996, antes da subida da reclamação nos termos do art. 688 ao tribunal superior […] ), não a reclamação para a conferência, nos termos gerais do mesmo art. 700-3, do despacho do relator (da Relação ou do Supremo) proferido sobre a reclamação da decisão (da 1.ª ou da 2.ª instância) pela qual não tenha sido, no tribunal a quo, admitido (pelo juiz da causa ou pelo relator) o recurso (de apelação ou de revista. (…) O despacho proferido pelo relator (na Relação ou no STJ) a deferir ou indeferir a reclamação nos termos do art. 688 é, pois, suscetível de reclamação para a conferência” (v. ibidem, p. 75). Essa é também a solução defendida por Abrantes Geraldes e Amâncio Ferreira (v., respetivamente, Recursos em Processo Civil – Novo Regime, cit., pág. 164; e Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª edição, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 103-104, nota 188).
9. A recorrente invoca, em seu sustento, que “a possibilidade de recorrer para a conferência, sem qualquer distinção sobre a origem do despacho de indeferimento do requerimento de interposição de recurso, é já a regra geral adotada no C.P.T.A. (art. 27º), na Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (artigo 78.º-A) e no C.P.P. (artigo 417º, nº 8), não se fazendo nestes diplomas qualquer distinção relativamente às garantias de sindicabilidade dos despachos que indefiram o requerimento de interposição de recurso ou fazendo a mesma depender tais garantias do facto de esse despacho ser proferido previamente por um juiz singular” (conclusão 20.ª das alegações de recurso). Não tem, no entanto, razão.
Quanto ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o artigo 144.º, n.º 3 estabelece que do despacho que não admita o recurso [ou o retenha] cabe reclamação para o presidente do tribunal que seria competente para conhecer do recurso, remetendo, com as necessárias adaptações, para o regime da lei processual civil. O n.º 4 do mesmo preceito prevê apenas a possibilidade de reclamação para a conferência do despacho do relator que não admita o recurso interposto de decisão da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo para o pleno do mesmo Tribunal. A citada remissão para a lei processual civil é dinâmica, pelo que se reporta ao regime processual vigente em cada momento (cfr. Mário Aroso de Almeida e Carlos Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2010, pág. 946). Portanto, as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 303/2007 – o qual extinguiu a competência do presidente do tribunal superior para a apreciação das reclamações dos despachos de não admissão dos recursos – também valem no âmbito de aplicação do artigo 144.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Assim, a competência para a apreciação daquelas reclamações passou a competir ao relator no tribunal superior, sendo este despacho suscetível de reclamação para a conferência. Ou seja, a recorribilidade, para a conferência, de despachos proferidos pelo relator do tribunal ad quem, em processo administrativo, não decorre – como sustenta a recorrente – do disposto no artigo 27.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e sim da remissão operada pelo artigo 144.º, n.º 3, do mesmo diploma para a solução vigente na lei processual civil, e na estrita medida em que essa é solução vigente nesse mesmo regime. O que significa que, na redação anterior à reforma dos recursos introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, vigorava no processo administrativo a mesma solução que integra o objeto do presente recurso.
No âmbito do Código de Processo Penal, esta matéria é tratada no artigo 405.º. O despacho que não admita [ou que retiver] o recurso é reclamável perante o presidente do tribunal a que o recurso se dirige (n.º 1), sendo a decisão do presidente definitiva quando confirme o despacho de indeferimento. Trata-se, portanto, de regime idêntico àquela cuja constitucionalidade é sindicada nos presentes autos. Também neste âmbito não vigora, por conseguinte, a possibilidade de reclamar para a conferência do despacho do presidente do tribunal ad quem que confirme a não admissão do recurso.
Por fim, quanto ao regime vigente no processo constitucional, o preceito relevante não é o invocado pela recorrente (artigo 78.º-A, da LTC). Com efeito, e tratando-se de decisão proferida pelo tribunal a quo de não admissão do recurso, as normas relevantes são os artigos 76.º, n.º 3 e 77.º, nos termos das quais a impugnação dessas decisões é feita por «reclamação» cuja apreciação cabe diretamente à conferência prevista no artigo 78.º, n.º 3, não sendo precedida de qualquer «decisão sumária» ou «despacho» do relator.
C. Da violação da garantia do acesso ao direito e do princípio da igualdade
10. A Constituição da República Portuguesa garante a todos, no seu artigo 20.º, o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. No entanto, este Tribunal tem entendido, de modo firme e reiterado, que daquele preceito não decorre um direito geral ao recurso (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 243/2013):
« Como o Tribunal Constitucional afirmou no seu Acórdão n.º 287/90, embora a garantia da via judiciária do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição se traduza prima facie no direito de recurso a um tribunal para obter dele uma decisão sobre a pretensão perante o mesmo deduzida, deve incluir-se ainda na mesma garantia a proteção contra atos jurisdicionais. Isto é, o direito de ação incorpora no seu âmbito o próprio direito de defesa contra atos jurisdicionais, o qual, obviamente, só pode ser exercido mediante o recurso para (outros) tribunais: “o direito (subjetivo) de recorrer visa assegurar aos particulares a possibilidade de impugnarem atos jurisdicionais e ainda tornar mais provável, em relação às matérias com maior dignidade, a emissão da decisão justa, dada a existência de mais do que uma instância”.
No mesmo aresto, todavia, este Tribunal também advertiu que daquela proposição não decorre a existência de um ilimitado direito de recurso, extensivo a todas as matérias, o que implicaria a inconstitucionalidade do próprio estabelecimento de alçadas. O Tribunal considerou, então, que, com ressalva da matéria penal, atendendo ao que dispõe o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, tal direito não é um direito absoluto — irrestringível. Diferentemente, o que se pode retirar, inequivocamente, das disposições conjugadas dos artigos 20.º e [atual] 210.º da Constituição, em matérias diversas da penal, é que existe um genérico direito de recurso dos atos jurisdicionais, cujo preciso conteúdo pode ser traçado, pelo legislador ordinário, com maior ou menor amplitude. Ao legislador ordinário estará vedado, exclusivamente, abolir o sistema de recursos in toto ou afetá-lo substancialmente. Esta orientação foi posteriormente reafirmada por diversas vezes (cfr., entre outros, os Acórdãos n.os 210/92, 346/92, 403/94, 475/94, 95/95, 270/95, 336/95, 489/95, 715/96, 1124/96, 328/97, 234/98, 276/98, 638/98, 202/99, 373/99, 415/2001, 261/2002, 302/2005, 689/2005, 399/2007 e 500/2007).
No Acórdão n.º 40/2008 admitiu-se ainda que, para além dos casos que relevam do direito de defesa do arguido em processo penal, seria também sustentável que, sendo constitucionalmente assegurado o acesso aos tribunais contra quaisquer atos lesivos dos direitos dos cidadãos (maxime dos direitos, liberdades e garantias), sejam esses atos provenientes de particulares ou de órgãos do Estado, se garantisse o direito à impugnação judicial de atos dos tribunais (sejam eles decisões judiciais ou atuações materiais) que constituíssem a causa primeira e direta da afetação de tais direitos. Considerou-se, então, que quando a atuação de um tribunal, por si mesma, afeta, de forma direta, um direito fundamental de um cidadão, mesmo fora da área penal, a este deveria ser reconhecido o direito à apreciação judicial dessa situação; mas quando a afetação do direito fundamental do cidadão tivesse tido origem numa atuação da Administração ou de particulares e esta atuação já tivesse sido objeto de controlo jurisdicional, então não seria em todos os casos constitucionalmente imposta uma reapreciação judicial dessa decisão de controlo (cfr., no mesmo sentido, os Acórdãos n.os 44/2008 e 197/2009).
Por outro lado, fora do âmbito em que se considera constitucionalmente imposto que o legislador ordinário consagre um segundo grau de jurisdição, se este decidir prever esse segundo grau em determinadas situações, daí não se segue que o legislador tenha irrestrita liberdade na regulação desse recurso. O Tribunal Constitucional sempre tem entendido que se o legislador, apesar de a tal não estar constitucionalmente obrigado, prevê, em certas situações, um duplo ou triplo grau de jurisdição, na respetiva regulamentação não lhe é consentido adotar soluções desrazoáveis, desproporcionadas ou discriminatórias, devendo considerar-se vinculado ao respeito do direito a um processo equitativo e aos princípios da igualdade e da proporcionalidade (cfr. o Acórdão n.º 197/2009). Como se referiu no Acórdão n.º 628/2005, a garantia constitucional do direito ao recurso não se esgota na dimensão que impõe a previsão pelo legislador ordinário de um grau de recurso, pois “tal garantia, conjugada com outros parâmetros constitucionais, pressupõe, igualmente, que na sua regulação o legislador não adote soluções arbitrárias e desproporcionadas, limitativas das possibilidades de recorrer – mesmo quando se trate de recursos apenas legalmente previstos e não constitucionalmente obrigatórios (assim, vejam-se os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 1229/96 e 462/2003).»
Movemo-nos, portanto, num espaço que a Constituição reserva à intervenção, por excelência, do legislador democrático, marcada por uma ampla liberdade de conformação, pelo que a justiça constitucional apenas poderá intervir se concluir que o legislador violou os limites de tal liberdade. Um desses limites externos consubstancia-se na proibição de soluções discriminatórias, funcionando aqui o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo do legislador. Ora, segundo a recorrente, a dimensão normativa que ora se aprecia, traduzida na inimpugnabilidade da decisão do presidente da relação que confirme a não admissão do recurso, configura uma violação do princípio da igualdade porque trata situações idênticas de modo diferente, uma vez que, relativamente ao mesmo requerimento de recurso, a via recursória prevista diverge consoante o juiz de primeira instância decida admitir ou não admitir o recurso.
11. É fácil de perceber que, no caso sub iudicio – que respeita ao regime processual civil anterior à Reforma de 2007 - e contrariamente ao sustentado pela recorrente, não estamos perante um tratamento divergente de duas situações idênticas, uma vez que se trata de duas factualidades claramente distintas: num caso, o requerimento de recurso é recebido e admitido pelo juiz de primeira instância e posteriormente rejeitado pelo relator no Tribunal da Relação; no outro, o requerimento de recurso é logo rejeitado na primeira instância. Falha desde logo uma das premissas iniciais do raciocínio da recorrente quanto à violação do princípio da igualdade e à acusação de arbitrariedade da medida legislativa. E é a divergência existente entre as duas hipóteses que predetermina – de modo, aliás, coerente e perfeitamente racional – a diferente disciplina legislativa para os casos de impugnação das duas decisões judiciais.
É que num dos casos, sendo o recurso admitido pelo juiz a quo e posteriormente rejeitado pelo relator no tribunal ad quem, o duplo grau de jurisdição quanto à decisão de inadmissibilidade apenas é efetivável por via da reclamação para a conferência. O mesmo se diga relativamente à decisão do presidente em sede de reclamação que, admitindo o recurso, não assume caráter definitivo uma vez que, nos termos do artigo 689.º, n.º 2 (na redação aplicável), pode ser afastada pelo tribunal ad quem.
Já no outro caso, sendo ambas as decisões no sentido da rejeição do recurso, o duplo grau de jurisdição é devidamente satisfeito com a apreciação inicial pelo juiz a quo e a posterior intervenção do presidente do tribunal superior.
Não se pode concluir, por conseguinte, pela existência de qualquer violação do princípio da igualdade pelo facto de existir tratamento desigual de situações idênticas ou de se tratar de solução legal arbitrária.
12. Entende ainda a recorrente que da solução normativa sub judicio decorre a violação do seu direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva uma vez que “a possibilidade de rejeição de um recurso interposto perante um tribunal superior só se coadunará com aquele [direito] se for garantido ao recorrente que é esse mesmo tribunal, em coletivo – tal como a lei o institui –, o órgão com a última palavra sobre a admissibilidade do recurso”. E acrescenta: «[s]e assim não for (…) não estará devidamente garantida à parte processual a possibilidade de recorrer da decisão em causa (…) uma vez que, tal como sucede com a exceção consagrada no nº 3 do artigo 700º do CPC, o mesmo apenas se poderá socorrer de uma mera reclamação deduzida perante um órgão singular” (cfr. fls. 212), aduzindo ainda que “não pode[m] as garantias de recorribilidade do despacho de indeferimento do referido requerimento ser menores apenas pelo facto de esse despacho emanar do juiz de primeira instância” (cfr. fls. 220 e 221).
Desta argumentação resultam dois enunciados distintos: (i) o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva postula que, em caso de recorribilidade de determinada decisão, deve ser sempre garantido o acesso ao tribunal ad quem – no seu figurino legalmente prescrito – para discutir, em última instância, a questão da admissibilidade do recurso; (ii) a apreciação da questão da admissibilidade do recurso por um órgão singular oferece menos garantias. De acordo com o primeiro enunciado, o acesso ao tribunal ad quem, em situações como as dos autos, imporia o direito de recorrer para a conferência uma vez que a relação é, “tal como a lei o institui, um tribunal coletivo”. A este propósito, Alberto dos Reis referia que “a Relação é, por índole, um tribunal coletivo, [pelo que qualquer decisão demanda a intervenção de três juízes e o mínimo de dois votos conformes (…). [A]o passo que o juízo de direito é um tribunal singular, a Relação é um tribunal coletivo” (Código de Processo Civil Anotado, volume V, reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 1981, págs. 421 e 422).
13. Sucede que em sede de fiscalização judicial da constitucionalidade não há lugar para querelas académicas relativas à dogmática infraconstitucional. A qualificação do tribunal da relação como tribunal coletivo, impondo, enquanto tal, que qualquer decisão oriunda dessa instância, para que possa ser final, tenha de ser obrigatoriamente proferida por um colégio é, por conseguinte, nesta sede, irrelevante. O que interessa apurar é se as exigências constitucionais se encontram observadas – e tais exigências passam, no caso concreto, por averiguar se se encontra devidamente satisfeito o direito da recorrente a aceder ao direito e à tutela judicial efetiva.
É certo que, como já se referiu, não existe um direito fundamental geral a recorrer de toda e qualquer decisão judicial. Sucede, no entanto, que a opção legal vai no sentido de garantir o direito a impugnar a decisão que veda a admissão do recurso da decisão proferida em primeira instância. Não cabe agora escrutinar uma tal opção legal. Ainda assim, é de salientar que, tratando-se do recurso de decisão proferida em primeira instância, e cabendo a decisão inicial quanto à admissibilidade do recurso ao magistrado que é precisamente o autor da referida decisão de mérito, seria difícil vislumbrar uma solução constitucionalmente conforme que não permitisse o controlo judicial de tal decisão por parte de outro magistrado ou tribunal. Se assim não ocorresse, toda tramitação da lide poderia correr, em casos de não admissão do recurso, por conta de um único magistrado ou de um único tribunal, o que poderia suscitar dúvidas sob o ponto de vista da garantia da tutela judicial efetiva.
O Tribunal Constitucional já apreciou, em jurisprudência anterior, soluções legislativas que cometem ao presidente do tribunal superior – enquanto tribunal ad quem – a tarefa de apreciar a impugnação de decisões de não admissão de recurso proferidas pelo tribunal a quo. Fê-lo a propósito da solução consagrada no regime processual civil anterior à reforma dos recursos operada em 2007 – e que integra o objeto dos presentes autos – bem como relativamente a solução semelhante que resulta dos artigos 405.º, n.ºs 1 e 4, do Código de Processo Penal (cfr. Acórdãos n.ºs 321/2007 e 525/2007). Desse acervo jurisprudencial resulta o seguinte:
– Os juízes presidentes dos tribunais superiores são magistrados recrutados e nomeados de acordo com o disposto no artigo 215.º da Constituição, aos quais a lei atribui competências administrativas e jurisdicionais;
– Quando o presidente do tribunal superior se pronuncia sobre a reclamação de um despacho que não admitiu ou reteve um recurso proveniente de um tribunal de hierarquia inferior está a «dirimir um conflito, apreciando a decisão reclamada que é contrária à pretensão do reclamante e, nessa medida, atua no exercício de funções jurisdicionais» (cfr. a Decisão Sumária n.º 133/2007, transcrita, no que ora releva, no Acórdão n.º 525/2007);
– O modo de designação dos presidentes dos tribunais superiores, bem como o exercício do respetivo cargo por tempo determinado, não colide com a respetiva qualidade de juízes em efetividade de funções, aos quais a lei pode atribuir as funções jurisdicionais que entenda justificarem-se;
– Ainda que a regra nos tribunais superiores seja a da decisão por via de deliberação colegial, tal não corresponde a qualquer imposição constitucional e nada impede que o legislador ordinário possa optar, em nome de valores como a celeridade processual, pela decisão singular.
Por conseguinte, o Tribunal Constitucional já afirmou – e vem reiterá-lo agora, mais uma vez - que os despachos proferidos pelos presidentes de tribunais superiores no âmbito de «reclamações» de despachos de não admissão de recursos interpostos para esses mesmos tribunais configuram atos próprios da função jurisdicional. Assim, o facto de esses despachos serem, por um lado, singulares e, por outro, proferidos por magistrados em virtude das funções específicas que exercem nos tribunais superiores e não de um qualquer ato de alocação aleatória, não constitui uma menorização da qualidade dos mesmos, os quais configuram verdadeiras decisões judiciais (cfr., em especial, os citados Acórdãos n.º 351/2007 e 525/2007.
Recorde-se que nos presentes autos nos movemos no âmbito do artigo 20.º da Constituição (acesso ao direito), com referência ao processo civil. Deste modo, tendo o legislador efetivado, quanto às decisões proferidas a propósito da admissibilidade do recurso da decisão de primeira instância, um duplo grau de jurisdição – o qual se traduz na reapreciação das decisão de não admissão por um magistrado, pertencente a outro tribunal, em sede do exercício próprio da função jurisdicional –, cumpre verificar a inexistência de qualquer violação da liberdade de conformação de que o legislador goza neste domínio. Conclui-se, portanto, pela não violação do princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.
D. Da violação do princípio do juiz natural
14. A recorrente invoca ainda a violação do princípio do juiz natural (cfr. supra no n.º 2, a conclusão 15.ª das alegações de recurso).
O mencionado Acórdão n.º 525/2007, a propósito precisamente do artigo 689.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, na redação que subjaz ao objeto do presente recurso considerou já que o mecanismo processual da reclamação para o presidente do tribunal superior não colidia com a garantia constitucional do «juiz legal».
Porém, a recorrente pretende derivar deste parâmetro fundamental a exigência de aleatoriedade e indeterminabilidade do juiz competente para determinada decisão antes de efetuado o ato de distribuição. Tal exigência, contudo, não integra o conteúdo do princípio constitucional do juiz natural.
15. Este princípio encontra-se expressamente consagrado no âmbito das garantias em processo criminal, dispondo o artigo 32.º, n.º 9 que “[n]enhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”. Segundo Jorge de Figueiredo Dias, “o princípio do juiz legal ou natural esgota o seu conteúdo de sentido material na proibição da criação ad hoc, ou da determinação arbitrária ou discricionária ex post facto, de um juízo competente para a apreciação de uma certa causa penal” (v. Autor cit., “Sobre o sentido do princípio jurídico-constitucional do ‘juiz natural’”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, 111.º ano – 1978/1979, págs. 83-88, pág. 83).
Mesmo entendendo o princípio do juiz natural como dimensão resultante do princípio geral da independência que vale para toda e qualquer instância judicial, independentemente da matéria em causa – nos termos do artigo 203.º da Constituição – o seu alcance não tem uma abrangência mais vasta do que a exigência do respeito pelo «juiz legal» que o legislador constituinte optou por consagrar especificamente no campo das garantias de defesa em matéria penal. Percebe-se que o tenha feito aí, uma vez que a teleologia do juiz natural se associa à ideia de “impedir que motivações de ordem política ou análoga – aquilo em suma, que compreensivamente se pode designar pela raison d’État – conduzam a um tratamento jurisdicional discriminatório e, por isso mesmo, incompatível com o princípio do Estado-de-direito” (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 84).
Assim, e por referência à incidência do princípio do “juiz legal” no âmbito criminal, tem o Tribunal Constitucional entendido que o respeito pelo mesmo se basta com a designação e pré-determinação do juiz (e tribunal) competente de harmonia com critérios legais, gerais e abstratos, aprovados e em vigor à data da prática dos factos (cfr. o Acórdão n.º 614/2003).
A título de exemplo, no Acórdão n.º 74/2012 concluiu-se pela não inconstitucionalidade do artigo 384.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei n.º 26/2010, de 30 de agosto, interpretada no sentido de que o juiz de instrução é competente para dar a concordância à suspensão provisória do processo, nos casos em que o arguido é apresentado para julgamento em processo sumário, e o Ministério Público entenda, com a concordância do arguido, que se justifica tal suspensão. Em densificação específica do princípio do juiz natural, disse-se neste aresto que, “encontrando-se definidos, no caso concreto e por lei anterior, as regras que permitem definir o tribunal (juiz) competente segundo características gerais e abstratas, dev[e] concluir-se pela observância do princípio (constitucional) do ‘juiz natural’ ou do ‘juiz legal’ […]”. E, no Acórdão n.º 21/2010, o Tribunal afirmou que “o princípio do juiz legal ou do juiz natural (…) visa garantir que nenhuma causa seja julgada por um tribunal criado ad hoc para esse efeito ou por um tribunal designado discricionariamente, devendo essa competência resultar da aplicação de normas orgânicas e processuais que contenham regras dirigidas à determinação do tribunal que há-de intervir em cada caso, segundo critérios objetivos”.
Verifica-se, por conseguinte, relativamente ao caso em apreço, que um regime processual que faz derivar de critérios legais preexistentes a competência para a decisão de impugnações de despachos de não admissão do recurso proferidos na primeira instância observa as exigências constitucionais decorrentes do princípio do juiz natural.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se
Não julgar inconstitucional a norma extraída dos artigos 700.º, n.º 3, e 689.º, n.º 2, primeira parte, do Código de Processo Civil de 1961, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de setembro, segundo a qual o despacho proferido pelo presidente do tribunal da relação que confirme a decisão de não admissão do recurso para aquele tribunal é definitivo, não podendo o mesmo ser objeto de reclamação para a conferência; e, em consequência,
Negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 4 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 22 de janeiro de 2014. – Pedro Machete – Ana Guerra Martins – Fernando Vaz Ventura – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.