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Processo n.º 1114/13
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Por sentença do Tribunal Judicial de Santo Tirso de 18 de fevereiro de 2013, foi homologado o plano de revitalização da devedora A., S.A. (fls. 16). O Ministério Público, em representação do Estado – Fazenda Nacional, recorreu desta decisão, invocando a falta de acordo do Estado, face ao aditamento do n.º 3 ao artigo 30.º da Lei Geral Tributária pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro.
A devedora A., S.A., apresentou contra-alegações, suscitando a seguinte inconstitucionalidade:
«Neste contexto, a interpretação que o Estado faz da norma contida no n.º 3 do artigo 30.º da LGT, interpretação esta que é, no fundo a pedra de toque e a sustentação de todo o seu recurso, é violadora do Princípio da Igualdade, do direito ao trabalho, e da Hierarquia das Leis, consagrados nos artigos 13.º, 58.º e 112.º da CRP, assim como do n.º 3 do artigo 7.º do Código Civil, fazendo ainda tábua rasa dos compromissos perante a Troika.»
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 28 de junho de 2013, revogou a decisão recorrida e recusou a homologação do plano de revitalização aprovado pelos credores. Lê-se o seguinte no sumário do referido acórdão:
«I – Após as alterações legislativas introduzidas pela Lei 55-A/2010, de 31/12, ao artº 30º da LGT, deixou de ser legalmente possível homologar um plano de revitalização que contemple a redução, extinção ou moratória de créditos fiscais, sem que o Estado (a Autoridade Tributária) o tenha votado favoravelmente.
II – O plano de revitalização aprovado que preveja redução de crédito tributário, sem que tenha merecido o voto favorável da Fazenda Nacional, obriga a concluir que o respetivo conteúdo integra a violação não negligenciável de normas respeitantes ao referido crédito, o que deve levar à prolação de sentença de recusa da sua homologação (cfr. artº 215º e 17º-F nº 5 do CIRE).»
Notificada desta decisão, a devedora A., S.A, apresentou recurso de constitucionalidade em requerimento com o seguinte teor:
«por entender que a interpretação e sentido que a AT e o Tribunal, com tal decisão, dão à norma constante do n.º 3 do artigo 30.º da LGT, é violadora do Princípio da Igualdade, do direito ao trabalho, e da Hierarquia das Leis, consagrados nos artigos l3.º, 58.º e l l2.º da CRP, assim como do n.º 3 do artigo 7.º do Código Civil, fazendo ainda tábua rasa dos compromissos assumidos perante a Troika. A supra referida inconstitucionalidade foi arguida nas contra-alegações ao recurso de Apelação da Douta Sentença proferida em 1ª instância.»
O recurso não foi admitido por despacho de fls. 260, com o seguinte teor:
«Afigura-se-nos que a convocação da inconstitucionalidade apenas nas contra-alegações não cumprirá o requisito do artigo 72.º, n.º 2 da Lei 28/82, de 15 de novembro. Como tal, não se admite o recurso interposto porquanto legalmente inadmissível em face do disposto no citado normativo legal.»
É deste despacho que A., S.A. vem agora reclamar, nos termos do disposto no artigo 76.º, n.º 4 da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (adiante referida simplesmente como “LTC”), nos termos seguintes:
«Vem a presente reclamação, formulada nos termos e ao abrigo do disposto no nº 4 do Art. 76º da LTC do despacho do Ex.mo Senhor Juiz Desembargador do Tribunal da Relação do Porto que indefere o seu requerimento de interposição de recurso para este Venerando Tribunal.
o único fundamento invocado para sustentar a inadmissibilidade do recurso intentado é o seguinte:
“Afigura-se-nos que a invocação da inconstitucionalidade apenas nas contra-alegações não cumprirá o requisito do Art. 72º/2) da Lei 28/82 de 15 de Novembro” – sic!
Como é evidente, não se pode aceitar semelhante entendimento ou fundamentação que se crê ser não só absolutamente ilegal, porque desprovido de qualquer suporte na letra e no espírito da Lei como ainda, salvo o devido respeito, desprovido de qualquer razoabilidade.
Quanto à sua ilegalidade, por falta de suporte na letra e no espírito da Lei, a mesma é gritante.
De facto, a Lei 28/82 – LTC – não estabelece em local algum – e seria ilógico e inconstitucional fazê-lo, por estar a descriminar as partes em função da sua posição processual – que para que possa recorrer-se para o Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta de constitucionalidade, a questão da aplicação de norma que se repute inconstitucional houvesse sido levantada em sede de alegações ou de contra-alegações ou, v.g., em sede de petição inicial ou de contestação.
O nº 1 do Artigo 70.º da LTC tem os seguintes dizeres:
1 - Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais:
a)
Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo;
A lei exige apenas que a inconstitucionalidade da norma que foi aplicada haja sido suscitada durante o processo, jamais exigindo que o seja no âmbito da PI ou de alegações de recurso precludindo tal faculdade aos pobres sujeitos processuais que, por ironia do destino, tenham a posição de réus ou de recorridos e que, por isso, apenas podem apresentar contestação ou contra-alegações.
E a verdade é que a ora Reclamante invocou expressamente, no decurso do processo, que a interpretação e sentido que a AT e o Tribunal, com tal decisão, deram à norma constante do n.º 3 do artigo 30.º da LGT, é violadora do Princípio da Igualdade, do direito ao trabalho, e da Hierarquia das Leis, consagrados nos artigos 13.º, 58.º e 112.º da CRP, assim como do n.º 3 do artigo 7.º do Código Civil, fazendo ainda tábua rasa dos compromissos assumidos perante a Troika.
Ou seja, a necessária arguição de inconstitucionalidade foi claramente arguida no âmbito do processo, em sede de contra-alegações ao recurso de Apelação da Douta Sentença proferida em 1ª instância, pelo que se encontra mais do que satisfeito o requisito da al. b) do nº 1 do Art. 70º LCT para que seja admissível o recurso dos autos.
Exigir que a arguição de inconstitucionalidade fosse não só expressamente arguida como ainda que o fosse em sede de petição inicial, ou de contestação, ou de réplica, tréplica ou de qualquer outro articulado é fazer o intérprete exigências que a lei manifestamente não faz, cerceando os direitos das partes.
Conduta tão censurável quanto ilegal, por grosseira violação do nº 2 do Art. 9º CCiv – é que com a mesma fez o Mmo. Juiz a quo uma interpretação da al. b) do nº 1 do Art. 70º da LTC que não tem na letra de tal preceito legal um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
De notar, por fim, que este único fundamento com que se indefere a interposição do recurso intentado pela Reclamante é, como se disse, de uma irrazoabilidade chocante.
É que, como resulta dos autos, a ora Reclamante tem nos mesmos a posição de Autora.
A sua pretensão – ver homologado o plano de revitalização a que se apresentou em sede de Processo Especial de Revitalização – foi deferida, por sentença homologatória do Tribunal de 1ª Instância.
A que propósito – e em que momento – deveria a autora - e vencedora em 1ª instância – agora Reclamante, invocar alguma inconstitucionalidade?
Obviamente que nunca houve tal propósito nem tal momento.
O que sucedeu foi antes que, não se tendo conformado com tal decisão da 1ª instância, a Autoridade Tributária da mesma interpôs o competente recurso de Apelação.
Como é evidente, a ora reclamante apresentou então as suas contra- alegações nas quais, além do mais, levantou a questão da inconstitucionalidade nos moldes supra referidos.
A menos que se entenda, como parece ser o caso do Mmo. Juiz a quo que a Reclamante, logo na 1ª instância, em sede de PI, deveria ter invocado putativas ou eventuais inconstitucionalidades de uma contingencial decisão desfavorável às suas pretensões, não se vislumbra como e/ou quando poderia a mesma arguir inconstitucionalidades senão em sede de contra-alegações, como fez.
Assim sendo, como é, a Reclamante apenas teve necessidade e oportunidade de arguir inconstitucionalidades face ao entendimento expendido pela AT nas suas alegações de recurso, o que, por lei, teve que fazer nas suas contra-alegações.
Entender algo de distinto é, como se disse, e sempre salvo o devido respeito, inconcebível.»
2. No seu visto, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de a reclamação merecer provimento, uma vez que as contra-alegações de recurso eram o momento único e próprio em que a questão de constitucionalidade poderia ser suscitada.
Em especial, diz o Ministério Público:
« 11. Não nos parece que deva ter acolhimento o fundamento que, na decisão reclamada, levou à não admissibilidade do recurso.
12. Efetivamente, figurando a devedora como recorrida no recurso interposto pelo Ministério Público para a Relação, as contra-alegações era o momento único e próprio em que podia ser suscitada a questão da constitucionalidade.
13. Mesmo que a Relação não conheça da questão, esse comportamento processual não pode condicionar a admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional.
14. Sustentando o Ministério Público que, por aplicação do n.º 3 do artigo 30.º da Lei Geral Tributária (LGT), na redação dada pela Lei 55-A/2010, que, dependendo a redução ou extinção dos créditos tributários do acordo do Estado, na falta desse acordo deve ser recusada a homologação do plano de revitalização, a devedora suscitou nas contra-alegações a inconstitucionalidade dessa interpretação, fazendo-o da seguinte forma:
“Neste contexto, a interpretação que o Estado faz da norma contida no n.º 3 do artigo 30.º da LGT, interpretação esta que é, no fundo a pedra de toque e a sustentação essencial de todo o seu Recurso, é violadora do Princípio da Igualdade, do direito ao trabalho, e da Hierarquia das Leis, consagrados nos artigos 13.º, 58.º e 112.º da CRP, assim como do n.º 3 do artigo 7.º do Código Civil, fazendo ainda tábua rasa dos compromissos assumidos perante a Troika.”
15. Ora, como se viu, foi aplicando essa norma e interpretação que a Relação, pelo acórdão recorrido, revogou a sentença da 1.ª instância e recusou a homologação do plano.
16. Assim, embora formalmente não se possa considerar um “modelo” de correção, parece-nos que foi cumprido com o mínimo de clareza o ónus da suscitação prévia e adequada da questão da constitucionalidade.
17. Neste ponto, diríamos ainda que, a circunstância de a devedora figurar como recorrida, poderá eventualmente dificultar o cumprimento daquele ónus, devendo, nessa medida, o grau de exigência ser menor.
18. O requerimento de interposição de recurso também não obedece de forma clara aos requisitos exigidos pelo artigo 75.º-A, n.º 1, da LTC, uma vez que não se diz expressamente qual a interpretação que o tribunal recorrido faz do n.º 3 do artigo 30.º da LGT.
19. Essa deficiência, porém, seria suprível, face ao disposto nos n.ºs 5.º e 6.º do artigo 75.º-A da LTC.
20. Todavia, tendo sido elaborado um sumário da decisão recorrida, que a integra, parece-nos evidente qual é a interpretação em causa: aquela que consta do ponto I do sumário (vd. n.º 7).
21. Por tudo o exposto, não sem algumas dúvidas face à forma como a questão foi suscitada “durante o processo”, parece-nos que a reclamação será de deferir. »
Cumpre apreciar e decidir
II. Fundamentação
3. Em sede de reclamações de despachos de não admissão de recursos de constitucionalidade proferidos pelo tribunal recorrido, compete ao Tribunal Constitucional averiguar se se encontram reunidos os pressupostos necessários à admissão e conhecimento desses recursos.
O recurso de constitucionalidade foi interposto com fundamento na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, nos termos da qual são recorríveis as decisões judiciais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo. A não admissão in casu do recurso de constitucionalidade fundou-se na extemporaneidade da suscitação da questão de inconstitucionalidade, a qual ocorreu em sede de contra-alegações de recurso para a Relação.
Este fundamento de não admissão, contudo, não é procedente. Com efeito, a suscitação ocorreu em momento integrado na dinâmica processual pré-decisória, isto é, antes de ter sido proferida a decisão final. O Tribunal Constitucional tem interpretado a expressão «durante o processo», de modo unânime e reiterado, como compreendendo todos os atos processuais prévios à prolação da decisão final. Com efeito, e cotejando o pressuposto especificado no artigo 72.º, n.º 2, da LTC, o tribunal a quo deve ser confrontado com o problema de constitucionalidade em termos de ser constituído no dever de, sobre o mesmo, tomar a sua posição.
Esta característica enforma o sistema português de fiscalização concreta da constitucionalidade que comete a todos os tribunais funções específicas de controlo normativo, atuando o Tribunal Constitucional em sede recursiva.
No presente caso, a inconstitucionalidade foi suscitada antes de ter sido proferida a decisão final, pelo que não existe qualquer obstáculo ao conhecimento do recurso no que toca a este pressuposto.
4. No entanto, e como já se referiu, em sede de reclamação o Tribunal Constitucional não se limita a controlar o despacho de não admissão do recurso, centrando-se o objeto da sua pronúncia na questão (mais abrangente) da admissibilidade da própria impugnação. Ou seja, o Tribunal Constitucional pode concluir que o recurso não seria admissível por outros fundamentos que não os adotados na decisão reclamada.
Vejamos, portanto, se o presente recurso reúne as necessárias condições de admissibilidade.
Analisado o requerimento de interposição, constata-se que o mesmo é parcialmente omisso uma vez que não identifica a norma que integra o objeto do recurso. A recorrente limita-se a dizer que «(…) a interpretação e sentido que a AT e o Tribunal, com tal decisão, dão à norma constante do n.º 3 do artigo 30.º da LGT, é violadora do Princípio da Igualdade, do direito ao trabalho, e da Hierarquia das Leis, consagrados nos artigos 13.º, 58.º, e 112.º da CRP, assim como do n.º 3 do artigo 7.º do Código Civil, fazendo ainda tábua rasa dos compromissos assumidos perante a Troika.» Adiantou, ainda, que a inconstitucionalidade foi arguida nas contra-alegações de recurso.
Dispõe-se o seguinte no citado n.º 3 do artigo 30.º da Lei Geral Tributária:
«O disposto no número anterior [a indisponibilidade do crédito tributário, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária] prevalece sobre qualquer legislação especial.»
O que a recorrente alega não é suficiente para se ter por cumprido o seu ónus no que toca à delimitação e conformação do objeto do recurso uma vez que não especifica a «interpretação e sentido» da norma cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada. Trata-se de omissão que, contudo, não é insuprível em face da possibilidade prevista no artigo 75.º-A, n.º 5, da LTC.
Por outro lado, e tendo em atenção o que foi alegado em sede de contra-alegações, constata-se que a inconstitucionalidade que então a ora reclamante invocou coincide com a interpretação que foi posteriormente adotada pela decisão recorrida e que, como refere o Ministério Público coincide com o ponto I do respetivo sumário (cfr. supra o n.º 1).
Assim, considerando-se que a omissão do requerimento de recurso poderia ter sido suprida, entende-se ser de conceder provimento à presente reclamação, determinando-se, em consequência, a admissão do recurso de constitucionalidade.
III. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide deferir a presente reclamação, revogando o despacho reclamado que não admitiu o recurso de constitucionalidade.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 28 de novembro de 2013. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.