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Processo n.º 617/05
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A., Lda. e recorrido o Ministério Público, a primeira vem interpor recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido, em conferência, pela 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, em 31 de maio de 2005 (fls. 499-504), para que seja apreciada a constitucionalidade: i) das normas resultantes da conjugação do artigo 13º do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo DL 224-A/96, de 26-11, com a tabela anexa que a este preceito se reporta, com a do artigo 53º, n.º 3 do mesmo Código e com o artigo 41º, n.º 2, na parte de cuja aplicação resulta o pagamento de um determinado valor (82.737,09 €) de custas (taxa de justiça e procuradoria), insuscetível de qualquer redução ou isenção; ii) da norma do artigo 14º do DL 324/2003 se interpretada por forma a não considerar imediatamente aplicáveis às ações pendentes, por um lado, a redação por ele dada ao artigo 53º do Código das Custas Judiciais (com o consequente afastamento, no cálculo do valor da ação, dos juros peticionados e vencidos na pendência) e, por outro, a nova redação do artigo 27º, designadamente dos seus nºs 3 e 4.
2. Para boa decisão do presente recurso, importa contextualizar o objeto do mesmo. Com efeito, foi instaurada ação declarativa por B. e C., na qualidade de promitentes-compradores, cujo valor correspondia a 20.996,44€ (nele incluídos os juros de mora já vencidos à data da instauração da ação, mas não os vincendos até à data da elaboração da conta de custas). Em sede de contestação, a recorrente, na qualidade de promitente-vendedora, deduziu pedido reconvencional no montante de 3.258.508,37 € (nele incluídos os juros de mora já vencidos à data da dedução da reconvenção, mas não os vincendos até à data da elaboração da conta de custas). Mediante requerimento conjunto, ambos viriam apresentar desistência da instância, tendo a mesma sido homologada por despacho já transitada que condenou os autos ao pagamento das custas da ação e a ré (ora recorrente) das custas relativas ao pedido reconvencional (cfr. fls. 500).
Após notificação da conta de custas, a ora recorrente viria a deduzir a seguinte reclamação:
«1. Não tem qualquer fundamento legal a atribuição à ação do valor tributário de 5.510.649,91 €, já que da soma do montante do pedido dos AA. com o da reconvenção resultam 657.481.684$00, ou seja, 3.279.504,81 €.
Esse é o valor da ação: CCust (anterior e atual), art. 10º/1, 5º/3.
2. Nos termos das disposições combinadas dos nºs 2 e 4 do art. 27º da «nova» redação do Código das Custas, nas causas cujo valor é superior a 250.000 €, não há lugar ao pagamento do remanescente não coberto pelas taxas já pagas desde que «o processo termine antes de concluída a fase de discussão e julgamento da causa».
É o caso do presente processo. Pelo que já se encontra pago tudo o que em regra seria devido.
3. Mesmo que assim não fosse – e, subsidiariamente, sem prescindir e por mera cautela de patrocínio, desde já assim fica requerido -, parece que sempre se trataria, aqui, de situação que justificaria que V. Exa. se digne dispensar o pagamento do dito remanescente nos termos do nº 3 do mesmo art. 27º do CCust.
Com efeito, como se verifica do requerimento respetivo (fls. 370 ss), embora tecnicamente tratado, na sentença homologatória, como desistência, a verdade patente é que as partes se puseram de acordo quanto ao facto de fazerem de imediato cessar a ação («vêm acordar em pôr termo à presente ação nos seguintes termos»).
Ademais, está documentado nos autos que o pedido reconvencional formulado pela R. ora reclamante obteve vencimento em outra ação correndo termos na Comarca da Póvoa de Lanhoso, onde é objeto de ação executiva para pagamento de quantia certa.
É de inteira justiça dispensar a reconvinte do pagamento do remanescente, pois que, além do mais, tem razão quanto ao fundo da causa.» (fls.403 a 405)
Então, foi proferida a seguinte informação do oficial de justiça sobre o método de elaboração da conta de custas reclamada:
«Veio o ilustre mandatário da ré 'A.', reclamar da conta por nós efetuada sob o n.º 2319/2004, constante de folhas 393/4 dos autos;
Ao pronunciar-me sobre a mesma, terei que mencionar os seguintes aspetos:
1- Na petição inicial apresentada em 13 de março de 1998, os autores B. e esposa, C., pedem entre outras, a condenação da ré, ora reclamante, no pagamento da quantia de 4.209.408$00 (quatro milhões duzentos e nove mil, quatrocentos e oito escudos), que se traduz hoje em € 20.996,44, acrescido dos juros de mora à taxa de 4,2%;
2- Em 24 de abril de 1998, veio a ré 'A., apresentar a sua contestação e reconvenção no montante de € 3.258.508, 38 (moeda atual), ' ... acrescida de juros de mora, à taxa legal, atualmente de 15, sobre a soma das quantias anteriores ou seja sobre € 3.154.789,28 ... ':
3- De mencionar que existe dois tipos de valor, um chamado o Valor Processual, que é determinado segundo as regras constantes nos artigos 305° a 319° do Código do Processo Civil, e outro denominado Valor Tributário, a fixar para efeitos de custas e demais encargos legais, segundo as regras contidas no Código das Custas Judiciais - art°s 5° a 12°;
4- Diz, e muito bem, o ilustre mandatário da ré, que o valor das custas pagar é determinado pelo valor da ação;
5- Mas, conjugando o disposto nos art° 50° e 53° n.º 3, onde se refere que' na contagem de processos em que, como acessórios do pedido principal, sejam pedidos juros, cláusula penal, rendas ou rendimentos que se vencerem na pendência da causa, considera-se o valor dos interesses até aquele momento', ou seja, até à data da elaboração da conta;
6- Dado que tanto na petição inicial como na contestação/reconvenção, foram pedidos juros, teremos que proceder ao cálculo dos mesmos;
7 - Com a aplicação do disposto consagrado no art° 10° do Código das Custas Judiciais, ' ... 0 valor da causa a considerar para efeitos de custas, é o da soma dos pedidos, aos quais vai acrescer, porque pedidos, os respetivos juros que entretanto se venceram;
8 - No ponto número dois, é referido, que atenta as disposições combinadas dos nºs 2 e 4 do art° 27° da nova redação do Código das Custas, nas custas cujo valor seja superior a € 250.000,00 não há lugar ao pagamento do remanescente não coberto pelas taxas já pagas, desde que o 'processo termine antes de concluída a fase de discussão e julgamento da causa'.
9 - De referir desde já que o Decreto-Lei nº 324/03, que veio alterar o Código de Custas Judiciais, só se aplica aos processos instaurados após a sua entrada em vigor, conforme dispõe o art° 14° do mencionado diploma legal, assim e sem mais considerações, terá que se aplicar à contagem dos presentes autos, o 'velho' Código de Custas Judiciais, criado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96 de 26 de novembro;
10- De assinalar, também, que os presentes autos não beneficiam da redução prevista no art° 17° nº2 alínea b) do Código das Custas Judiciais, uma vez que os presentes autos, findaram após se ter agendado a Audiência de Discussão e Julgamento, conforme Douto Despacho proferido a folhas 300 dos autos;
11 - No que se refere à procuradoria e custas de parte, de mencionar que o acordo através de desistência das instâncias apresentada a folhas 377 dos autos, não refere nada quanto a esse ponto, assim, teria necessariamente, aquando da respetiva elaboração da conta, atento o nº3 do art° 40° e segundo a divisão constante do n01 do art° 42° ambos do Código de Custas Judiciais, levar-se a mesma em consideração;
Concluído, com base nos pressupostos acima descritos, sou de parecer que não assistirá razão ao reclamante, deixando outra vez expresso que a conta dos presentes autos é elaborada com o Código das Custas Judiciais' não alterado pelo DL nº 324/03 de 27 de dezembro.» (fls. 414 a 416)
Por sua vez, o Ministério Público junto do tribunal de 1ª instância, defendeu o indeferimento da reclamação deduzida e a manutenção da conta de custas, pelos seguintes fundamentos:
«Concorda-se com o parecer que antecede.
Efetivamente, aos presentes autos aplica-se o CCJ, aprovado pelo Dec. lei nº 224-A/96, de 26/11, com as alterações introduzidas pelo Dec. lei nº 320-B/2000, de 15/12, uma vez, como resulta do disposto no art. 14º, nº do CCJ, aprovado pelo Dec. Lei nº 324/2003, de 27/12, este só se aplica aos processos instaurados após a sua entrada em vigor, a qual ocorreu em 1 de janeiro de 2004, conforme estabelecido no nº 1 do seu art. 16º.
Assim, o cálculo do valor tributário da causa, faz-se de acordo com as disposições combinadas do nº 3 do art. 5º, nº 1 do art. 10º e nº 3 do art. 53º, todos do CCJ, sendo as custas calculadas pelo valor do pedido inicial a que se soma o valor do pedido reconvencional, acrescidos do valor dos juros e de outros acessórios, que tiverem sido pedidos, que se vencerem na pendência da causa e vencidos até à data da contagem.
A taxa de justiça é calculada em conformidade com o art. 13º, nº 1, sendo a fixada na tabela.
Como resulta da douta decisão de fls. 381, os AA. foram condenados nas custas da ação e a Ré, ora reclamante, nas custas da reconvenção.
Por isso, e considerando o valor dado à causa na PI, e o pedido [de] juros formulado e valor dado pela reclamante à reconvenção e o pedido de juros que formulou, dúvidas não restam de que se mostra corretamente calculado o valor da causa para efeitos tributários, mostrando-se também bem calculado o montante da sua percentagem de responsabilidade.
Quanto à procuradoria mostra-se igualmente bem calculada, uma vez que não tendo havido transação, as normas aplicáveis, tendo em conta a decisão sobre custas, são o art. 40º, nº 1 e 2 e o art. 42º, ambos do CCJ.
Pelo exposto, promovo que se indefira reclamação de fls. 408 a 410, por falta de fundamento legal.» (fls. 418)
Na sequência desta promoção, o juiz competente proferiu despacho de indeferimento da reclamação, em 28 de maio de 2004, que se limitou a aderir à fundamentação daquela (fls. 419).
Após recurso para o Tribunal da Relação do Porto, este viria a decidir, por acórdão proferido em 31 de maio de 2005 (fls. 499-504), o seguinte:
«O dec-lei 324/2003, de 27 de dezembro, procedeu à revisão do C.C. Judiciais tendo principalmente em vista a simplificação estrutural do Código e do ato de contagem, tornar mais justos os critérios de tributação e a repartição adequada dos custos da justiça, como se infere designadamente do seu preâmbulo.
Quanto à aplicação no tempo das alterações introduzidas por este diploma, preconiza o art. 14º, no seu nº 1 que «... as alterações ao Código das Custas Judiciais constantes deste diploma só se aplicam aos processos instaurados após a sua entrada em vigor».
Este preceito, que constitui afloramento do princípio geral da não retroatividade das leis, não conflitua em si com qualquer preceito da nossa lei fundamental. Antes com ele se procura facilitar a adaptação às novas alterações contempladas e salvaguardar os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos.
Objetivamente não se pode afirmar que o nº 1 do citado art. 14º enferme de qualquer inconstitucionalidade.
Pode haver normas introduzidas por este diploma que concretamente se apresentem mais vantajosas para os litigantes. Só que todos os cidadãos colocados nesta situação têm tratamento igual, ou seja, todos os processos pendentes à data da entrada em vigor das alterações ao C.C. Judiciais introduzidas pelo dec-lei 324/03 estão sujeitos às custas que emanam das normas vigentes à data em que o processo foi instaurado.
Aliás, era de acordo com estas normas que as partes haviam equacionado o provável custo da sua atuação processual e não se vislumbra qualquer interesse público na aplicação imediata destas alterações de custas que justifique modificar os critérios e a base de tributação nas lides pendentes.
Esta era também a posição defendida pela ora agravante quando reclamou da conta de custas, aí afirmando expressamente que «Tudo indica, de resto, que o Ex.mo Contador elaborou a conta à luz do preceituado no novo Código das Custas. Parece, no entanto, que aplicável é a redação em vigor até 31-12-2003, como ressalta do disposto no art° 14°/1 do DL 324/2003, de 27-12. Era com essa, aliás, que as partes contavam quando acordaram em pôr termo à ação nos termos em que o fizeram.
(…)
As custas são encargos pagos pela utilização dos serviços de justiça e são suportadas pela parte que lhes deu causa ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Constitucionalmente não existe o dever de uma justiça administrada gratuitamente, antes decorre do art. 20º da Constituição da República a garantia do exercício da tutela jurisdicional dos direitos dos cidadãos e de que por carência de meios económicos ninguém pode ser privado de defender judicialmente os seus interesses.
A exigência de custas judiciais não constitui qualquer restrição ao direito de acesso aos tribunais e se qualquer cidadão não estiver em condições de poder suportar os respetivos encargos existem mecanismos legais para suprir essa sua situação de carência económica.
Por outro lado, só se as taxas fossem de tal modo elevadas que, à partida, condicionassem o cidadão de condição económica média a defender judicialmente os seus direitos é que se poderia afirmar que haveria uma violação do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efetiva de defesa dos interesses e direitos legalmente protegidos.
Não se afigura que as taxas fixadas pelo C.C. Judiciais antes das alterações introduzidas sejam de tal modo elevadas que constituam uma restrição para o cidadão dotado de uma situação económica média de defender judicialmente os seus direitos e que, como tal, esteja numa situação de clara desigualdade perante os seus concidadãos de maior poder económico.
Revertendo à situação dos autos, verifica-se que as partes era com a conta elaborada segundo a tabela que faz parte do código antes das alterações que contavam quando acordaram em pôr termo à ação nos termos em que o fizeram.
Aliás, a ora agravante foi pagando as taxas devidas no momento oportuno e nunca levantou qualquer objeção, nem suscitou qualquer dificuldade de ordem económica que condicionasse a sua atuação processual. As custas judiciais não dificultaram de modo algum a cabal defesa dos direitos e interesses da ré.
Na conta final a elaborar havia que contar os juros do capital vencidos na pendência da causa, já que eles integravam os pedidos - principal e reconvencional - deduzidos pelas partes. E o nº 3 do art. 54º C.C. Judiciais é claro nesse sentido.
Estes mesmos juros, os já vencidos à data da reconvenção, haviam, e muito bem, sido não só pedidos pela reconvinte, como também incluídos no próprio valor por si dado à reconvenção.
O mesmo se diga relativamente à procuradoria, que será igual a metade da taxa de justiça devida, caso o tribunal a não arbitre – nº 2 do art. 41º C.C. Judiciais.
Impunha-se, por isso, que fosse considerada na conta final.
Nenhum reparo nos merece, portanto, o despacho recorrido e nenhuma inconstitucionalidade se vislumbra nas apontadas normas do C.C. Judiciais.»
Conforme já supra notado, desta decisão foi interposto o presente recurso de constitucionalidade.
3. Notificado para o efeito, a recorrente produziu alegações, das quais se podem extrair as seguintes conclusões:
«1ª - São inconstitucionais ? por violação do direito de acesso aos tribunais, decorrente do artº 20º, nº1, da Constituição, conjugado com o princípio da proporcionalidade (cfr artº 266º da Constituição) e da proibição do excesso ? as normas resultantes da conjunção do artº 13º do Código das Custas Judiciais aprovado pelo DL 224-A/96, de 26-11, com a tabela anexa que a este preceito se reporta, com a do artº 53º/3 do mesmo Código e com o artº 41º/2, na parte de cuja aplicação resulta para a Recorrente o pagamento de custas (taxa de justiça e procuradoria) no montante de 82 737,09 €, valor insuscetível de qualquer redução ou isenção. Ao invés, eventualmente acrescerão os juros à taxa legal de 1% por cada mês até ao máximo de cinco anos, o que fará aquela soma ultrapassar os 140.000,00 € (cfr artºs 65º, 67º, 111º e 112º do CCJ, citº, e DL 73/99, de 16-03).
2ª - De facto, da aplicação daqueles preceitos podem resultar taxas de justiça ? e procuradoria ? que tornam inacessível ou muito custoso a um cidadão médio o acesso à justiça sem ter de recorrer ao apoio judiciário: trata-se de normas que originam a atribuição de valores inadmissíveis às ações (artº 41º/2); que não consagram qualquer limite máximo; que não possibilitam a adequação da taxa concreta às especificidades de cada caso, arredando ilegitimamente a possibilidade de intervenção decisória do julgador. Os fins usualmente atribuídos às custas podem muito bem ser atingidos com outras medidas menos desfavoráveis aos que pretendem aceder aos tribunais, como é próprio da “justa medida” a que se reporta o “princípio da proporcionalidade” ou “da proibição do excesso”.
3ª - Na verdade, há que relevar, in casu, o seguinte: a ação não esgotou sequer a normal tramitação na 1ª Instância; não teve (salvo erro) quaisquer incidentes; esteve suspensa a requerimento da ora Recorrente, em suma para evitar a prática de atos inúteis ou as contradições de julgados (dada a pendência doutro processo com objeto fáctico fundamentalmente coincidente); terminou por transação antes do julgamento, com a intenção de deixar a solução do litígio para outra ação e outro tribunal; a Ré-Recorrente obteve naqueloutro processo, quase na íntegra, ganho de causa em relação ao que, no presente, pretendia obter por via reconvencional, podendo dizer-se que quando estes autos terminaram por desistência da instância, a reconvinte, ora recorrente, encontrava-se na posição de vencedora quanto ao mérito… Visto isso, a contagem do indicado montante de taxas, nos termos da legislação de custas pretendidamente aplicável é, de modo manifesto, desproporcionada às características do serviço público concreto prestado, atendendo ao custo de vida em Portugal. Por conseguinte, este montante exagerado resultou apenas do elevado valor da ação – rectius, da reconvenção e respetivos juros – sem tradução na complexidade do processo, não existindo qualquer correspondência entre os custos dos meios do Estado envolvidos e o valor total das taxas cobradas (cfr supra, nº 10.6).
4ª - A ausência de previsão de um limite máximo ou da possibilidade da intervenção moderadora do juiz na fixação do valor das taxas devidas pela tramitação ocorrida permitiu que estas atingissem aquele valor manifestamente desproporcionado e injustificadamente inibidor da utilização dos serviços públicos de justiça. Por isso se defende que essa desproporção flagrante e o exagero daquela quantia violou não só o princípio estruturante constitucional da proibição do excesso, como também o direito de acesso aos tribunais, previsto no artº 20º/1, da Constituição da República Portuguesa, devendo ser proferido juízo de inconstitucionalidade.
5ª - O legislador que procedeu à revisão do Código (DL 324/2003, de 27-12) cuidou, em parte, do mencionado tipo de medidas. Merecem relevo, para os efeitos deste recurso, os seguintes elementos moderadores de tais fatores da inconstitucionalidade: (i) a consagração da regra segundo a qual os juros vencidos na pendência da causa não contam para fixação do valor para efeito de custas; (ii) a possibilidade de isenção de taxa de justiça por decisão fundamentada do juiz (artº 27º/3) e (iii) a não exigibilidade do remanescente da taxa quando a causa termine antes do encerramento da discussão (artº 27º/4).
POR OUTRO LADO:
6ª - O artº 14º do DL 324/2003, de 27-12, que aprovou as alterações ao Código das Custas estipula no seu nº 1 a regra geral segundo a qual “as alterações ao Código das Custas Judiciais constantes deste diploma só se aplicam aos processos instaurados após a sua entrada em vigor”, sendo que esse não é o caso dos presentes autos.
7ª - No entanto, a aplicação literal do preceito no caso vertente representaria uma inadmissível condescendência com um tratamento reconhecidamente desigual de situações sincronicamente iguais, com a agravante de que tal desprezaria sem motivo uma forma fácil e menos gravosa de resolver o problema.
8ª - Subsidiariamente, impõe-se a redução do âmbito de aplicação da norma. Na verdade, é inconstitucional o artº 14º do DL 324/2003, de 27-12, se interpretado de forma a não considerar imediatamente aplicáveis às ações pendentes, por um lado, a redação por ele dada ao artº 53º do Código das Custas Judiciais (com o consequente afastamento, no cálculo do valor da ação, dos juros peticionados e vencidos na pendência); e, por outro lado, a nova redação do artº 27º, designadamente dos seus nºs 3 e 4.
9ª - Com efeito, a não aplicabilidade de tais normas aos processos pendentes só faria persistir e até agravaria a indesejada presença de normas violadoras do princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade; e, ao invés, a sua imediata aplicação em todos os processos é suscetível de eventualmente fazer recuar esse juízo de inconstitucionalidade que aqui se procurou justificar.
10ª - Em suma, requere a Vossas Excelências se dignem, no provimento do recurso, declarar a inconstitucionalidade nos termos expostos ? ou nos ditados pelo douto suprimento das insuficiências do patrocínio ?, revogando a decisão recorrida e determinando a respetiva reforma em conformidade com o decidido quanto à constitucionalidade.»
4. Devidamente notificado para o efeito, o Ministério Público veio apresentar contra-alegações, tendo concluído o seguinte:
«a) concluir pela inconstitucionalidade das normas resultantes da conjugação do art. 13º do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei 224-A/96, de 26 de novembro (com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 320-B/2000, de 15 de dezembro), com a Tabela anexa que a este preceito se reporta, com a do art. 53º, nº 3 do mesmo Código e com o art. 41º nº 2, na parte de cuja aplicação resulta o pagamento de custas (taxa de justiça e procuradoria) no montante de € 82.737,09, por violação do princípio da proporcionalidade, consagrado nos artigos 18º nº 2 e 2º da CRP e do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º da CRP;
b) em contrapartida, não concluir pela inconstitucionalidade da norma do art. 14º do Decreto-Lei 324/03, «se interpretada por forma a não considerar imediatamente aplicáveis às ações pendentes, por um lado, a redação por ele dada ao art. 53º do Código das Custas Judiciais (com o consequente afastamento, no cálculo do valor da ação, dos juros peticionados e vencidos na pendência); e, por outro, a nova redação do art. 27º, designadamente dos seus nºs 3 e 4»;
c) revogando-se, nessa medida, o Acórdão recorrido, do Tribunal da Relação do Porto, de 31 de maio de 2005.»
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. Impõe-se começar por atentar nos preceitos legais, cuja constitucionalidade se encontra em apreciação, que vigoravam à data da instauração da ação que deu causa aos presentes autos de recurso. Por força da redação do (agora revogado) Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de novembro, a lei determinava que:
«Artigo 13º
Base de cálculo da taxa de justiça
1 – Sem prejuízo no disposto nos artigos seguintes, a taxa de justiça é a constante da tabela anexa, sendo calculada sobre o valor das ações, dos incidentes ou dos recursos.
(…)»
«Artigo 41º
Critério de fixação da procuradoria
(…)
2 – Quando o tribunal a não arbitre, a procuradoria é igual a metade da taxa de justiça devida.»
Artigo 53º
Regras gerais sobre o ato de contagem
(…)
3 – A conta é elaborada de harmonia com o julgado em última instância, abrangendo as custas da ação, dos incidentes e dos recursos.»
Acresce ainda, quanto à segunda interpretação normativa que constitui objeto do presente recurso, que o artigo 14º do Decreto-Lei n.º 324/2003, que procedeu à alteração do Código das Custas Judiciais, determina ainda que:
«Artigo 14º
Aplicação no tempo
1 – Sem prejuízo do disposto no número seguinte, as alterações ao Código das Custas Judiciais constantes deste diploma só se aplicam aos processos instaurados após a sua entrada em vigor.
2 – Após a entrada em vigor do presente diploma, o montante dos pagamentos prévios de taxa de justiça inicial e subsequente a efetuar nos processos pendentes é determinado de acordo com a tabela do anexo I.
3 – Os pagamentos e depósitos a efetuar nos processos pendentes à data da entrada em vigor do presente diploma são efetuados de acordo com o disposto no mesmo.»
Por fim, a redação conferida pelo referido Decreto-Lei n.º 324/2003 ao Código das Custas Judiciais passou a estipular que:
«Artigo 27º
Limite da taxa de justiça inicial e subsequente
(…)
3 – Se a especificidade da situação o justificar, pode o juiz, de forma fundamentada e atendendo, designadamente, à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento do remanescente.
4 – Quando o processo termine antes de concluída a fase de discussão e julgamento da causa não há lugar ao pagamento do remanescente.
(…)
Artigo 53º
Regras gerais sobre o ato de contagem
1 – A conta é elaborada de harmonia com o julgado em última instância, abrangendo as custas da ação, dos incidentes e dos recursos, com exceção das custas de parte e da procuradoria, salvo nos casos em que as mesmas devam ser consideradas na conta.
2 – Deve elaborar-se uma só conta por cada sujeito processual responsável pelas custas e multas, que abranja o processo principal e os apensos.»
6. Começando pela primeira questão normativa objeto do presente recurso, impõe-se averiguar se a interpretação conjugada dos artigos 13º, n.º 1, 41º, n.º 2, e 53º, n.º 3, do Código das Custas Judiciais (na sua versão originária) que determine o pagamento de custas judiciais no montante de 82.737,09 €, apenas em função do valor da ação e respetivos incidentes e recursos, através de uma mera proporção aritmética entre um e outro, tal como sucedeu nos presentes autos, se afigura contrária ao “princípio da proporcionalidade” (artigos 2º e 18º, n.º 2, ambos da Constituição da República Portuguesa – de ora em diante, designada por CRP), por restringir, de modo inaceitável, o “direito à tutela jurisdicional efetiva” (artigo 20º, n.º 1, da CRP),.
O Tribunal Constitucional dispõe de jurisprudência mais do que consolidada sobre esta matéria, a propósito da redação – hoje revogada – do anterior Código das Custas Judiciais, que estabelecia a fixação do valor das custas judiciais exclusivamente em função do valor da ação e respetivos incidentes e recursos, através de uma mera proporção aritmética entre um e outro, sem que fosse fixado qualquer limite máximo. Por exemplo, através do Acórdão n.º 227/2007 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt./tc/acordaos/), foi dito que:
«6. Em particular no que respeita à “taxa de justiça”, em causa nos presentes autos, este Tribunal tem considerado que se trata de uma verdadeira taxa e não de um imposto, encontrando-se na sua origem a prestação do serviço de administração da justiça. No Acórdão n.º 8/2000 (igualmente disponível em www.tribunalconstitucional.pt), por exemplo, disse-se o seguinte:
“2.1. De facto, como por várias vezes foi já sublinhado por este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa, a denominada «taxa de justiça» não é algo que deve ser perspetivado como imposto e, por isso, não está sujeita à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República constante, hoje, da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição e, antes, após a Revisão Constitucional operada pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro, da alínea i) do n.º 1 do artigo 168.º (cfr., verbi gratia, os Acórdãos deste Tribunal nºs 412/89, 377/94, 379/94 e 382/94, publicados na 2ª Série do Diário da República de, respetivamente, 15 de setembro de 1989, 7 de setembro de 1994 e 8 de setembro de 1994, e os Acórdãos números 582/94, 583/94 e 584/94, ainda inéditos).”
As razões que levaram o Tribunal Constitucional a emitir tais juízos de não inconstitucionalidade orgânica são (...) totalmente transponíveis para a vertente questão, independentemente de se postar agora um «novo» Código das Custas Judiciais”.
(…)
7.O Tribunal Constitucional nunca apreciou, porém, a norma impugnada no presente recurso (fundada nos artigos 13.º, n.º 1, e tabela anexa, 15.º, n.º 1, alínea m), e 18.º, n.º 2, todos do Código das Custas Judiciais, na versão de 1996), ou uma norma semelhante, segundo a qual o montante da taxa de justiça devida em procedimentos cautelares e recursos neles interpostos, cujo valor excede 49.879,79 €, é definido em função do valor da ação sem qualquer limite máximo ao montante das custas.
Note-se que a solução em causa não vigora já hoje na ordem jurídica, já que legislador veio prever o estabelecimento de limites máximos ao valor da causa relevante para tributação em custas, na reforma do Código das Custas Judiciais operada pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de dezembro. Assim, depois de prever que nas “causas de valor superior a € 250.000 não é considerado o excesso para efeito do cálculo do montante da taxa de justiça inicial e subsequente”, apenas sendo o remanescente considerado na conta a final (artigo 27.º, n.ºs 1 e 2, do Código das Custas Judiciais, na redação dada pelo cit. diploma de 2003), possibilita-se ao juiz, “[s]e a especificidade da situação o justificar”, “de forma fundamentada e atendendo, designadamente, à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento do remanescente” (artigo 27.º, n.º 3). E para as causas de processo administrativo e para os recursos em processo judicial administrativo e em processo judicial tributário cujo valor seja superior a € 250.000, prevê-se mesmo, sem mais, que “o excesso não é considerado para efeitos do cálculo do montante da taxa de justiça do processo” (artigo 73.º-B).
Estas alterações foram justamente ditadas pela preocupação com um valor desproporcionado das custas, quando não existisse qualquer limite máximo, sendo óbvio que a aplicação de qualquer uma das soluções referidas (limite máximo de relevância do valor da causa ou possibilidade de dispensa pelo juiz de pagamento do remanescente em relação a um limite máximo) teria logo permitido, no caso dos autos, evitar um resultado desproporcionado.
(…)
Entende-se que o aprofundamento dos limites objetivos à qualificação de um tributo como taxa ou como imposto – designadamente, a consideração de que se está perante um serviço apenas prestado pelo Estado (dado o monopólio público do uso da força) e a fixação das custas em proporção direta ao valor da causa sem qualquer limite máximo – não poderia deixar de conduzir a considerar que a “taxa de justiça” devida em procedimentos cautelares, e recursos neles interpostos, no montante de € 584.403,82, é desproporcionada ao custo do serviço ou à utilidade tirada do procedimento cautelar. Pelo que, nestas circunstâncias, ficaria mesmo posta em causa a relação de correspondência entre o serviço e o tributo, o qual dificilmente poderia ser qualificado como verdadeira taxa.
(…)
Como se pode ler na declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 349/2002, entende-se que «não carece de mais justificações a verificação de que ocorre, em consequência da interpretação perfilhada pela 1ªinstância e afastada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, uma situação em que a taxa calculada é de “montante manifestamente excessivo”, ou seja, em que há uma “desproporção intolerável” entre “o montante do tributo e o custo do (...) serviço prestado” (…). E, justamente por ser manifestamente exorbitante o valor calculado em função da mesma norma, ocorre também uma violação evidente do direito de acesso ao direito e aos tribunais, sem que seja necessário entrar em considerações relacionadas com o instituto do apoio judiciário, aqui descabidas».
Estas considerações são aplicáveis ao presente caso, em que o valor de taxa de justiça a que se chegaria – € 584.403,82 – era também manifestamente desproporcionado aos custos da atividade jurisdicional num procedimento cautelar, por força da fixação da taxa de justiça, de acordo com os escalões constantes da tabela anexa, em função do valor da causa sem qualquer limite máximo.
O juízo de inconstitucionalidade a que a decisão recorrida chegou merece confirmação – e isto, aliás, independentemente da qualificação do tributo em causa, não só por violação do princípio constitucional da proporcionalidade como por ofensa ao direito de acesso aos tribunais.
10.Quanto à conformidade da interpretação normativa em apreço com a garantia do acesso aos tribunais, consagrada no artigo 20.º da Constituição, não pode deixar de concordar-se com a decisão recorrida, quando chega a um resultado de inconstitucionalidade.
Como este Tribunal afirmou no Acórdão n.º 352/91 (publicado no Diário da República, II Série, de 17 de dezembro de 1991):
«O direito de acesso aos tribunais não compreende [...] um direito a litigar gratuitamente, pois [...] não existe um princípio constitucional de gratuitidade no acesso à justiça (cfr., neste sentido, também o Acórdão n.º 307/90, Diário da República, 2ª Série, de 4 de março de 1991).
O legislador pode, assim, exigir o pagamento de custas judiciais, sem que, com isso, esteja a restringir o direito de acesso aos tribunais. E, na fixação do montante das custas, goza ele de grande liberdade, pois é a si que cabe optar por uma justiça mais cara ou mais barata.
Essa liberdade constitutiva do legislador tem, no entanto, um limite – limite que é o de a justiça ser realmente acessível à generalidade dos cidadãos sem terem que recorrer ao sistema de apoio judiciário.
É que o nosso ordenamento jurídico concebe o sistema de apoio judiciário como algo que apenas visa garantir o acesso aos tribunais aos economicamente carenciados, e não como um instrumento ao serviço também das pessoas de médios rendimentos (salvo, naturalmente, se estas houverem de intervir em ações de muito elevado valor).
Na fixação das custas judiciais, há de, pois, o legislador ter sempre na devida conta o nível geral dos rendimentos dos cidadãos de modo a não tornar incomportável para o comum das pessoas o custeio de uma demanda judicial, pois se tal suceder, se o acesso aos tribunais se tornar insuportável ou especialmente gravoso, violar-se-á o direito em causa»
E acrescentou-se, mais adiante, no mesmo aresto:
«Como todas as decisões legislativas, as decisões que o legislador toma em matéria de custas no que concerne ao quantum delas, são, obviamente, sindicáveis sub specie constitucionis. Mas, ao menos em geral, (...) tais decisões só haverão de ser taxadas de constitucionalmente ilegítimas quando inviabilizem ou tornem particularmente oneroso o acesso aos tribunais para o cidadão médio.»
Esta ideia foi também reiterada no Acórdão n.º 467/91 (publicado no Diário da República, II Série, de 2 de abril de 1992), onde se afirmou:
«[…] esse espaço de conformação [o espaço de conformação do legislador em matéria de custas] tem os limites que são dados pela irredutível dimensão de defesa da tutela jurisdicional dos direitos, postulando soluções legislativas que assegurem um acesso igual e efetivo aos tribunais. Então, o princípio da proporcionalidade vem aqui «alicerçar um controlo jurídico-constitucional da liberdade de conformação do legislador e situar constitucionalmente o espaço de prognose legislativa» (J. J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra 1982, p. 274).
O asseguramento da garantia do acesso aos tribunais subentende uma programação racional e constitucionalmente adequada dos custos da justiça: o legislador não pode adotar soluções de tal modo onerosas que impeçam o cidadão médio de aceder à justiça.»
De acordo com o que se considerou no Acórdão n.º 608/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 16 de março de 2000), “na área em questão” [matéria de custas judiciais], o princípio da proporcionalidade reveste, “pelo menos, três sentidos: o de «equilíbrio entre a consagração do direito de acesso ao direito e aos tribunais e os custos inerentes a tal exercício»; o da responsabilização de cada parte pelas custas «de acordo com a regra da causalidade, da sucumbência ou do proveito retirado da intervenção jurisdicional»; e o do ajustamento dos «quantitativos globais das custas a determinados critérios relacionados com o valor do processo, com a respetiva tramitação, com a maior ou menor complexidade da causa e até com os comportamentos das partes».
Ora, afigura-se claro que a interpretação normativa segundo a qual o montante da taxa de justiça devida em procedimentos cautelares e recursos neles interpostos cujo valor excede 49.879,79 € é definido em função do valor da ação sem qualquer limite máximo, e da qual resultaria, no caso, um montante de custas de € 584.403,82, não se situa logo dentro de limites razoáveis, e antes comporta uma restrição desproporcionada ao direito de acesso aos tribunais.
Com efeito, a ponderação de meios e fins a que este Tribunal é conduzido não pode deixar de ter presente o quantitativo concreto da taxa de justiça exigida às ora recorridas – que era, repete-se, de € 584.403,82 –, originando um débito de custas muito superior aos custos da prestação do serviço de administração da justiça (incluindo o montante da comparticipação nos custos globais do sistema de justiça), dada, também, a circunstância de se estar ainda no âmbito de um processo cautelar, de índole provisória, decidido com base numa apreciação perfunctória e sumária da necessidade da providência.
Em tal procedimento cautelar, não se vê, aliás, como poderia a invocação de uma hipotética utilidade da prestação do serviço que fosse proporcionada aos prejuízos sofridos – e ao valor da causa – prevalecer sobre o interesse das ora recorridas em acautelar esse ressarcimento, em termos de legitimar um montante de custas de € 584.403,82, que, não só tomando como paradigma “a capacidade contributiva do cidadão médio” (Acórdão n.º 248/94, Diário da República, II Série, de 26 de julho de 1994) como mesmo considerando a dimensão económica das requerentes, constitui uma barreira significativa ao acesso aos tribunais. Não se trata, pois, apenas da relevância de um “juízo empírico” (a que se refere o Ministério Público) sobre o montante excessivo das custas, mas, antes, de considerar os efeitos que um (previsível) débito de tal montante, pela fixação das custas em função do valor da causa e sem qualquer limite máximo, realmente produz sobre o direito de acesso aos tribunais, sem que se permita ao tribunal que limite o montante de taxa de justiça devido no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o caráter manifestamente desproporcionado do montante em questão. O que conduz à conclusão de que está, aqui, ultrapassado já o limiar do mero “mau direito”, para se verificar uma verdadeira restrição, para além da “justa medida”, daquele direito fundamental constitucionalmente consagrado.
(…)
“11. Pelo que há que concluir que o valor em causa se revela manifestamente excessivo e desproporcionado, e que a norma que prevê a fixação da taxa de justiça devida em procedimentos cautelares, e recursos neles interpostos, cujo valor excede 49.879,79 €, em proporção ao valor da ação sem qualquer limite máximo ao montante das custas, é inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais, conjugado com o princípio da proporcionalidade, mas apenas na medida em que tal norma não permite ao tribunal que limite o montante de taxa de justiça devido no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o caráter manifestamente desproporcionado do montante em questão.
Há, pois, que determinar a reformulação da decisão recorrida, em conformidade com esta medida do juízo de inconstitucionalidade alcançado (embora, como se sabe, não seja já ao Tribunal Constitucional, mas antes ao tribunal recorrido, que compete extrair e precisar as concretas consequências, no caso, dessa decisão de inconstitucionalidade).»
Este mesmo entendimento viria a ser posteriormente corroborado e reforçado em sucessivas decisões deste Tribunal, que consideraram inconstitucionais interpretações idênticas à que se encontra em apreço nos presentes autos, por, ao não fixarem um limite máximo de custas judiciais a suportar, constituírem uma restrição desproporcionada do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. Nesse sentido, já se consideraram inconstitucionais interpretações que implicavam a sujeição ao pagamento de custas no montante de 584,403,82 € (vide Acórdão n.º 227/2007), de 123.903,43 € (vide Acórdão n.º 471/2007), de 108.743,36 € (vide Acórdão n.º 116/2008) ou mesmo de 17.741,77 € (vide Acórdão n.º 266/2010).
Esta constatação não obsta a que este Tribunal também já tenha afirmado que o vínculo de sinalagmaticidade entre as custas judiciais cobradas e as diligências de administração da Justiça não se traduza numa equivalência estrita, em termos económicos, entre o valor pago e o serviço público efetivamente prestado. Pelo contrário, admite-se uma “muito ampla liberdade de conformação, à luz de critérios diversificados, que vão desde o atendimento dos custos reais de produção, ao grau de utilidade propiciada ao particular, na satisfação da sua necessidade individual, e ao interesse público na generalização ou, inversamente, na retracão do acesso ao bem ou serviço em questão” (vide Acórdão n.º 301/2009). A tal ponto que, nesse mesmo aresto, que conclui pela não inconstitucionalidade de uma interpretação conducente ao pagamento de custas judiciais no montante de 253.033,92 €, que o Tribunal considerou então justificado, atenta a concreta tramitação dos autos recorridos, que envolveu uma ação principal com uma base instrutória de 45 quesitos, 16 sessões de julgamento em 1ª instância, produção de prova pericial, inspeção do local, análise de pareceres de professores universitários juntos aos autos, bem como 6 apensos, em que se processaram 2 procedimentos cautelares de arresto e vários agravos.
Regressando ao caso dos presentes autos, importa notar que essa relativa complexidade da tramitação processual – patente na fundamentação que presidiu ao Acórdão n.º 301/2009 – não se verifica, de modo nenhum, nos autos ora recorridos. Bem pelo contrário, a ação e respetivo pedido reconvencional terminaram com desistência por ambos os sujeitos processuais, sem sequer ter sido necessário proceder-se a audiência de discussão e julgamento. Torna-se, assim, flagrante e manifesta a desproporção entre o serviço público efetivamente prestado e o montante das custas judiciais exigidas à ora recorrente.
Assim sendo, mediante remissão para a fundamentação mais desenvolvida que consta, entre outros, dos Acórdãos n.º 227/2007, n.º 471/2007, n.º 116/2008 e n.º 266/2010, conclui-se que a sujeição ao pagamento de custas judiciais no montante de 82.737,09 €, por força da interpretação conjugada dos artigos 13º (e respetiva tabela anexa), 41º, n.º 2, e 53º, n.º 3, todos do Código das Custas Judiciais, de acordo com a redação do Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de novembro, é inconstitucional por representar uma restrição desproporcionada do direito à tutela jurisdicional efetiva.
7. Quanto à segunda questão normativa, que envolve a interpretação da norma que fixa o regime de aplicação no tempo da nova redação do (agora revogado) Código das Custas Judiciais, conferida pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, importa apenas verificar que a apreciação da mesma fica precludida pela conclusão no sentido da inconstitucionalidade da primeira questão normativa. Na medida em que o recorrente obteve vencimento quanto à primeira questão, fica desprovida de interesse processual a apreciação da segunda questão de inconstitucionalidade normativa.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
i) Não conhecer do objeto do recurso no que diz respeito à norma extraída do artigo 14º do Decreto-Lei n.º 324/2003, por inutilidade processual;
ii) Julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação entre os artigos 13º, 41º, n.º 2, 53º, n.º 3, e tabela anexa ao Código das Custas Judiciais, de acordo com a redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de novembro, quando interpretada no sentido de ser exigível o pagamento de custas no montante de 82.737,09 €, num caso de desistência de instância judicialmente homologada, sem que tenha havido audiência de discussão e julgamento;
iii) Conceder provimento parcial ao recurso interposto;
E, em consequência:
iv) Determinar a baixa dos autos ao tribunal recorrido para que a decisão proferida seja reformada, em conformidade com este julgamento de inconstitucionalidade, conforme determinado pelo artigo 80º, n.º 2, da CRP;
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 28 de novembro de 2013. – Ana Guerra Martins – Pedro Machete - João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura - Joaquim de Sousa Ribeiro.