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Processo n.º 724/13
3ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo Sul, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, a primeira vem reclamar para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da Decisão Sumária n.º 659/2013, que não conheceu do objeto do recurso interposto pelo recorrente com fundamento na falta de correspondência entre o objeto do recurso e a ratio decidendi da decisão recorrida, bem como na falta de suscitação prévia, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, da questão de inconstitucionalidade normativa que se pretendia ver apreciada.
2. O teor da fundamentação da Decisão Sumária n.º 659/2013, de 13 de novembro, é o seguinte:
“(…)
5. Comecemos por referir que o requerimento de interposição de recurso se perde com considerações que são perfeitamente alheias às competências do Tribunal Constitucional. De facto, não cumpre ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre qual deve ser a interpretação a dar ao artigo 9.º da Lei da Nacionalidade. Por isso, não pode tomar em consideração o longo excurso em que a recorrente questiona qual a melhor interpretação a dar àquele artigo. O mesmo se diga no que toca ao facto de a decisão recorrida, como alega a recorrente no final do requerimento de interposição do recurso “não encontrar na lei nenhum suporte normativo, ofendendo o disposto no art. 9.º, n,º1 e 2 do Código Civil, o art. 9.º, al. a) da Lei da Nacionalidade, o art. 57.º, n.º7 do Regulamento da Nacionalidade”, pois que se trata aí pura e simplesmente de um juízo de ordem infraconstitucional e, por isso, estranho aos poderes de cognição do Tribunal Constitucional.
De facto, neste ponto há que relembrar que não incumbe ao Tribunal Constitucional sindicar o juízo subsuntivo feito pelo Tribunal a quo, nem tão pouco averiguar do respeito pelo mesmo das normas legais aplicáveis, fora do quadro específico das alíneas c), d) e e) do art. 70.º, n.º1 da LTC.
6. Postos estes apontamentos preliminares, importa agora saber se o Tribunal pode conhecer do presente recurso.
De acordo com o que se dispõe na alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da Constituição da República Portuguesa e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Isso significa, como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, que o recurso previsto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70º da LTC pressupõe, designadamente, que a decisão recorrida tenha aplicado norma ou interpretação normativa arguida de inconstitucional como ratio decidendi no julgamento do caso. Tem, pois, de existir uma perfeita coincidência entre a norma – ou dimensão normativa – imputada de inconstitucional no requerimento de interposição do recurso, e a norma – ou dimensão normativa – que foi efetivamente aplicada pelo tribunal a quo para fundamentar a decisão final. Atenta a natureza instrumental do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, apenas assim um eventual juízo de inconstitucionalidade se poderá repercutir efetivamente na solução a dar ao caso concreto.
Importa, assim, confrontar a norma objeto do presente recurso, tal como foi delineada pela recorrente, com a norma que sustentou e fundamentou a decisão do Tribunal Central Administrativo Sul de 23/05/2013.
7. A norma objeto do presente recurso é delineada no requerimento de interposição de recurso como sendo a constante do disposto no art. 9.º al. a) da Lei da Nacionalidade, interpretada no sentido de exigir que o cônjuge de nacional português, nascido e residente fora de Portugal, tenha de alegar e provar factos demonstrativos da ligação efetiva à comunidade nacional. Do requerimento de interposição do recurso decorre que, no entendimento da recorrente, o tribunal a quo, baseou a sua decisão num determinado entendimento do art. 9.º, alínea a) da Lei da Nacionalidade, relativo à repartição do ónus da prova, de acordo com a qual competiria ao interessado demonstrar a existência de uma ligação efetiva à comunidade nacional para que a ação de oposição a essa aquisição, interposta pelo Ministério Público, improcedesse.
No entanto, resulta da leitura do acórdão a quo que a sua decisão se baseou, em boa verdade, na norma contida no artigo 343.º do Código Civil. Atente-se na seguinte passagem, decisiva para a solução dada nos presentes autos: “a ação de oposição à aquisição da nacionalidade como ação de simples apreciação negativa, destina-se à demonstração da inexistência de ligação à comunidade nacional, com as consequências que daí resultam, face ao disposto no art. 343.º do CC, segundo o qual compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga”. Assim, o Tribunal a quo chegou ao entendimento de que incumbiria ao Réu provar factos demonstrativos da sua ligação à comunidade nacional, não por ter aplicado uma determinada interpretação do artigo 9.º, alínea a) da Lei da Nacionalidade, mas sim por ter considerado aplicável aos factos o referido artigo 343.º do CC. É certo que o mesmo Acórdão refere também que ao requerente da nacionalidade cabe fazer prova dos elementos necessários perante o conservador – porém, tal referência reporta-se ao procedimento administrativo que se desenrola na Conservatória e não já no processo judicial de oposição à aquisição de nacionalidade, a que os presentes autos respeitam e nos quais se suscitou a questão da repartição do ónus da prova.
Pelo exposto, é fácil concluir que o Acórdão recorrido não fundamentou a sua decisão, contrariamente ao alegado pela recorrente, na norma constante do artigo 9º al. a) da Lei da Nacionalidade, mas sim no norma constante do artigo 343.º do Código Civil. Assim sendo, resta concluir pela impossibilidade de conhecer da questão de constitucionalidade, por falta de um dos pressupostos legais de admissibilidade, a saber: ter a decisão recorrida aplicado, como ratio decidendi, a exata normativa cuja constitucionalidade a recorrente pretende ver apreciada
Tanto bastaria para não se conhecer do objeto do presente recurso.
8. No entanto, sempre se acrescentará que a recorrente não logrou em cumprir um outro pressuposto processual necessário para que o Tribunal Constitucional pudesse conhecer do presente recurso. De facto, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC pressupõe ainda que que o recorrente tenha suscitado, de modo processualmente adequado, perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, a exata questão de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciada, de modo a que este dela pudesse tomar conhecimento. Nos presentes autos, como se verá sumariamente de seguida, é manifesto que tal não aconteceu.
De facto, nas alegações de recurso perante o Tribunal Central Administrativo, o que a recorrente invoca é, sistematicamente, a sua discordância relativamente ao juízo subsuntivo feito pelo tribunal a quo. Atente-se, por exemplo, nas seguintes passagens: “o que está em causa nos presentes autos é a questão de saber se a recorrente tem dignidade para adquirir a nacionalidade portuguesa ou se, ao invés, é uma indesejável que não deve ser admitida na sociedade portuguesa e se, por isso, deve ser repudiada pelo Estado e pelo seu próprio marido, pois que, não desejando o Estado que ela se integre na sociedade em que o marido participa fica ele constrangido a repudia-la, em razão dessa indignidade, ou a aceitar a sua marginalização, ou seja a sua colocação em situação inferior, o que, desde logo, ofende um direito fundamental, garantido pela Constituição da República Portuguesa”. Com toda esta argumentação, a recorrente está longe de enunciar uma norma cuja constitucionalidade pretende ver apreciada. O que ela faz, ao invés, é tecer toda uma sequência de juízos de valor, imputando os mesmos de inconstitucionais. Mais à frente, continuando nesta linha de considerações, refere que “o que se constata é que os tribunais continuam a valer-se da mesma jurisprudência, como se pretendessem manter em vigor a lei antiga e desrespeitar a lei nova. Por isso entendemos que a douta decisão recorrida, como outras que vão nesse sentido, ofende o princípio da separação dos poderes garantido pelo art. 111.º da Constituição”. Ora, nem no que respeita a esta, nem no que toca às considerações anteriores, se pode considerar que a recorrente venha suscitar uma questão de inconstitucionalidade normativa perante o tribunal recorrido, pois nem sequer chega a delimitar uma norma – ou sentido normativos – tidos como inconstitucionais, bastando-se com considerações de ordem genérica perfeitamente alheias a um juízo de inconstitucionalidade normativa.
O último fundamento de inconstitucionalidade invocado perante o tribunal a quo é o da violação do artigo 36.º da CRP. Mas também aqui a recorrente não o logrou fazer de forma a respeitar o exigido pela alínea b) do n.º1 do art. 70.º da LTC. De facto, ela suscita a questão nos seguintes termos: “(…) não foram apresentados ao M.P., nem o M.P. apresentou em juízo quaisquer factos que permitam uma tal conclusão ou a afirmação, com um mínimo de seriedade de que a recorrente não tem a ligação à comunidade portuguesa que a torne indesejável como cidadão da República e que justifique a sua rejeição. Uma tal rejeição ofende por natureza, de forma brutal o princípio da igualdade dos cônjuges, garantido pelo art. 36.º, n.º3 da lei fundamental”. Ora, também neste ponto, a recorrente não suscita uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa. Muito pelo contrário, o que ela verdadeiramente contesta é o juízo subsuntivo feito pelo tribunal a quo. I.e., não invoca uma inconstitucionalidade em relação a uma norma, nem a uma interpretação da mesma vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica. O que pretende obter é, antes, uma proteção direta da sua pretensão através dos princípios constitucionais que considera aplicáveis. Ora, face à inexistência, no nosso ordenamento jurídico, da figura do “recurso de amparo” ou da ação constitucional para defesa de direitos fundamentais, na apreciação de alegadas inconstitucionalidades, apenas normas ou interpretações normativas suscetíveis de generalização podem constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade em sede de fiscalização concreta. Pelo que, por aqui se pode concluir que a recorrente não logrou suscitar, de modo adequado, perante o tribunal recorrido, uma questão de constitucionalidade normativa de que este devesse conhecer e o Tribunal reapreciar em sede de recurso.
Assim, apenas resta concluir pela impossibilidade de conhecer do objeto do recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por manifesta falta dos seus pressupostos de admissibilidade.
(…)”
3. A recorrente apresentou extensa reclamação para a conferência, questionando a interpretação do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade no sentido de que “continua a constituir fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa «a não comprovação pelo interessado de uma ligação efetiva à comunidade nacional»”, alegando que a mesma viola várias disposições constitucionais, entre elas os artigos 2.º, 13.º, 18.º, 25.º, n.º1 e 26.º, n.º1, 27.º, 111.º, n.º1, 202.º, n.º2 e ainda o artigo 8.º, n.º2 da CRP (este último, por violação da Convenção Europeia da Nacionalidade). Tece ainda amplas considerações sobre a melhor interpretação a conferir ao preceito em causa. Termina pedindo que seja “declarada a inconstitucionalidade do artº 9º, al. a) da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, com a redação que lhe foi dada pela Lei Orgânica n.º2/2006, de 17 de abril, no sentido de que “constitui fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa… a) a não comprovação pelo interessado, de ligação efetiva à comunidade nacional”.
4. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação nos termos seguintes:
“ (…)
3º No extenso requerimento de interposição do recurso – que é o momento em que se fixa o objeto –, a parte em que de uma forma clara e de acordo com as circunstâncias dos autos se enuncia uma questão de inconstitucionalidade, é a seguinte:
“A interpretação do disposto no art.º 9.º al. A) da Lei da Nacionalidade no sentido de exigir que o cônjuge de nacionalidade portuguesa, nascido e residente fora de Portugal, tenha de alegar e provar factos demonstrativos da ligação efetiva à comunidade nacional é inconstitucional”.
4º Ora, como nos parece claro, a questão de constitucionalidade tem a ver com o ónus da prova que recai sobre aquele que pretende adquirir a nacionalidade portuguesa, tendo sido deduzida oposição pelo Ministério Público.
5º Naturalmente que, para a resolução desta questão, era convocável o artigo 343.º do Código Civil, que dispõe sobre “ónus de prova em casos especiais”.
6º Foi precisamente essa a norma expressamente aplicada para que, no acórdão recorrido, se tivesse chegado à seguinte conclusão:
“A ação de oposição à aquisição da nacionalidade como ação de simples apreciação negativa, destina-se à demonstração da inexistência de ligação à comunidade nacional, com as consequências que daí resultam, face ao disposto no artigo 343.º do CC, segundo o qual compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga”.
7.º Como decorre da douta Decisão Sumária, ora reclamada, da questão de constitucionalidade, tal como vem enunciada, nunca poderia estar ausente a norma do artigo 343.º do Código Civil.
8.º Assim, não integrando o objeto do recurso - tal como foi delimitado pela recorrente - a norma efetivamente aplicada como ratio decidendi, falta esse requisito de admissibilidade.
9.º Por outro lado, como de forma clara se demonstra na douta Decisão Sumária, “durante o processo” não foi suscitada adequadamente a questão de inconstitucionalidade.
10.º Efetivamente, ao longo das alegações apresentadas no recurso interposto para o Tribunal Central Administrativo do Sul, não se vislumbra a enunciação clara de uma questão de inconstitucionalidade normativa, passível de constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade.
11.º Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação”.
II – Fundamentação
5. A recorrente reclama para a conferência da Decisão Sumária n.º 659/2013, que sustentou a impossibilidade de conhecimento do recurso por não existir correspondência entre o objeto do recurso e a ratio decidendi da decisão recorrida, e ainda pelo facto de a recorrente não ter suscitado, de forma processualmente adequada, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, a questão inconstitucionalidade normativa que pretendia ver apreciada.
6. No entanto, a reclamante não aduz, na reclamação ora apresentada, qualquer argumento que permita abalar os referidos fundamentos que presidiram à decisão sumária de não conhecimento do objeto de recurso. De facto, limita-se a reiterar considerações sobre a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade que, no seu entender, terá sido a adotada pelo tribunal a quo, nada referindo quanto ao facto de a Decisão sumária reclamada ter considerado que essa interpretação pura e simplesmente não tinha constituído a ratio decidendi adotada pelo acórdão recorrido. Também não oferece qualquer resposta em relação à falta de suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade normativa que pretende ver apreciada. A recorrente limita-se, praticamente, a repetir ipsis verbis o seu já extenso requerimento de interposição de recurso, ignorando a fundamentação da decisão sumária n.º 659/2013.
Assim sendo, resta confirmar a decisão de não conhecimento do objeto do recurso por falta dos pressupostos de admissibilidade do mesmo, remetendo-se para a fundamentação da Decisão Sumária n.º 659/2013.
III – Decisão
7. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, nos termos dos artigos 7.º e 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro.
Lisboa, 21 de janeiro de 2014. – Lino Rodrigues Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.