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Processo n.º 997/13
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., Lda., melhor identificada nos autos, reclama para a conferência ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da decisão sumária proferida pelo Relator que decidiu não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade interposto.
2. A reclamação para a conferência tem o seguinte teor:
«(...)
Na decisão sumária ora notificada, este Alto Tribunal decidiu não tomar conhecimento do objeto do recurso, porquanto:
(i) por um lado, a Recorrente «não deu cabal cumprimento ao ónus de suscitação processualmente adequada da questão de constitucionalidade», na medida em que «não se entende se o objeto da controvérsia suscitada nos autos se prende com a interpretação sufragada pelo STA quanto ao caráter discricionário do reenvio prejudicial, ou antes com o ato jurisdicional propriamente dito, isto é, com a decisão de não operar o reenvio in casu.»;
(ii) por outro lado, «a questão de constitucionalidade não foi arguida durante o processo».
- cf. páginas 8 e 9 da Decisão Sumária proferida nos autos
Vejamos,
No modesto entendimento da Recorrente, a eventual deficiência relativa à cabal identificação da específica dimensão normativa que, extraída do artigo 267.º do TFUE, estaria em desconformidade com a Constituição - devida, porventura, a uma fortuita inabilidade de explanação da Recorrente no seu requerimento de recurso -, configura uma imperfeição que vem a ser suscetível de suprimento.
Na verdade, através de um convite ao esclarecimento, formulado no âmbito de um princípio de colaboração recíprocos e respeito pelo princípio de acesso aos tribunais e justiça, poderia a Recorrente aclarar a dúvida que assomou este Alto Tribunal perante o requerimento de recurso: se a questão suscitada se prendia com a interpretação sufragada pelo STA quanto ao caráter discricionário do reenvio prejudicial ou antes com o ato jurisdicional propriamente dito, isto é, com a decisão de não operar o reenvio in casu.
Sendo certo que, conforme a Recorrente tem presente, não compete a este Alto Tribunal apreciar se o Tribunal a quo decidiu erradamente ao não proceder ao reenvio, face à realidade processual e ao direito da União Europeia. Apenas lhe caberá apreciar a inconstitucionalidade da norma de que aquele Tribunal fez aplicação para assim decidir, como é o caso.
Como facilmente se aceitará, a eventual inabilidade de explanação no requerimento da Recorrente, que conduziu a duas interpretações possíveis por este Alto Tribunal quanto à específica dimensão normativa que está em desconformidade com a Constituição, é facilmente suprível pelo esclarecimento, por parte da mesma Recorrente, de qual das questões se encontrava a suscitar perante este Alto Tribunal.
Como tal, quanto a este ponto, sempre se imporia a formulação de um convite ao esclarecimento à Recorrente, considerando tratar-se, manifestamente, de uma eventual imperfeição do requerimento de recurso passível - de forma extremamente simples - de sanação.
Ora, não tendo sido efetuado semelhante convite ao esclarecimento, sempre a Decisão Sumária - ao considerar que do requerimento de recurso resultam possíveis duas interpretações quanto à específica dimensão normativa que está em desconformidade com a Constituição, sem, contudo, notificar a Recorrente para um esclarecimento de qual dessas duas interpretações se referia –, omitiu um passo processual que se impunha ao abrigo do princípio de acesso aos tribunais e justiça e de colaboração recíprocos.
Por outro lado,
A questão de inconstitucionalidade colocou-se nos presentes autos em virtude da interpretação que foi feita pelo Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) no seu aresto, sobre a necessidade de pronúncia do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) quanto ao âmbito da obrigação de notificação prévia prevista no artigo 108.º, n.º 3, do Tratado de Funcionamento da União Europeia (“TFUE”).
Relembre-se que, nos termos do disposto no artigo 267.º do TFUE, o reenvio prejudicial só é obrigatório para o Tribunal superior (ou seja, para o Tribunal cuja decisão não é suscetível de recurso judicial previsto no direito interno).
Logo, é perante o respetivo não cumprimento do dever de reenvio, através de uma interpretação/aplicação do disposto no artigo 267.º do TFUE manifestamente inconstitucional, que vem invocada pela Recorrente semelhante inconstitucionalidade,
Que, pela sua própria natureza – por contrariar frontalmente o princípio do juiz legal/natural consagrado nos artigos 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, da Constituição e o disposto nos n.ºs 1 a 4 do artigo 8.º da Constituição -, era tudo menos expectável, não sendo exigível à Recorrente que levantasse em momento anterior essa questão de inconstitucionalidade.
De todo o modo,
A verdade é que a inconstitucionalidade da interpretação em causa foi suscitada na peça processual de arguição de nulidades do Acórdão proferido pelo STA, a fls. dos autos,
Requerimento que pela sua própria natureza – relembre-se, arguição de nulidade do Acórdão proferido pela última instância -, só aquele Tribunal dispunha ainda de poder jurisdicional para apreciar e decidir.
Com efeito, ainda era jurisdicionalmente possível ao Tribunal, após a prolação da decisão final, pronunciar-se sobre as nulidades arguidas e, consequentemente, sobre a inconstitucionalidade apontada in casu – aliás, como o STA veio a fazer nos autos, com a prolação do Acórdão de 26 de junho de 2013.
Se, na verdade, o poder jurisdicional do STA quanto a essa questão da inconstitucionalidade da interpretação/aplicação que fez do disposto no artigo 267.º, n.º 3, do TFUE, se tivesse esgotado com a prolação da decisão final, não poderia o mesmo Tribunal ter-se sobre a mesma pronunciado,
O que – repita-se - não sucedeu no caso, tendo o STA apreciado, com efeito, a inconstitucionalidade invocada, reexaminando essa questão e fundamentado a sua interpretação do disposto no artigo 267.º, n.º 3, do TFUE,
Interpretação cuja inconstitucionalidade foi, assim, tempestivamente, suscitada durante o processo pela Recorrente e que motivou, ainda, um reexame dessa questão e uma apreciação por parte do Tribunal Superior que a havia consagrado.
Razão pela qual se encontra cumprido, in casu, o exigente critério de suscitação tempestiva da questão de inconstitucionalidade.
Note-se, por fim, que o alcance da obrigação de notificação prévia previsto no atual artigo 108.º, n.º 3, do TFUE, e não abrangência da medida parafiscal em causa nos autos por essa obrigação, vem a ser o parâmetro da decisão proferida pelo STA,
Não tendo esse Tribunal, no entanto, procedido à interpretação correta da referida obrigação (inclusivamente perante a decisão da Comissão de iniciar um procedimento de averiguações de auxílio estatal ilegal), nem permitindo que a instância autorizada em último grau a proceder à interpretação do direito da União Europeia o fizesse.
Desta forma, no caso em apreço, é manifesto que a denegação do reenvio prejudicial pela última instância (reenvio tendente a obter a correta interpretação do alcance da obrigação de notificação prévia prevista no n.º 3 do artigo 108.º do TFUE em face da medida parafiscal em causa nos autos), viola o princípio constitucional do juiz natural ou legal,
Na medida em que o juiz comunitário vem a ser o intérprete último do artigo 108.º do TFUE, pois só ele pode garantir a aplicação uniforme do direito da União Europeia[1], que é acolhido diretamente no nosso ordenamento por força do disposto nos n.ºs 1 a 4 do artigo 8.º da Constituição.
(...)»
3. Notificada da reclamação deduzida, a entidade recorrida não apresentou resposta.
II. Fundamentação
4. A decisão sumária tem a seguinte redação:
«(...)
1. A., Lda, melhor identificada nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 23 de abril de 2013, que negou provimento ao recurso interposto pela recorrente.
2. O requerimento de recurso tem o seguinte teor:
«(...)
A norma cuja inconstitucionalidade se pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional encontra-se consagrada no parágrafo 3.º do artigo 267.º do Tratado de Funcionamento (“TFUE”) na interpretação que dela fez o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão recorrido.
Com efeito, tal interpretação viola, no entender da recorrente, os n.ºs 1 a 4 do artigo 8.º da Constituição da República, bem como o princípio do juiz legal/natural, consagrado nos artigos 216.º, n.º 1, e 217.º, n.º 3, da CRP, uma vez que implica a negação da competência exclusiva atribuída ao Tribunal de Justiça da União Europeia para julgar questões prejudiciais relativas à interpretação de normas do direito comunitário, quando as mesmas são suscitadas em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno.
A interpretação do parágrafo 3 do artigo 267.º do TFUE no sentido que vem referido implica , também, a inconstitucionalidade desta norma à luz do n.º 1 do artigo 277.º da CRP, na aplicação/interpretação que lhe foi dada pelo Supremo Tribunal Administrativo.
O não reenvio prejudicial pela última instância de recurso de uma questão de interpretação de direito comunitário primário – em concreto, do artigo 88.º, n.º 3, do TCE (atual artigo 108.º, n.º 3, do TFUE) – só se colocou, pela primeira vez, com a prolação do Acórdão recorrido e respetiva interpretação/aplicação que foi feita do referido artigo 267.º do TFUE.
Uma tal interpretação, insista-se, por contrariar frontalmente o disposto nos n.ºs 1 a 4 do artigo 8.º da CRP, bem como o princípio do juiz legal/natural, consagrado nos artigos 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, da CRP, era tudo menos expectável,
E daí que se deva tomar este segmento decisório do Supremo Tribunal Administrativo como uma verdadeira e própria decisão surpresa, motivo pelo qual apenas foi invocada tal inconstitucionalidade no requerimento de arguição de nulidade do Acórdão recorrido.
Sendo certo que a interpretação/aplicação do artigo 267.º do TFUE que o Supremo Tribunal Administrativo reiterou na apreciação da referida nulidade conservou-se contrária ao disposto nos n.ºs 1 a 4 do artigo 8.º da CRP, bem como ao princípio do juiz legal/natural, consagrado nos artigos 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, da CRP.
(...)»
3. A recorrente apresentou impugnação judicial, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, contra o indeferimento do pedido de revisão oficiosa de um ato de liquidação de uma taxa de promoção, relativa ao mês de setembro de 2007, cobrada pelo Instituto da Vinha e do Vinho, I.P., no valor de €10.401,95. Este decidiu julgar a impugnação totalmente improcedente, motivando o recurso para o Supremo Tribunal Administrativo. Nas conclusões do recurso, a recorrente entendeu que “caso se suscitem dúvidas relativamente ao alcance da obrigação de notificação prévia e efeito suspensivo no caso da taxa em causa nos presentes autos, mais se requer, nos termos do art. 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, que a instância seja suspensa e se proceda ao reenvio do processo ao Tribunal de Justiça da União Europeia para que esta instância se pronuncie sobre as seguintes questões prejudiciais (...)”.
Em acórdão de 23 de abril de 2013, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu nos seguintes termos:
«(...)
3. Da questão prévia
Afigura-se que não assiste razão ao recorrido quanto ao facto de as alegações não darem cumprimento ao art. 685.º-A, nº 2, alíneas a) e b), do CPC. Com efeito, a recorrente indica as razões da discordância face ao decidido com base, desde logo, no entendimento diferente que se defende sobre o conceito de auxílio estatal, mais amplo do que o adotado.
Por outro lado, a recorrente é muito clara quando defende, ao contrário do decidido pela sentença recorrida, manter-se a ilegalidade ou vício decorrente da violação do disposto no art. 88.º, n.º 3, do TCE, atual 108.º, nº 3, do TFUE, seguindo e mencionando jurisprudência do Tribunal de Justiça (TJ).
Improcede, pois, a invocada questão prévia.
4. Caracterização da taxa de promoção do vinho
Segundo o n.º 1 do artigo 17.º da Lei Orgânica do Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 209/2006, de 27 de outubro, o Instituto do Vinho e da Vinha (IVV, IP), tinha por missão “coordenar a controlar a organização institucional do setor vitivinícola, auditar o sistema de certificação de qualidade, acompanhar a política comunitária e preparar as regras para a sua aplicação, bem como participa na coordenação e supervisão da promoção dos produtos vitivinícolas.”
(...)
Com interesse para a decisão, importa ainda considerar que, segundo a Decisão da Comissão de 2010, o produto da taxa de promoção, que representa mais de 62% do orçamento afeto ao funcionamento do IVV, I.P., destina-se, em primeiro lugar, ao financiamento dos serviços de coordenação geral do setor do vinho prestados por si e, em segundo lugar, às atividades de promoção do vinho e dos produtos vínicos.
No que respeita à atividade de promoção do vinho, verifica-se que uma parte da taxa é destinada a campanhas de promoção do vinho e dos produtos vínicos, sem referência à sua origem, em Portugal, e, outra parte, a campanhas de promoção do vinho e dos produtos vínicos portugueses no território de outros Estados-membros e de países terceiros. No período sobre que incidiu a decisão da Comissão de 2010, os custos das ações de formação organizadas pelo IVV, I.P., com exceção de uma formação de interesse geral «Sistemas de informação e gestão vitivinícola 2000», cujo custo total foi de 367,12 EUR, foram integralmente suportadas pelos programas do Fundo Social Europeu, pelo que nem os agentes económicos nem o IVV tiveram de contribuir para o seu financiamento.
É esta taxa que, segundo a recorrente, enferma de ilegalidade manifesta, decorrente da falta de notificação prévia à Comissão e respetiva execução antes da decisão final daquela entidade, ao arrepio do disposto no n.º 3 do artigo 88.º do TCE (atual n.º 3 do artigo 108.º do TFUE) pontos D e L das Conclusões.
5. Da relevância das decisões da Comissão emitidas sobre a taxa de promoção
(...)
Os auxílios não notificados ou postos em execução antes de uma decisão da Comissão são objeto de um específico protesto de controlo que se inicia com a receção e análise de informações que a Comissão tenha recolhido oficiosamente ou através de denúncia de terceiros.
No caso em apreço, a Comissão Europeia, na sequência de uma queixa, questionou as autoridades portuguesas, em 20 de janeiro de 2003, sobre a taxa parafiscal de promoção do vinho cobrada pelo Instituto da Vinha e do Vinho, tendo notificado Portugal, em 6 de dezembro de 2004, da sua decisão de início do procedimento formal de exame previsto no art. 108.º, n.º 2, do TFUE, com vista a analisar da compatibilidade da referida taxa com as regras do Tratado sobre os auxílios de Estado.
(...)
Em suma, nesta decisão, a Comissão conclui que os auxílios à promoção e à publicidade do vinho português nos mercados dos outros Estados-membros e de países terceiros e o respetivo financiamento poderiam ser compatíveis com o mercado a título condicional, isto é, desde que Portugal respeitasse as condições indicadas no art. 3.º, n.º 2 daquela Decisão, as quais implicavam o reembolso de uma parte proporcional da taxa aplicada aos produtos provenientes dos outros Estados-membros, entre 1997 e 31 de dezembro de 2006.
(...)
Acontece que, como se pode ler no considerando (2) da Decisão da Comissão de 4/4/2012 (que procedeu à alteração da Decisão de 2010), Portugal impugnou a Decisão da Comissão de 2010 mediante recurso interposto perante o TJ, tendo pedido, nas alegações apresentadas, a anulação das sétima e nona condições estabelecidas no artigo 3.º, n.º 2 da Decisão de 2010.
(...)
Nesta sequência, dando razão ao Estado português, a Comissão emitiu decisão complementar, a Decisão C (2012) 2111 final, de 4 de abril de 2012, que veio alterar as condições sétima e nona da Decisão de 2010, nos termos acordados com as autoridades portuguesas desde a data da primeira decisão, tendo em conta a sua natureza interpretativa autêntica. A Comissão, nesta segunda Decisão, limitou designadamente a renúncia ao recebimento da taxa de promoção do vinho no que se refere à parte proporcional que incide sobre os produtos importados de outros Estados-membros.
(...)
6. O controlo dos auxílios não notificados
O art. 108.º, n.º 3, do TFUE, estabelece que para além de a Comissão deve ser previamente notificada dos projetos relativos à instituição ou alteração de quaisquer auxílios, a partir do momento em que der início ao procedimento previsto no n.º 2 do mesmo preceito, tendo em vista averiguar se determinado auxílio é ou não compatível com o mercado interno, o Estado-membro em causa não pode pôr em execução as medidas projetadas antes de tal procedimento haver sido objeto de uma decisão final (obrigação de não atual ou de «standstill»).
(...)
Aos órgãos jurisdicionais cabe velar pelo cumprimento das formalidades relativas à comunicação prévia dos auxílios, protegendo os direitos dos particulares face a uma eventual inobservância da obrigação de standstill, consagrada no art.º 108.º, n.º 3, TFUE, para fazer respeitar, até à decisão final da Comissão. Para além disso, os tribunais nacionais têm ainda competência para ordenar a restituição de auxílios atribuídos pelos Estados em violação daquele preceito.
Realce-se, porém, que, no Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 12 de fevereiro de 2008, proc C-199/06, conclui-se que os Estados-membros não são obrigados a exigir a restituição de auxílios não oportunamente notificados, mas declarados compatíveis pela Comissão.
(...)
No caso em apreço, não se coloca qualquer litígio que tenha como objeto a restituição de auxílios colocada, por exemplo, por uma empresa concorrente ou beneficiária dos mesmos, sendo que, como vimos, esta questão acabou até por ser abandonada pela Comissão.
O que se questiona é o facto de, por um lado, não ter havido comunicação prévia da taxa de promoção em causa durante o respetivo procedimento legislativo nem no regulamentar. Por outro lado, coloca-se o problema da repercussão de tal omissão sobre a validade da autoliquidação em causa (relativa a setembro de 2007), sobretudo a partir do momento em que a Comissão decidiu em 2004 dar início ao procedimento formal de investigação, previsto no n.º 2 do art. 108º do TFUE e no artigo 6.º do regulamento 659/99, relativamente ao exame do auxílio em causa, por eventual violação da obrigação de «standstill» (n.º 3 do art. 108.º do TFUE).
(...)
7. Quanto à alegada violação da obrigação de comunicação prévia durante o procedimento de criação da taxa de promoção
7.1.1. Na situação em análise, na senda das Decisões da própria Comissão, temos que distinguir, por um lado, a suposta ajuda de Estado (ou auxílio estatal) consistente nas ações de promoção e publicidade dos vinhos portugueses em outros Estados-membros e países terceiros e o respetivo financiamento, através de uma pequena parcela da taxa de promoção e, por outro lado, a componente da taxa cobrada aos operadores do setor vitivinícola e afeta, no essencial, ao financiamento da atividade do IVV, I.P.
(...)
Acontece que, no caso em apreço, não havia lugar à obrigação de notificação prévia da taxa em causa, como passamos a demonstrar.
Vejamos.
(...)
Daquele preceito retira-se que “um auxílio de Estado será toda a medida que seja financiada por meios de recursos públicos, que conceda uma vantagem económica, seja seletiva, distorça ou ameace distorcer a concorrência no mercado único e, por último, afete o comércio entre os EM”.
A ideia geral é a de que um auxílio implica uma transferência de recursos estatais, onde se incluem as medidas de incentivo, que comportam um sacrifício para as contas públicas, seja na forma de despesa (subvenções, subsídios), seja na forma de uma não perceção de receitas (isenções fiscais, dispensa de pagamento de taxas).
No caso em apreço, estamos a falar de uma taxa parafiscal cobrada pelo IVV, I.P., aos operadores do setor desde 1995, pelo que a transferência de recursos se faz fundamentalmente dos particulares para o Estado e não deste para aqueles.
(...)
Não obstante o exposto, na apreciação do auxílio em causa, não pode deixar de relevar o facto de não existir uma noção de “auxílio estatal” e de estarmos na presença de uma taxa, sendo que, como vimos, em princípio, as taxas não são consideradas ajudas estatais, segundo a jurisprudência do TJ. Por outro lado, trata-se de uma taxa, que incide sobre os agentes económicos do setor e cujo objetivo essencial de criação é o de financiar as atribuições do IVV, I.P. O que significa que a mesma não implica, à partida, um auxílio concedido direta ou indiretamente através de recursos do Estado, característica típica associada à qualificação dos auxílios de Estado.
Por outro lado, realce-se que, na decisão de início do procedimento formal de exame, de 2004, a Comissão não teve dúvidas que o financiamento, através das receitas da taxa de promoção, das atividades desenvolvidas pelo IVV, I.P., enquanto autoridade pública responsável pela coordenação geral do setor vitivinícola em Portugal, não constitui um auxílio de Estado na aceção do agora artigo 107.º do TFUE.
Acresce que não podemos deixar de salientar que, mesmo em relação às dimensões da taxa de promoção que suscitaram dúvidas, a Comissão acabou por aceitar a argumentação da República Portuguesa no sentido de que se encontram abrangidas pelos Regulamento (CE) n.º 1998/2006, de 15 de dezembro, e cumprem os limites de minimis aí estabelecidos.
Assim sendo, à partida, no momento da sua criação, era igualmente plausível ou prognosticável que a pequena parte afeta ao financiamento das medidas de promoção e publicidade respeitassem os limites de minimis, como a Comissão veio reconhecer a final.
(...)
O que se conclui é que a Comissão avançou de forma automática para o procedimento de averiguação sem antes ter analisado se os alegados auxílios estavam abaixo dos limiares fixados como um auxílio de minimis e, por conseguinte, fora do seu âmbito de intervenção, uma vez que o seu controlo pertence à responsabilidade exclusiva dos Estados-membros.
Assim sendo, por todas as razões apontadas, considera-se não existir, na situação em apreço, “um grau suficiente de probabilidade” de tal medida envolver auxílios estatais, em termos de exigir a sua notificação prévia no decurso do procedimento legislativo de criação de taxa nem a consequente suspensão da sua execução”.
Por conseguinte, afigura-se patente que não assiste razão à recorrente quanto à alegada ilegalidade da taxa de promoção decorrente da não notificação prévia à comissão Europeia durante o respetivo procedimento legislativo, ao arrepio do estabelecido no n.º 3 do art. 88.º do TCE (ponto L das Conclusões).
7.1.2. Tendo-se concluído pela inexistência, no caso em apreço, da obrigação de notificação, tal implica necessariamente inexistir igualmente obrigação de suspensão da execução da taxa em causa, justificando-se a manutenção da autoliquidação em causa.
Mas ainda que assim não se entendesse, a anulação da totalidade da taxa de promoção, como pretende a recorrente, por vício formal de procedimento, que é o único vício por si alegado, nas circunstâncias do caso, seria contrária, desde logo, ao princípio da proporcionalidade.
Como ficou dito, as razões que levam a Jurisprudência do TJ e a própria doutrina a sancionar com a nulidade o incumprimento da obrigação de comunicação prévia das ajudas de Estado reside na particularidade do bem jurídico que se pretende acautelar e que é o de impedir a entrada em vigor de ajudas contrárias ao Tratado e evitar que as trocas entre os Estados-membros sejam perturbadas pelas vantagens concedidas pelas autoridades públicas que falseiem ou ameacem a concorrência.
Ora, no caso em apreço, a finalidade que se pretende obter foi alcançada, na medida que não subsiste qualquer violação do Direito Comunitário, pelo que a aplicação automática da sanção de nulidade seria manifestamente desproporcionada. Sobretudo se se tiver em conta que, recorde-se, a receita da taxa afeta ao financiamento das atividades do IVV, I.P., corresponde a mais de 62% do seu orçamento e que a componente da taxa que inicialmente suscitou dúvidas à Comissão representa apenas uma pequena parte.
Note-se também que a proceder a tese da recorrente, a mesma teria como consequência pôr em causa o financiamento da atividade do IVV, I.P., pelo menos desde 1995, com a consequente violação dos princípios da confiança e da segurança jurídica.
Finalmente, tal como consignado nas conclusões do Advogado Geral L. A. Geelhoed, atrás mencionadas, a obrigação de notificação “não pode constituir um obstáculo à competência dos Estados-membros para pôs em execução regulamentações fiscais gerais. Com efeito, estas não podem, por definição, constituir um auxílio.”
Finalmente, para além do que já ficou dito, não podemos deixar de salientar que, como ficou demonstrado, a liquidação da taxa de promoção que diz respeito à situação da recorrente não foi afetada pelas dúvidas suscitadas pela Comissão quando decidiu dar início ao procedimento de investigação previsto no art. 88.º, n.º 2, do TCE (art. 108.º, n.º 2, do TFUE)
(...)
Em suma, a tese da recorrente conduziria, como já foi dito, a resultados absurdos e manifestamente desproporcionados”
(...)
Em face de tudo o que vai exposto, não havendo dúvidas quanto à não verificação da obrigação de comunicação prévia, fica consequentemente prejudicado o pedido de reenvio, por inutilidade.
(...)»
Inconformada, a recorrente veio arguir a nulidade do acórdão prolatado (a fls. 324), ao abrigo do disposto nos artigos 668.º, n.º 1, alínea c), e n.º 4, e 716.º, todos do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi do disposto na alínea e) do artigo 2.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT). Invocou, entre outros vícios, a seguinte inconstitucionalidade:
«(...)
III. Da Inconstitucionalidade por não reenvio prejudicial
Acresce que ao não proceder ao reenvio oportunamente solicitado pela A., Lda, verifica-se uma inconstitucionalidade decorrente da omissão do dever de reenvio prevista no parágrafo 3 do artigo 267.º do TFUE.
Com efeito, verifica-se uma violação do princípio do juiz legal/natural, consagrado nos artigos 32.º, n.º 9, 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, da CRP, uma vez que implica a negação da competência exclusiva atribuída ao Tribunal de Justiça da União Europeia para julgar questões prejudiciais relativas à interpretação de normas do direito comunitário, quando as mesmas são suscitadas em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno.
(...)»
Quanto a esta questão em particular, o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 26 de junho de 2013, considerou que:
«(...)
5.3 Da inconstitucionalidade por não reenvio prejudicial
Por conseguinte, à luz da citada jurisprudência, o reenvio só será obrigatório, designadamente se a questão for pertinente ou relevante para a decisão da causa, competindo ao juiz nacional, “a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça.”
Neste sentido, também segundo Jónatas Machado, “o reenvio não é um recurso ou uma faculdade processual das partes do processo principal (...). O reenvio integra uma competência exclusiva de natureza jurisdicional (...). O facto de uma das partes suscitar uma questão de interpretação ou validade de um ato da UE não significa que haja lugar a reenvio prejudicial (...)”.
E, mais adiante, o mesmo Autor pondera que “O reenvio prejudicial para o TJUE é, em princípio, facultativo, dependendo exclusivamente de decisão discricionária do tribunal nacional. No entanto, casos há de reenvio prejudicial obrigatório, sendo que pressuposto importante que vale independentemente de se tratar de reenvio facultativo ou obrigatório “prende-se com a relevância da questão. Nos termos do art. 267.º do TFUE, compete ao juiz nacional, a quem o litígio haja sido submetido, apreciar a necessidade de uma decisão prejudicial para a prolação de uma decisão final e decidir sobre a pertinência das questões que submete ao TJUE. A questão deve ser suficientemente relevante para o desfecho do caso concreto para justificar o reenvio (...)”
Em suma, no caso dos autos, o acórdão referido, ao concluir pela desnecessidade do reenvio limitou-se a fazer uso da discricionariedade que lhe é própria na matéria, em conformidade com a jurisprudência do TJ e da doutrina.
(...)»
4. O recurso foi admitido pelo Tribunal recorrido. Contudo, em face do disposto no artigo 76.º, n.º 3, da LTC, e porque o presente caso se enquadra na hipótese normativa delimitada pelo artigo 78.º-A, n.º 1, do mesmo diploma, passa a decidir-se nos seguintes termos.
5. Sendo o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, necessário se mostra que se achem preenchidos um conjunto de pressupostos processuais. A par do esgotamento dos recursos ordinários tolerados pela decisão recorrida, exige-se que o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma adequada, uma questão de constitucionalidade, questão essa que deverá incidir sobre normas jurídicas que hajam sido ratio decidendi daquela decisão.
In casu, porém, não é isso que sucede. Desde logo, a questão que a recorrente levanta nos autos não reentra nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional. De facto, não procede o argumento de que a violação do direito da União Europeia, por entidades nacionais, se traduz, a nível interno, numa violação da própria Constituição, mormente do n.º 4 do artigo 8.º (1.ª parte). Daqui deflui que em causa não está, verdadeiramente, a violação de normas constitucionais, mas sim a violação do artigo 267.º do TFUE, questão que naturalmente extravasa a competência deste Tribunal (cfr., neste sentido, o acórdão n.º 6/2012, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Mesmo que assim não se entenda, certo é que em nenhum momento da sua intervenção processual a recorrente logrou identificar, como lhe competia, a específica dimensão normativa que, extraída do artigo 267.º do TFUE, estaria em desconformidade com a Constituição. Limitou-se a contestar a constitucionalidade de tal norma “na interpretação que dela fez o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão recorrido”, o que naturalmente inviabiliza o controlo, por parte deste Tribunal, da natureza normativa ou jurisdicional do ato questionado pela recorrente. Com efeito, não se entende se o objeto da controvérsia suscitada nos autos se prende com a interpretação sufragada pelo STA quanto ao caráter “discricionário” do reenvio prejudicial, ou antes com o ato jurisdicional propriamente dito, isto é, com a decisão de não operar o reenvio in casu. Destarte, cumpre concluir que a recorrente não deu cabal cumprimento ao ónus de suscitação processualmente adequada de uma questão de constitucionalidade normativa.
Acresce ainda que a questão de constitucionalidade não foi arguida durante o processo, ou seja, antes da prolação da decisão recorrida, maxime, num momento prévio ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria em causa (cfr, entre outros, o acórdão n.º 352/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). De facto, a recorrente suscitou, pela primeira vez, a questão de constitucionalidade que pretendia ver apreciada no requerimento de arguição de nulidades de fls. 324, portanto, já depois de proferida a decisão recorrida.
Nem se argumente, contra o exposto, que tal decisão consubstancia, quanto a este ponto, uma decisão surpresa, leia-se, uma decisão não antecipável pela recorrente aquando da interposição do recurso para o STA. Na verdade, já no requerimento subjacente a tal recurso se levantara a questão da necessidade de reenvio prejudicial, pelo que, atento o exigente critério veiculado pela jurisprudência constitucional em matéria de suscitação tempestiva (cfr., entre outros, o acórdão n.º 479/89, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), há que concluir que sempre seria exigível à recorrente a arguição, durante o processo, daquela questão de constitucionalidade.
6. Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objeto do recurso.
(...)»
5. A reclamação apresentada pela reclamante não coloca minimamente em crise a decisão sumária proferida. Com efeito, o juízo de não conhecimento agora objeto de reclamação fundou-se no não preenchimento, pelo recurso de constitucionalidade interposto, dos pressupostos processuais inferidos a partir da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
Invoca a reclamante, em síntese, que: (i) havendo dúvidas sobre o exato teor da questão de constitucionalidade levantada nos autos, deveria o Relator ter proferido despacho-convite ao abrigo do disposto no n.º 6 do artigo 75.º-A, da LTC; (ii) a arguição de tal questão, levada a cabo no requerimento de arguição de nulidades, foi tempestiva, visto não lhe ser exigível que a tivesse levantado em momento anterior; (iii) a questão que enforma o objeto do recurso entra nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional.
Ora, não tem razão a reclamante, pelos motivos que seguidamente se dão conta. Desde logo porque o arrazoado exposto não permite contrariar o argumento, vertido na decisão sumária, de que a questão levantada não reentra nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional. Ou seja, como ali se disse e resulta da jurisprudência deste Tribunal, não procede a proposição de que a violação do direito da União Europeia, por entidades nacionais, se traduz, a nível interno, numa violação da própria Constituição, mormente do n.º 4 do artigo 8.º (1.ª parte) e dos artigos 216.º, 217.º e 277.º, todos da CRP.
Acresce que, ao contrário do que reivindica a reclamante, o despacho-convite previsto no n.º 6 do artigo 75.º-A, da LTC não poderia ter sido mobilizado pelo Relator, por não estar em causa uma deficiência ou debilidade meramente formal do requerimento de recurso apresentado (cfr. o n.º 1 do artigo 75.º-A, da LTC). Na verdade, a ininteligibilidade e inadequação apontadas na decisão sumária incidiram sobre a suscitação empreendida pela (então) recorrente no requerimento de arguição de nulidades e não sobre a delimitação do objeto de recurso por ela operada no requerimento para o Tribunal Constitucional (fls. 426). Sublinhe-se, ainda, que o facto de a arguição da questão de constitucionalidade não ter respeitado índices mínimos de clareza e inteligibilidade teve evidentes repercussões na apreciação promovida pelo Supremo Tribunal Administrativo, concluindo este – tão-só – que a decisão de não reenvio prejudicial não merecia censura, atenta a discricionariedade que lhe é própria.
Finalmente, não colhem os argumentos invocados quanto à tempestividade da arguição da questão de constitucionalidade, porquanto – independentemente de quaisquer outros motivos de ordem formal – sempre se terá de concluir, como supra se deixou expresso, que a alegada violação dos direitos da União Europeia, por entidades nacionais, não se traduz numa violação da própria Constituição.
Assim sendo, nada avançando a presente reclamação que permita obstar às conclusões vertidas na decisão sumária, cumpre reiterar o juízo de não conhecimento do objeto do recurso que nela foi proferido.
III. Decisão
6. Termos em que o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação apresentada e, por conseguinte, confirmar a decisão sumária proferida.
Custas pela reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 17 de dezembro de 2013. – José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.
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[1] Relembre-se que o mecanismo do reenvio prejudicial visa, justamente, garantir a aplicação uniforme do direito da União Europeia.